Autobiografia de Madame Guyon

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Seu único crime foi amar a Deus.

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Prezado(a) _____________________________________ .

Esta obra está na categoria dos mais elevados e reconhecidos

clássicos cristãos. Nela há uma unção especial que descortina

segredos espirituais para uma alma em busca de Deus.

Sinceramente, este presente é uma pérola de grande valor

para alguém especial como você.

Que Deus a use para revelar Sua vontade e para trazer luz

quanto aos Seus misteriosos tratamentos em sua vida.

De coração, ____________________________________ .

______________________, ____ de _______________ de _______

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Título do original em inglês:Autobiography Of Madame GuyonEscaneado da edição da Moody Press, Chicagopor Harry Plantinga, 1995

Copyright © 2004 Editora dos Clássicos

Tradução: Valéria Lamim Delgado Fernandes Revisão: Paulo César de OliveiraCapa: Magno PaganelliDiagramação: Rafael AltProdução e coordenação editorial: Gerson Lima

1ª edição: outubro de 20042ª edição: outubro de 2008

P714a Plantinga, HarryAutobiografia de Madame Guyon / Harry Plantinga ;

tradução Valéria Lamim Delgado Fernandes. – São Paulo : Editora dos Clássicos, 2004.

14x21cm. ; 432 p.

ISBN 85-87832-30-1

1. Autobiografia – Madame Guyon. I. Título.

CDU 929Guyon

Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados na língua portuguesa por

Editora dos ClássicosSite: www.editoradosclassicos.com.br

Fones: (19) 3889-1368 / (19) 3217-7089

Proibida a reprodução total ou parcial deste livro sem a autorização escrita dos editores.

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3ª reimpressão: julho de 2012

E-mail: [email protected]

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Sumário

Introdução ...................................................................13

Parte 1

1. O Encargo desta Obra ............................................ 19

2. Uma Criança com o Coração Dilacerado ..............27

3. Uma Infância na Escola do Sofrimento .................35

4. Nuvens Escuras, no Caminho da Luz ....................41

5. Quanta Compaixão pelos Pecadores! .................... 51

6. O Casamento, uma Casa de Luto ...........................63

7. O Vazio de Todas as Coisas Terrenas ....................77

8. A Vida de Oração Profunda: Primeiros Passos .....87

9. Só o Doador Deve Ser Nosso Objetivo .................97

10. A União da Nossa Vontade com a Dele ............. 101

11. Todo o Avanço Espiritual Depende disso .......... 107

12. Eu Suportava em Silêncio ................................... 113

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13. É a Ti, e Somente a Ti, que Devo Tudo ............ 127

14. Atraída para o Interior......................................... 137

15. Deus Usa as Criaturas e suas Inclinações .......... 143

16. A Falta de Experiência ......................................... 153

17. Somente por Ti! ................................................... 161

18. Depois de Recuperar-Me da Varíola .................... 169

19. Agora só me Restava o Filho de Minhas Dores . 177

20. O Golpe mais Duro que já Senti ....................... 187

21. Um Estado de Privação Total ............................. 197

22. Depois de Doze Anos de Casamento ................ 201

23. Sendo Eu agora uma Viúva ................................ 211

24. Meu Deus Parecia Estar tão Distante ................. 219

25. Censurada por Todos ......................................... 225

26. “Deus me Queria em Genebra” ......................... 233

27. Uma Alma que se Perde em Seu Deus! ............. 241

28. “Ele me Queria em Genebra” ............................. 249

29. Sua Divina Providência ......................................... 259

Parte 2

30. Em Genebra ........................................................ 275

31. Quanto à minha Filha .........................................283

32. O Maior dos Milagres .........................................289

33. Depois de Ter Saído do Estado de Provação ....295

34. Minha Chegada a Gex ........................................303

35. Várias Coisas não me Agradavam ...................... 311

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36. Após a Partida do Padre La Combe ................... 319

37. A Alma no Estado de Gozo Absoluto ................ 327

38. Eu não me Preocupava Comigo......................... 333

39. Satisfeita com a Ordem de Deus ........................ 339

40. Senti uma Forte Propensão para Escrever ......... 345

41. Com Relação ao Padre La Combe ...................... 351

42. De Acordo com a Vontade de Deus ..................363

43. Devo Ser Conformada a Ele ............................... 375

44. Os Monges ..........................................................383

45. Abandonada por meus Amigos .......................... 391

46. O Injusto Caminho da Prisão .............................405

47. Foi desta Maneira que Jesus Sofreu ................... 417

Os textos das referências bíblicas foram extraídos da versão Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição (Sociedade Bíblica do Brasil), salvo indicação específica.

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Prefacio à Edição Brasileira

Jeanne Marie Bouvier de La Motte (1648-1717), mais

conhecida como Madame Guyon, foi levantada por

Deus num contexto católico, em pleno século XVII,

quando as nuvens da apostasia ainda eram densas,

apesar da fresta de luz da Reforma. Deus a usou de

forma especial para abrir caminho para a restauração da

vida interior, da comunhão profunda com Ele, através

da oração, da consagração plena, da santificação e do

operar da cruz. Seus inspirados escritos, especialmente

gerados na prisão, influenciaram a muitos ao redor

do mundo e a notáveis líderes, tais como o Arcebispo

Fenelon, os Quacres, John Wesley, Zinzendorf, Jessie

Penn-Lewis, Andrew Murray e Watchman Nee. Eles

foram tão marcados por Deus através dela que muitas

das verdades comentadas e vividas por eles tiveram

origem, de alguma maneira, no que herdaram de

Madame Guyon; em nossos dias, estamos apenas

começando a tocar no fluir das águas da verdadeira

espiritualidade que Deus fez jorrar através dela.

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Sua autobiografia, escrita especialmente para aten-der à insistência de seu mentor, o padre La Combe, é notoriamente reconhecida como um dos maiores clás-sicos cristãos. Em vários livros encontramos menções dispersas desta autobiografia e de seus escritos, tentando resumir sua vida e obra. Hoje, pela primeira vez em lín-gua portuguesa, temos a grande satisfação de apresentar aos garimpeiros de preciosidades esta singular obra.

Esta é uma versão completa da obra original, e conservamos na íntegra o estilo da autora, em sua linguagem e contexto católico (apenas adicionamos os títulos, subtítulos e frases resumindo os capítulos). Como ela ressaltou: “Espero que o que escrevo não seja visto por ninguém que possa ofender-se com isso, ou que não esteja em condição de ver estes assuntos em Deus”. Assim, é nosso encargo que, sem preconceitos, nossos olhos sejam abertos para também vermos, como muitos, além das letras e da casca das conjunturas naturais e tocar nos segredos do coração de Deus dispensados de forma especial pela correspondência incondicional de Madame Guyon.

Esta é uma obra que merece nosso respeito. Que possamos vê-Lo no cenário e amá-Lo ainda

mais.Ó Senhor, esta obra é fruto de Tua providência. A

Ti damos toda glória!

Gerson LimaSão Paulo, 05 de novembro de 2004.

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Na história do mundo foram poucas as pessoas

que atingiram o alto grau de espiritualidade

alcançado por Madame Guyon.

Ela nasceu em uma época corrupta, em uma

nação marcada pela decadência; cresceu e criou-se

em uma igreja tão devassa quanto o mundo em que

estava inserida; foi perseguida a cada passo de sua

carreira; andando às cegas em meio a uma devastação

e ignorância espiritual, não obstante ela atingiu o

auge da preeminência em termos de espiritualidade

e devoção cristã.

Viveu e morreu dentro da igreja católica; contudo,

padeceu tormentos e aflições; foi maltratada, sofreu

abusos e foi presa durante anos pelas maiores autori-

dades daquela igreja.

Seu único crime foi amar a Deus. Sua suprema

devoção e incomensurável ligação com Cristo foram os

pretextos usados para justificar as ofensas que sofreu.

Exigidos seu dinheiro e seus bens, ela, com alegria, se

Introdução

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desfez deles, mesmo sabendo que ficaria pobre, mas

de nada adiantou. O pecado de amar Aquele em quem

todo o seu ser estava absorvido jamais seria amenizado,

ou perdoado.

Ela simplesmente gostava de fazer o bem para o

próximo, e foi tão cheia do Espírito Santo e do poder

de Deus que operou maravilhas em sua época, não

deixando de influenciar as gerações seguintes.

Do ponto de vista humano, é um sublime espetáculo

ver uma mulher solitária subverter todas as manobras

de reis e cortesãos, tratar com o máximo desprezo

todos os conluios malignos da inquisição papal e do

silêncio e confundir as ambições dos clérigos mais

eruditos. Ela não só viu com maior clareza as verdades

mais sublimes do nosso cristianismo mais santo, como

também se aqueceu sob a mais clara e bela luz do sol

enquanto eles tateavam na escuridão. Compreendeu

com facilidade as verdades mais profundas e mais

sublimes das Sagradas Escrituras, enquanto eles se

perdiam nos labirintos de sua profunda ignorância.

Um distinto clérigo deleitava-se em sentar-se aos

pés dela. A princípio ele a ouvia com desconfiança;

depois, com admiração. Por fim, abriu seu coração

para a verdade e estendeu sua mão para ser conduzido

por esta santa de Deus para o Santo dos Santos, onde

ela habitava. Nós nos referimos ao distinto arcebispo

Fenelon, cujo espírito meigo e fascinantes textos têm

sido uma bênção para cada geração que o sucedeu.

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Não apresentamos nenhum pedido de desculpas

por publicarmos na Autobiografia de Madame Guyon

as expressões de devoção de sua igreja, que encontra-

ram vazão em seus escritos. Madame Guyon era uma

autêntica católica no início do protestantismo.

Não há dúvida de que Deus, por uma intervenção

especial de Sua Providência, levou-a a dedicar sua vida,

de modo tão meticuloso, à escrita. O dever foi-lhe

imposto por seu líder espiritual, a quem, de acordo com

as normas de sua igreja, ela era obrigada a obedecer.

Seus textos foram escritos enquanto ela estava presa em

uma solitária. A mesma Providência, dotada de toda a

sabedoria, impediu que fossem destruídos. Não temos

sombra de dúvida de que eles têm por objetivo realizar

algo dez vezes maior no futuro do que o realizado

no passado. Na realidade, o mundo cristão está só

começando a entendê-los e apreciá-los, e esperamos

e oramos para que milhares de pessoas possam, por

meio desses textos, ser levadas à mesma relação e

comunhão íntima com Deus, que muito se agradou

de Madame Guyon.

E. J.

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Parte 1

“Em verdade, em verdade vos digo:

Se o grão de trigo, caindo na terra,

não morrer, fica ele só;

Mas, se morrer, produz muito fruto.”

(Palavra de Jesus em João 12.24)

No Caminho do Quebrantamento

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Houve importantes omissões na anterior nar-

ração de minha vida. Prontamente cumpro

com teu desejo, ao dar-te uma relação mais

circunstancial, embora o trabalho pareça ser muito

doloroso, visto que não posso utilizar grande parte do

estudo ou reflexão. Meu desejo mais ardente é pincelar

com cores genuínas a bondade de Deus para comigo e a

profundidade de minha própria ingratidão – entretanto,

isso é impossível, uma vez que inúmeras situações

menores têm escapado à minha memória. Além do

mais, tu expressas o desejo de que não tenho por que

te dar uma minuciosa relação de meus pecados. Não

obstante, tentarei deixar de lado o mínimo possível de

faltas. Dependo de ti para destruí-las, uma vez que tua

alma já absorveu aquelas verdades espirituais que Deus

intentou, e a cujo propósito quero sacrificar todas as

coisas. Estou plenamente convencida de Seus desígnios

para tua vida, bem como para a santificação dos outros,

e também para tua própria santificação.

O Encargo desta Obra

Capítulo 1

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Permite-me certificar-te de que isso não se obtém a

não ser por meio de dor, sofrimento e trabalho, e será

alcançado por meio de uma vereda que decepcionará

profundamente tuas expectativas. Não obstante, se

estiveres completamente convencido de que é sobre a

esterilidade do homem que Deus estabelece Suas maiores

obras, estarás, em parte, protegido contra a decepção ou

surpresa. Ele destrói para poder edificar, pois quando

está prestes a edificar Seu sagrado templo em nós, Ele

primeiro arrasa totalmente esse fútil e pomposo edifício

que as artes e os esforços humanos erigiram, e, de suas

terríveis ruínas, uma nova estrutura é formada, somente

pelo Seu poder.

Ó, que tu possas compreender a profundidade

deste mistério e aprender os segredos da conduta de

Deus, revelados às criancinhas, mas ocultos aos sábios e

grandes deste mundo, que se consideram os conselheiros

do Senhor, e capazes de investigar Seus métodos, e

supõem que obtiveram essa divina sabedoria, oculta

aos olhos de todos aqueles que vivem em si mesmos

e estão envoltos em suas próprias obras. Quem, por

um vivo engenho e elevadas faculdades, sobe ao Céu

e pensa compreender a altura, profundidade e largura

de Deus?

Esta sabedoria divina é desconhecida, mesmo para

aqueles que passam pelo mundo como pessoas de ex-

traordinário conhecimento e iluminação. Quem, então,

a conhece, e quem nos pode revelar algumas de suas

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O Encargo desta Obra

incógnitas? A destruição e a morte asseguram-nos que

eles escutaram com seus ouvidos acerca de sua fama

e renome. É, portanto, morrendo para todas as coisas,

e estando verdadeiramente desatentos a elas, seguindo

adiante em direção a Deus, e existindo somente Nele,

que chegamos a algum conhecimento da verdadeira

sabedoria. Ó, quão pouco se sabe de seus caminhos

e de sua conduta para com os seus servos eleitos.

Raramente descobrimos algo dela, mas, surpresos com a

dissimilitude existente entre a verdade recém-descoberta

e nossas prévias idéias acerca dela, clamamos junto a São

Paulo: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria

como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são

os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!”

(Rm 11.33). O Senhor não julga as coisas como fazem os

homens, que chamam o mal de bem e o bem de mal, e

têm por justo o que é abominável aos Seus olhos, coisas

que, segundo o profeta, Ele considera trapos imundos.

Deus submeterá a estrito juízo estes que se justificam

a si mesmos, e, como os fariseus, serão mais objetos

de Sua ira do que objetos de Seu amor, ou herdeiros

de Suas recompensas. Não é o próprio Cristo que nos

assegura que “se a [nossa] justiça não exceder em muito a

dos escribas e fariseus, jamais [entraremos] no reino dos

céus” (Mt 5.20)? E quem dentre nós se aproxima a eles

em justiça? Ou que, se vivermos na prática de virtudes,

embora muito inferiores às deles, não somos dez vezes

mais ostentosos? Quem não se agrada em contemplar-se

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a si mesmo como justo aos seus próprios olhos, e aos

olhos dos outros? Ou quem é que duvida que tal justiça

basta para agradar a Deus? Todavia, vemos a indignação

de nosso Senhor manifestada contra eles. Aquele que

foi o padrão perfeito em ternura e mansidão, como

a que fluía do fundo do coração, e não como aquela

mansidão fingida que, sob a forma de uma pomba,

esconde o coração de um falcão. Ele se mostra severo

somente com estas pessoas que se justificam, e as

desonrou em público. Que estranha paleta de cores Ele

utiliza para representá-las, enquanto sustenta o pobre

pecador com misericórdia, compaixão e amor, e declara

que só por ele foi que Ele veio, que era o enfermo que

necessitava de médico; e que Ele só veio para salvar a

ovelha perdida da casa de Israel.

Ó Tu, Manancial de Amor! Pareces de fato tão

zeloso pela salvação dos que tens comprado que pre-

feres o pecador ao justo! O pobre pecador, que se vê

vil e miserável, é, por assim dizer, forçado a detestar-se

a si mesmo; e, vendo que seu estado é tão horrível,

ele se lança, em seu desespero, nos braços de seu

Salvador, mergulha na fonte de cura e sai dela “branco

como a neve”. Então, perplexo com o exame de seu

estado de desordem, transborda de amor por Ele, que,

tendo todo o poder, teve também a compaixão de

salvá-lo – sendo o excesso de seu amor proporcional

à enormidade de seus crimes, e a plenitude de sua

gratidão, à extensão da dívida perdoada. Aquele que se

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O Encargo desta Obra

justifica a si mesmo, apoiando-se nas muitas boas obras

que imagina ter feito, parece segurar a salvação em

suas próprias mãos e considera o céu como uma justa

recompensa para seus méritos. Na amargura de seu

zelo, ele brada contra todos os pecadores e mostram as

portas da misericórdia como que trancadas contra eles,

e o Céu como um lugar ao qual eles não têm direito.

Que necessidade têm tais pessoas, que se justificam a

si mesmas, de um Salvador? Elas já têm a carga de seus

próprios méritos. Ó, quanto tempo carregam a carga

lisonjeira, enquanto os pecadores, despojados de tudo,

voam velozmente nas asas da fé e do amor para os

braços de seu Salvador, que de graça lhes concede o

que gratuitamente prometeu!

Quão cheios de amor próprio são os que se justificam

a si mesmos, e quão vazios do amor de Deus! Eles se

valorizam e se admiram em suas obras de justiça, que

acreditam ser uma fonte de felicidade. Tão logo essas

obras são expostas ao Sol da Justiça, descobrem que

todas estão cheias de impureza e infâmia, e isso lhes

aflige sobremaneira. Enquanto isso, a pobre pecadora,

Madalena, é perdoada porque ama muito, e sua fé e

amor são aceitos como justiça. O inspirado Paulo, que

tão bem entendeu estas grandes verdades e tanto as

investigou, assegura-nos que “isso [a fé de Abraão] lhe

foi também imputado para justiça” (Rm 4.22). Isso é de

fato precioso, pois é certo que todas as ações daquele

santo patriarca foram estritamente justas; porém, não

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as vendo assim e estando livre do amor para com elas,

e despojado de egoísmo, sua fé foi fundada sobre o

Cristo que haveria de vir. Esperou Nele mesmo contra a

própria esperança, e isso lhe foi imputado para justiça

(Rm 4.18, 22), uma pura, simples e genuína justiça, feita

por Cristo, e não uma justiça feita por si mesmo, e tida

como sua justiça.

Talvez penses que isso seja uma grave digressão

do assunto, porém ela nos leva, inconscientemente, a

ele. Mostra que Deus realiza Sua obra em pecadores

convertidos, cujas iniqüidades do passado servem de

contrapeso para seu engrandecimento, ou em pessoas

cuja justiça própria Ele destrói, derrocando por completo

o orgulhoso edifício que ergueram sobre um alicerce

arenoso, e não sobre a Rocha – CRISTO.

A instauração de todos estes fins, para cujo pro-

pósito Ele veio ao mundo, efetua-se pela visível des-

truição dessa mesma estrutura que, na realidade, Ele

erigiria. Por meios que parecem destruir a Sua Igreja,

Ele a estabelece. De que estranha forma Ele funda a

nova dispensação e lhe dá Seu beneplácito! O próprio

Legislador é condenado pelos versados e poderosos

como um malfeitor, e morre uma morte ignominiosa. Ó,

que entendamos na íntegra quão oposta é nossa própria

justiça aos desígnios de Deus – seria um assunto de

humilhação sem fim, e deveríamos ter uma verdadeira

desconfiança daquilo que, neste momento, constitui

toda a nossa dependência.

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O Encargo desta Obra

Partindo de um amor justo, próprio de Seu supremo

poder, e de um zelo idôneo pela humanidade, que

atribui a si mesma os dons que Ele mesmo concede,

aprouve a Deus tomar uma das mais indignas criaturas

da criação para tornar conhecido o fato de que Suas

graças são os frutos de Sua vontade, e não os frutos

de nossos méritos. É próprio de Sua sabedoria destruir

o que está construído com orgulho e construir o que

está destruído; fazer uso de coisas fracas para confundir

os poderosos e empregar para Seu serviço aquele que

parece vil e desprezível.

Isso Ele faz de uma forma tão surpreendente

que chega a transformá-los nos objetos do escárnio e

desprezo do mundo. Não é para atrair sobre eles a

aprovação pública que Ele faz deles instrumento para

salvação dos outros, mas para torná-los objetos de seu

desgosto e súditos de seus insultos; como verás nesta

vida sobre a qual tenho o encargo de escrever.

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Nasci em 18 de abril de 1648. Meus pais, em

particular meu pai, eram extremamente reli-

giosos, porém, para ele, tratava-se de uma

herança. Muitos de seus antepassados foram santos.

Minha mãe, no oitavo mês de gravidez, levou um

terrível susto, o que provocou um aborto. Normalmente

acredita-se que uma criança que nasce no oitavo mês

não pode sobreviver. Na realidade, fiquei tão enferma

logo depois que nasci que todos os que estavam à

minha volta perderam a esperança de que eu viveria e

temiam que eu morresse sem ser batizada. Ao perceber

alguns sinais de vitalidade, correram para avisar meu

pai, que, imediatamente, trouxe um padre; entretanto,

ao entrarem no quarto, disseram a eles que aqueles

sintomas que haviam reacendido suas esperanças não

passavam de esforços de alguém que expirava, e que

tudo estava acabado.

Uma Criança com o Coração Dilacerado

(Conselho aos Pais quanto à Criação de seus Filhos)

Capítulo 2

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Autobiografia de Madame Guyon

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Tão logo mostrei novos sinais de vida, voltei a ter

uma recaída e fiquei em um estado incerto por um

período tão longo que foi preciso tempo para que

pudessem encontrar uma oportunidade adequada para

batizar-me. Continuei muito enferma até completar dois

anos e meio, quando me enviaram para o convento das

ursulinas, onde permaneci por alguns meses.

Quando voltei para casa, minha mãe negou-se

a dar a devida atenção à minha educação. Ela não

gostava muito das filhas e abandonou-me aos cuidados

dos empregados. Na realidade, eu teria sofrido muito

por conta de sua falta de atenção para comigo se

a Providência, totalmente atenta, não tivesse sido

a minha proteção: por causa de minha vivacidade,

sofri vários acidentes. Caí muitas vezes em um porão

onde guardávamos lenha; no entanto, sempre escapei

ilesa.

A duquesa de Montbason apareceu no convento dos

Beneditinos quando eu tinha quase 4 anos. Ela tinha

uma grande amizade com meu pai e teve permissão dele

para que eu fosse para o mesmo convento. Ela ficava

encantada com minhas brincadeiras e demonstrava

certa doçura para com minha conduta exterior. Passei

a ser sua constante companheira.

Fui culpada de freqüentes e perigosas irregularidades

nesta casa, e cometi sérias faltas. Tinha bons exemplos

diante de mim, e sendo, por natureza, inclinada a

eles, eu os seguia quando não havia ninguém para

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Uma Criança com o Coração Dilacerado

corrigir-me. Gostava de ouvir coisas acerca de Deus, de

estar na igreja e de usar vestes religiosas. Falaram-me

dos terrores do Inferno, o que, em minha imaginação,

era uma tática para intimidar-me, uma vez que eu

era extremamente inquieta e cheia de uma petulante

vivacidade que chamavam de engenho. Na noite

seguinte sonhei com o Inferno, e, embora fosse jovem,

o tempo nunca foi capaz de apagar as terríveis idéias

impressas em minha imaginação. Tudo não passava de

uma terrível escuridão, onde as almas eram castigadas,

e meu lugar entre elas já estava determinado. Diante

disso, eu chorava amargamente e clamava: “Ó, meu

Deus, se tiveres misericórdia de mim e poupares a

minha vida um pouco mais, nunca mais voltarei a

ofender-Te”. E Tu, ó Senhor, em misericórdia ouviste o

meu pranto e derramaste sobre mim força e coragem

para servir-Te de uma forma fora do comum para

alguém de minha idade. Eu queria ir confessar-me em

particular, mas, como eu era pequena, a superiora das

internas levou-me ao padre e ficou comigo enquanto ele

me ouvia. Ela ficou muito surpresa quando mencionei

que tinha teorias contra a fé, e o confessor começou

a rir e a perguntar quais eram. Eu lhe disse que, até

então, duvidava que existia um lugar como o Inferno

e achava que minha superiora havia me falado dele só

para fazer com que eu ficasse boazinha, mas, agora,

as minhas dúvidas já se haviam dissipado. Após a

confissão, meu coração incendiou-se com certo fervor

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Autobiografia de Madame Guyon

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e, naquele instante, tive o desejo de sofrer martírio. Para

entreterem-se e verem até onde este aumento de fervor

haveria de me levar, as boas garotas da casa rogaram-

me que me preparasse para o martírio. Encontrei grande

fervor e deleite na oração, e estava convencida de que

este ardor, que era tão recente quanto agradável, era

uma prova do amor de Deus. Isso me inspirou com tal

coragem e resolução que passei a suplicar seriamente

que prosseguissem, para que, por meio do martírio, eu

pudesse entrar na santa presença de Deus. Porém não

havia uma latente hipocrisia aqui? Eu não imaginava

que seria possível que não me matassem, e que eu

teria o mérito do martírio sem sofrê-lo? Na realidade,

parecia que havia algo ali desta natureza. Colocada

de joelhos sobre um pano estendido para a ocasião

e vendo atrás de mim uma grande espada levantada

que haviam preparado para comprovar até onde meu

ardor me levaria, gritei: “Esperem! Não é certo que eu

morra sem obter primeiro a permissão de meu pai”.

Havendo dito isso fui logo repreendida; disseram-me

que eu poderia levantar-me e escapar dali, e que já não

era mais uma mártir. Continuei desconsolada por muito

tempo e sem receber consolo algum; algo no meu

íntimo me reprovava por não haver abraçado aquela

oportunidade de ir para o Céu, quando tudo dependia

de minha própria escolha.

A meu pedido, e por muitas vezes cair enferma,

fui levada, por fim, para casa. Ao regressar, tendo

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Uma Criança com o Coração Dilacerado

minha mãe uma criada em quem havia depositado

sua confiança, ela voltou a deixar-me aos cuidados

dos empregados. É um grande erro, do qual as mães

são culpadas, quando, com o pretexto de devoções

externas ou outros compromissos, elas obrigam as

filhas a suportar sua ausência. Não deixo de condenar

essa injusta parcialidade com a qual alguns pais tratam

os filhos. Muitas vezes é fruto de divisões nas famílias,

e até a destruição de algumas. A imparcialidade, ao

unir o coração dos filhos entre si, estabelece o alicerce

de uma unanimidade e harmonia duradouras.

Gostaria de poder convencer os pais, e todos

aqueles que cuidam de jovens, da grande atenção

que estes requerem e de quão perigoso é, durante

qualquer lapso de tempo, não tê-los debaixo dos olhos

ou deixar que fiquem sem algum tipo de emprego. Esta

negligência é a ruína de muitas garotas.

Quanto há de se lamentar que as mães inclinadas

à piedade pervertam até mesmo os meios da salvação

para sua própria destruição – ao cometerem as maiores

irregularidades enquanto aparentemente perseguem

aquilo que deveria produzir a conduta mais regular

e prudente.

Assim, uma vez que experimentam certos benefícios

em oração, passam o dia todo na igreja; enquanto isso,

os filhos correm para a destruição. Glorificamos mais

a Deus quando impedimos o que Lhe pode ofender.

De que natureza haverá de ser aquele sacrifício que

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Autobiografia de Madame Guyon

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dá motivo para o pecado! Deus deve ser servido à Sua

maneira. Que a devoção das mães seja ajustada de

modo a evitar que suas filhas se desviem. Que elas as

tratem como irmãs, não como escravas. Que pareçam

satisfeitas com suas pequenas diversões. Os filhos irão

deleitar-se, então, com a presença da mãe, em vez de

evitá-la. Se eles encontrarem tanta felicidade com elas,

não sonharão em buscá-la em nenhum outro lugar.

As mães muitas vezes negam aos filhos qualquer tipo

de liberdade. Como pássaros constantemente presos

em uma gaiola, tão logo encontram meios de escapar,

eles se vão para nunca mais voltar. Para amansá-los

e torná-los dóceis quando jovens, às vezes se deveria

permitir que batessem asas, mas, uma vez que seu

vôo é vulnerável e está sendo observado de perto, é

fácil recuperá-los quando escapam. Um pequeno vôo

dá-lhes o hábito de regressar de forma natural à sua

gaiola, a qual se torna uma agradável prisão. Creio que

as meninas deveriam ser tratadas de uma forma similar.

As mães deveriam consentir uma inocente liberdade,

porém nunca perdê-las de vista.

Para proteger a sensível mente dos filhos daquilo

que é errado, deve-se tomar muito cuidado em ocupá-los

com assuntos adequados e proveitosos. Eles não devem

ser empanturrados de alimentos dos quais não podem

gostar. Deve-se dar o leite adequado para os bebês, e

não a carne dura que tanto pode enfastiá-los, para que,

quando chegarem a uma idade em que ela seja seu

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Uma Criança com o Coração Dilacerado

alimento apropriado, não só se limitem a experimentá-la.

Todos os dias eles devem ser incentivados a ler trechos

de um bom livro, passar algum tempo em oração, o que

deve servir mais para fomentar os sentimentos, e não a

meditação. Ó, se este método de educação fosse seguido,

com que rapidez cessariam tantas irregularidades!

Quando se tornassem mães, estas filhas educariam seus

filhos como elas mesmas foram educadas.

Os pais também deveriam evitar mostrar o menor

indício de parcialidade no tratamento dos filhos. Isso

gera uma secreta inveja e aversão entre eles, que muitas

vezes aumentam com o tempo e persistem até a morte.

Quantas vezes vemos que alguns filhos são os ídolos

da casa, comportando-se como verdadeiros tiranos,

tratando os irmãos e irmãs como escravos, seguindo

o exemplo do pai e da mãe. E muitas vezes o que

acontece é que o favorito passa a ser um castigo para

os pais, enquanto o pobre desprezado e odiado torna-

se seu consolo e apoio.

Minha mãe foi muito deficiente na educação

dos filhos. Ela me mantinha por vários dias longe de

sua presença, na companhia dos empregados, cuja

conversa e exemplo eram, sobretudo, prejudiciais para

alguém de meu temperamento. O coração de minha

mãe parecia estar totalmente centrado em meu irmão.

Eu raramente era favorecida com o menor exemplo

de sua ternura ou carinho. Por conseguinte, eu me

ausentava voluntariamente de sua presença. É verdade

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que meu irmão era mais amável do que eu, mas o

excesso do afeto que ela tinha por ele a deixou cega

até para minhas boas qualidades exteriores. Só servia

para revelar meus defeitos, que teriam sido pequenos

se ela me tivesse dado a devida atenção.

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Meu pai, que me amava ternamente, vendo

quão pequena era a atenção dada à minha

educação, tratou de enviar-me a um convento

das ursulinas. Eu tinha quase sete anos. Nesta casa havia

duas meias-irmãs minhas, uma por parte de pai e outra

por parte de mãe. Meu pai deixou-me sob os cuidados

de sua filha, uma pessoa de grande capacidade e com

a mais entusiasmada religiosidade, primorosamente

qualificada para a instrução de jovens. Esta foi uma

singular dispensação da providência e do amor de

Deus para comigo, e uma prova do primeiro traço

de minha salvação. Ela me amava com ternura, e sua

afeição levou-a a descobrir em mim muitas qualidades

amáveis que o Senhor havia implantado. Esforçou-se

por melhorar essas boas qualidades, e creio que se

eu tivesse continuado em mãos tão cuidadosas, teria

adquirido tantos hábitos virtuosos quanto os malignos

que contraí mais tarde.

Uma Infância na Escola do Sofrimento

Capítulo 3

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Autobiografia de Madame Guyon

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Esta boa irmã investiu seu tempo para instruir-me

na piedade e naquelas vertentes da aprendizagem que

eram apropriadas para a minha idade e capacidade. Ela

tinha bons talentos e soube muito bem aperfeiçoá-los.

Era assídua na oração, e sua fé era tão grande quanto

a da maioria das pessoas. Negava-se a si mesma um

prazer sim e outro não para estar comigo e instruir-me.

Tamanha era sua afeição por mim que ela encontrava

mais prazer em estar comigo do que em qualquer

outro lugar.

Se eu lhe dava respostas propícias, embora mais

por casualidade do que por juízo, ela já se considerava

bem paga por todo o seu trabalho. Sob seus cuidados,

logo me tornei mestra na maior parte dos estudos

adequados para mim. Muitas pessoas adultas e de posi-

ção não conseguiriam responder às perguntas feitas

para mim.

Como meu pai muitas vezes mandava alguém

para buscar-me, desejando ver-me em casa, em certa

ocasião encontrei-me ali com a rainha da Inglaterra.

Eu tinha quase 8 anos. Meu pai disse ao confessor da

rainha que, quando queria alguma distração, ele podia

entreter-se comigo. Ele me testava com várias perguntas

muito difíceis, às quais contestei com respostas tão

pertinentes a ponto de ele me levar à presença da

rainha e dizer: “Sua majestade deve divertir-se com esta

criança”. Ela também fez um teste comigo e ficou tão

satisfeita com minhas vívidas respostas, e com minha

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Uma Infância na Escola do Sofrimento

conduta, que me pediu a meu pai em um momento

um tanto inoportuno. Assegurou-lhe que cuidaria de

modo especial de mim, designando-me dama de honra

da princesa. Meu pai opôs-se. Sem dúvida alguma foi

Deus quem permitiu essa resposta negativa e, com isso,

desviou o golpe que provavelmente teria interrompido

a minha salvação. Sendo eu tão frágil, como poderia

ter resistido às tentações e distrações de uma corte?

Voltei com as ursulinas para o lugar onde minha

admirável irmã continuou a dar-me mostras de sua

afeição. No entanto, como ela não era a superiora dos

internos, e como eu era obrigada às vezes a acompanhá-

los, adquiri maus hábitos. Habituei-me com a mentira, a

impertinência e a falta de devoção, passando dias inteiros

sem pensar em Deus, embora Ele constantemente zelasse

por mim, como se verá mais adiante. Não fiquei muito

tempo sob a influência de tais hábitos porque o cuidado

de minha irmã me restabelecia. Gostava muito de ouvir

a voz de Deus, não me cansava da igreja, gostava de

orar, tinha carinho pelos pobres e uma antipatia natural

por pessoas cuja doutrina era considerada falha. Deus

sempre mos trou esta graça para comigo, em minhas

maiores infidelidades.

Ao final do jardim que ligava a este convento havia

uma pequena capela consagrada ao menino Jesus. A

ela eu me dirigia para fazer minhas devoções e, por

algum tempo, levando para lá meu café da manhã

todos os dias, eu o escondia atrás desta imagem.

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Era tão criança que achava que fazia um sacrifício

considerável privando-me dele. Delicada em minhas

preferências culinárias, eu queria mortificar-me, mas o

amor-próprio ainda era demasiado predominante para

submeter-me a essa mortificação. Quando foram limpar

essa capela, encontraram atrás da imagem o que eu

havia deixado ali e, de pronto, adivinharam que havia

sido eu. Eles me viam ir para lá todos os dias. Creio

que Deus, que não permite que nada passe sem Sua

devida recompensa, logo me recompensou com um

interesse por esta pequena devoção na infância.

Continuei por certo tempo com minha irmã, em

que preservei o amor e o temor a Deus. Minha vida era

fácil; minha educação seguia à risca suas orientações.

Melhorava muito quando não estava enferma, porém

quase sempre estava, e era surpreendida por males que

eram tão inesperados quanto incomuns. De tarde estava

bem; de manhã, já estava inchada e cheia de marcas

azuladas, sintomas de uma febre que logo chegava.

Aos nove anos, tive uma hemorragia tão violenta que

pensaram que eu iria morrer. Acabei extremamente

debilitada.

Pouco antes deste terrível ataque, minha outra

irmã ficou enciumada, querendo que eu ficasse sob

seus cuidados. Apesar de levar uma boa vida, ela não

tinha o dom para educar crianças. A princípio cuidou

de mim, mas todos os seus cuidados não deixaram

impressão alguma em meu coração. Minha outra irmã

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Uma Infância na Escola do Sofrimento

fazia mais com um olhar do que ela com seus cuidados

ou ameaças. Quando viu que eu não a amava tanto,

passou a dar um tratamento rigoroso. Não me deixava

falar com minha outra irmã. Quando ficava sabendo

que eu havia conversado com ela, mandava açoitarem-

me ou ela mesma me surrava. Eu já não podia mais

suportar os maus-tratos e, por isso, devolvi com uma

perceptível ingratidão todos os favores de minha irmã

por parte de pai, não indo mais vê-la. Entretanto, isso

não a impediu de dar-me mostras de sua habitual

bondade durante a grave enfermidade que acabei

de mencionar. Interpretou complacentemente minha

ingratidão como conseqüência de meu medo de ser

castigada, e não de um coração ruim. De fato, creio que

este foi o único exemplo em que o medo do castigo

causou um efeito tão forte em mim. Desde então eu

sofria mais por afligir Aquele a quem eu amava do que

por padecer nas mãos dos outros.

Tu sabias, ó meu Amado, que não era o medo de

Teus castigos que se abatia tão profundamente em meu

entendimento ou em meu coração; era a tristeza por

ofender-Te que sempre causava toda a minha angústia,

que era tão grande. Imagino que, se não houvesse nem

Céu nem Inferno, eu sempre teria guardado o mesmo

temor por desagradar a Ti. Tu sabias que, após minhas

faltas, quando, em indulgente misericórdia Te aprazias

em visitar minha alma, Teus cuidados eram mil vezes

mais insuportáveis do que Tua vara.

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A par de tudo o que havia se passado, meu pai

levou-me novamente para casa. Eu tinha quase dez

anos. Fiquei pouco tempo com ele. Uma freira da

ordem de São Domingos, de uma grande família, um

dos amigos íntimos de meu pai, pediu-lhe para colocar-

me no convento dela. Ela era a prioresa e prometeu

cuidar de mim e hospedar-me em seu aposento. Essa

senhora passou a ter um grande carinho por mim.

Estava tão envolvida em sua comunidade, em suas

muitas situações problemáticas, que não tinha tempo

livre para dar-me muita atenção. Tive varicela, o que

me deixou de cama por três semanas, período em

que recebi um péssimo tratamento, embora meu pai e

minha mãe pensassem que eu estivesse sendo muito

bem cuidada. As senhoras da casa tinham tanto medo

de varíola, que era o que imaginavam que eu tinha, que

nem chegavam perto de mim. Passei quase o tempo

todo sem ver ninguém. Uma das irmãs, que só trazia a

minha dieta em horas específicas, se retirava às pressas.

De forma providencial, encontrei uma Bíblia e, ao ter

uma inclinação para a leitura e uma boa memória,

passei dias inteiros lendo-a de manhã à noite. Aprendi

toda a parte histórica. Contudo, eu era de fato muito

infeliz nesta casa. As outras internas, meninas maiores,

afligiam-me com terríveis perseguições. O descuido

para comigo, e também no que dizia respeito à comida,

foi tão grande que fiquei bastante magra.

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Cerca de oito meses depois, meu pai levou-me

para casa. Minha mãe mantinha-me mais com

ela, passando a ter uma consideração maior

por mim. Ela ainda preferia meu irmão; todos falavam

dele. Mesmo quando eu estava doente e não havia

coisa alguma de que gostasse, ele a queria para si.

Eles a tiravam de mim e a davam para ele, que gozava

de perfeita saúde. Um dia ele me fez subir em cima

da carruagem e depois me jogou ao chão. Por causa

da queda, fiquei bastante machucada. Outras vezes

ele me batia. Contudo, independentemente do que

ele fizesse, por mais errado que estivesse, meus pais

faziam que não viam ou atribuíam ao ocorrido a mais

favorável interpretação. Isso me irritava. Eu tinha pouca

disposição para fazer o bem, dizendo: “Nunca fui a

melhor para isso”.

Não era então só por Ti, ó Deus, que eu fazia o bem,

pois deixei de praticá-lo ao não encontrar nos outros

Nuvens Escuras, no Caminho da Luz

Capítulo 4

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a resposta que queria. Se soubesse usar corretamente

esta Tua mortificante direção, eu teria feito um bom

avanço. Longe de desviar-me do caminho, isso me teria

feito voltar-me totalmente para Ti.

Olhava com desconfiança para meu irmão, vendo

a diferença entre ele e mim. Qualquer coisa que ele

fazia era tida como certa, mas se houvesse culpa, ela

recaía sobre mim. Minhas meias-irmãs por parte de

mãe ganhavam a afeição dela cuidando dele e me

perseguindo. De fato, eu era má. Reincidia em meus

anteriores defeitos de mentira e impertinência. Apesar

de todas essas faltas, eu era muito carinhosa e generosa

com os pobres. Orava a Deus assiduamente, gostava de

ouvir alguém falar sobre Ele e de ler bons livros.

Não tenho dúvida de que te surpreenderás com esta

série de inconsistências; entretanto, o que vem a seguir

irá surpreender-te ainda mais, quando vires que esta

forma de atuar ganha terreno à medida que minha idade

avança. Assim como meu entendimento amadurecia,

esta conduta irracional estava longe de ser corrigida. O

pecado crescia com maior força dentro de mim.

Ó meu Deus, Tua graça parecia redobrar-Se em

proporção ao aumento de minha ingratidão! Era para

comigo como para com uma cidade sitiada, rodeando

Tu o meu coração, e eu somente estudando como

defender-me de Teus ataques. Levantei fortificações

em redor do desprezível lugar, acrescentando a cada

dia o número de minhas iniqüidades para evitar que

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Nuvens Escuras, no Caminho da Luz

Tu o tomasses. Quando parecia que Tu estavas sendo

vitorioso sobre este ingrato coração, iniciei um contra-

ataque e levantei muralhas para evitar a Tua bondade

e impedir o fluir de Tua graça. Ninguém, a não ser Tu,

poderia ter vencido.

Não suporto ouvir que “não somos livres para

resistir à graça”. Tive uma experiência extremamente

longa e fatal de minha liberdade. Fechei as avenidas

do meu coração, para que não pudesse ouvir essa

voz secreta de Deus que estava me chamando para

Si mesmo. Na realidade, desde a mais tenra infância,

passei por uma série de agravos, ou em forma de

enfermidades ou perseguições. A menina sob cujos

cuidados deixou-me minha mãe costumava bater em

mim quando arrumava meus cabelos, e não me deixava

fazer isso a não ser com raiva e pancadas.

Tudo parecia castigar-me, mas isso, em vez de fazer

com que eu me voltasse para Ti, ó meu Deus, só servia

para afligir e amargurar a minha mente.

Meu pai não sabia de nada; seu amor por mim

era tanto que não teria permitido isso. Eu o amava

muito, mas, ao mesmo tempo, tinha medo dele, por

isso não lhe dizia nada. Minha mãe muitas vezes o

importunava para queixar-se de mim, ao que ele res-

pondia simplesmente dizendo: “Há doze horas no

dia; ela amadurecerá”. Este rigoroso procedimento

não foi o pior para a minha alma, embora irritasse

meu temperamento, que, por outro lado, era manso e

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tranqüilo. Entretanto, a causa de meu maior dano foi

preferir estar entre aqueles que me mimavam, para

corromper-me e estragar-me.

Meu pai, ao ver que agora eu estava bem crescida,

colocou-me entre as ursulinas na Quaresma, para fazer

minha primeira comunhão na Páscoa, quando eu estava

para completar 11 anos. E aqui minha mais querida

irmã, sob cuja inspeção colocou-me meu pai, redobrou

seus cuidados para preparar-me o melhor possível para

este ato de devoção. Agora eu pensava em entregar-

me a Deus a sério. Eu muitas vezes percebia uma luta

entre minhas boas inclinações e meus maus hábitos.

Cheguei até a fazer algumas penitências. Como quase

sempre estava com minha irmã, e como as internas de

sua classe, que era a primeira, eram bastante razoáveis

e civilizadas, eu também ficava assim enquanto estava

com elas. Fora uma crueldade criar-me mal, pois minha

própria natureza estava fortemente inclinada à bondade.

Como eu era facilmente convencida com mansidão, com

gosto fazia o que minha boa irmã desejava. Por fim

chegou a Páscoa; recebi a comunhão com muito gozo e

devoção. Permaneci nesta casa até o Pentecostes. Porém,

como minha outra irmã era a mestra da segunda classe,

exigiu que durante sua semana eu estivesse com ela

nessa classe. Seus modos, tão opostos aos de sua outra

irmã, fizeram-me relaxar em minha anterior piedade.

Eu já não sentia mais aquele novo e prazeroso ardor

que havia arrebatado meu coração em minha primeira

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Nuvens Escuras, no Caminho da Luz

comunhão. Ah! Durou só um pouco. Meus defeitos e

meus fracassos logo se confirmaram e me afastaram

do cuidado e obrigações da religião.

Sendo mais alta do que o normal para uma menina

de minha idade, e isso redundando a um maior apreço

por parte de minha mãe, ela se encarregou de arrumar-

me e vestir-me, de buscar-me a companhia de outros e

de levar-me ao estrangeiro. Sentia um orgulho fora do

normal dessa beleza com a qual Deus me havia formado

para bendizer-Lhe e louvá-Lo. Entretanto, perverti essa

beleza com uma fonte de orgulho e vaidade. Vários

pretendentes vieram a mim, mas como eu ainda não

tinha 12 anos, meu pai não ouviu nenhum pedido de

casamento. Eu gostava de ler e me trancava para ficar

sozinha todos os dias, para ler sem ser interrompida.

O que se mostrou eficaz para conquistar-me por

completo a Deus, pelo menos por um tempo, foi

que um sobrinho de meu pai passara por nossa casa

em uma missão para a Cochinchina. Sucedeu que

naquele momento eu estava dando um passeio com

minhas damas de companhia, o que raramente fazia.

Quando voltei, ele já havia partido. Contaram-me de

sua santidade e das coisas que havia dito. Fiquei tão

comovida que me enchi de tristeza. Chorei o resto

do dia e da noite. Na manhã seguinte, logo cedo,

fui procurar meu confessor, muito angustiada. Eu lhe

disse: “O quê, senhor padre! Vou ser a única pessoa

de minha família que irá se perder? Ah, ajude-me em

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minha salvação”. Ele ficou muito surpreso ao ver-me tão

aflita e consolou-me da melhor maneira que pôde, sem

chegar a acreditar que eu fosse tão má como parecia.

Em meus tropeços eu era dócil, pontual na obediência,

cuidadosa para confessar-me muitas vezes. Desde que

o procurei, minha vida passou a ser mais regular.

Ó Deus de amor, quantas vezes tens batido à porta

de meu coração! Quantas vezes tens me aterrorizado

com simulacros de uma morte repentina! Todas essas

coisas somente deixaram uma impressão passageira.

Logo tornei a voltar para minhas infidelidades. Desta

vez Tu levaras e conquistaras meu coração. Ah! Que dor

eu sentia agora por ter-Lhe desagradado! Que pesar,

que suspiros, que soluços! Quem teria pensado, ao

ver-me, que minha conversão haveria de durar toda

a minha vida? Por que, ó meu Deus, não tomaste por

completo este coração para Ti, quando eu o entreguei

a Ti tão plenamente? Ou, se Tu o tomaste, por que o

deixaste revoltar-se mais uma vez? Certamente eras

suficientemente forte para dominá-lo, mas quiseras Tu,

ao deixar-me a mim mesma, mostrar Tua misericórdia

para que a profundidade de minha iniqüidade pudesse

servir como troféu para Tua bondade.

Apliquei-me imediatamente a todas as minhas

obrigações. Fiz uma confissão geral com grande

contrição em meu coração. Confessei com franqueza e

com muitas lágrimas tudo o que sabia. Mudei tanto que

mal me reconheciam. Não havia incorrido, de forma

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voluntária, no menor deslize. Nada encontraram para

absolver quando me confessava. Descobri os menores

defeitos, e Deus fez-me o favor de capacitar-me para

conquistar-me a mim mesma em muitas coisas. Só

restaram alguns vestígios de paixão que me deram

algum trabalho para conquistá-los. Contudo, no

momento em que eu dava um desgosto, por qualquer

motivo, até para os empregados domésticos, implorava

seu perdão com o propósito de subjugar minha ira e

orgulho, pois a ira é filha do orgulho. Uma pessoa

verdadeiramente humilhada não permite que nada lhe

deixe com raiva. Assim como o orgulho é o último a

morrer na alma, a paixão é a última a ser destruída na

conduta externa. Uma alma totalmente morta para si

mesma não encontra raiva alguma dentro dela.

Há pessoas que, superabundando em graça

e em paz, à porta da vereda resignada da luz e do

amor, pensam que ali chegaram. Porém, estão muito

enganadas ao verem assim sua condição. Se estiverem

dispostas a examinar de coração duas coisas, logo

descobrirão isso. Primeiro, que se sua natureza for viva,

incendida e impulsiva (não me refiro a temperamentos

néscios), elas descobrirão que, de vez em quando,

cometem deslizes nos quais há uma parcela de emoção

e angústia. Ainda assim, esses deslizes são úteis para

humilhá-las e aniquilá-las. (Entretanto, quando a ani-

quilação é aperfeiçoada, toda a paixão se vai – e já não

é compatível com este estado.) Descobrirão que muitas

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vezes surgem certos impulsos internos de ira, mas a

doçura da graça as retêm. Transgrediriam facilmente se,

de algum modo, dessem margem a esses impulsos. Há

pessoas que se consideram muito mansas porque nada

as frustra. Não é delas que estou falando. A mansidão

que nunca foi colocada à prova muitas vezes não passa

de uma simulação. Aquelas pessoas que, quando não

são molestadas, parecem santas, no momento em

que são inquietadas por acontecimentos incômodos,

bruscamente se levanta nelas uma série incomum de

defeitos. Pensavam que estavam mortas, quando só

estavam dormentes porque nada as fazia despertar.

Continuei com meus exercícios religiosos. Trancava-

me todos os dias para ler e orar. Dava aos pobres

tudo o que tinha, levando até roupas de linho para

a casa deles. Eu os ensinava o catecismo e, quando

meus pais saíam para jantar fora, eu os fazia comer

comigo e lhes servia com grande respeito. Lia as obras

de São Francisco de Sales e a vida de Madame de

Chantal. Ali aprendi pela primeira vez o que era a

o ra ção mental, e supliquei ao meu confessor que me

ensinasse aquele tipo de oração. Como ele não o fez, eu

mesma me esforcei para praticá-la, embora sem êxito,

como depois pensei, porque não era capaz de exercitar

a imaginação; convenci-me de que aquela oração não

podia ser feita sem formar em mim mesma certas idéias

e pensar muito. Esta dificuldade não me deu poucas

preocupações, por muito tempo. Eu era muito diligente

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e orava a Deus com fervor para que me concedesse

o dom da oração. Tudo o que via na vida de Madame

de Chantal me encantava. Eu era tão pequena que

pensava que teria de fazer tudo o que via nela. Todos

os juramentos que ela havia feito também fiz. Um dia

li que ela havia colocado o nome de Jesus em seu

coração, obedecendo ao conselho: “Põe-me como selo

sobre o teu coração” (Ct 8.6). Para isso, ela tomou um

ferro quente, sobre o qual estava gravado o nome santo.

Fiquei muito angustiada ao ver que não poderia fazer

o mesmo. Decidi escrever aquele sagrado e adorável

nome, em letras grandes, no papel e, com laços e uma

agulha, eu o preguei à pele em quatro lugares. Nessa

posição ele ficou durante muito tempo.

Depois disso, concentrei todas as minhas forças

em ser freira. Como o amor que tinha por São Francisco

de Sales não me permitia pensar em nenhuma outra

comunidade, exceto aquela da que ele era fundador, eu

muitas vezes ia rogar às freiras dali que me recebessem

em seu convento. Com freqüência escapulia da casa de

meu pai para ir até lá e solicitar repetidamente minha

admissão ali. Embora fosse o que elas muito desejassem,

ainda que como uma vantagem passageira, nunca se

atreveram a deixar-me entrar, visto que temiam muito

meu pai, de cujo afeto por mim estavam cientes.

Havia naquela casa uma sobrinha de meu pai, a

quem devo muito. A fortuna não havia favorecido muito

seu pai. Isso a levava, de certo modo, a depender do

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meu, a quem ela colocou a par do meu desejo. Embora,

por nada do mundo, não houvesse tentado impedir

minha verdadeira vocação, ele não podia ouvir falar

de minhas intenções sem derramar lágrimas. Visto que

naquela época ele estava no estrangeiro, minha prima

procurou meu confessor para pedir-lhe que impedisse

minha ida para o convento. Ele não se atreveu, no

entanto, a fazê-lo abertamente, por medo de atrair

sobre si o ressentimento daquela comunidade. Eu ainda

queria ser freira, e importunava sobremodo minha mãe

para que me levasse aquela casa. Ela não o fez, por

medo de afligir meu pai, que estava ausente.