AUTONOMIA E EDUCAÇÃO EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE · 2 Paulo Reglus Neves Freire (1921 –...

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AUTONOMIA E EDUCAÇÃO EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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Vicente Zatti

AUTONOMIA E EDUCAÇÃO EM IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE

PORTO ALEGRE 2007

© EDIPUCRS, 2007 Capa: Vinícius de Almeida Xavier Diagramação: Carolina Bueno Giacobo e Gabriela Viale Pereira

Revisão: Daniela Origem

Z38a Zatti, Vicente Autonomia e educação em Immanuel Kant e Paulo Freire /

Vicente Zatti. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2007.

ISBN 978-85-7430-656-8 Publicação Eletrônica

1. Kant, Immanuel – Crítica e Interpretação. 2. Freire, Paulo – Crítica e Interpretação. 3. Educação – Filosofia. 4. Autonomia – Educação. I. Titulo.

CDD 370.1

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

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AGRADECIMENTOS O presente trabalho é parte de minha dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Educação da UFRGS. Agradeço aos professores Dr. Laetus Mário Veit, Dr. Balduino Andreola, Drª. Rosa M. F. Martini, Dr. Luiz Carlos Bombassaro e, também a Ana Maria Freire.

Alguém poderia dizer que cada um de nós modifica a si mesmo, se modifica até o ponto em que muda as relações complexas das quais é o eixo. Gramsci

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 CAPÍTULO I – A AUTONOMIA ........................................................................ 12 CAPÍTULO II – O CONTEXTO FILOSÓFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT....... 18 2.1 – O ILUMINISMO E SUA NOÇÃO DE AUTONOMIA................................. 18

2.1.1 – Razão iluminista................................................................................ 18 2.1.2 – Antropologia Iluminista...................................................................... 20 2.1.3 - O Iluminismo radical .......................................................................... 21

2.2 – ROUSSEAU E A AUTONOMIA............................................................... 23 2.3 – KANT: HERANÇA E SUPERAÇÃO DA NOÇÃO DE AUTONOMIA ILUMINISTA ..................................................................................................... 24 2.4 – KANT: RAZÃO PRÁTICA E AUTONOMIA.............................................. 27 2.5 - A PEDAGOGIA KANTIANA E A AUTONOMIA ........................................ 31 CAPÍTULO III – A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE OPÕE ......... 38 3.1 – A OPRESSÃO......................................................................................... 38 3.2 – MASSIFICAÇÃO E MEDO DA LIBERDADE........................................... 40 3.3 – COLONIALISMO E INVASÃO CULTURAL............................................. 41 3.4 – SECTARIZAÇÃO E IRRACIONALISMO ................................................. 43 3.5 - AÇÃO ANTIDIALÓGICA .......................................................................... 44 3.6 – CONCEPÇÃO BANCÁRIA DA EDUCAÇÃO E A OPOSIÇÃO PROFESSOR/ALUNO ..................................................................................... 47 3.7 – NEOLIBERALISMO E A ÉTICA DE MERCADO ..................................... 48 3.8 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HETERONOMIA HOJE ....... 50 CAPÍTULO IV – A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA EM PAULO FREIRE . 53 4.1 – INCONCLUSÃO DO SER HUMANO E A AUTONOMIA ......................... 53 4.2 – EDUCAR É FORMAR: IMPRESCINDIBILIDADE DA ÉTICA E ESTÉTICA......................................................................................................................... 54 4.3 – AUTORIDADE E LIBERDADE ................................................................ 56 4.4 – CURIOSIDADE, CRITICIDADE E A AUTONOMIA ................................. 58 4.5 – CONSCIENTIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DIALÓGICA................................. 60 4.6 – EDUCAR PARA TRANSFORMAR.......................................................... 62 CAPÍTULO V – PENSAR A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA HOJE A PARTIR DAS CONFLUÊNCIAS E DISSONÂNCIAS ENTRE KANT E FREIRE......................................................................................................................... 64 5.1 – IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE: CONFLUÊNCIAS E DISSONÂNCIAS .............................................................................................. 64 5.2 – FORMAÇÃO POLÍTICA E A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA.......... 69 5.3 – FORMAÇÃO ÉTICA E A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA ............... 71 5.4 – FORMAÇÃO ESTÉTICA E A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA ........ 73 CONCLUSÃO................................................................................................... 77 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 79

INTRODUÇÃO

O interesse em pesquisar o tema autonomia e educação tomando como

referência Immanuel Kant1 e Paulo Freire2 surgiu a partir da constatação de situações do meio escolar e social atual que levam a ou se caracterizam como situações de heteronomia. Destaco dentre essas situações a forma como grande parte dos alunos desenvolvem uma capacidade de compreensão insuficiente, se mostram arredios à leitura, seguem a moda irrefletidamente, apresentam dificuldade em pensar por conta própria e discutir criticamente os assuntos que envolvem, inclusive, seu cotidiano. A nível social destaco a estetização do mundo da vida que leva ao individualismo, à indiferença com o humano, à irresponsabilidade, à massificação e a conseqüentes formas de pensar e agir homogeneizados, não autênticos e autônomos. Além disso, a razão instrumental promove hoje a colonização de diversas esferas do mundo da vida, gerando uma sociedade em muitos aspectos desumanizante e irracional, que prioriza o econômico em detrimento do humano.

A realidade social permeada pela estetização, pela racionalidade instrumental, e que se caracteriza como sociedade de massa, ecoa diretamente sobre a educação. Os modelos educacionais elaborados a partir de um pensamento tecnicista-instrumental não abordam a educação em sua totalidade formativa, se mostrando, portanto, insuficientes na formação do educando enquanto homem e cidadão. Dessa forma, sociedade e escola acabam gerando um ser humano incapaz de formular juízos próprios e autônomos, incapaz de pensar certo3, como diz Paulo Freire, tanto no nível de conhecimento como em nível moral. Permanecem as pessoas, então, dependentes e determinadas por pensamentos, normas de conduta, ideais, projetos que não são seus, normalmente “impostos” pelos meios de comunicação ou pelo senso comum vigente. E a determinação passiva do sujeito pelo que lhe é externo é heteronomia. A autonomia supõe que o sujeito seja capaz de fazer uso de sua liberdade e determinar-se.4

Além do acima exposto, as condições sociais desfavoráveis como pobreza, miséria, favelamento, em que grande parte da população brasileira vive, são elementos que dificultam e até impossibilitam a autonomia. Em geral a pobreza econômica condiciona a uma situação de pobreza cultural, o que dificulta e limita o exercício autônomo da cidadania, pois, privados de boa formação, não conseguem estabelecer-se como sujeitos no contexto social por não terem condições iguais de intercomunicação e não terem condições iguais para disputar as oportunidades, inclusive de emprego. As condições sociais desfavoráveis limitam o poder ser autônomo, tendo em vista que a autonomia 1 Immanuel Kant (1724 -1804), nasceu, estudou, lecionou e morreu na cidade de Königsberg, na Prússia Oriental, atual Alemanha. Jamais deixou a cidade que se caracterizava como um centro de estudos universitários e centro comercial. Manteve uma vida com rotina rígida, regular e austera, a qual interrompeu pouquíssimas vezes. 2 Paulo Reglus Neves Freire (1921 – 1997), nasceu na cidade de Recife, capital de Pernambuco. Viveu sua infância e adolescência em Jaboatão dos Guararapes. Formou-se em Direito na Faculdade do Recife, mas largou a advocacia para trabalhar e pesquisar educação. Devido a suas idéias e prática política, chegou a ser preso em 1964 durante a ditadura militar, acusado de atividades subversivas. Após 70 dias de prisão consegue sua liberdade e se vê forçado a partir para o exílio, período em que viveu na Bolívia, Chile, Estados Unidos e Suíça. Em 1980 consegue retornar para o Brasil. 3 “Pensar certo” é um conceito central em Paulo Freire, que é usado em quase todas suas obras, principalmente em Pedagogia da autonomia. Para Freire (2000a, p. 42) pensar certo é o pensar dialógico e demanda respeito aos princípios éticos (cf. idem, p. 37). Pensar certo é fazer certo (cf. ibid, p. 38), é uma exigência do ciclo gnosiológico que torna a curiosidade ingênua em curiosidade epistemológica (cf. ibid, p. 32). 4 No entanto, autonomia não é sinônimo de liberdade, que tem sentido mais indeterminado e por isso mais abrangente.

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engloba tanto a liberdade de dar a si os próprios princípios, quanto a capacidade de realizar os próprios projetos. Por isso, pensamos que é papel da escola promover uma educação que leve o educando a pensar livremente e, também, capacitá-lo para realizar os projetos que estabelece para si.

Mas por que estudar Kant e Paulo Freire para iluminar essa problemática?

Quem definiu o conceito de autonomia na modernidade e fez dele um conceito central em sua teoria foi Kant. Nesse ideal viu o fundamento da dignidade humana e do respeito, o que foi central para o desenvolvimento dos sistemas legais, dos sistemas educacionais e da sociedade moderna como um todo. A concepção kantiana de liberdade como autodeterminação influenciou muito a educação e o modelo escolar criado a partir da modernidade. Mas para entendermos melhor a concepção de autonomia de Kant, veremos também a concepção de autonomia defendida pela filosofia de sua época, o iluminismo.

Paulo Freire traz uma contribuição extremamente importante para a educação, especialmente de países em que situações de opressão são características marcantes, como é o caso do Brasil. Ele formulou uma proposta educacional que procura transformar o educando em sujeito, o que implica na promoção da autonomia. Seu método propõe uma alfabetização, uma educação, que leve à tomada de consciência da própria condição social. A conscientização possibilitaria a transformação social, pela práxis que se faz na ação e reflexão. Teríamos, então, um sujeito emancipado de uma condição social opressora. Em Freire, a libertação das heteronomias, normalmente impostas pela ordem sócio-economica-educacional injusta e/ou autoritária, é condição necessária para a autonomia.

As propostas de Kant e Freire possuem em comum uma aposta esperançosa na humanidade, no potencial humano de fazer-se melhor e construir um mundo melhor. A questão que se coloca nessa obra é refletir sobre as possibilidades de as concepções de educação para a autonomia de Immanuel Kant e Paulo Freire iluminarem uma educação que vise formar para a autonomia hoje, uma educação capaz de formar para a superação das heteronomias do nosso tempo.

No primeiro capítulo, faço a definição do conceito de autonomia e uma exposição da compreensão de autonomia de alguns pensadores ao longo da história. No segundo capítulo, procuro demonstrar o contexto filosófico do iluminismo no qual o pensamento kantiano se desenvolveu, definir a concepção de autonomia dos iluministas e demonstrar contra quais heteronomias se colocam, demonstrar que a concepção de autonomia dos iluministas é considerada heteronomia por Kant, demonstrar porque no pensamento de Kant há a centralidade dos conceitos de autonomia e razão prática, identificar contra quais heteronomias Kant se coloca. Ainda no segundo capítulo, analiso os aspectos da pedagogia kantiana relacionados com o problema da educação para a autonomia.

O terceiro capítulo procura analisar contra que heteronomias Paulo Freire se opõe, o que será feito partindo de temas como opressão, massificação, medo da liberdade, colonialismo, invasão cultural, prescrição, sectarização, irracionalismo, ação antidialógica, concepção bancária de ensino, neoliberalismo, ética de mercado. Também coloco aspectos da atualidade da questão heteronomia. O quarto capítulo se debruça sobre a concepção de educação para a autonomia em Paulo Freire procurando analisar como devem

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ser as relações professor/aluno e as relações sociais para a promoção da autonomia, analisar a concepção antropológica e social freireana bem como suas implicações em uma educação para a autonomia, demonstrar a conscientização e a educação dialógica como necessárias para a libertação e gestação da autonomia. O quinto capítulo procura comparar Freire e Kant estabelecendo confluências e dissonâncias, destacar aspectos de ambos que auxiliam na problemática atual e, a partir de ambos os autores, analisar a educação enquanto formação política, ética e estética e suas implicações com a autonomia.

Essa obra não pretende ser um manual prático que oriente procedimentos para a educação que vise à autonomia, pretende ser um trabalho teórico que pensa aspectos de uma educação que forme para a autonomia hoje a partir de Kant e Freire. Ao tratarmos do tema autonomia, sabemos que uma autonomia absoluta da forma como foi pensada na modernidade não é possível. As estruturas sociais, o contexto no qual estamos imersos, a debilidade da razão que possui seus limites, a nossa constituição racional intersubjetiva impedem uma autonomia absoluta5. Mas defendemos a possibilidade da emancipação do homem para a vivência da condição humana e liberdade, a fim de poder determinar sua própria vida autonomamente. E a educação possui papel central na formação desse homem capaz de desvencilhar-se das heteronomias e fazer a si e ao mundo com autonomia.

5 Nosso objetivo não é propor um metaparadigma, o objetivo é refletir, a partir do estudo de Kant e Freire, sobre a possibilidade de caminhos para uma educação que forme um sujeito que não fique anulado pelas massificações, ideologias, alienações, enfim, heteronomias do nosso tempo.

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CAPÍTULO I – A AUTONOMIA

Etimologicamente autonomia significa o poder de dar a si a própria lei,

autós (por si mesmo) e nomos (lei). Não se entende este poder como algo absoluto e ilimitado, também não se entende como sinônimo de auto-suficiência. Indica uma esfera particular cuja existência é garantida dentro dos próprios limites que a distinguem do poder dos outros e do poder em geral, mas apesar de ser distinta, não é incompatível com as outras leis. Autonomia é oposta a heteronomia, que em termos gerais é toda lei que procede de outro, hetero (outro) e nomos (lei). Ferrater Mora (1965) define autonomia como uma realidade que é regida por uma lei própria. Ainda sugere dois sentidos para o termo autonomia: o sentido ontológico se refere a certas esferas da realidade que são autônomas em relação às outras, por exemplo, a realidade orgânica é distinta da inorgânica, o sentido ético se refere a uma lei moral que tem em si seu fundamento e a razão da própria lei. O último sentido de autonomia foi desenvolvido por Kant. Segundo Abbagnano (1962, p. 93), é bastante usada a expressão “princípio autônomo” no sentido de que o princípio tenha em si, ou coloque por si mesmo, a sua validez ou a regra de sua ação.

Mas a definição que nos parece mais apropriada por designar melhor o sentido de autonomia é a do Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia: “Etimologicamente autonomia é a condição de uma pessoa ou de uma coletividade cultural, que determina ela mesma a lei à qual se submete”.(LALANDE, 1999, p. 115). Como a autonomia é “condição”, como ela se dá no mundo e não apenas na consciência dos sujeitos, sua construção envolve dois aspectos: o poder de determinar a própria lei e também o poder ou capacidade de realizar. O primeiro aspecto está ligado à liberdade e ao poder de conceber, fantasiar, imaginar, decidir, e o segundo ao poder ou capacidade de fazer. Para que haja autonomia os dois aspectos devem estar presentes, e o pensar autônomo precisa ser também fazer autônomo. O fazer não acontece fora do mundo, portanto está cerceado pelas leis naturais, pelas leis civis, pelas convenções sociais, pelos outros, etc, ou seja, a autonomia é limitada por condicionamentos, não é absoluta. Dessa forma, autonomia jamais pode ser confundida com auto-suficiência.

Se autonomia é a condição de quem determina a própria lei, a condição de quem é determinado por algo estranho a si é heteronomia. Segundo Lalande (idem), heteronomia é “Condição de uma pessoa ou de uma coletividade que recebe do exterior a lei à qual se submete”. Situações como ignorância, escassez de recursos materiais, má índole moral, etc, impõe determinações que limitam ou anulam a autonomia, sendo caracterizadas, portanto, como heteronomia. A autonomia exige uma existência que não é de antemão determinada, a fim de que o sujeito possa exercer o poder de determinar-se.

Apesar de o conceito de autonomia ter sido definido e adquirido centralidade na modernidade, especialmente com Kant, já no pensamento grego era desenvolvida uma noção de autonomia. Ao longo da história essa noção vai adquirindo significados diferentes e, assim, vai sendo elaborada. Por isso, para entendermos a concepção de autonomia de um autor, precisamos olhar a qual heteronomia ele se opôs e o contexto histórico e teórico que o envolvia.

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Na Grécia antiga, historiadores como Tucídides e Xenofonte citam povos que se rebelavam e buscavam sua independência (cf. BOURRICAUD, 1985, p. 52), o que mostra a presença da idéia de autodeterminação política das cidades. Mas a noção de autonomia dos historiadores gregos fica restringida à idéia de autodeterminação das unidades políticas, as cidades. Ela é distinta da noção de soberania, de autarquia, de poder absoluto. É aproximada do conceito de autarcia, suficiência, de não ter necessidade de ninguém (cf. idem).

Platão (428/427 a.C. - 347 a.C.) desenvolve uma concepção pouco mais elaborada. Ao definir uma comunidade perfeita, a define como autarcia, acrescentando o aspecto da suficiência econômica.(cf. ibid). Em Platão a noção de autonomia ainda não possui caráter moral, mas ele, indiretamente, contribui para o desenvolvimento do caráter moral do conceito moderno de autonomia por ter pensado o autodomínio, somos bons quando a razão governa e maus quando dominados por nossos desejos (cf. TAYLOR, 1997, p. 155). Platão distingue entre partes superiores e inferiores da alma, dominar a si mesmo é fazer com que a parte superior da alma controle a inferior, ou seja, fazer com que a razão controle os desejos. O governo da razão instaura a ordem, enquanto os desejos representam o reino do caos. Somos bons quando a razão passa a governar e não somos mais dominados por nossos desejos (cf. idem, p. 156). “Ser governado pela razão era estar voltado para as Idéias6 e, portanto, ser movido pelo amor a elas” (ibid, p. 189). Enfim, para Platão ser governado pela razão, ser racional, é ser senhor de si mesmo (cf. ibid, p. 157), pensamento que inclui uma noção de autonomia. Em Aristóteles (384/383 a.C. - 322 a.C.) a noção de autarcia recebe uma dimensão moral. Agora se refere ao indivíduo humano e o que ele visa na busca da felicidade. O Bem se basta por si mesmo, é o seu próprio fim, é livre de toda necessidade. Assim a felicidade e a autonomia se dão ao sujeito que possui tal Bem7.(cf. BOURRICAUD, 1985, p. 52).

Os estóicos8, embora ainda não usassem o termo autonomia, trouxeram idéias que contribuíram muito para a evolução da noção, como independência de toda regulação e de todo constrangimento vindo do exterior, satisfação das próprias necessidades sem que a cidade ou o indivíduo precise estar em dependência de outro. (cf. idem). Para eles, há uma Razão divina (Natureza) que rege o mundo segundo uma ordem necessária e perfeita, da mesma forma que o animal é guiado pelo instinto, o homem é guiado, infalivelmente, pela razão (cf. ABBAGNANO, 1962, p. 356). Frente a isso, resta ao homem escolher entre duas atitudes, uma de passividade e ignorância e outra de consentimento reflexivo ou recusa. A autonomia do sujeito se situa ao nível de julgamento, que compreende a capacidade de prever e escolher. (cf. BOURRICAUD, 1985, p.

6 Em Platão o “verdadeiro ser” é constituído pela “realidade inteligível”. Ele as explicou recorrendo principalmente aos termos Idéia e Eidos, que significa “forma”. (cf. REALE, 1997, p. 136-137). As Idéias platônicas são as essências das coisas, aquilo que faz com que cada coisa seja aquilo que é. (cf.idem, p.137). As expressões mais usadas por Platão para indicar as Idéias são “em si”, “por si” e também “em si e por si”. O conjunto das Idéias passou à história com a denominação de Hiperurânio. O Hiperurânio e as Idéias são captados apenas pela parte mais elevada da alma, ou seja, a inteligência. (cf. ibid, p. 138). 7 Segundo Reale (1997, p.203), para Aristóteles o conjunto das ações e dos fins humanos se subordinam a um “fim último”, que é o “bem supremo”, o qual todos concordam em chamar de felicidade. O “bem supremo” realizável pelo homem (felicidade) consiste em aperfeiçoar-se enquanto homem, ou seja, na atividade que diferencia o homem das outras coisas, a atividade da razão. Para Aristóteles (idem, p. 204), o homem é principalmente razão mas não só, há na alma algo estranho à razão mas que participa da razão, a faculdade do desejo. A “virtude ética” consiste no domínio da faculdade do desejo e sua redução aos ditames da razão. 8 Estoicismo: “Uma das grandes escolas filosóficas da idade helenística, assim chamada pelo pórtico pintado (Stoá poikíle) onde foi fundada por volta de 300 a.C., por Zenão de Cicio. Os principais mestres da escola foram além de Zenão, Cleante de Axo e Crisipo de Soles”.(ABBAGNANO, 1962, p. 356).

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52). A partir dessa dupla capacidade, qualquer um pode construir sua própria personalidade, pode se guiar pela própria razão, saindo da dependência das emoções. A contribuição mais original do estoicismo para a noção de autonomia é a identificação entre liberdade e obediência à Razão. No entanto, os pensadores estóicos estavam ainda distantes do sentido que a autonomia tem hoje, o qual foi definido a partir da modernidade.

Na modernidade, Maquiavel (1469-1527) desenvolveu seu conceito pioneiro de autonomia política, na obra Discursos (cf. CAYGILL, 2000, p. 42), combinando dois sentidos de autonomia. Um primeiro como liberdade de dependência, e o segundo como poder de autolegislar. Em Martinho Lutero (1483-1546) a autonomia como liberdade de dependência passa a ser liberdade espiritual, interior, em relação ao corpo e suas inclinações. Assim, o sujeito seria autônomo na medida em que estivesse livre das inclinações do corpo e poderia obedecer a Deus (cf. idem).

Os iluministas apresentam uma noção de autonomia que é antítese à Escolástica9, à religião, à tradição10, ao Antigo Regime11 (Ancien Régime). Sua concepção de autonomia se refere à razão que se dobra a evidências empíricas e matemáticas, libertando o homem da superstição e da ignorância. Defendiam a razão natural como uma espécie de tribunal contra o qual se despedaçaria toda e qualquer forma de conhecimento sem credenciais construídas pela associação entre racionalidade dedutiva e empirismo indutivo. Assim o homem, à revelia da tradição, da religião, deve ousar pensar por si mesmo e não admitir nada, exceto o que discerne a partir da razão e da experiência. A busca pela felicidade passou a ter importância central, por isso a sensualidade passa a ser exaltada. Concebem o homem como mônada, ou seja, apenas sua existência física é considerada. A autonomia aqui está ligada à possibilidade de viver uma vida feliz, o que incluiria a vivência da sensualidade e a redução do sofrimento que seria possibilitado pela razão com eficácia instrumental. A caracterização do homem como mônada faz com que os iluministas percam o sentido de autonomia como um todo, o tornando um conceito reduzido.

É em Kant que o problema da autonomia ganha maior força e centralidade, ele faz uma transposição filosófica e crítica da autonomia religiosa de Lutero para a autonomia moral. Ainda, Kant combina os dois sentidos usados por Maquiavel numa explicação de determinação da vontade12. Autonomia, para ele, designa a independência da vontade em relação a todo objeto de desejo (liberdade negativa) e sua capacidade de determinar-se em

9 Escolástica é a filosofia cristã da Idade Média. Segundo Abbagnano (1962, p. 326), a escolástica propõe o exercício da atividade racional com vistas a ascender à verdade religiosa, a demonstrá-la ou esclarecê-la nos limites em que isso é possível e de organizar para ela um instrumental defensivo contra a incredulidade e as heresias. “A Escolástica, portanto, não é uma filosofia autônoma, como por ex., a filosofia grega: o seu dado ou o seu limite é o ensinamento religioso, o dogma”.(idem). 10 O iluminismo via na tradição uma força hostil que mantinha vivas crenças e preconceitos. Os iluministas não aceitavam a autoridade da tradição e negavam reconhecer-lhe qualquer valor independente da razão. “Tradição e erro para eles coincidiam” (ABBAGNANO, 1962, p. 510). 11 O conceito de Antigo Regime foi formado no contexto da Revolução Francesa (1789), para expressar tudo aquilo que os revolucionários pretendiam acabar. O Ancien Régime era a antítese por excelência da revolução, representava principalmente o absolutismo monárquico baseado no “direito divino de governar”, a aliança entre Igreja e Estado, a sociedade estamental cuja ordem social se baseava nos privilégios de nascimento. 12 “Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom”.(KANT, 1974a, p. 217).

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conformidade com sua própria lei, que é a da razão (liberdade positiva). Na obra Sobre a Pedagogia, ele vai propor a disciplina como a parte negativa e a instrução como a parte positiva de uma educação formadora de sujeitos autônomos.

Kant busca recuperar o sentido de autonomia considerando a totalidade do ser humano, considerando a racionalidade em sentido mais amplo que o instrumental, o que havia sido perdido pelos iluministas. No entanto, acaba perdendo o sentido empírico da autonomia, não considerando devidamente o homem sensível em sua corporeidade, o homem em sua busca pela felicidade. Kant recupera, em certo sentido, a concepção de dignidade humana fundada por Descartes (1596-1650), o qual liga a concepção de dignidade ao seu modelo de domínio racional. “Para Descartes, a hegemonia da razão é uma questão de controle instrumental” (TAYLOR, 1997, p. 198). Essa nova definição do domínio da razão traz consigo uma internalização das fontes morais. Segundo Taylor (idem, p.200), quando a hegemonia da razão passa a ser entendida como controle racional, como capacidade de objetificar o corpo, o mundo e as paixões, ou seja, assumindo uma postura instrumental em relação a eles, a fonte da força moral não pode mais ser vista como exterior a nós. “Se o controle racional é uma questão de a mente dominar um mundo desencantado de matéria, então o senso de superioridade do bem viver, e a inspiração para chegar a ele, devem vir da percepção que o agente tem de sua própria dignidade como ser racional” (ibid). Em Kant, a natureza racional existe como fim em si mesma, dessa forma, os seres racionais possuem dignidade particular, e diferentemente do restante da natureza, são livres e autodeterminantes. Kant retomou de Descartes a idéia da natureza racional como fonte de dignidade, e a idéia de dignidade está inseparavelmente ligada à idéia de autonomia.

Kant formulou sua posição a partir da crítica de certas posições de sua época que denominou heterônomas por dependerem da vontade, de causas e/ou interesses externos. Tais princípios heterônomos podem ser empíricos quando advindos do princípio de felicidade e baseados no sentimento físico ou moral, ou racionais quando advindos do princípio de perfeição e baseados em um conceito racional de perfeição como um possível efeito de nossa vontade ou no conceito de uma vontade independente (Deus) determinante de nossa vontade.(cf. CAYGILL, p. 170). Nesses casos, teríamos uma vontade heterônoma, pois a lei é dada pelo objeto e, os princípios daí produzidos seriam imperativos hipotéticos13. Nesse sentido, Kant se contrapõe a tradição filosófica aristotélica14, cuja ética estabelecia a felicidade como o fim último do homem, e as correntes filosóficas ligadas às religiões que situavam a fonte de preceitos para o homem em um Deus ou outros seres exteriores ao homem.

13 “A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo”.(KANT, 1974a, p. 218). “Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”.(idem, p. 218-219). 14 Segundo a tradição aristotélica todas ações humanas tendem a “fins” que são “bens”. O conjunto das ações humanas e o conjunto dos fins particulares tendem a se subordinarem a um “fim último”, que é o “bem supremo” que todos os homens concordam em chamar de “felicidade”. (cf. REALE, 1997, p. 203). “Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma”.(ARISTÓTELES, 1996, p. 125). Para Kant, uma vontade determinada pelo princípio da felicidade é heterônoma, pois possui o princípio de sua ação fora de si e seu imperativo será hipotético.

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Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1974a) a vontade autônoma concebe para si a própria lei, por isso é distinta da vontade heterônoma cuja lei é dada pelo objeto. A vontade é autônoma na medida em que não é simplesmente submetida a leis, já que é também sua autora. O princípio da autonomia é o imperativo categórico, sua formulação geral15 é: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1974a, p. 223). Tal princípio só é possível na pressuposição da liberdade da vontade; a vontade deve querer a própria autonomia e sua liberdade consiste em ser lei para si mesma. A formulação do imperativo categórico que se refere à autonomia é “a idéia da vontade de todo ser racional concebida como vontade legisladora universal” (idem, p.231). Segundo tal princípio, a vontade absolutamente boa não é simplesmente submetida à lei moral universal, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma, por isso é submetida à lei que ela mesma é autora (ibid). Daí este ser o “princípio da autonomia”. Mas para que haja autonomia, a lei promulgada pela vontade terá de ser uma lei universal válida para todo ser racional, em caso contrário, a lei estará condicionada a algum interesse subjetivo, e a vontade será dependente do objeto de interesse, e, portanto, heterônoma. “A autonomia da vontade para Kant é a característica da vontade pura enquanto ela apenas se determina em virtude da própria essência, quer dizer, unicamente pela forma universal da lei moral, com exclusão de todo motivo sensível” (LALANDE, 1999, p. 115). Quando a vontade é autônoma, promulga leis universais isentas de todo interesse, que reclamam a obediência por puro dever, que é a própria idéia do imperativo categórico. Dessa forma Kant considera a autonomia da vontade o princípio supremo da moralidade (cf. KANT, 1974a, p.238). A esta idéia de autonomia se prende a idéia de dignidade da pessoa. O ser racional ao participar da legislação universal, ao se submeter à lei que ele próprio se confere, é fim em si, não possui valor relativo, mas uma dignidade, um valor intrínseco. “A autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional”.(idem, p. 235).

Kant não foi um estudioso de educação, foi um filósofo, professor universitário que se interessou pelos problemas da educação. Em seus textos encontramos muitos pensamentos referentes à educação. Ele possui uma obra que trata especificamente desse tema, traduzida para o português com o título Sobre a Pedagogia e publicada originalmente por Theodor Rink, seu discípulo. No entanto, essa obra não é um tratado sobre educação, é um conjunto de artigos resultantes dos cursos de Pedagogia ministrados pelo filósofo entre 1776 e 1787. Não sabemos se Rink as publicou integralmente e na ordem como foram escritas, mas sabemos que o próprio Kant autorizou sua publicação. A idéia que perpassa toda a obra acima citada é a de uma educação pelo exercício racional que leva à autonomia. “O homem não pode tornar-se verdadeiro homem senão pela educação” (KANT, 1996b, p. 15). Esta afirmação de Kant revela que a educação tem o papel de formar o homem. É pelo fato dos seres humanos nascerem um nada, por não terem instintos que 15 Além da fórmula geral do imperativo categórico, que Kant cita na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática, encontramos outras três formulações: 1ª) “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”. (KANT, 1974a, p. 224). 2ª) “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. (idem, p. 229). 3ª) “A idéia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal”. (ibid, p. 231).

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lhes determinem, que precisam ser formados pela educação, precisam de sua própria razão para se tornarem homens. Nesse sentido, o objetivo principal da educação será educar para a autonomia, para que se possa fazer o uso livre da própria razão. Se objetivarmos uma educação para a autonomia, temos que entendê-la como formação, como processo percorrido, realizado pelo próprio homem.

Poderíamos objetar “contra” Kant que a educação não deve visar apenas à autonomia ético-moral, mas também às condições para uma vida feliz. Para Kant, somos autônomos na medida em que obedecemos a lei que damos a nós mesmos16, independente de qualquer causa alheia e de qualquer objeto. Essa concepção de autonomia é “absoluta”, pois submete o homem ao formalismo da lei moral, não deixando espaço devido para a vivência de suas tendências sensíveis. Defendemos que a autonomia também envolve a própria realização e felicidade. Discípulos de Kant como Schiller (1759-1805) e Herder (1744-1803) perceberam isso e procuraram pensar um homem mais inteiro, em sua totalidade. Atentos a isso, “Definamos o indivíduo autônomo (em oposição à autonomia absoluta de Kant) como aquele que se determina, não apenas pela sua razão, mas ao mesmo tempo pela sua razão e por aquelas suas tendências que concordam com ela” (JACOB apud LALANDE, 1999, p. 115).

O projeto pedagógico de Kant, de certa forma, é continuador do projeto pedagógico de Rousseau (1712-1778). “A educação para a razão e a liberdade transforma-se no objetivo positivo do projeto pedagógico de Rousseau” (FREITAG, 1991, p. 17). Em Rousseau, educar para a razão e a liberdade implica em educar para a autonomia. Para ele, “o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade” (ROUSSEAU, 1973, p. 43). No contrato social a vontade geral constrange a vontade particular a abrir mão de seus desejos inserindo a noção de dever. Na passagem do estado de natureza para o estado civil, o homem adquire moralidade, pode consultar sua razão antes de ouvir suas inclinações (cf. idem, p. 42). Mas como submeter indivíduos a leis comuns e assegurar autonomia? Rousseau postula uma identidade entre os indivíduos e faz dessa identidade um ideal a ser realizado pela vontade de cada um, os quais reconhecem a liberdade dos outros como condição para a própria liberdade. Assim a autonomia é um ideal que deve ser regra de todos (cf. BOURRICAUD, 1985, p. 53).

Outro pensador, herdeiro da temática educacional desenvolvida por Rousseau e Kant, que, portanto, faz da autonomia um dos principais objetivos da educação, é Piaget (1896-1980). Segundo Kamii (1988, p.68), a partir da teoria de Piaget podemos dividir a autonomia em dois aspectos, o moral e o intelectual. Para a autonomia moral, é importante que as crianças tornem-se capazes de tomar decisões por conta própria, que sejam capazes de considerar os aspectos relevantes para decidir o melhor caminho a seguir. Isso implica aprender a levar em conta os pontos de vista das outras pessoas, já que para este autor, a autonomia moral se alcança a partir da inter-relação com as demais pessoas. Autonomia intelectual é a capacidade de seguir a própria opinião, enquanto a heteronomia é seguir a opinião de outra pessoa. Nessa obra não discutiremos as contribuições de Piaget quanto ao tema autonomia e educação devido à delimitação necessária. 16 A tese kantiana da autonomia se radica em sua Revolução Copernicana, a razão se dá a si mesma a lei, não podendo se guiar pela lei que lhe seja externa.

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CAPÍTULO II – O CONTEXTO FILOSÓFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRÁTICA DE

KANT

2.1 – O ILUMINISMO E SUA NOÇÃO DE AUTONOMIA

2.1.1 – Razão iluminista

Em termos gerais podemos dizer que iluminismo é “A linha filosófica caracterizada pelo empenho de estender a crítica e o guia da razão em todos os campos17 da experiência humana” (ABBAGNANO, 1962, p. 509). O próprio Kant no Prefácio à primeira edição da Crítica da razão pura, define a sua época como de crítica:

A nossa época é por excelência uma época de crítica à qual tudo deve submeter-se. De ordinário, a religião, por sua santidade, e a legislação, por sua majestade, querem subtrair-se a ela. Mas neste caso provocam contra si uma justa suspeição e não podem fazer jus a uma reverência sincera, reverência esta que a razão atribui exclusivamente àquilo que pode sustentar-lhe o exame crítico e público. (KANT, 2005a, p. 15).

A filosofia iluminista possui uma confiança decidida na razão humana,

propõe um despreconceituoso uso crítico da razão voltada para a libertação em relação aos dogmas metafísicos, aos preconceitos morais, às superstições religiosas, às relações desumanas e tiranas políticas, os quais representam para os iluministas heteronomia. A libertação dessas heteronomias por meio do uso crítico da razão possibilitaria experiências de autonomia.

A definição dada por Kant ao iluminismo18 talvez seja a mais conhecida e para esse trabalho é com certeza a mais elucidativa:

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de

sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung]” (KANT, 2005c, p. 63-64).

É bom lembrar que embora Kant seja um iluminista, ele se afasta do

iluminismo em aspectos essenciais, que serão esclarecidos ao longo do

17 Segundo Abbagnano (1962, p. 510) nesse aspecto o iluminismo faz uma “correção fundamental do cartesianismo”. Para Descartes, a crítica racional não tinha direito nenhum fora do campo da ciência e da metafísica, dessa forma, nos campos da política, da religião, da moral, os homens deveriam seguir as normas da tradição. 18 O termo alemão usado por Kant é Aufklärung. Nenhum termo português oferece equivalência satisfatória. As traduções mais freqüentes são: iluminismo, ilustração, filosofia das luzes, época das luzes, esclarecimento. Essa última é a opção de Floriano de Souza Fernandes na citação que segue.

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capítulo. Fica claro a partir da citação acima, que em Kant o Aufklärung, significa mais que conhecer simplesmente, acima de tudo, significa a realização de sua filosofia prática, que busca a moralização da ação humana através de um processo racional. Segundo Rouanet (1987, p. 209) o lema Sapere aude (ouse saber) refere-se à razão em seu sentido mais amplo, não exclusivamente à razão científica. O Aufklärung implica na superação da menoridade, que é uma condição de heteronomia, requer a decisão e a coragem de servir-se de si mesmo, ou seja, de servir-se de sua própria razão para pensar por conta própria, e guiar-se sem a direção de outro indivíduo. Segundo Mühl (2005, p. 309), o princípio fundamental da pedagogia kantiana está relacionado à palavra Aufklärung, o esclarecimento, dado pelas luzes da razão, “possibilita o indivíduo abandonar a ignorância, permitindo sua ascensão a um nível superior de cultura, educação e formação” (idem). Kant alerta que é difícil para um homem desvencilhar-se da menoridade quando ela se tornou para ele quase uma natureza (cf. KANT, 2005c, p. 64). Mesmo assim, para que tal ocorra, nada mais se exige a não ser liberdade de fazer uso público da razão em todas as questões (cf. idem, p. 65). Kant (ibid, p.66) entende como uso público da razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público letrado, todavia, entende como uso privado aquele que qualquer homem pode fazer de sua razão em um cargo público ou função a ele confiado. A liberdade de fazer uso público da razão é necessária para que possa haver autonomia de pensamento (pensar por conta própria), autonomia da ação e também autonomia da palavra.

A filosofia iluminista é otimista porque acredita no progresso por meio do uso crítico e construtivo da razão. No entanto, a razão não é mais um complexo de idéias inatas dadas antes da experiência nas quais se manifesta a essência absoluta das coisas. A razão não é um conteúdo fixo, mas muito mais uma faculdade que só se pode compreender plenamente em seu exercício e explicação.

Em suma, os iluministas têm confiança na razão – e, nisso, são herdeiros de Descartes, Spinoza ou Leibniz -, mas, diversamente das concepções desses filósofos, a razão dos iluministas é aquela do empirista Locke, que analisa as idéias e as reduz todas à experiência. Trata-se, portanto, de uma razão limitada: limitada à experiência e fiscalizada pela experiência. A razão dos iluministas é a razão que encontra o seu paradigma na física de Newton, que não aponta para as essências, não se perguntando, por exemplo, qual é a causa ou a essência da gravidade, não formulando hipóteses nem se perdendo em conjecturas sobre a natureza última das coisas, mas sim, partindo da experiência e em contínuo contato com a experiência, procura as leis do seu funcionamento e as submete à prova. (REALE, 1990, p. 672).

Portanto, a razão iluminista é uma razão independente das verdades

religiosas e das verdades inatas dos racionalistas. Assim, a noção de autonomia iluminista se refere a uma razão que se dobra a evidências empíricas e matemáticas.

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O iluminismo proclama tanto para a natureza quanto para o conhecimento o princípio da imanência. A natureza e o espírito são concebidos como plenamente acessíveis, não como algo obscuro e misterioso.

Para descobrir essa lei devemos abster-nos de

projetar na natureza as nossas representações e os nossos devaneios subjetivos; devemos, pelo contrário, acompanhar o seu próprio curso e fixá-lo pela observação, experimentação, medida e cálculo. Mas os nossos elementos de mediação não devem basear-se somente em dados sensíveis, devem decorrer igualmente a essas funções universais de comparação e de contagem, de associação e distinção, que constituem a essência do intelecto. Assim, à autonomia da natureza corresponde a autonomia do entendimento. Num só e mesmo processo de emancipação intelectual, a filosofia iluminista procura mostrar a independência da natureza ao mesmo tempo que a independência do entendimento. (CASSIRER, 1997, p. 74-75).

No discurso dos iluministas, natureza e razão aparecem em relação

constante. Segundo Hazard (sd, p. 95), “a natureza era racional, a razão era natural, acordo perfeito”. Dessa forma, para os iluministas, o conhecimento físico tinha potência quase ilimitada, inclusive como possibilitador de autonomia para o homem. Para eles, o homem não se reduz à razão, mas tudo pode ser investigado por meio da razão: princípios do conhecimento, a ética, as instituições políticas, os sistemas filosóficos, as crenças religiosas, sistemas educacionais. O homem autônomo para o iluminismo, diferentemente do que para Kant, é esse homem imanente, que por meio de sua razão pode a tudo submeter à investigação científica.

2.1.2 – Antropologia Iluminista

As antropologias do século XVIII têm em comum o objetivo de realizar o estudo positivo do homem. A pluralidade de dimensões epistemológicas abre caminho à fragmentação do saber em função da especialização crescente das diversas disciplinas, tendo o homem como objeto comum. O iluminismo elevou a antropologia a fundamento de todos os saberes, deslocando a teologia que até então realizava esse papel.

A antropologia das “Luzes” é expressão de uma crença profunda na inteligibilidade racional do domínio humano. Segundo Falcon (1986, p. 59), tendo como premissas gerais o primado da razão e o caráter universal e eterno da natureza humana, os iluministas desenvolvem os temas da humanidade, da civilização e do progresso. Também, os iluministas ligam sua concepção de autonomia a esses temas.

A idéia de humanidade representa para os iluministas a imanência contra a transcendência do homem, representa a afirmação do valor da realidade terrena em si mesma, a importância das ciências do homem segundo princípios da ciência experimental. O homem transcendente é para eles o

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homem heterônomo, já o homem imanente, que possui verdades desse mundo fornecidas pelas ciências experimentais, é o homem autônomo.

O iluminismo, em geral, considera o homem apenas em sua existência física. Segundo Holbach (1725-1789), o homem como tudo mais no universo é um ser inteiramente físico (cf. TAYLOR, 1997, p. 420). Para Helvétius (1715-1771) a dor e o prazer físicos são os princípios ignorados de todas as ações humanas (cf. idem, p. 423), portanto não há distinção de espécie alguma entre corpo e alma, e o homem é visto como mônada, ou seja, apenas enquanto existência física. Tanto a razão quanto uma visão moral não distorcida levariam o homem a lutar pela autopreservação e pela satisfação, a fim de aumentar a felicidade. Nesse contexto, a sensualidade adquire valor, e a vivência dos desejos que emanam espontaneamente do homem representaria uma espécie de autonomia. O homem autônomo dos iluministas é um homem sensualista, que busca satisfação na realização dos seus desejos e na diminuição dos sofrimentos. Por isso, conforme Taylor (ibid, p. 415), a ética do iluminismo é utilitarista, baseando o julgamento das ações em suas conseqüências.

Nas concepções de homem e de civilização iluminista, a pedagogia possui papel essencial, “Só ela poderia propiciar a eliminação, no futuro, do abismo que separava os espíritos bem-pensantes, moralmente bem-formados e socialmente bem-educados da plebe ignorante, supersticiosa, inclinada aos maus costumes e mal-educada” (FALCON, 1986, p. 62-63). No entanto, a pedagogia é vista pelos iluministas como uma ciência tão exata quanto a geometria, o que possibilitaria a ela produzir bons cidadãos, homens esclarecidos e autônomos.

A noção de autonomia dos iluministas deriva de sua concepção antropológica e pressupõe a imanência, a historicidade, o materialismo, a atividade do homem, que, por meio do poder quase irrestrito das ciências, suplanta os mitos, as superstições, medos, opressões, imoralidades e assim se constrói rumo a um progresso certo em todos os campos de sua vida, garantido pela positividade, pela exatidão das ciências. Ainda, é um homem que encontra a autonomia na vivência dos próprios desejos. Caberia à educação formar esse homem “esclarecido”, “autônomo”.

2.1.3 - O Iluminismo radical

O ideal da razão auto-responsável como fonte de dignidade, herdado de Descartes, desempenhou um papel essencial na radicalização do iluminismo. Sua realização mais influente foi a postura de desprendimento radical, de suplantação da tradição, que para os iluministas era fonte de heteronomia. Essa postura contribui para a definição iluminista de filósofo como pensador autônomo. Vejamos como Diderot (1713-1784) apresenta no verbete sobre o ecletismo:

Eclético é um filósofo que, calcando sob os pés o preconceito, a tradição, a respeitabilidade, a concordância universal, a autoridade – numa palavra, tudo quanto intimida o povo -, ousa pensar por si mesmo, ascender aos mais claros princípios gerais, examiná-los, discuti-los e não admitir nada exceto pelo testemunho de sua própria razão e experiência. (DIDEROT apud TAYLOR, 1997, p. 418).

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O iluminismo trazia consigo o desejo de anular grilhões. Essa rejeição/libertação compreende a negação da religião e da metafísica e a afirmação da bondade e da importância da natureza. Para o iluminismo, o pleno exercício da razão auto-responsável produz a maior clareza possível sobre sua própria natureza e seu significado (cf. TAYLOR, 1997, p. 451). O exercício da razão desacorrentada leva ao desmascaramento do erro, liberta a dignidade da natureza e possibilita a autonomia. O resultado seria o progresso tanto do conhecimento quanto dos costumes. Para os iluministas o avanço da racionalidade científica possibilitaria por si um “aumento” da autonomia. Mas segundo Foucault (1996, p. 107-108), a relação entre crescimento das capacidades científicas e o crescimento da autonomia não são tão simples quanto supunham os iluministas. Para ele, as tecnologias diversas transmitiam formas de relações de poder com fins econômicos ou de regulação social, o que em vez de possibilitar a autonomia gerava uma nova forma de heteronomia.

Os iluministas radicais aderiram ao materialismo e ao ateísmo, não somente como resultado final da razão auto-responsável, mas também como forma de serem fiéis às exigências de sua concepção de natureza (cf. TAYLOR, 1997, p. 420). Para Holbach, por exemplo, o homem é um ser inteiramente físico, e a dimensão moral é sua existência física considerada relativamente a algumas de suas formas de agir (cf. idem). Assim, o homem teria um impulso inerente de se autopreservar que corresponde ao amor por si, que é uma tendência a buscar a felicidade, o bem-estar, o prazer. O homem lutando por necessidade para preservar e aumentar sua felicidade é para ele, a verdadeira base da vida moral e da autonomia.

O utilitarismo de Bentham (1748-1832) e Helvétius reconhecia apenas um bem: o prazer (cf. ibid, p. 428). Queriam acabar com a distinção entre bens morais e não-morais e tornar todos os desejos humanos dignos de consideração. Na sua teoria moral, dor e prazer são os critérios da ação correta, mas não da forma como afetam um indivíduo e sim da forma como afetam a todos. Devemos procurar a maior felicidade para o maior número possível de pessoas. Essas concepções aparecem como uma reivindicação de autonomia como auto-responsabilização e busca do aumento da felicidade por meio do progresso racional. O ideal de auto-responsabilidade influenciou Kant embora ele não o conceba exatamente como os iluministas. Já o utilitarismo para ele, não atende a reivindicação de autonomia e é, portanto, heteronomia.

Hume (1711-1776) também pode ser considerado um iluminista radical. Defendia que o método do raciocínio experimental preconizado por Bacon (1561-1626) e Newton (1642-1747), o qual já havia construído sólida visão da natureza física, deveria ser aplicado também à natureza humana, ou seja, não apenas aos objetos, mas também aos sujeitos. Ele reduz a origem das idéias a impressões, a hábitos, o que contrapunha as idéias de ciência e metafísica dos filósofos racionalistas. Nos Prolegômenos (KANT, 1959, p. 28), Kant afirma que foi Hume que o despertou do “sono dogmático”. Mas para Kant sua contribuição não vai muito além disso, todo sistema filosófico kantiano vai ter como um dos objetivos contrapor-se ao empirismo cético de Hume.

Para Hume as paixões são algo original e próprio da natureza humana, independente da razão. A própria vontade pode ser redutível às paixões, ou ainda, redutível a uma impressão que deriva do prazer e da dor. “Para ele, livre-arbítrio seria sinônimo de não-necessidade, vale dizer, causalidade,

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constituindo assim, um absurdo. Segundo Hume, aquilo que habitualmente se chama liberdade nada mais seria que a simples espontaneidade, ou seja, a não coação externa” (REALE, 1990, p. 572). Ao não considerar a determinação interna, Hume proclama a vitória do jogo das paixões, e assim, nega a razão prática, nega que a razão possa guiar a vontade. Essa noção de autonomia de Hume como simples ausência de coação externa para que as paixões possam ser vivenciadas, é oposto ao defendido por Kant, e representa muito bem o que este filósofo designou como heteronomia.

2.2 – ROUSSEAU E A AUTONOMIA

O utilitarismo simplificava a vontade humana ao dedicá-la apenas a felicidade, promovendo uma espécie de nivelamento. Bem e mal se tornaram uma questão de instrução, conhecimento e esclarecimento. A autonomia, para esses iluministas, era uma questão que se referia à racionalidade científica e à vivência da própria felicidade. Rousseau formulou uma nova concepção de autonomia, de um homem que não é apenas corpo, mas também espírito, se distanciando, assim, dos iluministas.

Rousseau começou como amigo dos enciclopedistas, em especial de Diderot, e acabou como inimigo, por haver um núcleo de discordância filosófica em seus pensamentos (cf. TAYLOR, 1997, p. 456). Para Rousseau o mal humano não poderia ser compensado pelo aumento do conhecimento ou do esclarecimento. Ele resgata a noção fundamentalmente agostiniana de que o homem pode ter “dois amores”, ou seja, duas orientações básicas da vontade. O amor de si mesmo é o sentimento naturalmente bom que nasce com o ser humano, o amor-próprio é o sentimento de paixões “repulsivas” que surgem com a socialização. A socialização e o conseqüente aumento do amor-próprio levam o homem à alienação, pois passa a comparar-se com os demais e perde a busca de viver bem consigo mesmo19. Para Rousseau, ambas as orientações de vontade, se permanecerem fechadas em si mesmas, serão vontades heterônomas.

“Rousseau não pode aceitar a noção naturalista do Iluminismo de que o que precisamos para nos tornar melhores é de mais razão, mais cultura, mais lumières” (idem, p. 459). O progresso não necessariamente nos torna melhores, nem autônomos, pelo contrário, é muito freqüentemente acompanhado pela decadência moral. Para ele, o progresso da razão calculista é um dos indícios da corrupção. Essa oposição entre moralidade e progresso não deve ser interpretada no sentido primitivista. Rousseau não propunha a volta ao estágio pré-social20. A idéia de recuperar o contato com a natureza é uma forma de escape da dependência calculista do outro, por meio da fusão entre razão e natureza. A consciência é a voz da natureza que se manifesta em um ser social que dispõe de linguagem e razão.

19 Para Rousseau a verdadeira força envolve viver com o essencial, de tal forma que a verdadeira liberdade é encontrada na austeridade. Isso porque é nossa dependência dos outros, das opiniões, que multiplicam nossas necessidades e isso nos torna mais dependentes ainda, mais heterônomos. “Quando se vêem, entre os povos mais felizes do mundo, grupos de camponeses regulamentarem os negócios do Estado sob um carvalho e se conduzirem sempre sabiamente, pode-se deixar de desprezar os rebuscamentos das outras nações, que com tanta arte e mistério se tornaram ilustres e miseráveis?” (ROUSSEAU, 1973, p. 123). 20 “Mas considerai primeiramente que, querendo formar um homem da natureza, nem por isso se trata de fazer dele um selvagem, de jogá-lo no fundo da floresta; mas que, entregue ao turbilhão social, basta que não se deixe arrastar pelas paixões nem pelas opiniões dos homens; que veja com seus olhos, que sinta com seu coração; que nenhuma autoridade o governe a não ser a própria razão”. (ROUSSEAU, 1995, p. 291).

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Ora, é do sistema moral formado por essa dupla relação consigo mesmo e com suas relações com seus semelhantes que nasce o impulso da consciência. Conhecer o bem não é amá-lo: o homem não tem o conhecimento inato dele. Mas logo que sua razão o faz conhecer, sua consciência o leva a amá-lo: este sentimento que é inato. (ROUSSEAU, 1995, p. 337-338).

Libertadas todas distorções devido à dependência do outro ou da

opinião, a vontade geral representa as exigências da natureza por meio da lei publicamente reconhecida.

Para Rousseau, não somos individualmente autônomos, apenas o somos como membros de um tipo especial de sociedade. Segundo Schneewind (2001, p. 559), quando o contrato social cria uma nova idéia de bem comum o pensamento ativa em cada indivíduo um amor inato que permite controlar os desejos privados e agir como membros de um todo moral. Passamos a ser livres e autônomos porque podemos romper com a escravidão dos nossos desejos e viver sob uma lei que proporcionamos a nós mesmos21. No estado natural o homem desfruta de uma liberdade natural que é física e não vai além de suas forças. No contrato social o homem renuncia a liberdade natural em favor da liberdade civil, que é circunscrita pela vontade geral. No estado civil o homem adquire liberdade moral, já que ele passa a obedecer à lei que ele instituiu a si próprio em vez de seguir o impulso (cf. ROUSSEAU, 1973, p. 43). O papel da educação seria de elevar a natureza do homem para além da animalidade, numa esfera onde existem leis. Em outras palavras, também podemos dizer que o papel da educação é tornar sociável a insociabilidade contida no amor de si mesmo e no amor-próprio. Assim, o filósofo está na origem de concepções morais que fazem da liberdade autodeterminante a chave para a virtude. Dentre elas, a de moralidade como autonomia desenvolvida por Kant. Mas a concepção de autonomia de Rousseau é para Kant heterônoma. Para este, a lei moral não pode ser definida por qualquer ordem externa, nem pelo impulso da natureza em mim. Para que haja autonomia, a moralidade não pode estar fora da vontade racional do homem.

2.3 – KANT: HERANÇA E SUPERAÇÃO DA NOÇÃO DE AUTONOMIA ILUMINISTA

Kant com sua concepção de autonomia refuta, principalmente, o deísmo,

o utilitarismo, o naturalismo, o voluntarismo, portanto, nesse sentido, se opõe também aos iluministas. Esses, não deixam espaço para a dimensão moral e, dessa forma, para a liberdade, pois a liberdade precisa de uma dimensão moral. Para Kant, a moralidade não deve ser definida segundo qualquer resultado, mas sim segundo o motivo que é a conformidade da ação com a lei moral.

Isso é liberdade, porque agir moralmente é agir de acordo com o que realmente somos, agentes morais/racionais. A lei da moralidade, em outras palavras,

21 Dessa forma, a obediência à lei e a espontaneidade da liberdade podem ser pensadas juntas, sem oposição. Segundo Terra (2005, p. 98), Beck se referiu a esse tema como “revolução rousseauísta” da filosofia moral. Kant se referiu a Rousseau, devido a esse tema, como o “Newton da moral”.(cf. REALE, 1990, p. 758).

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não é imposta de fora. É ditada pela própria natureza da razão. Ser um agente racional é agir por razões. Por sua própria natureza, as razões são de aplicação geral. Uma coisa não pode ser uma razão para mim agora sem ser uma razão para todos os agentes numa situação relevantemente semelhante. Assim, o agente de fato racional age com base em princípios, razões que são entendidas como gerais em sua aplicação. É isso que Kant quer dizer por agir de acordo com a lei. (TAYLOR, 1997, p. 465).

A lei moral não deve ser definida de acordo com resultados específicos.

Dessa forma a decisão de agir moralmente é a decisão de agir com o propósito de conformar a minha ação com a lei universal. Isso corresponde a agir segundo minha verdadeira natureza raciona, e agir de acordo com as exigências de minha razão é ser livre. Para Kant, a vontade dos seres racionais é capaz de promulgar a legislação universal a que se submetem, e esse é o princípio da autonomia. Seguir apenas os ditames do desejo é cair na heteronomia. Kant discorda da noção do humanismo iluminista segundo a qual os desejos emanam de nós e a vivência deles representaria uma espécie de autonomia. “A visão kantiana encontra sua segunda dimensão na idéia de uma autonomia radical dos agentes racionais. A vida da mera satisfação dos desejos não é apenas rasa, mas também heterônoma. A vida plenamente significativa é aquela escolhida pelo próprio sujeito” (idem, p. 491). Segundo Vincenti (1994, p. 8), existir como sujeito significa não precisar referir-se a outro ser ou existência para definir, compreender ou justificar o que se é, sujeito é aquele que se sustenta ele mesmo na existência, por isso a idéia de sujeito está ligada à autonomia. Para Kant, o que realmente “emana de mim” é produzido pela razão, e ela exige que se viva de acordo com princípios. Essa perspectiva se rebela contra as que afirmam que a ação é determinada pelo fato dado, pelos fatos da natureza, em favor da própria atividade como formuladora da lei racional.

A partir do pensamento de Kant podemos afirmar que tudo que há na natureza se conforma com suas leis, exceto o homem. Isso porque o homem, na condição de ser racional, conforma-se às leis universais que ele próprio formula. Por isso os seres racionais são autônomos e têm uma dignidade particular22, se destacam da natureza por serem livres e autodeterminantes. (cf. TAYLOR, 1997, p. 467). Esse status racional nos impõe a obrigação de viver como agente racional. A natureza racional é a única coisa que existe como um fim em si mesma. Esse caráter racional confere ao homem dignidade, todas as outras coisas têm um preço, mas o homem possui dignidade. O homem, como ser racional, possui valor absoluto e não pode jamais ser tratado como meio, o que podemos ver em uma das formulações de Kant ao imperativo categórico: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 1974a, 229). Por isso, na

22 A idéia de que os seres racionais possuem dignidade particular, Kant retoma de Descartes, o qual formula sua concepção de dignidade a partir de seu modelo de domínio racional. É nessa idéia de dignidade humana, cujas origens estão em Descartes, que Kant vai fundar o sentido de universalidade da lei moral: a lei moral (imperativo categórico) deve valer para todos os seres racionais em geral.

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visão kantiana, a pretensão do naturalismo iluminista em submeter também o homem às leis da natureza nada mais é que heteronomia.

“O sentido da revolução copernicana23 consiste em ter ele acabado com o predomínio absoluto do pensamento físico e da filosofia naturalista [...]”. (MESSER, 1946, p. 342). A libertação do naturalismo iluminista que impunha uma necessidade natural onipotente e não deixava lugar genuíno para a liberdade, consiste na descoberta de que o objeto considerado pela física, a natureza, não é a realidade absoluta. Assim, a natureza não é mais considerada coisa em si, mas sim o sistema regular daquilo que o eu se representa. O eu se torna o Sol em torno do qual os objetos giram. Ainda segundo Messer (idem, p. 343), Kant não teria realizado tal revolução se seu pensamento não se achasse tão profundamente enraizado na sua consciência moral, se não tivesse levado em conta a vontade que se determina a si própria e a lei que a vontade impõe a si própria, ou seja, se não estivesse enraizado em sua concepção de autonomia moral.

O conhecimento das ciências deve ser estimulado dentro de seus limites, não pode ser a última instância para a nossa concepção de mundo e da vida. Kant está certo de que o imperativo categórico da consciência é regulativo e que a vontade tem que ser independente das leis da natureza. Ainda, com isso Kant pensa o homem como cidadão de dois mundos, o mundo sensível do conhecimento natural e o mundo supra-sensível da liberdade; assunto que retomaremos em seguida e é central para entendermos a concepção de autonomia desse autor.

“Kant segue Rousseau em sua condenação do utilitarismo. O controle instrumental-racional do mundo a serviço de nossos desejos e necessidades só pode degenerar num egoísmo organizado [...]” (TAYLOR, 1997, p. 466). Kant parte das fontes morais da internalização ou subjetivação, inauguradas por Rousseau, mas fornece uma nova base. Para ambos, a lei moral vem de dentro e não pode ser definida por qualquer ordem externa. No entanto, para Kant, ela não pode ser definida pelo impulso da natureza “em mim”, mas apenas pela razão prática que exige uma ação de acordo com princípios gerais. Qualquer concepção moral que derive seus propósitos normativos de uma ordem cósmica ou de uma ordem dos fins da natureza humana acarreta a abdicação da responsabilidade de gerar a lei por nós mesmos e cai na heteronomia. Assim, a exaltação da natureza como fonte é, para Kant, tão heterônoma quanto o utilitarismo.

A concepção de autonomia de Kant também se alia aos antivoluntaristas. Ele reprovava fortemente o pensamento de dependência de um ser racional às ordens e aos desejos de outro, mesmo que este seja Deus, considerando essa concepção, de certa maneira, oposta à nossa ação livre essencial. “A moralidade da autonomia kantiana é decisivamente oposta ao voluntarismo, porque a racionalidade da lei moral que guia Deus e nós é tão evidente para nós quanto para ele” (SCHNEEWIND, 2001, p. 556).

23 Nicolau Copérnico (1473 – 1543), não podendo explicar de modo satisfatório os movimentos celestes enquanto admitia que toda multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou fazer girar o espectador e deixar os astros imóveis. Nessa hipótese, pôs a Terra em movimento e o Sol no centro do universo, substituindo a estrutura ptolomaica geocêntrica pela heliocêntrica. A terra deixou de ser considerada o centro do universo e a posição que considerava o homem a principal criação de Deus passou a ser questionada. Kant faz algo análogo ao demonstrar que os objetos se adaptam ao conhecimento e não o conhecimento aos objetos. O “fundamento” do conhecimento não é a natureza, mas o sujeito com suas leis da sensibilidade e do intelecto. Por isso a partir de Kant podemos dizer que das coisas só conhecemos a priori aquilo que nós mesmos colocamos nelas.

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Kant não condena a razão instrumental voltada para o controle racional. Considera que o desenvolvimento da razão instrumental, necessário para o homem superar obstáculos da natureza e sobreviver, pode levá-lo à racionalidade em sentido mais amplo (cf. TAYLOR, 1997, p. 468). Ele manteve-se um homem do Iluminismo, herda da filosofia de sua época a problemática da maioridade e autonomia, mas se opôs em aspectos essenciais. Preservou a centralidade da razão, mas a pensou em sentido mais amplo que a razão instrumental. A diferença fundamental é que a questão crucial quanto à autonomia para Kant é o crescimento em racionalidade, moralidade e liberdade, não em felicidade.

O erro do naturalismo iluminista é ter interpretado

mal o espírito com o qual a vida deve ser vivida, o fim básico que deve presidir tudo. Não é a felicidade, mas a racionalidade, a moralidade e a liberdade. O homem pode, de fato, atingir um alto grau de civilização sem se tornar realmente moral. (idem).

Enfim, Kant manteve a leitura empírica e matemática da natureza que os

iluministas haviam recebido de Galileu e Descartes, no entanto a restringiu à natureza, não a aplicando ao homem, como haviam feito os iluministas. Quanto ao homem, Kant o pensou como dotado de alma espiritual com o poder de pensar o universal, vinculando a isso, sua liberdade e dignidade, sua autonomia.

2.4 – KANT: RAZÃO PRÁTICA E AUTONOMIA

Na Crítica da Razão Pura, Kant demonstrou a possibilidade das ciências matemáticas e naturais e acabou chegando à negação de uma metafísica que se apóia na mesma objetividade e universalidade dessas ciências. A razão teórica ficaria limitada ao âmbito da experiência. Só podemos conhecer os fenômenos que nos são acessíveis pelos sentidos; liberdade, imortalidade da alma e Deus, temas da metafísica, não são objetos de conhecimento. Rousseau já havia condenado a pretensão da filosofia iluminista de buscar o bem no acréscimo de conhecimento. O progresso humano no campo especulativo não significa o progresso moral do homem. A partir da impossibilidade da metafísica enquanto conhecimento, Kant precisa construir uma crítica para conhecer as possibilidades que a razão dispõe para elaborar uma metafísica.

Na Crítica da Razão Prática, Kant demonstra que a razão pura é prática por si mesma, ou seja, ela dá a lei que alicerça a moralidade, a razão fornece as leis práticas que guiam a vontade. Leis práticas são princípios práticos objetivos, regras válidas para todo ser racional. Elas se diferenciam das máximas que são princípios práticos subjetivos, regras que o sujeito considera como válidas apenas para sua própria vontade. “Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas” (KANT, sd, p. 31).

Para Kant, se os desejos, os impulsos, impressões, ou qualquer objeto da faculdade de desejar forem condições para o princípio da regra prática,

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então o princípio será empírico, não será lei prática, não haverá unidade nem incondicionalidade do agir, e assim, não garantirá a autonomia. A lei moral deve independer da experiência. Uma vontade boa determina-se a si mesma, independentemente de qualquer causalidade empírica, sem preocupar-se com prazer ou dor que a ação possa provocar. Uma moral que se determina por causas empíricas cai no egoísmo. “Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si mesmo, ou seja, à felicidade própria” (idem, p. 33). Para Kant a busca da felicidade própria concerne à faculdade inferior de desejar, ela se relaciona às inclinações da sensibilidade e não à razão. O princípio do amor por si ou da felicidade jamais poderiam servir de fundamento para uma lei prática, tendo em vista sua validade que é apenas subjetiva. Cada um coloca o bem estar e a felicidade em uma coisa ou outra, de acordo com sua própria opinião a respeito do prazer ou da dor. Se formulássemos uma lei subjetivamente necessária como lei natural, seu princípio prático seria contingente e não garantiria a autonomia.

Somente a razão, determinando por si mesma a vontade, é uma verdadeira faculdade superior de desejar. “Um ser racional não deve conceber as suas máximas como leis práticas universais, podendo apenas concebê-las como princípios que determinam o fundamento da vontade, não segundo a matéria, mas sim pela forma” (ibid, p.37). Um ser racional não pode conceber seus princípios subjetivos práticos, suas máximas, como leis universais. A vontade para ser moral não deve determinar-se pelo objeto, deverá abstrair a matéria da lei para reter-lhe apenas a forma, a universalidade.

Em suma: ou um ser racional não pode conceber os

seus princípios subjetivamente práticos, isto é, as suas máximas como sendo ao mesmo tempo leis universais ou, de forma inversa, deve admitir que a simples forma dos mesmos, segundo a qual se capacitam eles para uma legislação universal, reveste esta de característico conveniente e apropriado. (ibid).

Para o filósofo de Königsberg, a vontade só pode ser determinada pela

simples forma legislativa das máximas. A mera forma da lei só pode ser representada pela razão e não pelas leis naturais que regem os fenômenos. A vontade deve ser independente da lei natural dos fenômenos, e essa independência se denomina liberdade. Então, a vontade que tem como lei a mera forma legisladora das máximas é uma vontade livre. “A razão pura é por si mesma prática, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral” (ibid, p. 41). A força da lei moral está em sua absoluta necessidade e em sua universalidade. Ora, a universalidade da lei moral, para Kant, significa que ela tem de valer não só para os homens, mas para todos os seres racionais em geral (cf. KANT, 1974a, p. 214). Em Kant, universalidade significa racionalidade, se o dever ordena universalmente é porque é racional. Já a absoluta necessidade denota uma necessidade que não seja condicionada a nenhum outro fim, mas que seja necessária por si mesma. Por isso a lei moral deve ser um mandamento, um imperativo, que seja categórico e não hipotético. Em virtude de ser incondicional e universal, o imperativo categórico possui apenas conteúdo formal, sendo, portanto, uma fórmula. A lei moral deve ser

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assim formulada, em termos de imperativo categórico24: “Age de tal forma que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal” (KANT, sd, p. 40). Segundo Kant, nós temos consciência imediata dessa lei, ela se impõe como um fato, um fato da razão. Mas não é um fato empírico, é o único fato da razão pura que se manifesta como originariamente legisladora, impõe-se a nós de forma a priori.

Todavia, no homem, a lei possui [...] a forma de um

imperativo, porque, na qualidade de ser racional, pode-se supor nele uma vontade pura; mas, por outro lado, sendo afetado por necessidades e por causas motoras sensíveis, não se pode supor nele uma vontade santa, isto é, tal que não lhe fosse possível esboçar qualquer máxima em contraposição à lei moral. Para aqueles seres a lei moral, portanto, é um imperativo que manda categoricamente, porque a lei é incondicionada. (idem, p. 42).

A lei moral é para nós um dever. É a consciência do dever que nos

mostra que a razão é legisladora em matéria moral, que a razão é prática em si mesma e que o homem é livre. A partir disso, Kant na Crítica da razão prática formula o seguinte teorema: “A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes às mesmas” (ibid, p.43). O princípio da moralidade é a independência da vontade em relação a todo objeto desejado, ou seja, de toda matéria da lei e, ao mesmo tempo, a possibilidade da mesma vontade determinar-se pela simples forma da lei. Assim, a liberdade possui o aspecto negativo e o positivo, os quais convergem na idéia de autonomia. A lei moral apenas exprime a autonomia da razão pura prática, ou seja, a liberdade.

Fica demonstrada assim a possibilidade e a centralidade da razão prática e da autonomia na teoria kantiana:

Revela esta analítica que a razão pura pode ser

prática, isto é, pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de todo elemento empírico; - e demonstra-o na verdade mediante um fato, no qual a razão pura se manifesta em nós como realmente prática, ou seja, a autonomia, no princípio da moralidade, por meio do que determina a mesma a vontade do ato. – Por sua vez, a Analítica mostra que este fato está inseparavelmente ligado à consciência da liberdade da vontade, identificando-se, além disso, com ela. (ibid, p. 49).

A lei moral implica que a vontade possa ser livre na medida em que se

determina por um motivo puramente racional. Mas o homem está sujeito às leis da causalidade enquanto pertencente ao mundo sensível, e por outro lado tem consciência que é livre enquanto participante da ordem inteligível.

24 As outras três formulações do imperativo categórico, desdobramentos desta fórmula geral, são citadas em nota no capítulo I.

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Pelo dever, o homem sabe, pois, que não é somente o que aparenta a si mesmo, isto é, uma parte do mundo sensível, um fragmento do determinismo universal, mas é também uma coisa em si, a fonte de suas próprias determinações. A razão prática justifica assim o que a razão teórica tinha concebido como possível no terceiro conflito da antinomia: a conciliação da liberdade que possuímos como noúmenos, com a necessidade de nossas ações como objetos da experiência no fenômeno25. (BRÉHIER, sd, p.205).

Dessa forma, Kant confere ao homem dois mundos, o mundo da

causalidade, no qual não é possível prever grau de liberdade para um fenômeno físico e, o mundo da liberdade26, que é o âmbito da razão prática no qual é possível autonomia. O homem é considerado como fenômeno, sujeito à necessidade natural, e como coisa em si27, ou livre. A liberdade só é possível porque a coisa em si não está determinada e, portanto, não é cognoscível. A razão teórica não atinge o “ser noumênico”, já a razão prática se refere ao “ser noumênico”. Assim, os conhecimentos devem limitar-se à síntese entre a sensibilidade e categorias do entendimento, ou seja, aos fenômenos. Já no domínio prático, “a razão se aplica a motivos determinantes da vontade, enquanto faculdade de produzir objetos correspondentes, podendo determinar-se a si mesma, engendrando sua própria causalidade, na sua atuação em relação a si mesma” (MARTINI, 1993, p. 114). Assim, como participantes do mundo noumênico, somos livres, e como participante do mundo fenomênico, somos determinados. No entanto, segundo Bréhier (sd, p. 199), o determinismo é uma lei do nosso conhecimento, não uma lei do ser, se aplica à realidade tal como a conhecemos, e não tal como ela é.

A distinção kantiana entre dois mundos abre um espaço legítimo para o livre-arbítrio, já que o mundo noumênico não é determinado pelas leis da causalidade que determinam o mundo fenomênico. Se o livre-arbítrio não deixar fundamentar-se pelo dever, que é dado na razão prática, ou fundamentar-se em algo que é contrário a esse dever, a ação será heterônoma. Em resumo, ação autônoma é aquela que se guia pela própria lei, que é lei da razão prática, e ação heterônoma é aquela que se guia por algo que é externo ou contrário à lei da razão prática.

Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-

la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca

25 As traduções de obras não editadas no Brasil são de minha inteira responsabilidade. 26 Segundo Caygill (2000, p. 236), Kant alinha os mundos sensível e inteligível com os mundos da natureza e da liberdade, respectivamente. Na Crítica da razão pura o mundo inteligível admissível é o mundo moral, o principal objeto desse mundo é a liberdade, a qual manifesta o caráter inteligível do sujeito liberto das influências da sensibilidade. (cf. idem). Na Fundamentação da metafísica dos costumes o mundo inteligível é identificado com o mundo dos seres racionais. (cf. ibid). O mundo inteligível, mundo da liberdade, é o mundo noumênico. 27 Segundo Bréhier (sd, p. 192), a coisa em si é o X incognoscível, contrapartida e fundamento dos fenômenos, mas é também o “noúmeno” ou inteligível, ou seja, a realidade enquanto pensada apenas pela inteligência. A coisa em si não pode ser conhecida, uma vez que o conhecimento está limitado à experiência possível, mas pode ser pensada desde que satisfaça a condição de um pensamento possível que não seja autocontraditório. (cf. CAYGILL, 2000, p. 58). Apenas fenômenos podem ser conhecidos, enquanto a “coisa em si” ou “noúmeno” podem ser pensados.

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essa lei na natureza de qualquer dos objetos, o resultado é então sempre heteronomia. (KANT, 1974a, p. 239).

Para Kant, a liberdade prática é, então, a independência da vontade em

relação a toda lei que não seja a lei moral. O homem não é determinado pela natureza, e, pelo livre-arbítrio, pode escolher agir por dever, e nisso consiste sua autonomia. Ainda, a distinção kantiana entre o caráter inteligível e o sensível, além de negar o determinismo do homem pela natureza, nega o determinismo teológico. O homem assume a reinvidicação de responsabilidade total.

No entanto, penso que a concepção de autonomia de Kant mantém a questão estética subjugada ao dever, seu formalismo restringe demasiadamente o sentido empírico, existencial da autonomia. Dessa forma, podemos dizer que Kant também promove um reducionismo28 da autonomia, no entanto, no sentido inverso ao que os iluministas haviam feito. E, é importante destacarmos que a dimensão estética deve estar bem presente numa educação ou pensamento que vise formar para a autonomia, por ser de caráter diretamente individuante, é instância que necessariamente integra o ser autônomo do homem.

Na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática, Kant enfatiza a distinção entre razão teórica e razão prática, na Crítica da faculdade do juízo ele aponta a faculdade de julgar como possibilitadora da passagem de um domínio para outro, propõe a tarefa de tentar uma mediação entre os dois mundos. Assim o entendimento é a fonte dos conhecimentos, a razão o princípio de nossas ações e o juízo tem a função de pensar o mundo sensível em referência ao mundo inteligível (cf. PASCAL, 1999, p. 177). É na faculdade do juízo29 que Kant encontra o intermediário procurado. Dessa forma, Kant procura na terceira crítica resgatar a dimensão estética da autonomia que fica subjugada ao formalismo da lei moral na segunda crítica. No entanto, mesmo na terceira crítica, a idéia de felicidade permanece submetida à idéia de dever e à universalidade, e, portanto, em Kant, a dimensão estética da autonomia não é devidamente acionada. Segundo Suzuki (1989, p. 12), Schiller vai procurar acabar a tarefa iniciada por Kant na Crítica da faculdade do juízo, conseguindo dar maior ênfase à dimensão estética da autonomia.

2.5 - A PEDAGOGIA KANTIANA E A AUTONOMIA

Na obra Sobre a Pedagogia, Kant (1996b, p. 30) fala sobre a importância de a ação educativa seguir a experiência. A educação não deve ser puramente mecânica e nem se fundar no raciocínio puro, mas deve apoiar-se em princípios e guiar-se pela experiência (cf. idem, p. 29). A partir da pedagogia kantiana, podemos dizer que uma educação que vise formar sujeitos autônomos deve unir lições da experiência e os projetos da razão. Isso porque no caso de basear-se apenas no raciocínio puro, estará alheia à realidade e não contribuirá para a superação das condições de heteronomia e, no caso de guiar-se apenas pela experiência, não haverá autonomia, pois para

28 O reducionismo kantiano possui raízes no seu dualismo antropológico, considerar o homem como ser racional e irracional e, no formalismo da lei moral (imperativo categórico). 29 “A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido no universal”.(KANT, 2005d, p. 23).

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Kant a autonomia se dá justamente quando o homem segue a lei universal que sua própria razão proporciona.

Mas essa imprescindibilidade da experiência como caminho para a educação possui segundo Philonenko (1966, p. 25-26) uma razão metafísica, a liberdade humana. Na condição de livre, o homem não pode ser objeto de ciência, de conhecimento, como pretendiam os iluministas. Apenas os fenômenos possuem uma essência determinada pelas leis da natureza. As coisas podem ser conhecidas porque possuem uma essência que o entendimento pode perceber a priori. No entanto, dizer que um ser é livre é dizer que ele não tem essência que determine a sua existência, ou ainda, não ter essência determinada é o que faz do homem livre. Por isso, não possuir a existência de antemão determinada é um fator sem o qual não se pode falar em autonomia.

A tarefa central da educação é orientar um ser que não pode ser conhecido por não ter essência determinada, e que, por isso, pode tomar diferentes direções, o homem é livre e por isso ele pode ser educado. Mas, a liberdade está inclinada para o bem ou para o mal? Kant não fala em uma natureza humana exatamente má, mas o homem não nasce isento de vícios. No entanto, ao mesmo tempo em que nasce com disposição para seguir impulsos, vícios, o homem nasce com a lei moral dentro de si. Em Sobre a Pedagogia afirma: “A única causa do mal consiste em não submeter a natureza a normas. No homem não há germes senão para o bem” (KANT, 1996b, p. 24). Com isso quis dizer que não pode se afirmar no homem uma vontade, uma razão praticamente legisladora que desejasse o mal. Então, considerando seu caráter inteligível, a humanidade é integralmente boa. Cabe ao homem optar por guiar-se pela sua razão ou não. Mas ele será autônomo na condição de guiar-se pela razão, por isso a educação deve objetivar a racionalidade, isso porque o ser racional pode promulgar para si a lei universal e assim, ser autônomo. Já que o homem não nasce determinado para o bem ou para o mal, Kant propõe uma educação como aprendizagem do exercício das regras no plano teórico e prático.

Como Kant pensa o homem enquanto participante do mundo sensível e do inteligível, propõe que a educação deve disciplinar para impedir que a selvageria, a animalidade, prejudique o caráter humano (cf. idem, p. 26). Se nada se opõe na infância e na juventude, o indivíduo conservará uma selvageria a vida toda. Por isso a educação deve ter uma parte negativa que Kant chama de disciplina. A disciplina educa para a obediência. No entanto, a obediência possui dois aspectos: o primeiro deve ser obediência absoluta das determinações de um governante, e o segundo é a obediência à vontade que o próprio sujeito reconhece como racional e boa (cf. ibid, p. 82). A criança sendo habituada a trabalhar por constrangimento na escola está submissa a uma obediência passiva, o que no início da educação é bom, para que ela discipline sua vontade. Aos poucos a disciplina se interioriza e a criança passa a obedecer a si mesma, quando descobre a liberdade. Torna-se então uma obediência voluntária, não fundada na autoridade do outro, mas na obediência à razão30, a si mesmo, descobrindo assim a autonomia. Dessa forma a educação moral kantiana conjuga disciplina e liberdade. Por isso para Kant a disciplina não é oposta à autonomia, ao contrário, a disciplina é necessária 30 A idéia de que a razão possibilita a moralidade e a autonomia, possui seu germe em Rousseau: “Somente a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal”.(ROUSSEAU, 1995, p. 48).

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para que o homem aprenda a guiar sua vontade pela razão e assim possa ser autônomo. A visão antropológica kantiana dualista segundo a qual o homem é, ao mesmo tempo, um ser animal (irracional) e racional auxilia o entendimento do papel da disciplina que é converter a animalidade em humanidade. A disciplina, que é negativa, coage os impulsos animais para que o homem se guie pela razão e assim, possa ser autônomo.

Para Kant, a disciplina é extremamente necessária para que a vontade não seja corrompida pelas inclinações sensíveis. No entanto, a disciplina não pode tratar as crianças como escravos, elas precisam sentir sua liberdade, mas de modo que não ofendam os demais (cf. ibid, p. 53). O respeito à dignidade da criança sempre deve estar presente para que não se promova um simples adestramento. A vontade da criança não pode ser quebrada, o que acarretaria um modo de pensar escravo e, portanto, heterônomo. Mas a vontade deve ser disciplinada para que possa se guiar pela razão e assim haja autonomia. Em outras palavras, educação para a autonomia em Kant não se funda na disciplina, embora ela seja necessária para “domar as paixões” e “abrir espaço para a razão”.

Quanto ao desenvolvimento, Kant distingue três períodos da educação: a educação do corpo ou física, a educação intelectual e a educação moral (cf. PHILONENKO, 1996, p. 43). A educação do corpo se refere aos cuidados materiais dispensados por quem cuida da criança. Os dois aspectos principais que devem ser observados quanto à educação do corpo a fim de gestar nas crianças a autonomia, são: educá-las para que não sejam escravas das próprias inclinações e assim possam seguir a própria razão, e proporcionar uma educação ativa para que as próprias crianças por meio de suas atividades possam ir se desenvolvendo e desenvolvendo seus conhecimentos e habilidades.

A partir da pedagogia de Kant, somos levados a pensar uma educação intelectual que busca desenvolver as diferentes potencialidades humanas, não apenas, por exemplo, a memorização. Segundo Philonenko (1966, p. 55), Kant resgata o verdadeiro sentido de educação intelectual, ela deve ser antes de tudo um exercício da inteligência. A educação deve ter uma finalidade interna, e o exercício de uma faculdade contribui para o aperfeiçoamento das demais. Está aqui contida uma crítica ao ensino tradicional, já que este sacrifica o entendimento, o juízo e a razão mesmo em função de privilegiar a memorização. “O entendimento é conhecimento do geral. O juízo é a aplicação do geral ao particular. A razão é a faculdade de distinguir a ligação entre o geral e o particular” (KANT, 1996b, p. 67). Ele considera o cultivo da memória necessário, já que o entendimento não acontece senão após impressões sensíveis, e cabe à memória guardá-las (cf. idem, p. 68). No entanto, uma cultura fundada exclusivamente na memória é superficial, pois forma pessoas que não podem produzir por si mesmo algo razoável, constituindo-se como Kant fala, metaforicamente, “burros de carga do Parnaso” (ibid, p. 67), e deformada porque aniquila o julgamento. Penso que a memorização dissociada das outras capacidades forma um indivíduo sem capacidade de pensar por conta própria, sem autonomia intelectual.

O perigo que subjaz numa educação que prime pela memória é que esta leve o homem a servilidade. Uma pessoa servil não é capaz de dar as próprias regras, se restringe a imitar ou obedecer aos demais, caracterizando uma situação de heteronomia. Kant contrapõe o verbalismo da memorização

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sistemática em favor do realismo pedagógico. “A memória deve ser ocupada apenas com conhecimentos que precisam ser conservados e que têm pertinência com a vida real” (ibid, p. 69). Kant na obra Sobre a Pedagogia (ibid, p. 88-89) afirma que a criança não deve se tornar um imitador cego, sob a pena de que jamais seja um homem ilustrado e de mente serena. “Entretanto, não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar” (ibid, p. 28).

Para Kant “O homem pode ser, ou treinado, disciplinado, instruído mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado” (ibid, p. 27). Os animais são treinados e o homem também pode ser, mas para este, o treinamento é insuficiente. O treinamento não é um fim e por isso não pode ser usado como conceito sintético que mediatiza natureza e cultura, animalidade e humanidade, disciplina e liberdade. Como a educação consiste em exercer uma espécie de imposição de limites sobre o estado da natureza a fim de que a liberdade possa se expandir abrindo espaço para a cultura, Kant busca um conceito sintético que concilie essa passagem e os dois conceitos de liberdade subsumidos nela, liberdade como espontaneidade e liberdade como autonomia. Indica esse conceito sintético no conceito de trabalho. “É de suma importância que as crianças aprendam a trabalhar. O homem é o único animal obrigado a trabalhar. Para que possa ter seu sustento, muitas coisas deve fazer necessariamente para tal” (ibid, p. 65). O trabalho traz consigo a necessidade, a submissão ao outro, o peso do mundo, mas ao mesmo tempo o trabalho é liberdade, pois nele o homem se descobre obra de si mesmo. Assim, liberdade e obediência são unidas sinteticamente na noção de trabalho, mediante a passagem da natureza à cultura.

Concluindo, podemos ver que as Reflexões sobre a

Educação de Kant encontram na idéia de trabalho, na sua acepção mais ampla, uma forma de integrar experiência de cada geração humana ao operar o mundo com a questão metafísica da liberdade que permite a ligação dessas experiências a um ideal de humanidade esclarecida e emancipada. (MARTINI, 1993, p. 113).

Kant nos inspira a pensar uma educação para a autonomia que busca

desenvolver as capacidades dos educandos para que tenham condições de perseguir as metas as quais se propõe livremente. Os conhecimentos aprendidos na escola são importantes por instrumentalizarem os sujeitos a realizar seus projetos aos quais se propõe racional e livremente. Ou seja, o conhecimento, a razão teórica, pode alargar as condições para que o homem seja autônomo. Conforme o pensamento de Kant, o conhecimento pode possibilitar autonomia, idéia com a qual concordo, no entanto, penso que a razão teórica não é tão inocente, tão neutra, quanto ele a pensava, o conhecimento não está imune à ação das ideologias, e isso deve ser levado em conta ao se pretender educar para a autonomia.

No pensamento educacional kantiano, com a educação moral chegamos ao termo do desenvolvimento dos outros momentos da educação. A cultura moral deve fundar-se sobre máximas e não sobre a disciplina (cf. KANT, 1996b, p. 80). A disciplina não se justifica por si mesma, ela é necessária na medida em que prepara a inserção no universo da razão. O primeiro esforço da cultura moral é lançar fundamentos para a formação do caráter. “Caráter

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consiste no hábito de agir segundo certas máximas” (idem, p. 81). Para Kant, a formação do caráter possui três traços essenciais: a obediência, a verdade e a sociabilidade. A obediência possui um duplo aspecto, ela pode ser obediência absoluta ou obediência reconhecida como boa e razoável (cf. ibid, p. 82). A primeira procede da autoridade e é importante para que a criança aprenda o respeito às leis que deverá seguir como cidadão. Mas a mais importante é o segundo tipo de obediência que é voluntária. Como já vimos, a obediência deve interiorizar-se para ser obediência a si mesmo, o que possibilitaria pensar por si mesmo, como ser racional e ser autônomo. O segundo traço que se deve ter em vista na formação da criança é a veracidade. “Este é o traço principal do caráter. Uma pessoa que mente não tem caráter e, se há nela algo de bom, deriva-se do temperamento” (ibid, p. 86). Verdade é sempre pensar de acordo consigo próprio, e mentir é entrar em desacordo consigo mesmo. Esse desacordo promove o rebaixamento da dignidade humana. Portanto em Kant, a idéia de verdade está ligada à idéia de dignidade, e esta à idéia de autonomia. O terceiro traço da formação do caráter é a sociabilidade (cf. ibid, p. 87). Ela envolve a disposição de sempre entender e se colocar na posição do outro. É bom lembrarmos que autonomia não é auto-suficiência.

A consolidação do caráter consiste na resolução firme de pensar algo e realmente colocá-lo em prática (cf. ibid, p. 93). A melhor maneira de solidificar o caráter moral é através de deveres a cumprir. Estes podem ser deveres para consigo, se referem à manutenção da dignidade humana em sua própria pessoa, ou para os demais, se referem ao direito da humanidade. A educação deve fazer a criança perceber a dignidade que há na própria pessoa e em toda humanidade (cf. ibid, p. 96). Ou seja, a consolidação do caráter depende que a criança esteja impregnada não pelo sentimento, mas pela idéia de dever. Já vimos que o homem não é bom nem mau por natureza, porque ele não é moral por natureza. “Torna-se moral apenas quando eleva a sua razão até os conceitos de dever e da lei” (ibid, p. 102). Também vimos que as inclinações e os instintos o impulsionam para os vícios, enquanto sua razão o impulsiona para a moralidade. A maior parte dos vícios provém do estado natural de barbárie animal, por isso nossa destinação é sair desse estado, que é de heteronomia. “[...] há uma lei do dever e esta não deve ser determinada pelo prazer, pelo útil ou semelhante, mas por algo universal que não se guia conforme os caprichos humanos” (ibid, p. 105). Esse algo universal é o imperativo categórico, lei universal que cada um dá a si pela sua racionalidade e que é o princípio da autonomia.

A educação é uma das formas de realização da filosofia prática de Kant, por meio da formação da criança, contribui para que na fase adulta possa agir de acordo com a lei moral e assim, possa ser autônomo. O homem deve ser formado para poder ser livre. A subordinação da educação à moralidade, promovida por Kant, a insere no núcleo de sua filosofia prática.

Em Kant, a realização do bem e da liberdade não dependem do mundo sensível, elas são construções do homem. “O que o homem é ou deve vir a ser moralmente, bom ou mau, deve fazê-lo ou sê-lo feito por si mesmo. Ambos devem ser um efeito de seu livre arbítrio” (KANT, 1974b, p. 384). Como no homem as disposições naturais não se desenvolvem por si mesmas, o homem precisa fazer-se, precisa educar e ser educado. É a conseqüência da liberdade humana, a radical auto-responsabilização que incute no homem a necessidade de fazer a si mesmo. E para Kant, é na medida em que o homem se constrói a

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si mesmo, guiado pela sua razão universal, que ele pode ser autônomo. “Daí a importância da educação: o homem é resultado desse processo; é uma construção. O progresso da sociedade vai depender do homem, especialmente no que se refere a sua ação reguladora” (PRESTES, 1993, p. 67). O intuito de toda educação no pensamento kantiano, tanto a física quanto a prática, vai propondo o acompanhamento da criança para que ela possa tornar-se capaz de se guiar pela razão, o que a torna capaz de ser livre, a torna autônoma. Nesse sentido, refuta o espontaneísmo, a criança precisa ser acompanhada, orientada, disciplinada, incentivada a agir por conta própria, para que deixe de se guiar pela sua natureza, seus impulsos, e se guie pela razão e assim se construa como homem. Para tal, a ação é imprescindível, a criança deve correr, jogar, saltar, etc, exercitar seus sentidos para que suas potencialidades sejam desenvolvidas. “Aprende-se mais solidamente e se grava de modo mais estável o que se aprende por si mesmo” (KANT, 1996b, p. 75). A educação também deve ser essencialmente raciocinada para que a criança possa aprender a servir-se do próprio entendimento e dar a própria lei em vez de copiar mecanicamente regras, modelos, conhecimentos prontos. Na passividade ninguém é autônomo e não se torna o próprio construtor, para tal é preciso ação racionalmente dirigida.

A proposta kantiana é que o homem aprenda a pensar por si mesmo. “Pensar por si mesmo significa procurar em si mesmo a suprema pedra de toque da verdade (isto é, em sua própria razão); e a máxima que manda pensar sempre por si mesmo é o esclarecimento [Aufklärung]” (KANT, 2005b, p. 61). Isso não significa apenas ter muitos conhecimentos, pois, muitas vezes, pessoas com riqueza de conhecimentos mostram-se menos esclarecidas que outras desprovidas de tais. Servir-se da própria razão é perguntarmos em tudo que devemos admitir, se a nossa regra ou máxima pode se estabelecer como princípio universal (cf. idem). Qualquer indivíduo pode realizar esse exame, e ele é a garantia da libertação de superstições e devaneios. Por isso à educação cabe habituar as crianças e jovens desde cedo a essa reflexão. Esse é um trabalho penoso e demorado, pois há muitos obstáculos que dificultam a realização dessa educação. No entanto, em Kant, é esse exame para ver se a própria máxima pode ser um princípio universal que garante a autonomia. Fica claro a partir do pensamento kantiano, que pensar por si mesmo não se dá apenas pelo conhecer, antes de tudo, implica na realização da sua filosofia prática que busca a moralização da ação humana através de um processo racional. Ainda, segundo Caygill (2000, p. 184), Kant acreditava que a liberdade para pensar criava a capacidade para agir livremente, embora o contrário não fosse necessariamente verdadeiro. Por isso a autonomia se dá quando se pensa por si próprio.

Segundo Kant (2005b, p. 59), a liberdade de pensar se opõe à coação civil que estabelece a submissão do sujeito a leis externas não reconhecidas como racionais e boas, o que consiste em heteronomia. A coação civil quando retira do homem a liberdade de falar, de escrever, também retira a liberdade de pensar, pois nós pensamos em conjunto com as outras pessoas na medida em que nos comunicamos. Portanto, a supressão da liberdade de comunicar também é supressão da liberdade de pensar. Isso também pode acontecer quando alguém não tem acesso à educação formal e de qualidade. Não ter acesso à escola, normalmente faz com que o sujeito seja impossibilitado de manifestar-se ou não sinta necessidade de fazê-lo. Isso suprime a autonomia

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de pensamento e a autonomia da palavra. Aqui se percebe a importância de condições que possibilitem a concretização da autonomia, dentre elas, a educação de qualidade.

Para Kant, a liberdade de pensar também se opõe à coação à consciência moral (cf. idem), o que é promovido normalmente pela fé cega e irracional. Liberdade de pensamento implica que a razão não se submeta a qualquer outra lei senão aquela que dá a si própria (cf. ibid). Sem nenhuma lei nada pode exercer-se por muito tempo, portanto, se a razão não quer se submeter à lei que ela dá a si própria, tem que se curvar ao jugo das leis que um outro lhe dá e, nesse caso, a liberdade de pensar fica perdida. Se a liberdade de pensamento proceder de modo independente da razão, destrói-se a si mesma, cai em heteronomia.

No sistema filosófico kantiano há a primazia da razão prática sobre a razão pura, tendo em vista que a consciência moral vai permitir atingir verdades metafísicas, o mundo próprio do homem, que é dotado de razão e liberdade (cf. PRESTES, 1993, p. 68). Por isso, a grande tarefa da educação para a autonomia a partir do pensamento de Kant é educar o homem para uma vida racional.

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CAPÍTULO III – A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE OPÕE

Paulo Freire no livro Pedagogia da autonomia afirma que o educador

que trabalha com crianças deve “estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia” (FREIRE, 2000a, p. 78). Este é um dos grandes temas que atravessam o pensamento de Freire. Ele não diz textualmente o que entende por autonomia e heteronomia, mas a partir de seu pensamento sócio-político-pedagógico podemos afirmar que autonomia é a condição sócio-histórica de um povo ou pessoa que tenha se libertado, se emancipado, das opressões que restringem ou anulam a liberdade de determinação. A autonomia tem a ver com o que Freire (1983, p. 108) chama de “ser para si” e no contexto histórico subdesenvolvido dos oprimidos para quem e com quem Freire escreve, autonomia está relacionada com a libertação. Já heteronomia é a condição de um indivíduo ou grupo social que se encontra em situação de opressão, de alienação31, situação em que se é “ser para outro” (idem, p. 38). Segundo o que defendemos a partir de Freire, as opressões, em geral, vão configurar uma situação de heteronomia, e uma educação voltada para a libertação pode conduzir as pessoas a serem autônomas. Também destacamos que os escritos de Freire são uma denúncia aos sistemas social, político, econômico, educacional, que favorecem a perpetuação da heteronomia. Ele denuncia as realidades que levam a heteronomia e propõe uma educação que busca construir uma realidade social que possibilite a autonomia, propõe um processo de ensino que possibilite a construção de condições para todos poderem ser “seres para si”.

Freire cria um pensamento engajado, pensamento que é práxis32 com e para o povo oprimido. Sua opção é pelos mais fracos, pelos esquecidos, em especial pelos povos chamados subdesenvolvidos, que historicamente mais foram oprimidos com o colonialismo, com os neocolonialismos, com as ditaduras militares e com o neoliberalismo. Sua opção é de professor democrático e progressista que busca a superação da heteronomia e construção da autonomia. Neste capítulo vamos ver quais as heteronomias a que ele se opôs com seu pensamento.

3.1 – A OPRESSÃO

A opressão, realidade histórica concreta da qual parte da humanidade é vítima, é a negação da vocação do homem de “ser mais” (FREIRE, 1983, p.35),

31 Podemos dizer que em Freire o homem alienado é aquele que é “ser para outro”.(FREIRE, 1983, p. 38). Para Marx a alienação é falsa consciência e a origem da alienação do homem está na alienação do trabalho: “criação de um objeto no qual o sujeito não se reconhece, e que se lhe antepõe como algo alheio e independente, e ao mesmo tempo, como algo dotado de certo poder – de um poder que não tem de per si – que se volta contra ele”.(VÁSQUEZ, 1977, p. 135). 32 Para Freire (1983, p. 108) práxis é “reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade”. Portanto, para Freire, práxis é prática social transformadora da realidade. Nesse sentido, penso que não se refere à teoria e prática, à ação e reflexão, como se estivessem afastadas e precisassem ser unidas, mas entende ambas de forma dialética: a teoria emergindo da prática e esta, redimensionando a teoria dialeticamente. Freire formulou o conceito de práxis a partir da influência que teve da teoria marxista. Mas o sentido de práxis em Freire não é exatamente igual ao de Marx. Partindo de Marx “entendemos a práxis como atividade material humana, transformadora do mundo e do próprio homem. [...] A práxis não tem para nós um âmbito tão amplo que possa inclusive englobar a atividade teórica em si, nem tão limitado que se reduza a uma atividade meramente material. A práxis se apresenta sob diversas formas específicas, mas todas elas são concordantes no fato de se tratar da transformação de uma determinada matéria-prima e da criação de um mundo de objetos humanos ou humanizados”.(VÁSQUEZ, 1977, p. 406-407). Para Marx, a práxis original é o trabalho humano.(cf. idem, p. 131). A práxis aparece em Marx como fundamento, como critério de verdade e como finalidade do conhecimento.(cf. ibid, p. 149).

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é a negação da liberdade, negação do homem como “ser para si” (idem, p. 189), portanto, a condição de opressão é uma condição de heteronomia. Ao anular a vocação humana de ser mais, a opressão insere a dura realidade de ser menos. A opressão se verifica hoje em situações concretas como a miséria, a desigualdade social, a exploração do trabalho do homem, as relações autoritárias, etc, situações que fazem o homem viver em condição de heteronomia já que limitam ou anulam sua liberdade de optar e seu poder de realizar. A opressão é uma realidade desumanizante “que atinge aos que oprimem e aos oprimidos”33 (ibid, p. 35). A humanização é resultado da ação da própria humanidade, é o homem que se faz homem, e isso só é possível porque possui liberdade. Toda opressão, que em si mesma é alienante, leva o homem a ser para outro e ser menos, é negação da liberdade humana, é negação de seu caráter criativo e criador, é heteronomia.

Segundo Freire (ibid, p. 44-45), a proibição de ser mais estabelecida pela opressão é em si mesma uma violência34. A resposta dos oprimidos a essa violência deve ser no sentido de buscar o direito de ser, sua luta é no sentido de fazer-se homem. Nas nossas sociedades, o processo de violência passa de geração em geração, o que vai formando uma consciência possessiva do mundo e dos homens, tudo é transformado em mercadoria, o dinheiro é a medida para tudo e o lucro torna-se o objetivo principal. No momento em que por meio dessa ganância desmedida dispõe da vida de pessoas, tirando-lhes a dignidade e a liberdade, transformando-as em coisa, as legam a situação de heteronomia.

Para Freire (ibid, p. 52), a consciência do oprimido se encontra geralmente dentro de um mundo mágico e mítico, o que faz com que o destino, a sina, a vontade de Deus, sejam postos como causa da opressão. Nesse caso a causa é vista com caráter mítico, sendo assim, inacessível, inatingível, a mudança torna-se irrealizável e a heteronomia não é superada. Esse “fatalismo” (ibid) é um dos principais perpetuadores de situações de menoridade, de opressão, de heteronomia, pois leva ao imobilismo. Outra característica dos oprimidos é a “autodesvalia” (ibid, p. 55), ela ocorre quando o oprimido introjeta a visão que o opressor possui dele. Daí consideram-se incapazes, enfermos, dizem não saber nada, etc. Para superar a autodesvalia é necessário superar a visão mítica do mundo e descobrir a verdadeira causa da opressão. Para Freire, é na luta pela libertação que começam a crer em si mesmos e criam condições para superar a condição de heteronomia.

Um aspecto que contribui para a continuidade de situações ou condições de heteronomia é a adesão do oprimido ao opressor. O oprimido acaba adquirindo os valores dos opressores, e assim o modelo de humanidade que vai procurar realizar é o do opressor. Passa a defender a visão 33 Paulo Freire (1999, p. 99-100), coloca o “ser mais”, ou humanização como vocação ontológica do ser humano, não como um a priori da história, mas como vocação que é socialmente construída. “É por isso que o opressor se desumaniza ao desumanizar o oprimido, não importa que coma bem, que vista bem, que durma bem. Não seria possível desumanizar sem desumanizar-se tal a radicalidade social da vocação. Não sou se você não é, não sou, sobretudo, se proíbo você de ser” (idem). 34 Quanto a isso é interessante vermos o que diz Fromm. Para ele, a consciência opressora em sua ânsia de posse é sadista. Por isso não quer destruir o oprimido, quer mantê-lo sob seu domínio, sob sua dependência para sugá-lo e saciar sua ânsia de posse. “A pessoa destrutiva quer destruir o objeto, isto é, aniquilá-lo e livrar-se dele; o sádico quer dominar seu objeto e, por isso, sofre uma perda, caso este desapareça” (FROMM, 1977, p. 131). Enquanto o opressor procura manter o oprimido sob seu domínio, este se torna dependente emocional daquele. A ação libertadora reconhecendo essa dependência deve transformá-la em independência. A consciência do oprimido apresenta impulsos masoquistas que aparecem mais freqüentemente nos sentimentos de inferioridade, impotência e insignificância individual (cf. idem, p. 118). Assim procura se eximir da necessidade de tomar decisões, das responsabilidades, e procura uma autoridade exterior para se guiar (cf. idem, p. 128). Dessa forma se torna heterônomo.

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individualista de liberdade, o que lhe impede de lutar pela própria libertação. “Em sua alienação, os oprimidos querem a todo custo parecer-se com o opressor, imitá-lo, segui-lo” (FREIRE, 1980, p. 60). No momento em que passam a desejar ser como o opressor, interiorizam suas opiniões e passam a desprezar a si mesmos, a se ver como incompetentes, incapazes, etc. Isso representa uma espécie de “dependência emocional” (FREIRE, 1983, p. 57), e constitui uma forma de heteronomia, já que o oprimido não busca ser ele mesmo e ser para si, mas busca ser como o opressor, e dessa forma, acaba sendo para o opressor. Muitas vezes, os oprimidos se reconhecem como tais e buscam sair da opressão, mas isso, no contexto de contradição e opressão em que vivem, significa ser opressor, por isso que libertação precisa implicar em superação da contradição opressor-oprimido. É a superação da contradição que traz ao mundo o homem novo, não mais oprimido nem opressor (cf. idem, p.36), o homem que é para si, o homem autônomo.

3.2 – MASSIFICAÇÃO E MEDO DA LIBERDADE

Paulo Freire (1983, p. 34) observou que em muitos oprimidos, o que

impede a libertação é o medo da liberdade35, medo que os conduz a manterem-se na situação de oprimidos, medo que impede a autonomia. O medo da liberdade surge a partir da prescrição. “Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra” (idem). Por isso ela é alienante, faz com que uma consciência “hospedeira” (ibid, p. 35), a do oprimido, se guie por uma pauta estranha a si, a pauta dos opressores. Dessa forma, o homem oprimido se encontra em uma situação de heteronomia, já que sua consciência é pautada pelo outro (hetero) que o oprime. Os oprimidos “(...) introjetam a ‘sombra’ dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando na expulsão desta sombra, exigiria deles que ‘preenchessem’ o ‘vazio’ deixado pela expulsão, com outro ‘conteúdo’ – o de sua autonomia” (ibid). De acordo com Freire (ibid, p. 36), oprimidos vivem um trágico dilema entre querer ser e temer ser. Ao se descobrirem oprimidos, descobrem que não são livres. A luta se trava internamente, a vontade de serem autênticos, de expulsar o opressor, de sair da alienação, de serem atores da própria vida (autônomos) entra em conflito com o medo da liberdade. Por isso o autor diz que a libertação é um “parto doloroso” (ibid).

A massificação transforma os homens em seres passivos, acomodados, ajustados, incapazes de decidir, sem liberdade, e, portanto, heterônomos. Por isso, o homem não deve acomodar-se36 no mundo, e sim integrar-se37 no e com o mundo. “A integração resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida da vontade de transformá-la a que se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade” (FREIRE, 1977, p. 42). A integração é um conceito ativo que envolve além do ajustamento, a opção e a ação transformadora de um homem sujeito enraizado no seu mundo, por isso promove a autonomia. A acomodação é fruto da prescrição que minimiza as decisões e faz com que se perca a capacidade de optar, por isso impede a autonomia. A acomodação vai

35 A expressão “medo da liberdade” foi criada por Erich Fromm e foi bastante usada por Freire. 36 A acomodação ou ajustamento é a postura passiva frente à realidade, é típica do homem que se adapta à realidade, alterando a si em vez de alterar a realidade. É a postura típica de uma pessoa ou povo massificado, que portanto, se encontra em condição de heteronomia. 37 Integração é a postura ativa do homem que é sujeito e transforma a realidade. Dessa forma pode superar a massificação e as outras formas de heteronomia e, fazer-se autônomo.

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implicar no simples ajustamento e na conseqüente massificação, situação em que a liberdade do sujeito e sua autonomia são negadas. Freire (idem, p. 43) denunciou que as tarefas do tempo do homem moderno em vez de serem fruto de decisão consciente a partir da própria realidade, são decisões de uma elite que por meio da prescrição, massifica, domestica, acomoda, rebaixando o homem à condição de objeto, fazendo-o heterônomo.

A escola promove a massificação enquanto pratica a mera repetição de idéias inertes, nega a participação, o debate e a análise dos problemas. Quando reduz a teoria a verbalismo transforma o processo educacional em ato mecânico. A educação que é verborosa, que prima apenas pela memorização mecânica, que não instiga o educando a superar suas posições ingênuas, está contribuindo para formar um ser humano com medo da própria liberdade, um ser humano incapaz de expulsar a consciência hospedeira, incapaz de superar a massificação, e, portanto, um ser humano que vive em condição heterônoma. Paulo Freire denuncia que o verbalismo na cultura brasileira está relacionado à nossa experiência democrática: “Cada vez mais nos convencemos, aliás, de se encontrarem na nossa experiência democrática, as raízes deste nosso gosto pela palavra oca. Do verbo. Da ênfase nos discursos” (ibid, p. 95). O verbalismo revela uma atitude mental do nosso povo que está ligada à ausência de criticidade e a superficialidade com que os problemas são tratados, há poucos espaços democráticos para que sejam dialogados e aprofundados. A criticidade está ligada à democracia (cf. ibid). Quanto menos democrática for uma nação, menor o conhecimento crítico da realidade, menor a participação, as formas de perceber a realidade serão ingênuas e as formas de expressá-la verborosas. Por isso, relações e espaços antidemocráticos, autoritários, são geradores de heteronomia.

3.3 – COLONIALISMO E INVASÃO CULTURAL

Para Freire (1983, p. 189), sociedades colonizadas ou invadidas culturalmente são sociedades alienadas. No Brasil, nos momentos em que houve princípio de participação popular efetiva, surgiram assistencialismos ou forças impositoras que procuraram imobilizar o povo brasileiro e manter o que Freire chama de sociedade fechada (cf. FREIRE, 1977, p. 65s). A sociedade fechada, de que fala Freire, é a sociedade colonial, escravocrata, sem povo, antidemocrática (cf. idem). O Brasil cresceu em condições negativas às experiências democráticas, nossa colonização foi fortemente predatória: exploração econômica, escravidão, concentração das terras, mandonismos, falta de liberdade de expressão e de livre iniciativa, etc. (cf. ibid, p. 67). Não havia o desejo por parte dos colonizadores de construírem uma nação, uma civilização, sua empreitada era apenas comercial: enriquecer e voltar para a Europa. O homem brasileiro surgiu nessa condição culturológica, ela é a origem do paternalismo, do mutismo, da tradição pouco propensa ao diálogo e à democracia que nos acompanha ao longo da história.

De acordo com Freire, como a economia colonial era marcadamente autárquica, impediu a participação popular e o autogoverno, necessários para uma nação constituir-se autonomamente. “Não há autogoverno sem dialogação, daí ter sido entre nós desconhecido o autogoverno ou dele termos raras manifestações” (ibid, p. 70). Não houve participação popular na vida pública do país, quem governava era um poder externo ao povo, o senhor das

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terras, os fiscais da Coroa, nobres membros da Coroa, etc, (cf. ibid, p. 71), o que criou uma consciência hospedeira da opressão, consciência habituada a seguir leis e preceitos de outros, portanto, heterônoma, em vez de consciência livre e criadora necessária para um regime democrático (cf. ibid). Não houve uma vivência comunitária que pudesse criar um senso de participação. E assim, proibidos de falar, proibidos de crescer, o país foi se formando em meio a condições heterônomas.

Quando o Brasil iniciou a tentativa de criar um Estado democrático, o fez importando modelos e sem considerar o contexto próprio, atitude típica de um povo alienado culturalmente (cf. ibid, p. 79). Importávamos uma solução pronta para os nossos problemas sem termos nenhuma experiência de autogoverno e sem que a democracia fizesse parte de nossa cultura. Freire afirma que um dos problemas cruciais para o Brasil é “O de conseguir o desenvolvimento econômico, como suporte da democracia, de que resultasse a supressão do poder desumano de opressão das classes muito ricas sobre as muito pobres. E de coincidir o desenvolvimento com um projeto autônomo da nação brasileira” (ibid, p. 86-87). Hoje podemos afirmar que a consolidação da democracia é fundamental para o desenvolvimento de um projeto de nação autônoma, e a superação da alarmante desigualdade social é necessária para mudar a condição de heteronomia a que milhões são submetidos devido à carência de condições materiais.

Os sistemas coloniais, ao longo da história, invadiram também o contexto cultural dos povos colonizados, impondo sua visão de mundo, ocorrendo assim, invasão cultural. A invasão cultural é sempre alienante e violenta, uma forma perversa de heteronomia. Segundo Freire (1983, p. 178), a invasão cultural possui dupla face, é ao mesmo tempo dominação e tática de dominação. A invasão já é uma forma de dominar econômica e culturalmente, de dispor, de objetificar o invadido. Mas a invasão cultural também promove a alteração nos valores do invadido, fazendo com que ele veja a realidade sob a ótica do invasor, e isso garante a estabilidade do invasor e se torna uma tática de dominação. E, defendemos que pensar sob a ótica do outro em vez de pensar por si mesmo, é heteronomia.

De acordo com Freire podemos afirmar que para ter êxito a invasão cultural precisa convencer os invadidos de que eles são inferiores, assim passam a ver os invasores como superiores, adquirem seus valores, seus hábitos, sua maneira de vestir, de falar, de produzir, de pensar. Dessa forma, são submetidos a condições concretas de opressão e são incapazes de lutar para se libertar delas, são incapazes de perceber a própria heteronomia e se acomodam a ela. Por meio da submissão à opressão os homens se alienam, pois passam a ser “seres para outro” (idem, p. 188), e assim, passam a viver em uma condição de heteronomia. É importante destacar que o homem é o único animal que é ser para si, e, assim, é o único que se desenvolve. “Como seres históricos, como “seres para si”, autobiográficos, sua transformação, que é desenvolvimento, se dá no tempo que é seu, nunca fora dele” (ibid). Só há desenvolvimento para os oprimidos quando superam a contradição opressor-oprimido e se fazem seres para si. As sociedades também apenas podem se desenvolver38 quando escaparem da alienação e forem “seres para si”.

38 Quanto às sociedades, Freire (1983, p. 189) diferencia desenvolvimento de modernização. No último caso, a sociedade continua dependente do contexto externo. Por isso ele propõe que o critério principal de desenvolvimento não seja a renda per capita, mas se é ou não uma sociedade para si. Uma das condições para que as sociedades

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Segundo o pensamento de Freire, a sociedade que não busca o desenvolvimento, que não busca ser para si, que não busca a autonomia, reforça as estruturas da cultura do silêncio39 construídas ao longo da dominação. Freire (1980, p. 62) defende que há relação necessária entre dependência e cultura do silêncio, já que ser silencioso é seguir as prescrições daqueles que impõe a sua voz e não ter voz própria. “Ser silencioso não é ter uma palavra autêntica, mas seguir as prescrições daqueles que falam e impõem sua voz” (idem). Essa cultura do silêncio nasce das relações opressoras do dominante em relação ao dominado (cf. FREIRE, 1982, p. 70). Podemos afirmar que a invasão cultural é um exemplo disso, pois promove o silenciamento do dominado enquanto impõe a forma de pensar do dominante. Outro exemplo é a educação bancária, que procura silenciar o aluno para que ele seja uma espécie de receptáculo dos conhecimentos do professor. Tanto a invasão cultural quanto a educação bancária são opostas à autonomia, pois ao silenciarem, anulam a autonomia de dizer a própria palavra.

Ainda, o silenciamento produzido nas relações de dominação entre as nações é reproduzido no interior da sociedade colonizada. “O silêncio da sociedade-objeto, em relação à sociedade-dirigente, repete-se nas relações que se estabelecem no seio da mesma sociedade-objeto” (FREIRE, 1980, p. 65). Da mesma forma que as elites silenciam frente ao país ou países dominadores, fazem que o povo silencie frente a elas. Foi o que fizeram, por exemplo, os governos militares após o golpe de 1964, adotaram uma política de servilismo em relação aos Estados Unidos e uma violenta imposição de silêncio ao povo. Todas essas situações de silenciamento impedem a autonomia das nações, sociedades, e indivíduos que vivem nelas.

3.4 – SECTARIZAÇÃO E IRRACIONALISMO

Toda relação de dominação, opressão, exploração é violenta, não importa se os meios usados para tal o são (cf. FREIRE, 1977, p. 50). Toda desumanização é uma forma de violência. Frente a tais situações as pessoas podem adotar atitudes diferentes: radicais ou sectárias. Paulo Freire afirma ser um grande mal para a sociedade brasileira o fato de o homem brasileiro, inclusive suas elites, em momentos desafiadores da história do país ter “descambado” (idem, p. 51) para a sectarização. “A sectarização tem uma matriz preponderantemente emocional e acrítica, por isso é irracional. É arrogante, antidialogal e por isso anticomunicativa” (ibid). A sectarização, como qualquer irracionalismo, é uma forma de heteronomia, já que a autonomia supõe que o sujeito possa dar a própria lei ou os próprios princípios de sua ação pela própria razão ou em concordância com ela.

atinjam o desenvolvimento e não apenas a modernização, é que a ciência e a técnica sejam usadas com vistas à humanização e não apenas para atender aos interesses de grupos econômicos. 39 Freire (1977, p. 66) afirma que o Brasil nasceu e cresceu sem a experiência de diálogo. Para demonstrar isso, utiliza um trecho do Sermão da Visitação de Nossa Senhora do Padre Antônio Vieira: “Comecemos por esta última palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a senhora o visitou, e neste estado estava o Brasil muitos anos que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como doente não pode falar, toda outra conjectura dificulta muito a medicina. Por isso Cristo nenhum enfermo curou com mais dificuldade, e em nenhum milagre gastou mais tempo, que em curar um endemoniado mudo; o pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir os remédios de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência: e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem devera remediar, chegaram também as vozes do poder e venceram os clamores da razão”. (VIEIRA apud FREIRE, 1977, p. 66-67).

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Segundo Freire (ibid, p. 52), o sectário de esquerda, como o de direita, se põe diante da história como seu único fazedor, como seu dono, por isso o povo não tem importância, é reduzido à massa. O povo é apenas um meio para seus fins. O sectário procura pensar pelo povo e o vê como “menor” que deve ser protegido. Freire (ibid, p. 50-51) coloca a radicalização como oposta a sectarização. A radicalização é preponderantemente crítica, é dialógica, não procura impor sua opinião, é amorosa. Ela não admite comodismos diante do poder opressor que desumaniza. Por isso não aceita em silêncio a violência, mas sua ação não é ativismo, é ação submetida à reflexão.

Conforme Freire (1983, p. 22), a sectarização se nutre pelo fanatismo, é mítica e alienante, o contrário da radicalização que é crítica e libertadora. Libertadora porque seu enraizamento engaja os homens na transformação concreta da realidade, criando uma condição favorável à autonomia. “A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não pode ser mudada” (idem). Portanto, é um obstáculo para a emancipação40 dos homens (cf. ibid). O sectário em sua irracionalidade não percebe a dinâmica da realidade, o que lhe impossibilita perceber a unidade dialética. Por isso mesmo o homem de esquerda ao tornar-se sectário equivoca-se na sua interpretação pretendida dialética da realidade e cai em posições fatalistas transformando o futuro em algo já dado, pré-estabelecido. O sectário de direita pretende “domesticar” (ibid, p. 23) o presente para que o futuro seja igual, pretende evitar que a transformação ocorra. Ambas formas são reacionárias porque negam a liberdade, se fecham em suas verdades, em seus “círculos de segurança” (ibid), fechando-se para o diálogo. Como é alienante, antidialogal, irracional e mantém a situação de opressão, a sectarização é uma forma de heteronomia.

O irracionalismo41 fez-se presente freqüentemente na história do país na defesa de privilégios inautênticos. O povo, vítima dos altos índices de analfabetismo ou semi-analfabetismo e historicamente sem hábito de participar ativamente, em muitos momentos foi manipulado por irracionalismos. Isso reforça a necessidade de um processo educativo que promova a responsabilidade social e política, de uma ação educativa criticizadora, que promova o esclarecimento e emancipação do homem, com acento cada vez maior de racionalidade42.

3.5 - AÇÃO ANTIDIALÓGICA

Para definir diálogo43, Freire (1977, p. 107) faz referência a Jaspers e afirma ser uma relação horizontal entre A e B, que nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. O diálogo é oposto ao antidiálogo, que implica numa relação vertical de A sobre B. Dessa forma o antidiálogo é acrítico, desamoroso, auto-suficiente, desesperançoso, arrogante, por isso não comunica e impede a autonomia. 40 A emancipação que é nesse caso, tornar-se independente, libertar-se, é fundamental para que as pessoas possam ser autônomas, já que sob o domínio do outro não é possível ser para si. 41 O próprio Paulo Freire foi vítima do irracionalismo. Com a ditadura militar, foi considerado um subversivo, um traidor; o movimento de democratização da cultura que se baseava em uma pedagogia da libertação foi atacado. O trabalho de conscientização das massas foi acusado de subversão. Por isso Freire teve que permanecer por vários anos no exílio. 42Paulo Freire (1977, p. 90), assim se refere à racionalidade: “Ao usarmos a expressão racionalidade ou racionalismo, fazemos nossas as palavras de Popper: ‘O que chamo de verdadeiro racionalismo é o racionalismo de Sócrates. É a consciência das próprias limitações, a modéstia intelectual dos que sabem quantas vezes erram e quanto dependem dos outros até para esse conhecimento’. POPPER, Karl – A Sociedade Democrática e Seus Inimigos”. 43 Há proximidade entre a concepção de diálogo de Freire e a concepção de ação comunicativa de Habermas.

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“Paulo Freire acredita que o dado fundamental das relações de todas as coisas no Mundo é o diálogo. O diálogo é o sentimento do amor tornado ação” (BRANDÃO, 1991, p. 103). Dessa forma, a relação entre homem e natureza é regida originalmente pelo diálogo, a natureza se dá ao homem que por meio do seu trabalho sobre ela cria a cultura. É pela relação dialógica homem/natureza que o mundo é transformado e a história é feita. A relação entre os homens é outro momento do mesmo diálogo. “O trabalho é uma relação entre os homens através da natureza” (idem, p. 104). Por isso, o trabalho deveria ser o principal domínio de diálogo entre os homens, que por meio dele humanizariam o mundo. A história concreta do homem nega o diálogo de muitas formas. Relações sociais em que uns sobrevivem do trabalho dos outros, em que uns criam aparatos culturais, econômicos, tecnológicos, para explorar e oprimir, são exemplos disso. Inclusive o sistema educacional, às vezes, é usado em favor da manutenção do antidiálogo, da opressão, de um sistema social que leva à heteronomia.

Característica bastante comum na educação antidialógica é o verbalismo. “Este modo de pensar, dissociado da ação que supõe um pensamento autêntico, perde-se em palavras falsas e ineficazes” (FREIRE, 1980, p. 87). Para Freire a palavra autêntica é práxis44, deve manter o diálogo constante entre teoria e prática. Por isso, também a palavra que é só ação se transforma em ativismo. O diálogo é incompatível com a auto-suficiência e exige um pensar autêntico. Pensar que percebe a realidade historicamente e assim é capaz de superar a dicotomia homem-mundo. O homem é um ser da práxis, do quefazer, diferente dos animais que são seres do puro fazer. “Os homens, pelo contrário, como seres do quefazer, ‘emergem’ dele e, objetivando-o, podem conhecê-lo e transformá-lo com seu trabalho” (FREIRE, 1983, p. 145). O que torna o homem ser do quefazer é o fato de seu fazer ser ação e reflexão, ser práxis (cf. idem). Quefazer é o fazer do homem que é teoria e prática, ação e reflexão. De acordo com Freire, podemos dizer que os dominadores negam às massas populares a práxis verdadeira, o direito de dizer sua palavra. Para eles as massas não devem admirar, questionar, denunciar e transformar o mundo, devem apenas se adaptar à realidade que eles, dominadores, determinam.

Freire (ibid, p. 156) denuncia que a ideologia opressora promove a absolutização da ignorância. Dessa forma, os opressores se reconhecem como os que nasceram para saber e reconhecem nos outros o seu oposto. Assim o diálogo fica impossibilitado e a opressão, a heteronomia se mantém. A desmistificação dessa idéia de ignorância das massas deve ser fruto do processo de libertação, os opressores jamais vão fazer isso, pois eles se beneficiam dessa situação. Aliás, o antidialógico, o dominador, quer conquistar aquele que lhe é oposto.

Toda conquista implica num sujeito que conquista e

num objeto que é conquistado. O sujeito da conquista determina suas finalidades ao objeto conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído pelo conquistador. Este, por sua vez, imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser ambíguo.

44 “A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1983, p. 40).

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Um ser, como dissemos já, “hospedeiro” do outro. (ibid, p. 162).

A conquista do oprimido é um traço marcante da ação antidialógica. Por

meio dela os opressores matam a admiração que os oprimidos têm pelo mundo, inculcando neles a admiração por um falso mundo. Esse falso mundo é um engodo, é um mundo mítico, irreal para as camadas populares, que assim mantêm-se cada vez mais alienadas, cada vez mais imersas na heteronomia. Para manter essa situação de conquista, de alienação e heteronomia vários mitos45 são mantidos pela ordem opressora (cf. ibid, p. 163). Um deles é que a ordem opressora é ordem da liberdade, de que todos são livres para fazer o que quiserem, trabalhar onde quiserem (cf. ibid). Há muitos outros mitos como: todos por meio de seu esforço podem se tornar empresários bem sucedidos, todos tem direito a educação, todos são iguais independente da classe social que ocupam, o assistencialista é generoso, a revolução é um pecado contra Deus, uns são inferiores e outros superiores, etc. (cf. ibid, p. 164). Paulo Freire (ibid) denuncia que esses mitos são introjetados nas massas populares pelos meios de comunicação. Eles são um dos principais mecanismos que mantêm a estrutura social opressora e desumanizante e que geram heteronomia.

Outra forma antidialógica que os dominadores usam para manter seu status quo é a divisão das massas populares (cf. ibid, p. 170). Dividido, o povo é presa fácil para a dominação, ou seja, não possui força para se libertar, para tornar-se autônomo, e como nos diz Freire, a forma que os homens possuem para se libertar, para Ser Mais, é em comunhão (cf. ibid, p. 86). Ainda, outra característica da ação antidialógica é a manipulação das massas oprimidas (cf. ibid, p. 172). Pela manipulação os opressores conformam as massas de acordo com seus interesses e objetivos. “A manipulação, na teoria da ação antidialógica, tal como a conquista a que serve, tem de anestesiar as massas populares para que não pensem” (ibid, p. 174). É a manipulação que impede ao oprimido de pensar certo, que implicaria na conscientização, caminho para a libertação. As elites sabem disso e por isso obstacularizam aos oprimidos pensar. E, pensar por si mesmo é imprescindível para que alguém seja autônomo.

Defendemos que uma estrutura social rígida, dominadora, antidialógica, favorece o desenvolvimento de pessoas que aceitam a dominação. Também favorece para que as pessoas e instituições que participam dela sejam antidialógicas. Assim, as relações entre pais e filhos, por exemplo, acabam refletindo as condições autoritárias e dominadoras do contexto social. Quanto mais autoritária for a sociedade, mais freqüente é o autoritarismo dos pais e dos mestres, e mais esse autoritarismo será introjetado nos filhos e alunos. Com isso, cria-se uma cultura de acatar irrefletidamente os preceitos verticalmente estabelecidos, apenas obedecer sem pensar. E isso é impossibilitador da autonomia, já que ela pressupõe que o sujeito possa pensar por si mesmo e para tal, as relações devem ser dialógicas, não autoritárias.

45 Entendo aqui por mito um pensamento ideológico que é tido pelo senso comum como verdade sem ter justificação racional para tal e, que serve como instrumento de controle social.

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3.6 – CONCEPÇÃO BANCÁRIA DA EDUCAÇÃO E A OPOSIÇÃO PROFESSOR/ALUNO

Exemplo de educação antidialógica é a “concepção bancária da

educação” (FREIRE, 1983, p. 66), a qual mantém a contradição entre educador-educando (cf. idem, p. 67). A concepção bancária distingue a ação do educador em dois momentos, o primeiro o educador em sua biblioteca adquire os conhecimentos, e no segundo em frente aos educandos narra o resultado de suas pesquisas, cabendo a estes apenas arquivar o que ouviram ou copiaram. Nesse caso não há conhecimento, os educandos não são chamados a conhecer, apenas memorizam mecanicamente, recebem de outro algo pronto. Assim, de forma vertical e antidialógica, a concepção bancária de ensino “educa” para a passividade, para a acriticidade, e por isso é oposta à educação que pretenda educar para a autonomia.

Freire denuncia que a narração e a dissertação são características marcantes da educação bancária. “Narração ou dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos” (ibid, p. 65). Mantendo a contradição entre educador e educando, a narração não promove a educação: “narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto” (ibid). Essa educação apresenta retalhos da realidade de forma estática, sem levar em conta a experiência do educando. “Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante” (ibid, p. 66). Por isso, Freire a chama de concepção “bancária da educação” (ibid, p. 67), em que cabe ao educando apenas ser depósito, arquivar informações. Mas, como nos fala Freire, “os grandes arquivados são os homens” (ibid), na medida em que essa educação sem práxis nega a criatividade, não há transformação, não há saber, os homens não podem tornar-se autônomos. A visão bancária possui papéis rigidamente definidos, o educador é o sábio que possui o conhecimento enquanto o educando é sempre aquele que não sabe. Em resumo, o educador é que educa, sabe, pensa, diz a palavra, disciplina, opta e prescreve a opção, atua, escolhe o conteúdo programático, identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, e finalmente, é o sujeito do processo. Os educandos, ao contrário, são educados, não sabem, são pensados, escutam docilmente, são disciplinados, seguem a prescrição, têm papel passivo, não são ouvidos, devem adaptar-se às determinações do educador, e são meros objetos (cf. ibid, p. 66-67). Por isso, nessa visão distorcida de educação os homens são seres de adaptação e ajustamento. O problema é que quanto mais são tratados como depósitos, menos serão capazes de consciência crítica e de libertarem-se da situação de opressão. Essa educação autoritária inibe a capacidade de perguntar, poda a curiosidade (cf. FREIRE e FAUNDEZ, 1986, p. 46), gera um homem passivo, ingênuo, que não é capaz de um pensar autêntico. Assim, há a aceitação passiva das estruturas que tornam os homens seres para outro, heterônomos. Ela, em vez de transformar o homem em ser autônomo, de realizar sua vocação de Ser Mais, o torna autômato46, o que é uma forma de heteronomia.

A educação bancária mantém a “inconciliação entre educador-educando” (FREIRE, 1983, p. 71) e também sugere uma “dicotomia inexistente homens-mundo” (idem), na medida em que põe os homens como meros 46 Para Freire (1983, p. 70) autômato é o contrário do homem, é a negação de sua ontológica vocação de Ser Mais.

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“espectadores e não recriadores do mundo” (ibid). Por isso, a educação bancária condiciona as pessoas para que se adaptem ao mundo, vivam nele aceitando a opressão sem se revoltar contra os patrões, os governantes, ou quem quer que possa os oprimir. Ou seja, para que trabalhem, cumpram as leis, sem questionar o próprio papel que ocupam na sociedade. Isso nega o homem como sujeito de suas ações e como ser de opção. Dessa forma, a educação bancária é educação como prática da dominação, mantém o educando na ingenuidade e assim, ele se acomoda ao mundo de opressão, permanecendo na heteronomia.

Ainda, a educação bancária com a pura transferência de conteúdos, a não participação do educando na produção do conhecimento, é um dos elementos responsáveis pela desmotivação, pela falta de interesse em estudar o que é “passado” em sala de aula (cf. FREIRE e SHOR, 1987, p. 15s). Freire chama a atenção para um produto genuíno da educação bancária, os altos índices de déficit quantitativo e qualitativo na educação, que constituem obstáculo para o desenvolvimento do país e para sua emancipação. Segundo Freire (1997, p. 11), o termo evasão escolar é ideológico, pois é posto de uma forma a dar a entender que as crianças estão fora da escola por vontade delas, mas na verdade elas são expulsas da escola, excluídas especialmente pela organização bancária. O termo correto é “expulsão escolar” (FREIRE, 1995, p. 46). Isso está relacionado ao despreparo científico dos educadores e a educação atrelada à ideologia elitista que alfabetiza não a partir da realidade do educando. Expulsar uma criança da escola é condená-la ao silêncio, se não tem como ler e escrever ou os faz de forma precária, não conseguirá manter relações verdadeiramente dialógicas em uma sociedade que existe pela palavra, dependerá de idéias e temas externos, e assim não conseguirá conquistar a própria autonomia.

3.7 – NEOLIBERALISMO E A ÉTICA DE MERCADO

As concepções de Paulo Freire me levam a pensar que hoje o neoliberalismo é algo que nega a autonomia, na medida em que promove uma crescente desigualdade social e, dessa forma, deixa a maioria das pessoas e nações em condições econômicas de pobreza. Situações de pobreza e miséria limitam a autonomia na medida em que restringem o poder de realizar. Ainda, a ideologia neoliberal amacia a verdadeira realidade, promove modos de pensar massificados, o que nega a liberdade de cada qual pensar por si mesmo, negando assim, a autonomia. Paulo Freire (2000a, p. 142) dá alguns exemplos desse amaciamento ideológico: o desemprego que é considerado pelos neoliberais uma desgraça da época, o pragmatismo pedagógico que treina em vez de formar afirmando que os sonhos morreram e o importante é preparar para o mercado de trabalho, etc. A globalização neoliberal é posta como uma evolução natural da economia, como se não houvesse outra opção, os países têm que se adaptar, independente das condições históricas com as quais o capitalismo se desenvolveu neles. Isso nega a autonomia das nações.

“O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua ética é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente” (idem, p. 144). Paulo Freire identifica uma “ditadura do mercado” (ibid) que impõe uma ética do lucro, bem diversa da ética universal defendida por ele. “A

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liberdade de comércio não pode estar acima da liberdade do ser humano” (ibid, p. 146). Para que tenhamos um homem autônomo, a liberdade e a dignidade humana não podem ser desrespeitadas ou esquecidas em favor dos interesses de grupos econômicos.

Os neoliberais possuem um discurso pragmático que sugere a simples adaptação, em vez da intervenção.

[...] negando à prática educativa qualquer intenção desveladora, reduzem-na à pura transferência de conteúdos ‘suficientes’ para a vida feliz das gentes. Consideram feliz a vida que se vive na adaptação ao mundo sem raivas, sem protestos, sem sonhos de transformação. (FREIRE, 1995, p. 27).

A visão de História contida nesse pensamento imobiliza, leva ao

determinismo. Freire (2003a, p. 33-34) destaca duas dessas visões deterministas, a primeira considera o futuro como pura repetição do presente, pensamento típico dos dominadores. Na segunda, o futuro é um pré-dado, uma espécie de sina, não é problemático, é inexorável, típico do povo que perdeu a esperança, a capacidade de sonhar. Esses pensares negam a História como possibilidade e negam o caráter criativo, criador, libertador da educação e a autonomia que os sujeitos devem conquistar por meio dela.

Para Freire (1995, p. 32), a perspectiva neoliberal procura reforçar a “pseudo-neutralidade da prática educativa, reduzindo-a a transferência de conteúdos”, reduzindo a formação ao treino de técnicas e procedimentos. Considera toda prática educativa que vai além disso, que procura superar a dicotomia leitura do mundo/leitura da palavra, leitura do texto/leitura do contexto, como mera ideologia (cf. idem, p. 32-33). Ainda, a educação de caráter neoliberal procura promover o individualismo com um discurso que incentiva os alunos a subir na vida por si mesmos, a terem sucesso material e profissional, e assim ensina as pessoas a desistirem de seus direitos à autonomia e pensamento crítico (cf. FREIRE e SHOR, 1987, p. 150). É o discurso da educação para a ética do mercado: bom é o mais forte. Essas concepções educacionais neoliberais mantêm e agravam uma situação social que nega a dignidade e limita a autonomia de grande parte da população mundial.

Pelo tecnicismo, o neoliberalismo reduz o homem a um simples objeto da técnica, em vez de autônomo transforma o ser humano em autômato. Sendo autômato, não tem determinação própria, é determinado por outro e assim, é heterônomo. “[...] o indivíduo cessa de ser ele mesmo; adota inteiramente o tipo de personalidade que lhe é oferecido pelos padrões culturais e, por conseguinte, torna-se exatamente como todos os demais são e como estes esperam que ele seja” (FROMM, 1977, p. 150). Transformando-se em autômato, vive na ilusão de que possui vontade própria, de que possui estilo, opiniões e sentimentos próprios. O medo da liberdade e as dúvidas são substituídos pela ilusão de uma individualidade que possui sua segurança em uma autoridade externa. O autômato vive da ilusão da autonomia, mas na verdade é heterônomo.

Os tecnicistas, “Deformados pela acriticidade, não são capazes de ver o homem na sua totalidade, no seu quefazer-ação-reflexão, que sempre se dá no

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mundo e sobre ele” (FREIRE, 1981, p. 23). É a racionalidade fria e calculista da civilização ocidental sobrepondo interesses egoístas e individualistas sobre os valores humanos e o bem estar comum. A civilização ocidental “Degenerada num projeto de mundo identificado com o des-amor da ganância fratricida, da posse, do lucro e da especulação financeira, conduziu a humanidade à beira da destruição total” (ANDREOLA, 2000, p. 24). Penso que as configurações atuais do mundo ocidental são um alerta; o projeto neoliberal está negando às pessoas do mundo, a possibilidade de viver com mais dignidade e autonomia. Em vez disso, está levando o mundo à beira da autodestruição.

3.8 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HETERONOMIA HOJE47

Um dos aspectos que definem nossa época é a falta de sentido, o que

pode estar associado à perda de horizonte (cf. TAYLOR, 1997, p. 35). As configurações tradicionais perderam a credibilidade, não há mais nada que se apóia na natureza do ser, tudo parece se apoiar em interpretações humanas mutáveis. Essa perda de horizonte foi antecipada especialmente por Nietzsche (1844-1900) na obra A gaia ciência, nas palavras de seu louco: “Para onde foi Deus?... Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte?” (NIETZSCHE, 2001, p. 147-148). A falta de horizonte se reflete na crise de identidade que é uma forma de desorientação, ela geralmente é expressa pelas pessoas em dúvidas como não saber quem são, e não saber em que posições se colocam. Isso é perceptível hoje em qualquer círculo humano, inclusive em sala de aula. Uma das perguntas mais freqüentes que tenho ouvido como professor no ensino fundamental trabalhando em escolas públicas é: Para que estudar? Essa pergunta poderia ser confundida com uma pergunta/pretexto para não estudar, coisa de adolescente. Mas é muito mais que isso, ela é reveladora da perda de horizonte, da desorientação, da falta de sentido, que as pessoas em geral vivem hoje. Isso é preocupante, pois quando as pessoas não têm um sentido próprio a partir de si e das relações que estabelecem, viverão de acordo com sentidos e sob orientações externas, o que as fará heterônomas.

Há hoje um modo de vida instrumental48 que esvazia a vida de significado e ameaça a liberdade pública (TAYLOR, 1997, p. 638). As pessoas não têm aspiração alguma na vida a não ser o que está ligado ao conforto frívolo, ao consumo desmedido, ao ganho de dinheiro. A auto-responsabilização que a liberdade pública e, conseqüentemente, a autonomia requerem, cede espaço para o individualismo e o consumismo. Uma das formas de a sociedade instrumental produzir esse comportamento é por meio das imagens de vida que apresenta e cultua. Essas imagens são transmitidas pelos meios de comunicação de massa, que ocultam os significados mais profundos e acabam “vendendo” ideais superficiais de vida. Os meios de comunicação de massa possuem hoje uma forte influência na formação das 47 Provavelmente a maior contribuição de Freire foi sua consistente crítica aos sistemas sociais e educacionais, pela qual denuncia as heteronomias neles presentes. Como a história é dinâmica, há conotações atuais da autonomia/ heteronomia que não estavam presentes na época e na teoria de Freire. Por isso, o item 3.8 desse trabalho se dedica a fazer algumas considerações sobre a atualidade da heteronomia. 48 Entendemos por modo de vida instrumental, a direção das diversas esferas da vida pela racionalidade instrumental. Segundo Freitag (2005, p. 168) para Habermas na racionalidade instrumental predomina o cálculo da eficácia, ou seja, os meios são ajustados a fins. Segundo Rouanet (1987, p. 206) a razão instrumental tem como “única função a adequação técnica de meios a fins e é incapaz de transcender a ordem constituída”.

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pessoas, em geral propõe uma visão despolitizada do mundo e procuram formar consumidores popularizando certos “ideais” e “padrões”. Penso que isso tem se tornado um grave obstáculo para a autonomia.

O modo de vida instrumental também dissolveu as comunidades tradicionais e os estilos de vida mais antigos, destruiu as matrizes onde o significado anteriormente podia florescer (cf. idem). Em conseqüência disso, os hábitos e as relações acabam se tornando cada vez mais parecidos, mais massificados. A massificação é uma forma de heteronomia, pois faz com que grandes multidões adotem valores e padrões que não se originaram de si ou de sua cultura. Além da tendência nociva de destruir a liberdade pública, o modo de vida instrumental solapa os focos locais de autogoverno, gera relações desiguais de poder que negam a igualdade política. Dessa forma, a democracia não ocorre, serve para manter privilégios e aumentar o poder dos já poderosos, mantendo e agravando situações de heteronomia. Por isso que Vattimo questiona a democracia atual. “A democracia como a praticamos já não funciona. Transformou-se em um sistema que idiotiza as pessoas para criar consensos favoráveis às classes dominantes” (VATTIMO, 2004, p. 3). Assim, a democracia se torna, em muitos casos, mais uma ilusão que oculta a realidade e mantém situações de privilégio, opressão, heteronomia. Note-se que se está colocando em questão a forma como a democracia está sendo praticada e não a própria democracia.

A racionalidade de eficácia instrumental que sobrepõe as emoções, sentimentos, compulsões, possibilita uma espécie de distanciamento e autocontrole. Alguns filósofos românticos, Nietzsche, a escola de Frankfurt, etc., desenvolveram a idéia de que a hegemonia racional, o controle racional, pode endurecer-nos, secar-nos, reprimir-nos, o autodomínio racional pode ser auto-subordinação ou escravidão, ou seja, heteronomia. Há uma “dialética do Iluminismo”, em que a razão que promete ser libertadora, acaba sendo seu oposto (cf. TAYLOR, 1997, p. 157). A razão humana que potencialmente é libertadora, promotora de autonomia, acaba sendo fonte de heteronomia. No entanto, esses filósofos em vez de condenar apenas a razão instrumental que ultrapassou seus limites intervindo em esferas da vida das pessoas que não eram de alçada instrumental, condenaram a razão. Isso gera um certo pessimismo, uma desesperança na possibilidade de humanização do mundo, o que contribui para a manutenção de condições de heteronomia.

Outro fenômeno comum na atualidade que parece negar a autonomia é uma supervalorização da fama, o que está ligado à estetização da vida. “A vida superior é marcada pela aura da fama e da glória que se vincula a ela, ou, ao menos, aos casos notáveis daqueles que encontram nela um sucesso brilhante” (idem, p. 36). É claro que isso está relacionado aos meios de comunicação de massa e à difusão de certos ideais de vida. As pessoas querem se tornar visíveis, o que está sendo possível às massas pelas novas tecnologias que possibilitam expor ao público a própria vida privada. Ao se tornar visível, a vida privada se torna controlável e isso pode representar um risco à autonomia. Já o fato de viver buscando a aura da fama representa heteronomia na medida em que envolve a abdicação ao viver autenticamente em nome do viver segundo um padrão estabelecido por outro. Esse padrão estabelece modos de vida, hábitos de consumo, ideais, que massificam e fazem as pessoas se distanciarem de sua cultura de origem.

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Nas escolas há hoje muitos resquícios da educação bancária, ainda ocorrem práticas verticais, antidialógicas, em que o aluno é tratado como um depósito, o que, como já foi visto, impede a gestação da autonomia. Além disso, as mudanças na sociedade brasileira estão, ao mesmo tempo, conferindo mais responsabilidade e dificultando o trabalho da escola. A nova configuração familiar, a cultura do consumo e satisfação imediata estão fazendo com que as crianças cheguem na escola, em geral, sem educação alguma da vontade, com valores distorcidos, e, como já foi dito, sem sentido próprio. Outro problema que perdura nas escolas de nosso país, embora esteja diminuindo, são os altos índices de reprovação e evasão. A exclusão escolar e a educação de má qualidade negam o direito de pensar. Ler e escrever são habilidades necessárias para a comunicação, e o pensamento é resultado da comunicação com os outros. Se alguém está impedido de se comunicar, também está impedido de pensar por não poder comunicar seu pensamento. E é essencial para a autonomia poder aprender a dizer sua palavra49 e pensar por si mesmo.

49 A expressão “aprender a dizer a sua palavra” é usada por Ernani Maria Fiori como título no prefácio que escreve na obra Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire.

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CAPÍTULO IV – A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA EM PAULO FREIRE

Paulo Freire propõe uma pedagogia da autonomia na medida em que

sua proposta está “fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando” (FREIRE, 2000a, p. 11). Optamos por usar a expressão “educação para a autonomia” com o objetivo de enfatizar que a autonomia deve ser conquistada, construída a partir das decisões, das vivências, da própria liberdade. Ou seja, embora a autonomia seja um atributo humano essencial, na medida em que está vinculada à idéia de dignidade, defendemos que ninguém é espontaneamente autônomo, ela é uma conquista que deve ser realizada. E a educação deve proporcionar contextos formativos que sejam adequados para que os educandos possam se fazer autônomos.

A temática da autonomia que ganhou centralidade nos pensadores e na educação moderna, ganha em Paulo Freire um sentido sócio-político-pedagógico: autonomia é a condição sócio-histórica de um povo ou pessoa que tenha se libertado, se emancipado, das opressões que restringem ou anulam sua liberdade de determinação. E conquistar a própria autonomia implica, para Freire, em libertação das estruturas opressoras. “A libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela” (FREIRE, 1983, p.32). Não há libertação que se faça com homens e mulheres passivos, é necessária conscientização e intervenção no mundo. A autonomia, além da liberdade de pensar por si, além da capacidade de guiar-se por princípios que concordem com a própria razão, envolve a capacidade de realizar, o que exige um homem consciente e ativo, por isso o homem passivo é contrário ao homem autônomo.

4.1 – INCONCLUSÃO DO SER HUMANO E A AUTONOMIA

A concepção de educação de Freire está fundada no caráter inconcluso do ser humano. O homem não nasce homem, ele se forma homem pela educação. Por isso educação é formação.

O que quero dizer é que a educação, como

formação, como processo de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, se tornou, ao longo da aventura no mundo dos seres humanos uma conotação de sua natureza, gestando-se na história, como a vocação para a humanização [...] (FREIRE, 2003a, p. 20).

Não é possível ser gente senão por meio de práticas educativas. Esse

processo de formação perdura ao longo da vida toda, o homem não pára de educar-se, sua formação é permanente e se funda na dialética entre teoria e prática. A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, e os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo (cf. FREIRE, 2000b, p. 40).

O homem é inacabado e possui consciência de seu inacabamento, isso é importante para que ele se torne autônomo. Segundo Freire (2000a, p.56s), com a liberdade o ser humano foi transformando a vida em existência e o suporte em mundo. Para Freire (idem, p. 56), a experiência animal se dá no

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suporte, que é espaço restrito em que o animal é treinado, adestrado para caçar, defender-se, sobreviver, e é graças a esse suporte que os filhotes dependem de seus pais por menos tempo que as crianças. A explicação do comportamento animal se encontra muito mais na espécie do que no indivíduo. Eles não possuem liberdade, assim não criam um mundo para si, não são autônomos. Já o homem possui existência. “O domínio da existência é o domínio do trabalho, da cultura, da história, dos valores – domínio em que os seres humanos experimentam a dialética entre determinação e liberdade” (FREIRE, 1982, p. 66). É no domínio da existência que os homens se fazem autônomos. A partir da invenção da existência não foi mais possível ao homem existir sem assumir o seu direito e dever de decidir. Por isso, assumir a existência em sua totalidade é necessário para que o homem seja autônomo.

Enquanto inacabados, homens e mulheres se sabem condicionados, mas a consciência mostra a possibilidade de ir além, de não ficar determinados. “Significa reconhecer que somos condicionados mas não determinados” (FREIRE, 2000a, p. 21). A construção da própria presença no mundo não se faz independente das forças sociais, mas se essa construção for determinada, não há autonomia. Se minha presença no mundo é feita por algo alheio a mim, estou abrindo mão de minha liberdade, de minha responsabilidade ética, histórica, política e social, estou abrindo mão de minha autonomia. “Afinal, minha presença no mundo não é a de quem apenas se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História” (idem, p. 60). A presença no mundo de quem é sujeito da História é uma presença autônoma.

4.2 – EDUCAR É FORMAR: IMPRESCINDIBILIDADE DA ÉTICA E

ESTÉTICA

Para Freire (2000a, p. 37), educar é substantivamente formar, por isso o ensino dos conteúdos não pode se dar alheio à formação moral e estética do educando. Um ensino tecnicista, que visa apenas o treinamento, diminui o que há de fundamentalmente humano na educação, o seu caráter formador. Há hoje uma tendência em certas instituições, inclusive de ensino superior, em criar cursos com caráter puramente técnico. Ninguém quer condenar a técnica e a ciência, nem se trata de divinização ou diabolização (cf. idem), ambas são formas superficiais de compreender os fatos e implicam em pensar errado. Apesar de ser necessário, o ensino técnico-científico é insuficiente, apenas ele não favorece a construção, a conquista da autonomia. Uma educação que vise formar para a autonomia deve incluir a formação ética e, ao seu lado, a formação estética50. “Decência e boniteza de mãos dadas” (ibid, p. 36). Homens e mulheres, enquanto seres histórico-sociais, se fazem capazes de comparar, julgar, valorar, escolher, intervir, recriar, dessa forma são responsáveis e se fazem seres éticos e estéticos (cf. ibid). Como nos fazemos seres humanos, a nossa obra enfeia ou embeleza o mundo, daí a impossibilidade de nos eximirmos da ética, fazemos nosso mundo a partir da nossa liberdade. Ele vai ser belo ou feio dependendo também da opção ética que fizermos. É nossa liberdade que nos insere um compromisso ético e uma perspectiva estética. Penso que só podemos ser autônomos graças a nossa 50 A dimensão estética, por ser de caráter diretamente individuante, é instância que necessariamente integra o ser autônomo do homem, e portanto, deve estar presente numa educação que vise formar para a autonomia.

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liberdade, por isso uma educação que vise formar para a autonomia engloba necessariamente a dimensão ética e estética.

Uma das dimensões éticas que uma educação que busca formar para a autonomia deve atentar é a corporeificação da palavra pelo exemplo do educador (cf. ibid, p.38). De nada adianta um professor em seu discurso exaltar a criticidade, a democracia, o pensamento autônomo, se sua prática é antidialógica, vertical, bancária. A ação generosa que testemunha a palavra a torna viva, a faz palavra viva, dando um significado especial a ela. Assim, não é uma prática puramente descritiva, “mas algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho” (ibid, p. 41). O testemunho concreto de um professor que possui uma prática autônoma é essencial em uma educação que vise a autonomia.

A educação para a autonomia supõe o respeito às diferenças, assim, rejeita qualquer forma de discriminação, seja ela de raça, classe, gênero, etc. Como a autonomia não é auto-suficiência, ela inclui estar aberto à comunicação com o outro, com o diferente, e estar aberto à comunicação com o outro, segundo Freire (ibid, p. 42), é pensar certo. “Não há por isso mesmo pensar sem entendimento e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferido mas co-participado” (ibid, p. 41). Toda inteligência, se não distorcida, é comunicação do inteligido, portanto, a inteligibilidade se funda na comunicação, na intercomunicação, na dialogicidade. O pensar certo é dialógico, é aberto ao outro, igual enquanto membro da humanidade e diferente enquanto sujeito único. Portanto, a autonomia supõe o respeito tanto à dignidade do sujeito enquanto membro da humanidade, quanto o respeito às suas especificidades de indivíduo.

De acordo com o pensamento de Freire, para a prática de uma educação que visa a autonomia, uma das tarefas mais importantes é possibilitar condições para que os educandos possam “assumir-se” (ibid, p. 46). Isso envolve assumir a condição sócio-histórica, a condição de ser pensante, comunicante, transformador, criador, sonhador, que ama e sente raiva (cf. ibid). Essa assunção do eu não significa a auto-suficiência, a exclusão dos outros, “É a ‘outredade’ do ‘não eu’, ou do tu que me faz assumir a radicalidade o meu eu” (ibid). Essa assunção está ligada à identidade cultural que faz parte, ao mesmo tempo, da dimensão individual e de classe dos educandos. “Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos” (ibid, p. 47). O assumir-se como sujeito da própria assunção possibilita que o sujeito possa ser ele mesmo, possa ser autônomo. “A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário” (ibid). Assumir-se implica em ser autêntico, em ser o que se é a partir de si mesmo, por isso, para ser autônomo o homem precisa assumir-se. A assunção, enquanto exige autenticidade, engloba as dimensões ética e estética. Para que haja tal assunção, o educador deve respeitar a autonomia do educando.

Outro ponto essencial ao se pretender uma educação para a autonomia, é a questão ética do respeito aos professores. É direito e dever dos educadores lutar por sua valorização, e isso inclui lutar por salários dignos, menos imorais. “A elevação urgente da qualidade de nossa educação passa pelo respeito aos educadores e educadoras mediante substantiva melhora de seus salários, pela sua formação permanente e reformulação dos cursos de magistério” (FREIRE, 1995, p. 46). Penso que a limitação nociva da autonomia dos educadores devido a condições econômicas e formativas desfavoráveis

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inegavelmente prejudica a qualidade da educação e tem reflexos diretos na limitação da autonomia dos educandos.

Defendemos que uma educação que visa promover a autonomia deve atentar para a formação do ser humano e não apenas para o ensino-aprendizagem de conteúdos. Dessa forma, precisa atentar para todos elementos envolvidos na educação: a postura do professor, da direção, a situação material da escola, a participação dos pais, os conteúdos a serem apreendidos, etc. A formação ocorre na interação de todos elementos que envolvem a educação, por isso todos eles devem ser pesados de tal forma a contribuir para a aprendizagem crítica e para a construção gradativa da autonomia do educando.

4.3 – AUTORIDADE E LIBERDADE

O educador, que em sua prática busca promover a autonomia dos educandos, deve estar atento à relação autoridade-liberdade. Para que haja a necessária disciplina sem haver autoritarismo ou licenciosidade, o equilíbrio entre ambas é necessário. “O autoritarismo é a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade e a licenciosidade, a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade” (FREIRE, 2000a, p. 99). Assim o autoritarismo não é mais autoridade, mas abuso de autoridade, a licenciosidade não é mais liberdade, mas depravação da liberdade. Ambos são nocivos à autonomia, já que o autoritarismo mantém o educando excessivamente dependente da autoridade e poda a liberdade de escolher e fazer por si mesmo. Já a licenciosidade impede a aprendizagem da auto-responsabilização e permite que o educando se torne dependente dos próprios impulsos e desejos. Tanto a dependência excessiva da autoridade externa quanto a dependência dos próprios impulsos são formas de heteronomias, pois impedem que o sujeito haja de acordo com sua própria lei, impedem que o sujeito seja ele mesmo.

Para Freire (idem, p. 102-103), a autoridade docente precisa estar fundada na autoridade da competência, não que a competência técnica na área em que atua seja suficiente para garantir a autoridade, mas a incompetência profissional a desqualifica. A autoridade está relacionada com promover, incentivar, por isso demanda generosidade. Relações justas e generosas geram um clima em que a autoridade do professor e a liberdade do aluno se assumem em sua eticidade (cf. ibid, p. 103). A autoridade não pode cair no autoritarismo, caso em que educará para a servilidade, que é uma forma de heteronomia. A autoridade que é democrática se preocupa com a construção de um clima de real disciplina, de respeito. Procura levar o educando a construir, por meio de sua liberdade e fundado na responsabilidade, a autonomia. Assim, a autoridade democrática é a que se empenha em realizar o seguinte sonho fundamental:

O de persuadir ou convencer a liberdade de que vá

construindo consigo mesma, em si mesma, com materiais que, embora vindo de fora de si, sejam reelaborados por ela, a sua autonomia. É com ela, a autonomia, penosamente construindo-se, que a liberdade vai preenchendo o ‘espaço’ antes ‘habitado’ por sua

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dependência. Sua autonomia que se funda na responsabilidade que vai sendo assumida. (ibid, p. 105).

Dessa forma, a escola deve ter conteúdos programáticos, mas deve ficar

claro que o essencial na aprendizagem dos conteúdos é a “construção da responsabilidade da liberdade que se assume [...] é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia” (ibid). Enquanto gente posso vir saber o que não sei e posso aperfeiçoar o que sei, tanto mais saberei quanto mais construir minha autonomia em respeito à dos outros.

Segundo Freire (1999, p.83), na constituição da necessária disciplina não há como identificar o ato de estudar, de aprender, de conhecer, de ensinar, com o puro entretenimento. A prática educativa é difícil, é exigente, não pode ter “regras frouxas”, no entanto, também não pode ser um ato insosso, desgostoso, enfadonho, deve ser prazeroso. Há alegria embutida na aventura de conhecer, de descobrir, sem a qual o ato educativo pode se tornar desmotivador. Mesmo assim, “Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem faz uma postura crítica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a” (FREIRE, 1982, p. 9). É a postura ativa, criativa, crítica, necessária para a construção da autonomia, que a disciplina típica da educação bancária abafa e a disciplina respeitosa da educação dialógica promove.

A construção respeitosa da disciplina deve incluir a educação da vontade. A vontade só se torna autêntica em sujeitos que assumem seus limites. “A vontade ilimitada é a vontade despótica, negadora do outras vontades e rigorosamente, de si mesma” (FREIRE, 2000b, p. 34). A vontade despótica é negadora da própria autonomia e da autonomia dos outros. Por isso a disciplina da vontade é uma prática difícil mas necessária, é por meio dela que se constitui a autoridade interna a partir da introjeção da autoridade externa (cf. idem, p. 35), o que permitirá a liberdade viver plenamente suas possibilidades, as quais incluem a construção da própria autonomia. A vivência da tensão dialética entre liberdade e autoridade nos mostra que elas podem não ser antagônicas necessariamente uma da outra (cf. ibid).

O melhor para a promoção da autonomia, é que a liberdade possa se constituir assumindo seus limites criticamente. O confronto com as demais liberdades e com a autoridade dos pais, professores, do Estado, é bom e necessário, pois amadurece a liberdade, ela descobre que não é absoluta, mas é cerceada por outras liberdades e pela autoridade, e sua autonomia não é absoluta ou auto-suficiente. Por isso é indispensável que os pais tomem parte nas discussões sobre as decisões dos filhos, o que não pode é tomar a decisão por eles, mas devem mostrar que a decisão é um processo responsável e acarreta em conseqüências. Ninguém é autônomo antes de decidir, a autonomia se faz ao longo da vida pelas decisões que tomamos, por isso a importância em assumir a própria liberdade responsavelmente.

O que é preciso, fundamentalmente mesmo, é que o

filho assuma eticamente, responsavelmente, sua decisão, fundante de sua autonomia. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas. (FREIRE, 2000a, p. 120).

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A autonomia é conquistada gradualmente, é processo que consiste no

amadurecimento do ser para si, por isso a educação deve possibilitar experiências que estimulem as decisões e a responsabilidade. Freire (2000b, p. 37) fala que mais importante do que o testemunho espontâneo dos pais é aproveitar a força do testemunho de pai para exercitar a “liberdade do filho no sentido da gestação de sua autonomia” (idem). Segundo o autor, quanto mais os filhos vão se tornando “seres para si”, tanto mais são capazes de reinventar seus pais, em vez de copiá-los ou até negá-los (cf. ibid).

O educador que busca criar condições para que seus alunos criem sua própria autonomia e que não quer ter uma prática autoritária, deve saber escutar51. Falar para os alunos como se fosse o portador da verdade é uma prática bancária, é preciso escutar, e a partir da escuta aprender a falar com eles e não para eles (cf. FREIRE, 2000a, p. 127). Se quisermos promover no educando a autonomia, o processo educativo como um todo deve ser de falar com. Pode haver momentos de falar para, desde que como um momento do falar com (cf. idem, p. 131). A escuta é fundamental para que o processo educativo ocorra, como ensinar não é transferir conhecimento, e sim exige a problematização e acompanhamento para que os educandos vão construindo seus conhecimentos, a escuta do outro é essencial, sem isso, o processo educativo de construção da autonomia fica comprometido. Também é importante que os educandos aprendam a fazer o uso responsável da palavra, que aprendam a falar autonomamente.

De acordo com Freire (ibid), para que haja uma comunicação dialógica, que não seja nem licenciosa nem autoritária, é indispensável, em sala de aula, a disciplina do silêncio. Mas silêncio não é silenciamento. Educador e educando devem ser sujeitos do diálogo. E, da mesma forma que não deve ser autoritário, o educador não deve ser licencioso, deve assumir sua autoridade e educar para possibilitar o exercício responsável e racional da liberdade, a fim de que a autonomia possa ser gestada.

4.4 – CURIOSIDADE, CRITICIDADE E A AUTONOMIA

A educação que vise formar para a autonomia deve fomentar nos educandos a curiosidade e a criticidade. Um educador que busca despertar a curiosidade e a criticidade em seus educandos, não pode basear-se na memorização mecânica. Pensar mecanicamente é pensar errado. “Pensar certo significa procurar descobrir e entender o que se acha mais escondido nas coisas e nos fatos que nós observamos e analisamos” (FREIRE, 2003b, p. 77). E pensar certo é condição para ensinar certo e ele só se faz no respeito à unidade entre teoria e prática. “E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas” (FREIRE, 2000a, p. 30). A arrogância de achar-se o detentor de verdades imutáveis e inquestionáveis também é pensar errado. Os homens e mulheres como seres históricos podem intervir no mundo, conhecê-lo e transformá-lo. O conhecimento também por eles produzido, igualmente é histórico. Dessa forma, os conhecimentos que temos hoje superaram conhecimentos produzidos por

51 Entendemos escutar não apenas como ouvir. “Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro” (FREIRE, 2000a, p. 135).

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gerações passadas, mas tais conhecimentos, também serão superados por outros produzidos por gerações que virão. Esse processo de superação é constante e não há nenhum conhecimento que seja absoluto. Por isso é tão importante estar aberto a novos conhecimentos e buscar produzi-los, quanto conhecer o que a humanidade já produziu (cf. idem, p. 31). A educação para a autonomia só é possível havendo essa possibilidade de recriar o que o passado nos legou e criar o novo.

Paulo Freire (ibid, p. 32) defende a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, pois faz parte da natureza da prática docente indagar, buscar, pesquisar. A pesquisa possibilita conhecer a novidade e contribui para que a curiosidade vá se tornando cada vez, metodicamente, mais rigorosa, e assim saia da ingenuidade e transforme-se em curiosidade epistemológica52 (cf. ibid). A curiosidade ingênua é o que caracteriza o senso comum, é um saber feito apenas da experiência sem rigorosidade metódica. A ingenuidade é nociva à autonomia, pois impede, inclusive, a percepção dos elementos de heteronomia que nos cercam. A rigorosidade metódica é necessária para que conheçamos melhor o mundo e a nós, e, assim, tenhamos maior capacidade de nos determinarmos, elemento essencial para sermos autônomos.

Freire (ibid, p. 34s) considera que a diferença e a distância entre ingenuidade e criticidade não se dá na ruptura entre elas, mas na superação. A curiosidade ingênua sem deixar de ser curiosidade, ao criticizar-se se torna curiosidade epistemológica. Essa superação ocorre devido à rigorosidade metódica na aproximação do objeto, que caracteriza a segunda curiosidade. A essência da curiosidade permanece a mesma, o que muda é a qualidade. A curiosidade é condição para a criatividade, ela é a “indagação inquietadora” (ibid, p. 35) que nos move no sentido de desvelar o mundo que não fizemos e acrescentar a ele algo que nós fazemos. A prática educativa progressista que visa educar para a autonomia deve promover a superação para a curiosidade epistemológica, não há como ser autônomo sem criticidade, mantendo uma visão ingênua do mundo.

A partir das concepções de Freire a educação envolve o movimento dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. Práticas espontâneas produzem geralmente um saber ingênuo. O conhecimento crítico, necessário para a autonomia, se alcança com rigorosidade metódica. O pensar certo não é presente dos deuses ou fruto de uma iluminação especial sobre uma ou outra mente privilegiada, o pensar certo é possível a todos e deve ser produzido; na escola ele deve ser produzido pelo educando em comunhão com seu educador. Todos somos curiosos, a curiosidade faz parte do fenômeno vital. O conhecimento sempre começa pela pergunta, pela curiosidade (cf. FREIRE e FAUNDEZ, 1986, p. 46). Mas o que deve ser obra do sujeito é a passagem da curiosidade espontânea, ingênua para a curiosidade epistemológica. Isso só é feito com reflexão crítica sobre a prática. Quanto mais a reflexão crítica ajudar o sujeito a se perceber e perceber suas razões de ser, mais consciente está o tornado, mais está reforçando a curiosidade epistemológica, e assim, haverá condições para que ele seja sujeito autônomo.

52 Para Freire (2000a, p. 27) a curiosidade epistemológica é construída pelo exercício crítico da capacidade de aprender. É a curiosidade que se torna metodicamente rigorosa e, se opõe à curiosidade ingênua que caracteriza o senso comum (cf. icem, p. 32).

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4.5 – CONSCIENTIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DIALÓGICA

A teoria pedagógica de Freire, sua “filosofia existencial” (WEFFORT, 1977, p.12), tem como grande proposta, como grande utopia, a libertação dos oprimidos. Como ninguém liberta ninguém, a libertação acontece a partir da autoconfiguração responsável. “Os caminhos da libertação são do oprimido que se liberta: ele não é coisa que se resgata, é o sujeito que se deve autoconfigurar responsavelmente” (FIORI, 1983, p. 3). Ao se libertarem pela autoconfiguração responsável, os homens estão fazendo-se autônomos, pois estão suprimindo situações que limitavam sua autonomia e ao mesmo tempo fazendo-se por si mesmos. Há então, uma relação entre libertação e autonomia, na medida em que a libertação das condições opressoras possibilita o aumento do poder de se autodeterminar, de ser para si, e conseqüentemente do poder de ser autônomo.

Em Freire, a construção da autonomia passa pela conscientização, ele propõe a conscientização como um esforço de “conhecimento crítico dos obstáculos” (FREIRE, 2000a, p.60) que impedem a transformação do mundo, que impedem a superação das condições de heteronomia. O homem é o único ser vivo que consegue tomar distância do mundo, objetificá-lo, admirá-lo, para promover uma aproximação maior, para conhecê-lo. Aí a dialogicidade aparece como exigência epistemológica (cf. FREIRE, 1995, p. 74). Mas essa aproximação espontânea que o homem faz do mundo ainda não é uma posição crítica sobre ele, é uma posição ingênua, é tomada de consciência, mas não é conscientização. A última “não pode existir fora da ‘práxis’, ou melhor, sem o ato ação-reflexão” (FREIRE, 1980, p. 26). A conscientização está baseada na relação consciência-mundo, e implica em transformar o mundo, é inserção crítica na História e exige que os sujeitos criem a própria existência com aquilo que o mundo os dispõe. A conscientização exige que ultrapassemos a esfera da espontaneidade, que substituamos a consciência ingênua53 pela consciência crítica54. Freire diz que a consciência do homem pode evoluir em diferentes níveis. A consciência ingênua ou consciência semi-intransitiva representa uma aproximação espontânea em relação ao mundo sem que o homem se reconheça como agente, permanece mero expectador. A consciência ingênua-intransitiva se caracteriza por ampliar a capacidade de compreensão e de resposta aos desafios do meio (cf. BECKER, 1998, p. 48). Na consciência transitivo-crítica o homem cria e recria suas ações, é sujeito, conhece a causalidade dos fenômenos sociais, assimila criticamente a realidade e tem consciência da historicidade de suas ações. É a consciência transitivo-crítica que possibilita a construção da autonomia.

É na práxis do distanciamento/aproximação que o mundo é problematizado, decodificado, que os seres humanos se descobrem instauradores do próprio mundo, descobrem que não apenas vivem, também existem. A consciência do mundo e consciência de si crescem juntas. “Mas ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência se constitui como consciência do mundo” (FIORI, 1983, p. 9). Não há um mundo para cada consciência, elas se desenvolvem em um mundo comum a elas, se desenvolvem essencialmente comunicantes, por isso se comunicam. A 53 José Eustáquio Romão (2002, p. 41), cita as características da consciência ingênua: simplismo, saudosismo, gregarismo, elitismo/basismo, empirismo, razão positivista, magicismo, sectarismo e conservadorismo. 54 José Eustáquio Romão (2002, p. 41), também cita as características da consciência crítica: complexidade, história, comunhão, dialogicidade, razão dialética, radicalismo e transformação.

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intersubjetividade das consciências se dá junto com a mundaneidade e a subjetividade. O sujeito se constitui em sua subjetividade pela consciência do mundo e do outro. “O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele é relacional e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta” (idem, p. 10). O diálogo é o próprio movimento constitutivo da consciência, que é consciência do mundo. Ao objetivar o mundo, o homem o historiciza, o humaniza, ele passa a ser mundo da consciência que é uma elaboração humana. Assim, o mundo passa a ser um projeto humano, o homem se faz livre e pode ser autônomo.

Nesse sentido, os temas geradores55 possuem importância central nos processos de alfabetização. “Procurar o tema gerador é procurar o pensamento do homem sobre a realidade e a sua ação sobre esta realidade que está em sua práxis” (FREIRE, 1980, p. 32). A atitude ativa de procurar o próprio tema gerador vai possibilitar que o educando tome consciência de sua realidade e também de si. É a práxis sobre a realidade que possibilita a tomada de consciência crítica, que permite a decisão, a escolha, a liberdade, a conquista do poder de ser autônomo. Uma educação desconectada da realidade, não fará mais que domesticar, adequar, ou seja, reforçar a situação de heteronomia.

Para Freire (idem, p. 35), é a partir da reflexão sobre seu contexto, do comprometimento, das decisões, que os homens e mulheres se constroem a si mesmos e chegam a ser sujeitos, chegam a ser autônomos. O ser humano percebe sua temporalidade, reconhece que não vive num eterno presente, e por isso é histórico. Também se reconhece em relação com outros seres e com a própria realidade. A realidade com o seu devir e as relações que estabelece impõe ao ser humano desafios. As respostas dadas a esses desafios não mudam apenas a realidade, mas mudam o próprio homem. “No ato mesmo de responder aos desafios que lhe apresenta seu contexto de vida, o homem se cria, se realiza como sujeito, porque esta resposta exige dele reflexão, crítica, invenção, eleição, decisão, organização, ação [...]” (ibid, p. 37). Assim o homem não se adapta apenas à realidade, ele a configura, e na práxis configuradora se constrói como homem. A partir das concepções de Freire, afirmamos que esse é o processo pelo qual os seres humanos conquistam sua autonomia, processo pelo qual são construtores de si próprios.

A proposta de Freire é de uma educação problematizadora, dialógica, oposta à educação bancária, por isso não trata os alunos como depósitos de conteúdos, busca promover caminhos para que o próprio aluno seja sujeito e construa sua autonomia, dessa forma, a contradição educador-educando, em que o professor era o sujeito e o aluno objeto passivo, é superada. “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1983, p. 79). Por isso a proposta freireana é essencialmente dialógica. Para Freire os elementos constitutivos do diálogo são ação e reflexão. “Não há palavra verdadeira que não seja práxis” (idem, p. 91). Por isso o diálogo implica na transformação do mundo. A pronúncia do mundo é um ato de criação e recriação, é um ato de amor (cf. ibid, p. 94). Nas relações de dominação, diálogo e amor estão ausentes. Diálogo é o encontro dos homens para Ser 55 De acordo com o método Paulo Freire, a alfabetização através de temáticas impostas gera um pensamento mágico que oculta a realidade e impede a leitura da vida. Assim, a educação libertadora deve partir do um universo vocabular do educando. “Na pesquisa do universo vocabular cada palavra geradora aparece dentro de frases, de falas das pessoas, cada palavra aponta para questões, para temas: temas geradores”.(BRANDÃO, 1991, p. 37).

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Mais (cf. ibid, p. 97), para construir sua autonomia. Para que a educação promova no educando a autonomia, é essencial que ela seja dialógica, pois assim há espaço para que o educando seja sujeito, para que ele mesmo assuma responsavelmente sua liberdade e, com a ajuda do educador, possa fazer-se em seu processo de formação.

4.6 – EDUCAR PARA TRANSFORMAR

Para Freire (2000a, p. 80), é uma contradição um ser consciente de seu

inacabamento não buscar o futuro com esperança, não sonhar com a transformação, enfim, não buscar a construção de um mundo onde todos possam realizar-se com autonomia. Cabe à educação problematizar o futuro para que a utopia56 de um mundo melhor não se perca. Dizer que a educação vai suprimir todas as injustiças, opressões, e assim mudar completamente a sociedade suprimindo todas heteronomias, é ingenuidade, da mesma forma que dizer que a educação não pode realizar mudança alguma. Temos que estar conscientes do nosso condicionamento, mas não somos determinados, há possibilidade da transformação. “A compreensão da história como possibilidade e não determinismo,..., seria ininteligível sem o sonho, assim como a concepção determinista se sente incompatível com ele e, por isso, o nega” (FREIRE, 1999, p. 92). Ao se reconhecer a possibilidade e manter vivo o sonho, o papel histórico da subjetividade, de transformar, recriar o mundo, adquire papel relevante. Como não estamos determinados, estamos abertos ao “inédito viável” (idem, p. 98). O poder de se autodeterminar é necessário para que o sujeito fuja do determinismo, esteja aberto ao inédito viável e, assim, possa ser autônomo.

Freire (ibid, p. 99) insiste no que ele chama de humanização como vocação ontológica do ser humano, ou ser mais. Essa “vocação” não é um a priori, mas é algo que vem sendo construído pelo homem ao longo da história. A vocação para ser mais é expressão da natureza humana que se constitui na História e precisa de condições concretas sem as quais será distorcida. “Esta vocação para ser mais que não se realiza na inexistência de ter, na indigência, demanda liberdade, possibilidade de decisão, de escolha, de autonomia” (FREIRE, 2003a, p.10). Ou seja, a indigência, a pobreza, a insuficiência de recursos materiais, limitam a possibilidade de decisão, limitam a liberdade, e assim, limitam a autonomia. Por esse motivo, uma educação que busca formar para a autonomia deve estar preocupada com a transformação dessas condições concretas que limitam a autonomia. Essa transformação tem caráter político, por isso a educação está vinculada indissociavelmente com a política.

Uma educação que vise formar para a autonomia deve encarar o futuro como problema e não como inexorabilidade, a História como possibilidade e não como determinação. O mundo não apenas é, ele está sendo, o papel dos homens no mundo é de quem constata e intervém. A constatação só faz sentido se eu não apenas me adaptar, mas tentar mudar, intervir na realidade. A conquista do poder de ser autônomo exige a transformação das condições

56 “Para mim o utópico não é irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por essa razão a utopia é também um compromisso histórico”.(FREIRE, 1980, p. 27). Segundo Mclaren (2006, p. 47), quando Freire fala em lutar para construir uma utopia, ele está falando de uma utopia concreta em oposição a uma utopia abstrata, uma utopia baseada no presente, sempre operando entre a denúncia de um presente que se torna cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado política, estética e eticamente.

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heterônomas que o limitam. Por isso, é preciso que a compreensão do futuro como problema, que a vocação para ser mais em processo de estar sendo, sejam fundamentos para a rebeldia de quem não aceita as injustiças do mundo. A autonomia encerra em si certa rebeldia, na medida que implica a não aceitação passiva e acrítica do mundo.

Para que as condições concretas que limitam a autonomia sejam transformadas, é preciso reinventar o mundo de hoje e a educação é indispensável nessa reinvenção. Essa reinvenção do mundo exige comprometimento. Da mesma forma que não é possível entrar na chuva sem se molhar, não é possível educar sem revelar a própria maneira de ser, de pensar politicamente57 (cf. FREIRE, 2000a, p. 108). Por isso a importância da coerência entre o que se diz e o que se faz. Freire (idem, p. 110) nos diz que o professor não pode ser um sujeito de omissão, mas de opções. Como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo, o que implica além do conhecimento dos conteúdos, um esforço de reprodução ou desmascaramento da ideologia dominante. Neutra em relação à ideologia dominante a educação não pode ser (cf. ibid, p. 111). Freire (ibid) destaca que os interesses dominantes procuram promover uma educação cuja prática é imobilizadora e ocultadora de verdades. Mas os fatalismos que procuram deixar as coisas como estão devem ser negados, eles ajudam a manter uma situação que é imoral e heterônoma. A prática educativa que propomos deve ser uma tomada de posição frente ao mundo no sentido de transformá-lo para que condições heterônomas sejam superadas, para que se estabeleçam relações e condições que possibilitem a autonomia.

57 Segundo Freire (2000a, p. 124) “É na diretividade da educação, esta vocação que ela tem, como ação especificamente humana, de ‘endereçar-se até sonhos, ideais, utopias e objetivos, que se acha o que venho chamando politicidade da educação”. Segundo Freire (idem) a raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade do ser humano, que se funda na natureza humana inacabada, da qual se tornou consciente. Ou seja, a mesma raiz que abre a possibilidade do homem ser autônomo, o torna um ser político. Como diz Gadotti (1981, p. 14), depois de Paulo Freire ninguém pode ignorar que a educação é sempre um ato político. Os que tentam provar o contrário, na verdade defendem uma política de despolitização.

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CAPÍTULO V – PENSAR A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA HOJE A PARTIR DAS CONFLUÊNCIAS E DISSONÂNCIAS ENTRE KANT E

FREIRE

Como vimos, Immanuel Kant e Paulo Freire, em suas respectivas épocas, formularam concepções peculiares de autonomia e, a partir disso, identificaram heteronomias contra as quais se opunham. Por meio da análise das confluências e dissonâncias das concepções de autonomia desses autores, de seus limites, e das perspectivas para que apontam, vamos procurar tematizar elementos para uma educação que vise formar para a autonomia hoje.

5.1 – IMMANUEL KANT E PAULO FREIRE: CONFLUÊNCIAS E DISSONÂNCIAS

Em suas obras, Paulo Freire não citou nenhum livro de Kant e também

não o citou como teórico que o tenha influenciado58. Freire anotou a compra de apenas uma obra de Kant, em 1942, Filosofia da história, mas ele lia em diversas bibliotecas e deixou de anotar os livros adquiridos a partir de 1955, de tal forma que não há como saber se ele leu algo mais de Kant, isso segundo Ana Maria Freire59.

Freire na obra Medo e ousadia (1987, p. 62s) fala de uma necessária iluminação sobre a realidade que deve ser feita em conjunto por professor e aluno para desocultar a obscuridade da realidade. Usa, portanto, a grande metáfora do iluminismo, que inclusive deu nome ao movimento filosófico da época de Kant. Mas na afirmação de Freire fica claro que o que promove a iluminação, e também o que promove a autonomia, não é a razão com seus atributos transcendentais a priori, como em Kant, e sim a ação e reflexão dialética sobre o mundo.

A relação que há em Freire entre autonomia e libertação já ocorria no iluminismo, no entanto, o educador brasileiro propõe a libertação em relação às opressões da realidade social injusta causada pelo sistema capitalista, já os iluministas propunham a libertação em relação às opressões causadas pela tradição, pela religião e pelo Antigo Regime. Tanto para os iluministas quanto para Freire, cabe à educação formar um sujeito crítico, que enquanto tal seja capaz de se libertar, se emancipar da condição de menoridade. Nesse sentido Paulo Freire é herdeiro do iluminismo60. No entanto, a concepção de homem de Freire, bem como a de Kant, toma distância da maior parte dos iluministas ao pensar um homem cuja autonomia não se dá apenas pelo progresso da 58 Na obra Pedagogia da esperança, Freire (1999, p. 20) cita alguns dos pensadores que o influenciaram: Marx, Lukács, Fromm, Gramsci, Fanon, Memmi, Sartre, Kosik, Agnes Heller, M. Ponty, Simone Weill, Arendt, Marcuse... 59 Ana Maria Freire é a segunda esposa, hoje viúva, de Paulo Freire. Em conversa por e-mail no dia 09/01/2006, após ser interrogada por mim respondeu: “Caro Vicente, realmente Paulo não citou Kant em nenhum de seus livros. Há apenas um livro de Kant assinalado/ comprado no caderno de anotações de meu marido e com toda certeza lido por ele: no ano de 1942, Filosofia da história. Veja bem, Paulo lia livros de várias Bibliotecas [do colégio de meu pai (Colégio Osvaldo Cruz), públicas e de amigos] do Recife e só assinalou suas compras até o ano de 1955. Portanto, não se pode assegurar que este tenha sido o único livro de Kant estudado por ele”. 60 A herança iluminista de Freire se dá também em grande parte pela influência de Karl Marx (1818-1883) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Segundo Rouanet (1987, p. 201) os marxistas possuem sua herança iluminista justificada por lutarem pela emancipação universal do gênero humano, indo além da emancipação parcial alcançada durante a Revolução Francesa. Segundo Prestes (1996, p. 25), as concepções de Kant, Hegel e Marx “reafirmam a educação como formadora de sujeitos racionais, capazes de ação intelectual e moral, com condições de construírem a si e ao mundo, mas revelam também já uma crítica ao próprio iluminismo”.

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razão teórica. Ainda, a herança iluminista de Freire se dá também pelos pressupostos filosóficos formulados por Kant e que estão presentes em suas obras, como a concepção de sujeito, de racionalidade e de dignidade humana, o que faz do educador brasileiro um herdeiro indireto de Kant. Freire diz se enquadrar em um ponto de vista pós-modernamente progressista (cf. FREIRE, 1999, p. 81), mas possui pressupostos filosóficos modernos, como os acima citados. Ainda, o intuito de formar sujeitos autônomos, característico de Kant, se mantém em Freire, mas reelaborado de acordo com o contexto e especificidade de seu pensamento.

Hoje sabemos que não podemos pensar uma sociedade e indivíduos que se fazem autonomamente a partir de uma racionalidade pura, e nem pensar uma autonomia absoluta que é garantida pela racionalidade. Freire sabe disso, mas também reconhece a importância da racionalidade ao se manifestar tantas vezes contra o irracionalismo. Também afirma que a educação deve ser usada com acento cada vez maior de racionalidade (cf. FREIRE, 1977, p. 90). O educador brasileiro usa a definição que Popper dá à racionalidade ou racionalismo, resgata o sentido socrático, segundo o qual racionalidade é a consciência das próprias limitações, a modéstia intelectual dos que sabem quantas vezes erram e o quanto dependem dos outros até para esse conhecimento (cf. idem). Ou seja, não é uma racionalidade auto-suficiente, é uma racionalidade que reconhece o “não saber socrático”, que se coloca em atitude de quem não sabe tudo e muito tem ainda a aprender. A proposta de educação para a autonomia de Freire não faz da racionalidade seu principal meio de realização, pois sabe de seus limites e de sua dupla face que possibilita tanto a libertação quanto a opressão. Para ele, a razão por si só não possibilita a autonomia, no entanto, ele reconhece a necessidade da racionalidade. A partir da análise da proposta freireana, defendemos que ela pressupõe uma razão no sentido dado por Kant. Os iluministas reduziam a razão ao seu sentido instrumental; a autonomia dependia do aumento de conhecimento, da razão científica. Kant mostra que a racionalidade humana não se reduz a isso, ela é “mais ampla”, e a autonomia não pode ser alcançada apenas pela razão instrumental. Freire é herdeiro dessa concepção de razão formulada por Kant.

Em Kant a educação que possibilita a autonomia é a educação racional do homem. A ação racional é o bem constitutivo, só ela tem dignidade. O homem não tem instinto e precisa se guiar pelos projetos de sua própria razão, a ação racionalmente dirigida permite ao homem ser construtor de si. A educação deve acostumar o homem a obedecer aos preceitos da razão para que ele possa ser autônomo. Rousseau já defendia que a razão deveria substituir a autoridade para que a criança aprendesse a raciocinar, e, assim, pudesse desenvolver opinião própria. Kant nos mostrou a necessidade de uma educação que forme para uma vida racional, de uma educação que possibilite aos sujeitos a construção de si, nisso ele possui importância atual. No entanto, esse empreendimento é possível hoje a partir de uma nova concepção de razão, que não a transcendental de Kant, e de uma nova concepção de sujeito. Nesse sentido, Freire apresenta avanços fundamentais por considerar o caráter essencialmente social da constituição do sujeito, e por pressupor uma razão que não é transcendental nos moldes kantianos61, é encarnada, histórica. 61 O problema é que o transcendental em Kant é atemporal e formal, por isso tem sido compulsoriamente criticado. Mas em Habermas, por exemplo, o questionamento transcendental não abole o transcendental, ao mesmo tempo critica e

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Kant possui um pensamento genuinamente moderno que, como tal, está incluso no que é chamado de filosofia do sujeito, ou seja, seu princípio é a subjetividade. Vincenti (1994, p. 7) faz uma explicação etimológica da palavra sujeito. A etimologia latina sub-jectum significa estar submetido, como por exemplo, um súdito estar submetido a um monarca. Mas o significado que esse termo possui na filosofia moderna “adota o contrapé dessa significação” (idem), e em vez de uma subordinação, passividade, acentua o seu elemento ativo, a atividade de sustentação. “O sujeito torna-se, então, aquele que se sustenta ele mesmo na existência. Existir como sujeito significa, assim, que não preciso referir-me a um outro ser, a uma outra existência para definir-me, para compreender-me, para justificar o que eu sou” (ibid, p. 8). Só é verdadeiramente eu mesmo o que em mim depender de mim, só sou autônomo se me guiar por minha razão, nesse sentido, autonomia está vinculada com autenticidade. Vincenti (ibid, p. 10) propõe que é com o sujeito kantiano que a primeira real filosofia do sujeito se impõe, há o surgimento de uma responsabilidade plena e total do sujeito, não apenas em relação ao conhecimento, mas também em relação ao mundo. O sujeito moral passa a ser fundamento também do saber. “Tudo o que o sujeito é, tudo o que o sujeito constitui e tudo o que ele faz depende do próprio sujeito” (ibid). Nesse sentido, pode-se dizer que a concepção de sujeito dos iluministas, e também de Kant, é monológica62, na medida em que não faz referência a uma segunda pessoa.

Defendemos que o pensamento freireano possui como pressuposto a concepção de sujeito formulado por Kant, na medida em que ambos pensam o homem como sujeito que pela sua liberdade constrói o mundo e a si. Nos textos de Freire perpassa a idéia de que a educação deve tornar o educando sujeito, assim ele será autônomo. Mas, a diferença em relação a Kant é que ele aborda o sujeito considerando seu caráter essencialmente dialógico, a intersubjetividade possui papel estruturante. Pela problematização e decodificação crítica do mundo, o homem se descobre como instaurador do mundo de sua experiência. Segundo Fiori (1983, p. 9), a consciência do mundo e de si crescem juntas e em razão direta, por isso ninguém se conscientiza separadamente dos demais. “As consciências não são comunicantes porque se comunicam: mas comunicam-se porque comunicantes. A intersubjetivação das consciências é tão originária quanto a mundaneidade ou sua subjetividade” (idem, p.10). Na intersubjetivação as consciências também se põem como consciência de si e consciência do outro. O monólogo é a negação do homem, é o fechamento da consciência, uma vez que a consciência é aberta (cf. ibid). O diálogo é o movimento constitutivo da consciência, que é consciência do mundo que se busca a si mesma num mundo que é comum. Como o mundo é mundo das consciências intersubjetivas, a sua elaboração é colaboração. “Em diálogo circular intersubjetivando-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora” (ibid, p. 12). Freire (1983, p. 43) diz que o objetivo da pedagogia do oprimido é resgatar a intersubjetividade. Isso porque a intersubjetividade é constitutiva, o sujeito não existe aprioristicamente, ele forma-se com o outro. Por isso Freire ilumina o conceito de autonomia especialmente quanto aos aspectos sociais nele envolvidos. resgata, pensando-o como histórico e temporal, que por isso é chamado de quase-transcendental: o mundo da vida intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos estão. 62 A concepção de sujeito de Kant permanece monológica, mas no pensamento do filósofo, já está a “semente” de uma concepção dialógica de sujeito. Embora a intersubjetividade não tenha sido tematizada, o imperativo categórico enquanto universal, pressupõe o outro e abre a possibilidade para uma intersubjetividade espontânea.

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Tanto para Freire quanto para Kant, o homem é construtor de si. A diferença é que para Kant o homem retira de si, da própria razão, os meios para se fazer homem, já em Freire é a ação dialógica feita no mundo com os outros que possibilita a própria construção. Há em Kant intersubjetividade na medida em que o sujeito pensa o universal, o imperativo categórico busca a intersubjetividade e, ao agir por dever já estou com os outros. Assim, a partir do pensamento de Kant, o homem autônomo ao obedecer aos preceitos da razão universal estaria sendo espontaneamente intersubjetivo. Mas nesse caso, a intersubjetividade não é constitutiva do sujeito, ela é atingida pelo sujeito enquanto participante da universalidade. Em Freire fazer a si implica em fazer-se intersubjetivamente. “O sujeito, em todas as suas dimensões, constrói-se na relação coletiva, sem nada subtrair da dimensão individual. Ao contrário, o coletivo realiza o individual assim como o individual realiza o coletivo” (BECKER, 1998, p. 53). A proposta freireana enfatiza a constituição social do sujeito, com isso, há uma superação (no sentido clássico da Aufhebung hegeliana)63 em relação à idéia de sujeito de Kant, e, diferentemente de certas correntes pós-modernas, preserva a idéia de sujeito, havendo a possibilidade da autonomia.

Inspirados em Freire e Kant, podemos pensar a educação para a autonomia como processo de formação em que o homem faz a si próprio de acordo com projetos que estabelece racional e livremente para si. O homem só pode ser livre, autônomo, se formado, espontaneamente não o será. A educação entendida como processo de formação é indispensável para um homem conquistar sua autonomia. Podemos dizer que a possibilidade de formação do sujeito constitui o núcleo do pensamento educacional de ambos. Isso afirma a importância de que todos tenham acesso à educação humanizante e de qualidade.

Kant discriminou três faculdades na mente humana: conhecer (entendimento), querer (razão que orienta a vontade) e julgar (julga o verdadeiro, o útil e o belo). Por isso escreveu as três críticas: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica da faculdade do juízo. Subjacente a cada uma das três instâncias encontra-se um princípio a priori, assim o entendimento não teria condições de elaborar conceitos se não partisse do princípio a priori da causalidade, o juízo não teria condições de julgar se não partissem da finalidade e a razão não poderia exprimir a sua vontade se não aceitasse a idéia de “último fim” (cf. FREITAG, 1991 p. 46-47). Para Piaget essas faculdades não são inatas, elas resultam de um processo de construção e reconstrução permanente, decorrente da ação e interação do indivíduo com o mundo (cf. idem, p. 50). Em Piaget, a autonomia não é pressuposto da razão prática que tem como princípio o imperativo categórico, mas a autonomia é o resultado de um processo de desenvolvimento. Quanto a esse aspecto Freire se diferencia de Kant e se aproxima de Piaget, pois não pensa nenhuma faculdade a priori, todas são constituídas nos processos históricos de interação, processos que são intersubjetivos e elaborados em colaboração pelos homens. Por isso, Freire enfatiza os aspectos históricos, sociais, que possibilitam ou limitam a autonomia.

63 A concepção de sujeito freireana, ao mesmo tempo, nega a concepção de sujeito kantiana e, reassentando-a em novas bases a pressupõe. “Aufhebung é semelhante à negação determinada que tem um resultado positivo. O que resulta da suprassunção de algo, por exemplo, o todo em que ele e seu oposto sobrevivem como momentos, é invariavelmente superior ao item, ou à verdade do item suprassumido”.(INWOOD, 1997, p. 303).

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Ciente da distância que há entre teoria e prática no domínio pedagógico, na obra Sobre a Pedagogia, Kant preocupa-se menos em estabelecer um sistema de educação a priori, mas em unir as lições da experiência com os projetos da razão, pensamento e experiência se enlaçam, se esclarecem mutuamente. Em Kant, uma educação que vise formar para a autonomia deve envolver a experiência concreta aliada aos projetos da razão. Por isso não pensa uma escola utópica, mas racional (cf. PHILONENKO, 1966, p. 53), embora haja em seu pensamento educacional um aspecto utópico, a orientação em vista ao ideal de humanidade64. A metafísica intervém na pedagogia, mas não para propor caminhos abstratos e sim para reconduzir ao concreto. Mas a mediação entre teoria e prática feita pelo juízo, nesse caso pelo juízo reflexivo do trabalho, permanece problemática, pois fica apenas como exigência do dever, havendo primazia do dever. Kant lança bases para a compreensão do projeto moderno como projeto educativo do esclarecimento, mas ele mantém o dualismo sujeito-objeto, natureza e liberdade, ser e dever ser, determinismo metódico e indeterminismo prático, separando as esferas da cultura nos domínios da ciência, da moral e da arte (cf. MARTINI, 1996, p. 20).

Já em Freire não há essa separação. A educação, o processo de aprendizagem e a própria relação do homem com o mundo é visto como práxis. Na visão freireana a educação e as relações humanas devem ser dialógicas, o que permite a superação das contradições. O diálogo é constitutivo do sujeito que se faz intersubjetivamente. A educação que busca promover a autonomia do sujeito deve ser dialógica, para que o próprio sujeito refaça o mundo e se faça pela ação e reflexão.

Ambos pensam uma educação ativa, repudiam o verbalismo, mas não se igualam a Rousseau que pensou uma educação totalmente fundada na experiência e que negava qualquer educação formal. Kant pensa uma educação baseada na experiência, mas a concebe em referência ao ideal de humanidade, segundo o qual a educação é experiência de toda a humanidade. Já Freire enfatiza a educação que leva em conta a experiência concreta do aluno para que ele possa aprender o mundo, fazer-se consciente de sua realidade e transformá-la. A passividade é uma forma de heteronomia, a autonomia supõe a atividade humana no sentido de ampliar a compreensão do mundo.

Também aparece como ponto em comum entre ambos o repúdio à memorização mecânica, ela nega a condição humana de ser construtor de si, nega o pensar por si mesmo, essencial para a autonomia, nega a curiosidade humana que sempre está aberta a aprender. Tal educação “formará” seres humanos dependentes e acríticos, incapazes de assumir seu papel de sujeitos na história. Não se trata de banir a memorização, pois ela é necessária, se trata de atribuir-lhe uma importância auxiliar, já que o objetivo da educação que pensamos é formar homens que sejam autônomos e não autômatos.

Tanto em Freire quanto em Kant, o conhecimento técnico deve ser ensinado com vistas à promoção do ser humano, com vistas à promoção da autonomia. O conhecimento é importante para que se tenham meios para realizar os projetos estabelecidos para si, portanto, o conhecimento pode65 64 Segundo Martini (1993, p. 110), Kant defende a importância do ideal de humanidade como um princípio regulador. Para Kant (1996b, p. 22-23) “... não se devem educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da sua inteira destinação”. 65 Embora o conhecimento possa alargar as condições para a autonomia, autonomia e conhecimento têm uma relação contingente, pois o conhecimento também pode ser usado para oprimir e gerar heteronomias.

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proporcionar autonomia. Mas a educação não deve ser apenas treinamento, pois assim sendo, o homem dificilmente terá disposição para elaborar os próprios projetos. É preciso educar para a liberdade para que o ser humano possa propor o que há de propor livremente. É preciso educar para que o ser humano seja capaz de exercer racionalmente sua liberdade. Por isso educação é formação e muito mais que treinamento, envolve ética, estética, política, deve envolver o ser humano em sua totalidade.

Kant (2005c, p. 63-64) em Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento [Aufklärung]? afirma que o homem é culpado pela própria menoridade se a causa dela não for a falta de entendimento, e sim, a falta de coragem, a preguiça, a covardia. Ele usa a expressão sapere aude, ouse saber, tenha a coragem de saber, a qual já havia sido usada por Horácio. Há nesse texto uma recusa ao conformismo, um clamor para que o homem abandone sua cômoda situação de menor, tenha coragem de se responsabilizar por sua própria história, o que é condição para o esclarecimento e para a maioridade. A proposta é que o homem saia do estado de menoridade culpada. A menoridade é um estado de heteronomia, já que é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a direção de outro. Kant percebeu que é mais cômodo ser menor, pensar por si implica na coragem de superar o medo de criar algo por si. Em Freire, como já vimos, a alienação (ser para outro) é uma das principais formas de heteronomia. Ele (1981, p. 25) identificou que a alienação funciona como um inibidor que gera timidez, insegurança e um medo da aventura de criar. A alienação provoca o medo da liberdade, que na verdade é o medo de se ver livre da consciência hospedeira que o aliena. Nesse sentido, é necessária coragem porque a superação da alienação, a construção da autonomia envolve riscos. Por isso a esperança é tão necessária, é ela que estimula a coragem a superar o medo. No entanto, é preciso esclarecer que apenas a coragem não consegue tudo transformar, embora ela seja necessária para que o sujeito se comprometa, a transformação de uma situação sócio-histórica de heteronomia depende da transformação da totalidade, dos meios pelos quais a sociedade produz seus modos de vida. Freire concebe a transformação de forma dialética, os indivíduos interagem com a totalidade agindo reciprocamente um sobre o outro, por isso há um espaço de ação subjetiva que é condicionado, mas não determinado.

É preciso coragem para superar a menoridade, para superar o medo da liberdade, para assumir o próprio caráter inconcluso humano e, a partir daí, produzir um sentido próprio. Ambos os autores partem do pressuposto que o ser humano se faz, diferentemente dos animais que possuem instintos. Os homens, como diz Freire, precisam produzir a própria existência. É devido a essa incompletude que os homens podem ser formados pela educação, e é também devido a ela que os homens podem ser livres e autônomos.

5.2 – FORMAÇÃO POLÍTICA E A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA

Quando falamos em educação para a autonomia é essencial que

falemos em política. Autonomia não é auto-suficiência, ela acontece na ação no mundo e relacionamentos com os outros sujeitos, portanto, envolve a dimensão política. Autonomia também implica na realização dos próprios projetos pelos quais o ser humano se faz a si e ao mundo, numa ação criadora e recriadora. É

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por meio da ação política que condições sociais mais favoráveis ou desfavoráveis para a realização da autonomia são estabelecidas.

De acordo com Philonenko (1966, p. 29-30), para Kant, em certo sentido, a educação é indissociável da política66, na medida em que é o mais poderoso meio de ação na História, é reflexão concreta, atual sobre a experiência da humanidade que é transmitida de geração em geração e permite a realização do ideal de humanidade. Kant (1989, p. 33) defendeu que a constituição de um Estado deveria ser instituída segundo os princípios da liberdade dos membros da sociedade (como homens), da dependência de todos a uma legislação comum (como súditos), da igualdade dos homens (como cidadãos). O respeito à dignidade e à liberdade são necessários para a autonomia. Kant denunciou, já em seu tempo, governantes que em vez de promover uma educação como formação, que tornasse o homem autônomo, a reduziam à formação técnica tendo em vista os próprios interesses. “No máximo desejam que eles tenham um certo aumento da habilidade, mas unicamente com a finalidade de poder aproveitar-se dos próprios súditos como instrumentos mais apropriados aos seus desígnios” (KANT, 1996b, p. 26). Essa educação que hoje chamamos de tecnicista impede a realização do “estado futuro melhor” da humanidade e empobrece o homem pois o torna um autômato.

Kant mostrou-se avesso em seu tempo à dominação de caráter religioso, político ou civil, e fundamentou tal aversão à dominação no conceito de dignidade humana: o sujeito racional é digno por si mesmo, não pode jamais ser usado como meio, o sujeito racional é autônomo. A concepção de dignidade humana deixada por Kant é o chão do qual brota o pensamento político-humanista-pedagógico de Paulo Freire. No entanto, destacamos que quanto à educação política, há muita diferença entre ambos.

Para Freire (2000b, p. 43), uma das tarefas primordiais da pedagogia crítica radical libertadora é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta. A realidade injusta oprime, desumaniza, é fonte de heteronomia e deve ser superada. Para tal, a educação deve levar em conta a vida como um todo, nos seus aspectos éticos, estéticos, sociais, etc, o que lhe confere caráter radicalmente político. “Freire pensou a educação como um fazer político que transcende a sala de aula e se projeta para os grandes problemas vividos pela humanidade, sobretudo os problemas gerados pelas diferentes formas de opressões” (BECKER, 1998, p. 48). Em Freire processo pedagógico é fundamentalmente processo político, tendo em vista a impossibilidade da neutralidade. Também o conhecimento não é neutro, inocente, ele não está imune a ideologias e pode transmitir heteronomias, por isso é necessário criticidade. Essa suspeita sobre a razão teórica Kant não havia lançado. Ainda, Freire dá importância central para a formação política por considerar o caráter social da formação da consciência, o que não estava presente na obra de Kant.

A pedagogia freireana traz consigo a utopia de construir e aperfeiçoar a democracia. Sua concepção de democracia é de um Estado que se recuse a posições autoritárias e licenciosas respeitando realmente a liberdade dos cidadãos, não abdicando de seu papel regulador das relações sociais, portanto, diferente do Estado dito liberal (cf. FREIRE, 2000b, p. 48). Ele recusa a 66 Philonenko (1966, p. 30) afirma que a idéia da indissociabilidade entre educação e política presente na obra Sobre a Pedagogia de Kant é a idéia-força que prepara o audacioso pensamento de Fichte nos Discursos à nação alemã.

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democracia fundada na ética do mercado, ética que é norteada pelo lucro e nega a própria democracia (cf. idem, p. 49). O neoliberalismo globalizante é uma expressão pós-moderna de autoritarismo, em que a unilateralidade do sistema financeiro dita o destino dos povos. Também em função disso é que milhões de pessoas no Brasil permanecem sem as mínimas condições de viverem dignamente e a autonomia é algo tão difícil de ser conquistado. Por isso a democracia que defendemos e que possibilita autonomia deve estar baseada não apenas na igualdade jurídica, mas também na igualdade social.

A formação da vontade dos cidadãos é fundamental para uma democracia verdadeira. A democracia repousa sobre a formação da vontade de cada indivíduo, a escolha dos representantes supõe que cada indivíduo seja capaz de fazer uso de seu próprio entendimento, que cada um seja capaz de uma decisão consciente e autônoma. A democracia supõe que seus membros possam ser capazes de tomar decisões numa condição de autodeterminação e autonomia. Por isso, a democracia é uma forma de organização política que respeita a dignidade e autonomia dos sujeitos. Mas é claro que para tal, as condições de heteronomia como opressão e condições econômicas de miséria devem ser superadas para que realmente haja a possibilidade de autodeterminação.

Defendemos que a educação que busca formar para a autonomia deve ser democrática, mas democracia orientada pelos princípios da razão. As relações vividas na escola devem ser momentos de aprendizagem da democracia, devem ser momentos de exercício racional e responsável da liberdade, a práxis educativa deve ser conscientizadora para que possam ser construídos espaços sociais mais democráticos e justos. Numa sociedade mais justa, em que todos tenham igualdade de acesso aos bens culturais, bens materiais, às oportunidades, etc, haverá condições para que os cidadãos sejam autônomos. Assim, para além do individualismo, poderemos construir um novo sentido, o sentido de um mundo feito em colaboração, em comunidade, em que cada um possa ser autêntico.

5.3 – FORMAÇÃO ÉTICA E A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA

Freire e Kant são contrários à educação que se restringe ao treinamento, eles entendem educação como processo de formação da totalidade do humano. Por isso, para ambos, um dos elementos imprescindíveis na educação é a formação ética67. Essa formação é indispensável para que as pessoas respeitem sua própria dignidade, a dignidade dos demais e sejam autênticos. A autonomia pressupõe a dignidade e autenticidade humana. Em consonância com isso, apontamos a formação da vontade como uma questão importantíssima para a educação que queira formar para a autonomia hoje, tendo em vista a freqüente estetização da vida, que promove o isolamento e a massificação.

Gadotti (1995) afirma que a temática da formação da vontade ou formação do caráter foi substituída por uma nova roupagem, a da opção. Isso porque a temática da formação da vontade é um tema central na pedagogia tradicional, e por isso que alguns pedagogos progressistas lhe deram nova

67 Segundo Hermann (2005, p. 11), a ética interpreta, discute e problematiza os valores morais e a fundamentação do agir moral. “De modo amplo, na tradição filosófica ocidental, a ética é a busca de uma compreensão racional dos princípios que orientam o agir humano”.(idem).

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roupagem. Freire não usa esse termo, aberta e claramente, para abordar a temática, a não ser na obra Pedagogia da indignação, publicada postumamente por sua esposa Ana Maria Araújo Freire a partir dos escritos que estavam sendo feitos quando da morte do educador em 1997.

Segundo Freire (2000b, p. 34), em discursos lúcidos e em práticas democráticas, a vontade só se autentica na ação de sujeitos que assumem seus limites. A vontade ilimitada é despótica, negadora das outras vontades, é a vontade ilícita dos “donos do mundo”, é vontade egoísta. Nenhuma educação que pretenda estar a serviço da boniteza da presença humana no mundo, a serviço da rigorosidade ética, do respeito às diferenças, da justiça, pode-se realizar ausente da dramática relação entre autoridade e liberdade (cf. idem). Por isso, a liberdade que vive plenamente suas possibilidades é aquela que aprende a constituir vivencialmente a autoridade interna pela introjeção da externa. Mas os limites devem ter uma assunção lúcida, ética, não pode ser uma obediência medrosa e cega (cf. ibid, p. 35). A liberdade deve ser exercitada no sentido da gestação da autonomia, para que os educandos vão se tornando “seres para si”.

Freire (ibid, p. 47) reconhece importância na vontade compondo um tecido complexo com a resistência, com a rebeldia na confrontação ou na luta contra o inimigo que oprime, seja ele um vício ou a exploração capitalista. Tanto para um oprimido quanto para um subjugado pelas drogas; falta amanhã, falta esperança. A superação dessas situações passa pelo fortalecimento da vontade. Freire (ibid, p. 46) cita como exemplo a sua experiência pessoal de decisão e fortalecimento da própria vontade para largar o vício de fumar cigarros. A educação da vontade é necessária para se fazer livre da heteronomia da escravidão dos próprios desejos e da vontade ilícita do outro que procura oprimir.

Em Kant a educação da vontade é central, pois é a autonomia da vontade (razão prática), vontade guiada pela razão, livre de coação externa e dos impulsos, que garante a autonomia dos sujeitos. Por isso a educação da vontade deve começar desde muito cedo. A disciplina é necessária para que a vontade não seja corrompida, para que a animalidade seja coagida a fim de que a razão guie o homem. Vontade autônoma é aquela guiada pelos princípios da razão, e o princípio da razão prática que garante a autonomia da vontade é o imperativo categórico. Assim, a liberdade está em poder dar a si a própria lei, que é lei moral e determina que o sujeito haja por dever. No pensamento kantiano, o que garante a dignidade e a autonomia é a exigência da universalidade, e não o desenvolvimento da racionalidade instrumental, como pensavam os iluministas. Segundo Caygill (2000, p.43), essa purificação que Kant faz da vontade, eximindo-a da influência de qualquer princípio ou objeto heterônomo, foi sistematicamente criticada desde Hegel, em particular por Nietzsche e Scheler, na melhor das hipóteses como vazia, formalista e irrelevante, e na pior como tirânica. Entendemos que não é possível formar para a autonomia sem uma educação da vontade. Essa contribuição de Kant continua atual. No entanto, não é mais possível pensar a vontade guiada infalivelmente pelo imperativo categórico, mas é possível pensar a educação de uma vontade que seja guiada por princípios racionais desde que o entendimento de razão seja de uma razão que não é transcendental nos moldes kantianos. Por isso, não pensamos a educação da vontade como subordinação da vontade à moralidade. Pensamos uma educação da vontade

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no sentido de torná-la capaz de assumir seus limites e sua condição humana eticamente. Dessa forma, pensamos uma vontade guiada racional e esteticamente, para que possa ser uma vontade autônoma e ética.

Como a formação é imprescindível para que o homem seja livre, a educação da vontade é necessária para a promoção da autonomia. A auto-responsabilização requer a educação da vontade. Em tempos em que se está optando por vigiar em vez de formar, propomos uma aposta no ser humano, em sua possibilidade de ser autônomo e auto-responsabilizar-se. Propomos uma valorização da educação da vontade como uma das coisas necessárias para uma educação democrática, para uma educação em que os sujeitos possam fazerem-se com autonomia e reconheçam a dos demais como legítima.

5.4 – FORMAÇÃO ESTÉTICA E A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA

Na Crítica da razão pura, Kant ocupou-se da razão teórica e conclui que o conhecimento humano é incapaz de ultrapassar o mundo sensível, o mundo dos fenômenos. Na Crítica da razão prática tratou da liberdade e concluiu que ela exige a suposição de um mundo inteligível. Promove assim a ruptura entre mundo sensível e mundo inteligível, entre fenômeno e noúmeno. Na Crítica da faculdade do juízo ele se propõe a tarefa de tentar uma mediação entre os dois mundos, o que faz por meio do juízo teleológico e juízo estético. Mas segundo críticos de Kant como Schiller, Hegel, Derrida, Lyotard, o uso do quadro de juízos para descrever a experiência estética foi pouco judiciosa, a experiência estética não pode estar contida numa estrutura lógica tomada da filosofia teórica (cf. CAYGILL, 2000, p. 131). Portanto permanece uma cisão entre matéria e forma, em que a felicidade e o prazer são subjugados à forma do dever. Por isso, hoje devemos definir o indivíduo autônomo não como aquele que se determina apenas pela razão, mas como aquele que se determina pela razão e pelas tendências que concordam com ela (cf. JACOB apud LALANDE, 1999, p. 115). A busca da felicidade, a experiência do belo, vividos de forma a concordar com a razão e não subjugados a ela, representam vivências de autonomia.

Embora Kant (1996b, p. 21) tenha se referido à educação como uma arte, a educação estética, em suas obras, não é devidamente acionada. Seu “idealismo” concebe a educação como arte da humanidade a ser aperfeiçoada por várias gerações e na prática educativa a subordinação ao dever, ao formalismo do imperativo categórico, não deixa o espaço devido para a ação estética. No entanto, é essencial destacarmos que Kant buscou resgatar a questão estética na Crítica da faculdade do juízo, mas esse empreendimento permaneceu inacabado.

Schiller68 buscou completar o empreendimento iniciado e não terminado por Kant, que deduzia o juízo do gosto a partir do jogo subjetivo entre imaginação e entendimento69. Schiller tentou dar ao juízo do gosto uma 68 Abordamos Schiller ao tratarmos da formação estética por considerarmos ser ele um continuador da obra de Kant. Segundo Suzuki (1989, p. 12), Schiller propõe-se como tarefa completar o que Kant começou com a Crítica da faculdade do juízo. Tal obra tem importância “propedêutica”, Schiller busca os resultados que já despontavam em seu horizonte. 69 Para Kant, há no homem prazer quando tem experiência de um objeto que responde exatamente ao fim para o qual é feito, desprazer em caso contrário, é o prazer da perfeição e o desprazer da imperfeição. (cf. BRÉHIER, sd, p. 212) “No prazer, as faculdades em jogo são: a imaginação, que esquematiza o objeto, conforme o conceito, e o entendimento, que proporciona o conceito segundo o qual se julga, e o juízo é a união entre o esquema e o

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pretensão de validade universal determinada na própria razão, por isso seu grande empenho em mostrar como acontece a amarração do juízo estético aos princípios da razão (cf. SUZUKI, 1989, p. 13). Para tal, procura mostrar que o belo não é um conceito da experiência, mas um imperativo, e que deve ser encontrado não na ordem do ser e sim do dever ser, portanto, utiliza-se do mesmo procedimento utilizado por Kant na filosofia prática, donde formula o imperativo estético: age esteticamente. Mas Schiller vai evitar o formalismo kantiano, tendo em vista a impossibilidade de uma vontade santa que obedeça incondicionalmente a razão em detrimento da inclinação sensível. Ele vai pensar o impulso lúdico alcançado pela educação estética, e que possibilita razão e sensibilidade atuarem juntas sem que uma sobreponha a outra. “Através do belo, o homem é como que recriado em todas as suas potencialidades e recupera sua liberdade tanto em face das determinações do sentido quanto em face das determinações da razão” (idem, p. 16-17). Essa liberdade estética não deve ser confundida com a liberdade ou autonomia, encontrada na filosofia prática de Kant.

No impulso lúdico o homem não desfruta de uma liberdade moral stricto sensu (cf. ibid, p. 17), e sim uma liberdade em meio ao mundo sensível, por isso, ao contemplar o belo o homem projeta a própria liberdade ao objeto, a razão empresta sua autonomia ao mundo sensível, por isso o belo é a liberdade do fenômeno. Assim o homem educado esteticamente é capaz de enobrecer também o universo da matéria, o que modifica a proposição kantiana, segundo a qual o homem é fim em si mesmo e todo o demais é puro meio. Não apenas o ente racional, mas tudo que está a sua volta é dotado de autonomia (cf. ibid, p. 18).

Para Kant, a autonomia se dá na medida em que a razão determina, infalivelmente, a vontade. A vontade é uma faculdade de escolher aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como necessário, como bom. Schiller, em vez da avaliação moral unilateral, proporá uma faculdade de escolher que não identifique razão e vontade, e que leve em conta o ser humano plenamente, não apenas sua razão. Não propõe a supressão dos impulsos da natureza pela razão. “O homem cultivado faz da natureza uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe rédeas a seu arbítrio” (SCHILLER, 1989, p. 33).

Schiller identifica a presença de dois impulsos essenciais no ser humano. “Somos instados ao cumprimento dessa dupla tarefa (dar realidade ao necessário em nós e submeter a realidade fora de nós à lei da necessidade) por duas forças opostas, que nos impulsionam para a realização de seus objetivos e que poderíamos chamar convenientemente de impulsos” (idem, p. 67). O primeiro é o impulso sensível70 e o segundo é o impulso formal71. Os dois impulsos parecem muito opostos já que um exige modificação e o outro imutabilidade. No entanto, o impulso sensível não exige que a modificação se estenda à pessoa e seu âmbito, e o impulso formal não reclama que haja

conceito”.(idem). O jogo livre da imaginação concordando espontaneamente com as condições do entendimento produz um prazer desinteressado, já que possui uma finalidade sem fim, um prazer de valor universal, pois deriva das condições a priori da faculdade de julgar. (cf. ibid). 70 “O primeiro destes impulsos, que chamarei sensível, parte da existência física do homem ou de sua natureza sensível, ocupando-se em submetê-lo às limitações do tempo e em torná-lo matéria: não lhe dar matéria, pois disso já faria parte uma atividade livre da pessoa que a recebe e a distingue daquilo que perdura” (SCHILLER, 1989, p. 67). 71 “O segundo impulso, que pode ser chamado de impulso formal, parte da existência absoluta do homem ou de sua natureza racional, e está empenhado em pô-lo em liberdade, levar harmonia à multiplicidade dos fenômenos e afirmar sua pessoa em detrimento de toda alternância do estado”.(idem, p. 68).

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unidade de sensações (cf. ibid, p.71). É tarefa da cultura vigiar e assegurar os limites de cada impulso, impedindo que um subordine incondicionalmente o outro. Ambos têm limites, o impulso sensível tem que ser contido pela personalidade para não penetrar no âmbito da legislação, e o impulso formal deve ser contido pela receptividade ou pela natureza para não penetrar no âmbito da sensibilidade (cf. ibid, p. 75). Ambos possuem uma ação recíproca, a eficácia de cada um, ao mesmo tempo, funda e limita o outro. O impulso sensível exclui a liberdade e o impulso moral exclui a dependência e a passividade. “Os dois impulsos impõe necessidade à mente: aquele por leis da natureza, este por leis da razão. O impulso lúdico, entretanto, em que os dois atuam juntos, imporá necessidade ao espírito física e moralmente a um só tempo” (ibid, p. 78). O objetivo do impulso sensível é a vida, o objetivo do impulso formal é a forma, o objetivo do impulso lúdico é a forma viva, “um conceito que serve para designar todas qualidades estéticas dos fenômenos, tudo que em resumo entendemos no sentido mais amplo de beleza” (ibid, p. 81). O Ideal do belo deve ser procurado na ligação e no equilíbrio mais perfeito entre realidade e forma, embora ele não possa jamais ser plenamente realizado.

Ambos impulsos fundamentais tão logo se desenvolvem, empenham-se por sua satisfação, e como os dois se esforçam em objetivos opostos, se suprimem reciprocamente, e a vontade afirma sua perfeita liberdade entre ambos (cf. ibid, p. 102). Daí o homem passa a ser caracterizado por sua vontade e, a origem da liberdade está nessa natureza mista humana. O homem deve substituir a determinação sensível e formal para percorrer o estado de determinabilidade. O estado de determinabilidade real e ativa é o estético. E é esse estado de determinabilidade que possibilita, para Schiller, a autonomia.

Esta disposição intermediária, em que a mente não

é constrangida nem física nem moralmente, embora seja ativa dos dois modos, merece o privilégio de ser chamada de uma disposição livre, e se chamamos físico o estado de determinação sensível, e lógico e moral o de determinação racional, devemos chamar estético o estado de determinabilidade real e ativa (ibid, p. 106-107).

A disposição estética confere ao homem a liberdade que ele não possui

no caso de coação unilateral, ou da natureza na sensação ou da legislação da razão, possibilitando a autonomia. Pela cultura estética permanecem indeterminados o valor e a dignidade pessoal de um homem, à medida que este só pode depender dele mesmo, o que torna possível fazer de si mesmo o que quiser (cf. ibid, p. 110). Uma das tarefas principais da cultura é submeter o homem à forma em sua vida meramente física para torná-lo estético, pois o estado moral só pode nascer do estético e nunca do físico (cf. ibid, p. 119). Para tornar o homem verdadeiramente racional é preciso antes torná-lo estético. O impulso estético ergue um terceiro reino, alegre, de jogo e aparência, libertando o homem da coação física e moral. A educação estética é a educação para a liberdade, para a autonomia, porque beleza é liberdade. Então, para Schiller a formação estética está de mãos dadas à formação moral, na medida em que a primeira engloba a segunda. Por isso, o pleno desenvolvimento do impulso lúdico, o cumprimento do imperativo estético que

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é “age esteticamente”, abre a possibilidade de ser espontaneamente moral e também autônomo.

Para Habermas (2002, p. 69), a utopia estética de Schiller concebeu a arte como a personificação genuína de uma razão comunicativa72. Apresenta a realização da razão como uma “ressurreição do sentido comunitário destruído” (idem, p. 68), ela não pode resultar somente da natureza ou da liberdade, mas apenas de um processo de formação que põe fim ao conflito entre ambas. O mediador desse processo de formação é a arte, pois provoca uma mediação intermediária em que a mente não é constrangida nem física nem moralmente e se faz ativa dos dois modos. Ainda para Habermas (1993, p. 296), Kant confundiu a vontade autônoma com a vontade onipotente, para poder pensá-la como vontade pura e soberana, ele teve de transpô-la ao reino do inteligível, assim, “apenas a vontade conduzida pelo conhecimento moral e inteiramente racional pode chamar-se autônoma” (idem). A concepção de autonomia de Schiller supera esse formalismo kantiano e procura conciliar o conceito de autonomia com o homem concreto. Para Hermann (2005, p. 71-72), a principal importância da teoria de Schiller, são as possibilidades nela implícitas, o filósofo não pretende uma mera estetização da vida, por isso se afasta do isolamento e massificação que assistimos hoje.

Paulo Freire também mantém a unidade entre ética e estética, para ele decência e boniteza andam de mãos dadas (cf. FREIRE, 2000a, p. 36). Como o ser humano cria a sua existência e a si próprio por meio da educação entendida como processo contínuo, a obra de sua criação pode enfear ou embelezar o mundo, daí a impossibilidade de nos eximirmos da ética, fazemos nosso mundo a partir da nossa liberdade (cf. idem, p. 57). Aqui Freire mostra que existe uma ligação entre ética e estética, a obra humana embeleza ou enfeia o mundo, responsabilidade da qual não podemos nos eximir, portanto, a ação humana é estética e implica em responsabilidade ética. Isso lhe dá certa proximidade a Schiller. Outra semelhança entre a concepção de autonomia de Freire e Schiller, é que eles pensam o homem enquanto totalidade, superando a cisão típica do pensamento kantiano entre homem racional e homem irracional.

O processo formativo é um processo artístico, é por ele que os seres humanos fazem a si e ao mundo como obra de arte. A formação estética que propomos como caminho para a autonomia é formação que engloba a totalidade do ser humano e requer a formação da sensibilidade aliada à formação moral, a fim de que haja conciliação da felicidade com uma vida auto-responsável.

72 A razão comunicativa pensada por Habermas, é intersubjetiva e interativa, é uma razão que busca o entendimento para abrir um campo de convívio e de trabalho em que o entendimento seja possível.

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CONCLUSÃO

A temática da autonomia, central no pensamento iluminista, especialmente em Kant, reaparece como central no pensamento de Paulo Freire, e esse é um dos aspectos que fazem do educador brasileiro um herdeiro indireto de Kant e do Iluminismo. Na teoria de ambos os autores, há a centralidade de a idéia da possibilidade e capacidade do sujeito conseguir determinar sua vida de forma autônoma, de o sujeito superar as condições de heteronomia, no que a educação possui papel essencial. No último capítulo mostramos que a herança kantiana, presente em Freire mesmo que indiretamente, se manifesta em suas concepções de razão, sujeito e dignidade humana. Ambos comungam que a razão não se restringe à razão instrumental, há uma racionalidade enquanto totalidade que é promotora da humanidade e da autonomia. Em consonância com os autores, defendemos ao longo do trabalho a possibilidade da racionalidade guiar a consciência crítica para que as situações de heteronomia sejam desveladas e, assim, pela práxis transformadora o homem possa emancipar-se, construir o poder de pensar, agir, falar, autonomamente. Freire herda a concepção de sujeito fundada por Kant, de um sujeito ativo, que assume reivindicação de responsabilidade total, mas acrescenta o elemento dialógico, intersubjetivo, como constitutivo. Os dois autores pensam um sujeito com a liberdade e poder de fazer frente às heteronomias, capaz de transformar situações de alienação, opressão, ignorância. Para ambos, a dignidade humana é constitutiva, o homem possui valor intrínseco, é fim em si mesmo, ou seja, não possui valor relativo. Ainda, é importante destacarmos que a herança iluminista de Freire se dá, além de via Kant, principalmente por meio de Marx e Hegel, o que não é tematizado nessa obra.

As reflexões filosófico-educacionais realizadas ao longo da obra se voltam criticamente sobre os modelos sociais e educacionais promotores de heteronomia, para, a partir de Kant e Freire, refletir sobre caminhos para a autonomia, caminhos para uma educação que busca formar homens que não tenham sua individualidade e liberdade anuladas por mecanismos e sistemas massificadores, caminhos para superar a estetização do nosso tempo que leva ao individualismo e à indiferença ao humano, caminhos para superar a colonização que a razão instrumental promove nas diversas esferas do mundo da vida gerando uma sociedade em muitos aspectos desumanizante e irracional.

Nesse sentido, propomos uma educação voltada para o exercício racional da liberdade para que os determinismos sejam superados e o homem possa fazer-se a partir de projetos que se propõe racional e livremente. O ser humano não está enclausurado ao determinismo, ele é inconcluso, e enquanto inconcluso, precisa humanizar-se, o que abre a possibilidade de ser livre, de construir-se a si mesmo, mas, ao mesmo tempo, o torna um ser responsável por si mesmo. Por isso uma educação que busca promover a autonomia do educando precisa educar para a responsabilidade. Uma vida auto-responsável é aquela que faz a si como obra de arte de tal forma que possa conciliar ética e estética.

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Ao falarmos em educação para o exercício racional da liberdade, não entendemos racionalidade como racionalidade instrumental, mas a pensamos enquanto totalidade, com um poder, embora não absoluto, de criticidade e esclarecimento. Como a razão não é absoluta, é razão histórica e encarnada, em educação as lições das experiências humanas e os aspectos estéticos da existência devem estar aliados à racionalidade. A vivência das tendências sensíveis, desde que concordem com a razão, pode representar experiências de autonomia. Por isso, a educação para a racionalidade não pode suprimir as tendências sensíveis. O que propomos a partir dos autores trabalhados, nesse sentido, é a formação para a autodeterminação inteligente da vontade, o que envolve guiar-se por princípios racionais e pelas tendências que concordam com a razão, a fim de que a vontade não permaneça determinada por impulsos ou por coações externas, mas também para que a dimensão estética não seja suprimida. Ao pensarmos a autonomia não em termos absolutos e considerarmos os aspectos estéticos nela envolvidos, somos levados ao reconhecimento e ao respeito à multiplicidade e à pluralidade, mas sem negar a unidade.

A educação promotora da autonomia é a que promove a formação da totalidade do humano, o que além da capacitação técnico-científica, envolve formação política, ética e estética. A educação tecnicista, verbalista, que prima pela memorização mecânica inibe a curiosidade, a criatividade e a criticidade, obstaculizando a promoção da autonomia, por isso, a educação precisa ser ativa, instigadora da imaginação, instigadora do ato de perguntar e investigar, mas sem anular a memória que deve existir a serviço das demais faculdades. Embora autonomia e conhecimento possuam uma relação de contingência, a capacitação, a aquisição de conhecimentos, é necessária para que haja a possibilidade de realização dos projetos livremente estabelecidos para si. A ampliação dos conhecimentos amplia o poder de realizar, e, em conseqüência, o poder de ser autônomo.

A educação possui um papel político na transformação das realidades injustas e opressoras, que aniquilam o humano, que massificam e impõem heteronomias. Daí a importância de uma educação que promova a criticidade. Nesse sentido, a proposta de educação libertadora de Freire tem como um dos principais méritos mostrar os aspectos sociais da autonomia, e, que por isso, sua concretização demanda condições sociais que a possibilitem. A educação que objetive formar para a autonomia precisa ser dialógica, precisa educar para a participação soberana e o diálogo constante, dessa forma, a educação está preparando para o exercício da democracia. A democracia supõe que os sujeitos sejam capazes de liberdade, autodeterminação e autonomia.

Defendemos a educação como formação do humano que se dá como processo de gestação da autonomia do pensamento, da ação e da palavra. Do pensamento, na medida em que leva a pensar por si mesmo de acordo com princípios racionais e a revelia das coações externas, dogmas, mitos, ignorâncias, alienações, etc. Da ação, na medida em que capacita para a realização dos projetos que o homem se propõe livremente. Da palavra, na medida em que na nossa sociedade existimos pela palavra, por isso, para que alguém seja autônomo precisa aprender a dizer a sua palavra.

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