Automatos e Grecia Antiga

download Automatos e Grecia Antiga

of 4

description

Article on Automata

Transcript of Automatos e Grecia Antiga

  • A DIMENSO TECNOMSTICA DOS AUTMATA (PRODGIOS TCNICOS) E MPSYKHA

    AGLMATA (CRIATURAS ANIMADAS) NO IMAGINRIO DA GRCIA ANTIGA

    Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuez (UERJ)

    RESUMO Os manufaturados artsticos e tcnicos constituem esplendores da engenhosidade, includos na ampla

    categoria das mekhana, com as quais os gregos estavam familiarizados atravs de mquinas de toda sorte.

    Interessa-nos discernir, nesse conjunto, os autmata, cuja autorregulao lhes confere aspecto monstruoso, e os mpsykha aglmata, prodgios tcnico-artsticos tais como as esttuas animadas e os biides divinos. A

    partir de Hefesto, paradigma do criador mtico, possvel explicar as manifestaes paradoxais do imaginrio

    tecnolgico: de um lado, a tecnologia serve como veculo para encantamentos, construes da imaginao

    religiosa e intuies animsticas; de outro, fornece as bases para a inteligncia transcendente e para as

    abstraes desencarnadas da gnme.

    Palavras-chave: imaginrio tcnico - autmato - criaturas semoventes Hefesto

    A dimenso tecnomstica dos autmata (prodgios tcnicos) e mpsykha aglmata (criaturas animadas) no

    imaginrio da Grcia antiga.

    1 - Proposio

    De acordo com a concepo grega antiga, os manufaturados artsticos e tcnicos (autmatos e objetos

    semoventes, em geral) constituem esplendores da engenhosidade, includos na ampla categoria das mekhana,

    com as quais os gregos estavam familiarizados atravs de mquinas de toda sorte e de mecanismos artificiais.

    Interessa-nos aqui discerni-las dos autmata, cuja autonomia funcional lhes atribui aspecto muitas vezes

    monstruoso, e dos mpsykha aglmata, manufaturados tcnico-artsticos, que trazem consigo a idia de

    vitalidade presente nas esttuas animadas e nos autmatos divinos.

    Neste trabalho, tomamos Hefesto como paradigma do criador mtico, com seus autmatos

    sobrenaturais e indestrutveis em forma humana, para explicar as manifestaes paradoxais do imaginrio

    tecnolgico. De um lado, pretendemos demonstrar como a tecnologia serve de veculo para encantamentos,

    manifestaes espirituais e intuies animsticas; de outro, fornece as bases para a inteligncia transcendente e

    para as abstraes desencarnadas da gnsis.

    2- Retrica dos corpos alterados

    O imaginrio da Grcia antiga prdigo em figuraes monstruosas, que poetas e filsofos

    exploraram, para reinventar a experincia de espanto expressa no thuma grego esse estado de estupor cultivado pelos Antigos como condio favorvel ao pensamento.

    O dessemelhante, a estranheza, o outro do homem organizado, que, na perspectiva poltica, o inculto,

    o incivilizado, o estrangeiro e todos os estranhos (poll t dein1 ), na perspectiva do indivduo, so os corpos

    alterados, altamente desestabilizadores da noo de integridade a que o imaginrio corporal grego chegou, no

    sc. V.

    Na confluncia de uma cena social hedonista, atltica e espetacular, a retrica da dor fsica, a

    mutilao e o desacordo com a sanidade pblica anunciam o lugar escabroso a que a imagem dos corpos

    doentes se destina. Filoctetes2 encena a marginalidade a que a doena leva, numa sociedade que tem em alta

    estima o estatuto da pureza, da beleza e da desinfeco. Nesse sentido, o corpo doente uma barbaridade que

    afeta o plano fsico, uma presena desadaptada ao modelo triunfante da prpria plis e constitui o seu par

    opositivo, em escala individual. No horizonte de valores legitimados pela mentalidade democrtica,

    macropoltica da plis corresponde a micropoltica do corpo: a plis assediada pela barbrie equivale

    imagem do corpo alucinado.

    exatamente esse intercmbio de propriedades, na zona de fronteira em que se conectam a

    concepo fsica do homem e a organicidade do conjunto social, que fundamenta a descrio do projeto

    poltico da Politia? por Scrates. Nas palavras de Koyr (1962, 108),

    a Cidade no um amontoado de indivduos, mas forma uma unidade real, um

    organismo espiritual, e desse fato se estabelece entre sua constituio, sua estrutura e a

    do homem, uma analogia que faz da primeira [a Cidade] um verdadeiro nthropos

    magnificado (en grand) e do segundo [o indivduo], uma verdadeira politia, reduzida

  • (en petit). Como essa analogia repousa sobre uma dependncia mtua, impossvel

    estudar o homem sem estudar, ao mesmo tempo, a Cidade da qual ele faz parte.

    Em nota, o platonista vai adiante: ...poderamos dizer que a Cidade um macranthropos e o homem, uma micropolitia (Koyr: idem). Percebe-se que a plis vista, na sua correlao com o corpo humano e semelhantemente a este, como um mecanismo administrvel e, por conseguinte, controlvel.

    Essas idias confinam com a tibieza do doente, o grotesco dos corpos enfermos, mas refletem

    tambm a torpez do indiferentismo, numa sociedade que reclamava os direitos at de seus cadveres.

    Desregramento anlogo ocorre nos corpos hibridizados, representantes de outro tipo de transgresso: a

    permeabilidade das fronteiras entre os mundos racional e irracional operada por imagens como as do

    centauro, das sereias, do Minotauro e de tantos outros hbridos, assim chamados porque tornam plstica a

    hbris consumada na fuso de duas ou mais espcies distintas. Uma vez associadas, elas geram anomalia,

    perigo e necessidade de punio.

    De outra categoria so os metamrficos como Narciso, Aracne, Jacinto e tantos outros, geralmente

    associados s exacerbaes da sexualidade. No h espao, nesse trabalho, para abordar a sua especificidade,

    ainda que tratem ambas as tipologias, hbridos e metamorfos, de transbordos das fronteiras corporais, capazes

    de expressar a condio a um s tempo faltante e suplementar, carente e excedente, da natureza humana. So

    outra vez os reclamos do corpo, barbarizando / alucinando a formatao pacfica dos desejos regulamentados

    pelas parmetros da cultura. Ovdio, nas Metamorfoses, realiza a primeira abordagem complexa da temtica,

    explorando os mltiplos exemplos que a mitologia fornece, com vistas a deles extrair uma teoria. O projeto

    tal forma arrojado e artstico, que resulta na plasmao potica de uma teoria sobre o fingere latino e a fico,

    da forma como a tradio ps-clssica demorou sculos a compreend-la (Stierle: 2006, 12-18).

    Como se v, no mbito da programaticidade e das prticas de alto controle material e virtual, a

    racionalidade absoluta pode favorecer a irrupo da irracionalidade. nesse nicho que se situa a concepo

    grega de manufaturados artsticos e tcnicos (autmatos e objetos semoventes, em geral), esplendores da

    engenhosidade, includos na categoria mais ampla das mekhana, com as quais os gregos estavam plenamente

    familiarizados (atravs das mquinas de guerra, das mquinas teatrais e toda sorte de mecanismos artificiais

    que no decorrem, alis, de um talento exclusivamente grego, mas da inventividade humana).

    3 A especificidade dos corpos mecnicos Peculiarizam-se os autmata, no conjunto dos mecanismos antigos, pela autonomia funcional, que lhes

    atribui aspecto muitas vezes monstruoso e os torna sempre perturbadores. Ainda que admirveis, os autmata

    tm a falibilidade mais acentuada que no ser humano, pois no conseguem perceber falhas na execuo de

    suas tarefas, e o maravilhamento se pode converter inopinadamente em ao calamitosa. Pode ocorrer

    tambm que o mecanismo fuja ao controle do inventor e conquiste uma sorte de vida independente. No

    primeiro caso, esto envolvidos cincia e tecnologia (Talos o soldado de bronze cretense, mas tambm o Frankenstein, servem-lhe de exemplo); no segundo (cujos exemplos so muito mais numerosos, tanto na

    mtica grega, quanto em outras tradies3 , o poder da magia se sobrepe ao projeto tecnolgico.

    Tais objetos foram largamente representados no mito e na literatura. O interesse por eles constitui hoje

    uma linha de investigao crescente, que vai buscar, ora nos relatos mticos, ora em fontes histricas,

    literrias e arqueolgicas, a noo original de vitalidade presente nas esttuas animadas e nos autmatos

    divinos.

    certo que esses autmatos mticos provm de fases pr-tecnoligcas4 . Mas o que est em causa a

    possibilidade que qualquer dessas mekhana oferece de, no confronto com o homem e com seu corpo, abrir

    cogitaes sobre a alma, o carter, a tica humana.

    Passemos cena mais radical: dos manufaturados tcnicos e autmatos semoventes - as criaturas

    animadas ou mpsykha aglmata. Nos aglmata, contemplamos objetos sofisticados, artisticamente

    trabalhados, com os quais se adorna um templo, se pode ofertar a uma divindade e do qual o criador sempre

    se orgulha. O galma (ornato) se refere a uma esttua ou imagem, seja de um deus, seja de um mortal, que, em si, no tem outra finalidade, a no ser ornar, adornar. Disfuncionalizada para a vida prtica, est

    habilitada a servios importantssimos, no campo das representaes afetivas do imaginrio.

    Para a mentalidade mtica, no existem vivos e seus fantasmas, o aqui e um alm, o natural e o

    sobrenatural, corpos separados de espritos. Ao contrrio, fusionados na coalescncia mtica, corpos-espritos,

    captados atravs da representao similiforme da estaturia, da pintura e da poesia, so capazes de remeter-

    nos para o interior do prprio mistrio. A confirm-lo, o pensamento de Nietzsche: entre os efeitos peculiares

  • da arte, o que h de mais notvel essa co-presena5 . Assim chegamos ao cmulo da imaginao tcnica

    dos Antigos.

    Os organismos animados trazem consigo a idia de vitalidade presente nas esttuas animadas e nos

    autmatos divinos. Gozam das duas dimenses do prodgio tcnico-artstico: a vitalidade da esttua e a

    utilidade do instrumento animado. Prevalece neles a noo do artifcio entendido no como mmesis da

    natureza, mas criao de uma alternativa, fundada no desejo de despertar maravilhamento (poll t dein).

    Os criadores mticos por excelncia so Hefestos (com seus autmatos sobrenaturais e indestrutveis

    em forma humana), Ddalo (criador de esttuas que parecem vivas) e Prometeu (que transforma esttuas em

    seres vivos).

    Hefestos, entretanto, o deus que, dominando a escala que leva dos mecanismos engenhosos aos

    autmata e destes aos mpsykha algmata ?(ornamentos animados), subsume as propriedades do artista e do mago, da metalurgia e do exoterismo xamnico. Na base do imaginrio tecnolgico (junto a Hermes,

    Prometeu, os ciclopes..., mas superando-os e recolhendo deles muitos elementos), Hefesto representa a

    tecgnosis muito recentemente cogitada (Davis: 1999). Em sua oficina, as fronteiras entre a vida sinttica e

    orgnica, real e virtual se dissolvem e rapidamente deslizam para zonas supra-humanas, em direo a valores

    da imaginao arquetpica e ao arquivo de imagens irracionais do mito, do sonho, da fantasia tecnomstica de

    que Hefestos seria o paradigma.

    Hefesto produziu uma diversidade admirvel de artefatos. Dentre suas invenes, podem ser

    mencionados os utilitrios escudos de Peleu e Aquiles, o cetro de Agamemnon; a couraa de Diomedes, a cratera de Menelau, a urna funerria para as cinzas de Aquiles; a nfora de ouro para Dioniso e Ttis etc....

    H tambm os objetos mgicos, como a gide de Zeus; o colar de Harmonia; ou a esttua de Dioniso, capaz de enlouquecer a quem a contemplasse. Ou ainda a coroa mgica de Ariadne (para seduzir e salvar Teseu no

    labirinto), as castanholas de bronze usadas por Hracles para espantar os pssaros do lago Estinfalo e o colar

    de Afrodite etc... Outra maravilha que ilustra a artesania de Hefesto so os automticos, dentre os quais se destacam o carro do sol; o quarto de Hera; as quatro fontes maravilhosas do palcio de Afrodite e Etes (das

    quais jorravam vinho, leite, leo e gua); os fornos vivos, operados por trips em ouro que se movem por si,

    na oficina submarina; dois cachorros de ouro e prata ofertados a Alcnoo; sem meniconar a guia que Zeus

    assume como seu smbolo. E h ainda os seres protticos: a charrua de Eetes em ao, com dois touros de ps de bronze...

    Mas a superao de Hefestos est em modelar corpos e lhes conferir vida e movimento. Os seus

    prodgios so Pandora e Talos (a mquina mortfera em forma de homem de bronze fornecida a Minos, com a

    funo de guardar a ilha de Creta dos estrangeiros), dois exemplares insuperveis de mpsykhoi (seres animados), sados das mos do trabalhador (no do combatente), cuja ferramenta principal (a bigorna), funciona imaginariamente como arma mgica, antes de ser instrumento artesanal. A contradio evidente:

    os aglmata fastgios da habilidade artesanal e tecnolgica,? supra-sumos do requinte e da novidade

    tecnolgica que o mundo civilizado corteja, so instrumentos punitivos e fontes de destruio. Aqui o

    metalrgico quase um ourives (trabalha com bronze, ouro, estanho, prata e esmalte, jamais com o ferro) e,

    ao mesmo tempo, um terrorista fudamentalista, que infiltra seus projetos clandestinamente nas fronteiras do

    mundo organizado, para barbariz-lo.

    4 - Concluso

    Pandora e Talos, da mesma forma que os clones e ciborgues atuais, so projetos tecnonaturais que,

    colocam a humanidade de nossa subjetividade... em questo (Silva: 2000, 12). A dimenso de realidade alcanada pelo mpsykhos do passado a mesma dos implantados, transplantados, enxertados, protticos,

    portadores de rgos artificiais, seres geneticamente modificados, anabolizados, superatletas, supermodelos,

    superguerreiros, clones e ciborgues do presente. Eles todos, como produes do imaginrio mtico ou da

    tecnomedicina, pem em xeque a ontologia do humano. Como sublinha Tomaz Tadeu da Silva, a existncia

    do ciborgue (atual ou mtico) no nos intima a perguntar sobre a natureza das mquinas, mas muito mais

    perigosamente sobre a natureza do humano (idem: 13).

    A obsesso ocidental pela tecnologia no gratuita, nem recente. A herana mtica de projetos

    mgicos chegou era moderna. A tecnologia ajudou a desencantar o mundo. Mas os fantasmas antigos e os

    pruridos metafsicos no desapareceram. Vestgios de impulsos tecnomsticos esto na fico cientfica, nos

    vdeo-games e tambm na conexo entre mito e cincia.

  • O cientista uma personagem do imaginrio ocidental que tem como ancestrais os magos, feiticeiros e

    alquimistas. A esse respeito, Erik Davis comenta: Topografias virtuais de nosso mundo milenar esto plenas

    de anjos e aliens, em avatares digitais e mentes msticas, em anseios utpicos e fices cientficas gnsticas e

    na negra perspectiva de encantamento apocalptico e demonaco (Davis: 1999, 5).

    Da mesma forma que a alma sempre esteve encantando e espiritualizando os meios tecnolgicos

    (Davis: 2000, 6), a tecnologia nunca deixou de servir como veculo para encantamentos, intuies animsticas

    e uma comunicao cifrada, oracular, premonitria, entre iniciados.

    Referncias bibliogrficas

    BRANDO, J. de S. Dicionrio mtico-etimolgico da mitologia grega. 2 vols. Petrpolis: Vozes, 1991.

    CASSIN, B.; N. LORAUX; C. PESCHANSKI. Gregos, brbaros, estrangeiros: A cidade e seus outros.

    Trad. Ana Lcia de Oliveira e Lcia Cludia Leo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

    COHEN, J. J. et alii. Pedagogia dos monstros os prazeres e os perigos da confuso de fronteiras. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autntica, 2000.

    DAVIS, E. Techgnosis. New York: Three /Rivers Press, 1999.

    DELCOURT, M. Hephaistos ou la lgende du magicien. Paris: Belles Lettres, 1982.

    DORZ, G.. Os mitos platnicos. Trad. Maria Auxiliadora Ribeiro Keneipp. Braslia: Universidade de

    Braslia, 1997.

    ERNOUT, A.& MEILLET, A. Dictionnaire tymologique de la langue latine: Histoire des Mots. Paris:

    Klincksieck, 1985.

    KOYR, Alexander Introduction la lecture de Platon. Paris: Gallimard, 1962

    KRISTEVA, J. Estrangeiros para ns mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

    SILVA, T. T. da. Ns, ciborgues: o corpo eltrico e a dissoluo do humano. In: ___ (org.). Antropologia do ciborgue: as origens do ps-humano. Belo Horizonte: Autntica, 2000.

    SOPHOCLE Philoctte. A. Dain, P. Mazon (ed.). vol.3. Paris: Belles Lettres, 1965.

    STIERLE, Karlheinz. A Fico. Trad. Luiz Costa Lima. Cadernos do Mestrado 1. Rio de Janeiro:

    Caets/Programa de Ps-Graduao em Letras, 2006.

    VERNANT, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos; estudos de psicologia histrica. Trad. Haiganuch

    Sarian. So Paulo: Difuso Europia do Livro, Ed da USP, 1973.

    VIDAL-NAQUET, P. Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio. Trad. Jnatas Batista

    Neto. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.

    Notas

    1 A expresso de Sfocles (Muitos so os assombros / as maravilhas, Antgona, v 332). 2 Filoctetes o heri grego que Sfocles transformou no smbolo do sofrimento fsico, associado a graves

    angstias. O heri foi abandonado numa ilha, antes que a esquadra grega chegasse a Tria, porque, ferido,

    representava o perigo de infeco dos exrcitos. Sfocles dramatiza a situao tremenda que levou Ulisses a

    procur-lo com falsos discursos de reconciliao e socorro, apenas para roubar-lhe o arco, arma de cuja

    utilizao, no combate com os troianos, dependeria a vitria grega. Neoptlemo, filho de Aquiles, entretanto,

    desiste de tal deslealdade.