AUTONOMIA ECONÔMICA

download AUTONOMIA ECONÔMICA

of 132

Transcript of AUTONOMIA ECONÔMICA

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    1/132

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    2/132

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    3/132

    ndice

    ARTIGOS

    A hora da Igualdade por Alicia Brcena

    A autonomia econmica das mulheres ea reproduo social: o papel das polticaspblicas

    por Graciela Rodriguez

    Comrcio e Desenvolvimento na AmricaLatina: A ordem dos fatores altera o produto.Propostas de polticas pblicas para encaminharo comrcio internacional equidade social e degnero por Nicole Bidegain Ponte

    Trabalho domstico remunerado na AmricaLatina por Maria Elena Valenzuela

    ndices de Desenvolvimento de Gnero: umaanlise do avano social das mulheres no Brasil enas Unidades da Federao por Cristiane Soares

    Mulheres em Dados: o que informa a PNAD/IBGE, 2008 por Lourdes Bandeira, Hildete Pereira de Melo

    e Luana Simes Pinheiro

    Observatrios de gnero na AmricaLatina: uma anlise comparada os casosdo Observatrio de Igualdade de Gnero daAmrica Latina e do Caribe e do ObservatrioBrasil da Igualdade de Gnero por Nina Madsen e Marcela Rezende

    Apresentao

    Entrevista comSonia Montao

    Entrevista comMaria da Conceio Tavares

    7

    4

    31

    3

    4

    4

    6

    10

    12

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    4/132

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    5/132

    Apresentao

    com satisfao que a Secretaria de Polticas paraMulheres da Presidncia da Repblica do Brasil

    (SPM/PR) apresenta essa edio especial da RevistadoObservatrio Brasil da Igualdade de Gnero,lanadaem homenagem XI Conferncia Regional sobre a Mu-lher da Amrica Latina e do Caribe.

    Essa conferncia, cujo tema Que tipo de Es-

    tado? Que tipo de Igualdade?, tem como objetivoexaminar os resultados j obtidos pelos governos daregio e os desafios que permanecem a serem enfren-tados para a promoo da igualdade de gnero. Paraisso, a XI Conferncia levar em conta as interaesentre o Estado, o mercado e as famlias, considerandoque essas trs instncias so instituies sociais cons-trudas a partir de polticas pblicas, leis, usos e cos-tumes que, em conjunto, estabelecem as condiespara a renovao ou a perpetuao das hierarquias so-ciais e de gnero. Nesse sentido, sero discutidos doistemas-chave para a promoo da igualdade de gnero:a autonomia econmica da mulher e a ampliao deoportunidades para as mulheres.

    A edio especial que ora lanamos contmartigos relacionados aos temas da XI Conferncia. Ini-cialmente, apresentam-se duas entrevistas, seguidaspor sete artigos. A primeira entrevista foi concedida equipe da SPM/PR por Sonia Montao, atual diretorada Diviso de Assuntos de Gnero da CEPAL. Nessaconversa, Montao traa uma breve retrospectiva dasconferncias regionais anteriores, fazendo um balanodos resultados at aqui alcanados. Discorre, tambm,sobre suas expectativas para a XI Conferncia.

    Na sequncia, apresenta-se a conversa com aprofessora Maria da Conceio Tavares, uma das maisrenomadas economistas brasileiras. A equipe da SPM/PR entrevistou a professora em sua casa, no Rio deJaneiro, em maio passado. Durante o encontro, a eco-nomista falou sobre a crise financeira global que aba-lou o mundo em 2008, e refletiu sobre seus impactos em especial, sobre a vida das mulheres. Ela analisou,ademais, o contexto atual das relaes internacionaiscontemporneas, deixando antever suas expectativassobre o futuro prximo.

    Dando incio seo de artigos da revista,apresentamos o texto A Hora da Igualdade, de Ali-cia Brcena. Ao longo do trabalho, a autora traa umretrospecto da situao econmica da Amrica Latina,fazendo um balano dos avanos j conquistados e dosdesafios que ainda permanecem a serem enfrentados.Brcena defende a tese de que necessria a criaode um novo paradigma de desenvolvimento econmi-co, capaz de incluir os setores segregados da socieda-de a fim de que se funde uma globalizao mais justae equitativa. A autora menciona as transformaesestruturais que esto ocorrendo na Amrica Latina edestaca que, em relao questo de gnero, preci-so investir nos servios voltados para a economia doscuidados, em funo da mudana que a regio estvivenciando em sua estrutura etria h uma tendn-cia ao envelhecimento populacional. Brcena afirmaque apoiar a economia do cuidado significa fomentar aparticipao feminina no mercado de trabalho.

    O trabalho seguinte, A autonomia econmi-ca das mulheres e a reproduo social: o papel daspolticas pblicas assinado por Graciela Rodriguez,diretora da ONG feminista Ser Mulher. Nesse artigo,Graciela reflete sobre o tema da autonomia econmi-ca das mulheres, lembrando que para bem compre-ender a questo, preciso levar em considerao astransformaes scioeconmicas ocorridas na regiolatino-americana nas duas ltimas dcadas. A autoraenfatiza o preponderante papel do Estado, por meioda formulao e implantao de polticas pblicas, nagarantia da autonomia econmica das mulheres e nareduo das desigualdades de gnero.

    Na sequncia, apresentamos o trabalho de Ni-cole Bidegain Ponte, intitulado Comrcio e Desen-volvimento na Amrica Latina: A ordem dos fatoresaltera o produto. Propostas de polticas pblicas paraencaminhar o comrcio internacional equidade so-cial e de gnero. O objetivo do trabalho apresentarelementos para que os governos da regio possam es-timular polticas pblicas que encaminhem o comrciointernacional no sentido da equidade e de um desen-volvimento genuno. Ao longo do texto, a autora de-

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    6/132

    monstra que o crescimento do comrcio internacionalna regio latino-americana no contribuiu para a cria-o de melhores oportunidades de trabalho, alm deno ter aproveitado as condies de qualificao daoferta de trabalho feminina. Ela defende que Estadosdevem desenvolver polticas pblicas que supram asnecessidades da chamada economia dos cuidados,por exemplo, por meio da oferta de servios pblicos

    de qualidade que visem a diminuir a sobrecarga de tra-balho das mulheres inseridas no mercado de trabalho.

    O texto seguinte, Trabalho domstico remune-rado na Amrica Latina, de Maria Elena Valenzuela,aborda a questo da precariedade do trabalho doms-tico na regio. A autora demonstra que esse tipo deatividade a principal porta de entrada para o merca-do de trabalho no caso das mulheres mais pobres, commenor nvel escolar e que vivem em um entorno demaior excluso social. Ela destaca que o trabalho do-mstico, a desigualdade social e de gnero e a pobreza

    so fatores fortemente relacionados, que devem serenfrentados por meio do aumento do grau de escolari-dade das trabalhadoras, da melhora de suas condiesde trabalho, e da promoo, em todos os mbitos, daigualdade de direitos entre homens e mulheres.

    O prximo texto, ndices de Desenvolvimentode Gnero: uma anlise do avano social das mulheresno Brasil e nas Unidades da Federao, de CristianeSoares, apresenta uma anlise de diversos indicadoresrelacionados temtica de gnero. O objetivo do tra-balho elaborar dois tipos de ndices: um relacionado

    s necessidades bsicas, sensvel questo de gneroe de cor; e o outro relacionado a aspectos caractersti-cos da desigualdade de gnero. Ela parte da anlise dedados da realidade brasileira para propor esses novosndices e conclui que, por mais que o pas esteja avan-ando no seu processo de desenvolvimento, principal-mente nos aspectos considerados bsicos, ele aindaapresenta fortes desigualdades no mbito regional, degnero e de cor.

    Mantendo o foco da anlise no contexto brasi-leiro, o texto seguinte, Mulheres em Dados: o que in-

    forma a PNAD/IBGE, 2008, assinado por trs autoras,

    Lourdes Maria Bandeira, Hildete Pereira de Melo e Lua-na Simes Pinheiro, traz uma anlise, com perspectivade gnero, dos dados produzidos, em 2008, pela Pes-quisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD), doInstituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).O texto d nfase reflexo acerca da rea de atuaoda Secretaria de Polticas para as Mulheres da Presi-dncia da Repblica (SPM/PR) no mbito das polti-

    cas sociais. Estas informaes possibilitam identificaras mudanas em curso na diviso sexual do trabalho,com repercusses nos papis femininos e masculinosno contexto da famlia.

    Finalmente, encerrando a publicao, apre-sentado o artigo Observatrios de gnero na AmricaLatina: uma anlise comparada os casos do Obser-vatrio de Igualdade de Gnero da Amrica Latina edo Caribe e do Observatrio Brasil de Igualdade deGnero, assinado por Nina Madsen e Marcela Rezen-de. O texto apresenta uma reflexo comparada acerca

    do contexto de surgimento e da importncia poltica esocial de observatrios de gnero na Amrica Latina,focando a anlise em dois casos especficos: o Obser-vatrio da Igualdade de Gnero da Amrica Latina e doCaribe, produzido pela CEPAL; e o Observatrio Brasilda Igualdade de Gnero, que resulta de uma iniciativada Secretaria de Polticas para as Mulheres da Presi-dncia da Repblica do Brasil. As autoras apontam, naconcluso, uma tendncia de surgimento de novos ob-servatrios de gnero no contexto latino-americano, oque reflete no s o fortalecimento e a incorporao

    pela sociedade da temtica de gnero, como tambma democratizao desse mecanismo de controle social.

    Boa leitura!

    Nilca FreireMinistra de Estado Chefe da Secretaria

    de Polticas para as Mulheres

    4

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    7/132

    N

    VS

    COM

    So

    aMo

    a

    o

    1. Quando e de que forma surgiu a ideia de criara Conferncia Regional sobre a Mulher daAmrica Latina e do Caribe da CEPAL?

    A Conferncia Regional sobre a Mulher temsuas origens em Havana, em 1977, devido d-cima primeira reunio extraordinria do ComitPlenrio da Comisso Econmica para a AmricaLatina (o Caribe ainda no participava).

    2. Qual a importncia poltica desse

    espao para a promoo dos direitosdas mulheres na regio?

    Desde a primeira Conferncia Regional so-

    bre a Integrao da Mulher no DesenvolvimentoEconmico e Social da Amrica Latina (Havana,Cuba, 13 a 17 de junho de 1977), que adotou oPlano de Ao Regional sobre a Integrao daMulher no Desenvolvimento Econmico e Socialda Amrica Latina e do Caribe1, passando pelasexta Conferncia Regional na qual se adotao Programa de Ao Regional para as Mulheresda Amrica Latina e do Caribe, 1995-2001, quefoi ratificado no Consenso de Santiago (CEPAL,1997) durante a stima Conferncia Regional so-

    bre a mulher da Amrica Latina e do Caribe ,at o Consenso de Quito, adotado pela dcima

    Sonia Montao nasceu em dezembro de 1955, na cidade de Cochabamba, na Bol-via. Obteve bacharelado em Humanidades em 1973 e licenciou-se em Trabalho Socialpela Universidade Mayor de San Andrs, em 1979, e em Sociologia, em 1982. Em 1986,obteve o diploma de mestre em Economia Rural. Foi Secretria Acadmica da Universi-dade Mayor de San Andrs em 1992 e docente titular, entre 1982 e 1996, da Faculdadede Cincias Sociais, na rea de trabalho social. Atualmente, ocupa o cargo de diretorada Diviso de Assuntos de Gnero da CEPAL.

    Em junho passado, concedeu entrevista equipe da Secretaria de Polticas paraas Mulheres da Presidncia da Repblica do Brasil (SPM/PR), na qual elabora reflexessobre a trajetria das conferncias regionais sobre as mulheres da Amrica Latina e doCaribe, o impacto dessas instncias para a vida das mulheres da regio e sua influnciano cenrio poltico do continente latino-americano.

    Conferncia Regional em 2007, os pases da Am-rica Latina e do Caribe deram grandes passos noprocesso de institucionalizao das polticas de

    igualdade de gnero. A principal contribuio da Conferncia foio apoio fornecido criao dos mecanismos parao avano da mulher, sua hierarquizao e aplica-o da transversalizao da perspectiva de gne-ro nas polticas pblicas.

    Tambm foi importante o trabalho de pes-quisa e documentao dos principais desafios,como a pobreza das mulheres, a violncia e oacesso ao emprego. Nos ltimos anos, a Confe-rncia deu lugar a um importante desenvolvimen-to dos mecanismos de gnero no mbito social,estatstico e jurdico, facilitando a colaboraoregional e o intercmbio de boas prticas emtemas to importantes como as polticas traba-lhistas, a reforma da previdncia e a valorizaodo trabalho no remunerado.

    3. Qual a sua avaliao sobre osprocessos na Conferncia?

    Positiva. A Conferncia ganhou legitimida-

    de, por seu enraizamento entre as Ministras e au-toridades dos mecanismos para o avano da mu-

    1 Em 1975, por ocasio da realizao da Conferncia Mundial do ano Internacional da Mulher no Mxico, aprova-se o primeiro instrumento internacional destinado apromover sistematicamente a integrao das mulheres no Desenvolvimento: o Plano de Ao Mundial. Os Estados-membros das Naes Unidas, conscientes das dife-renas existentes entre as distintas regies, decidem nessa oportunidade que tal instrumento se complementar com diretrizes regionais. Em 1977, os pases-membros daCEPAL elaboram e aprovam em Havana o Plano de Ao Regional sobre a Integrao da Mulher no Desenvolvimento Econmico e Social da Amrica Latina. Decidem,ainda, estabelecer um frum governamental permanente que se ocupe desse tema; a Conferncia Regional sobre a Integrao da Mulher no Desenvolvimento Econmi-co e Social da Amrica Latina e do Caribe, que se reuniria a cada trs anos para avaliar os avanos obtidos na aplicao do Plano de ao regional, e recomendarfuturas vias de ao. Em 1980 e 1985 se realizam novamente Conferncias mundiais sobre a mulher, nas quais se formulam o Programa de Ao para a SegundaMetade do Decnio das Naes Unidas para a Mulher (Copenhague), e as Estratgias de Nairobi, orientadas para o futuro, para o avano da mulher (Nairobi).Essas ltimas, baseadas no Plano de 1975, e no Programa de 1980, se convertem de fato no principal instrumento mundial, enriquecendo o Plano de Ao para aAmrica Latina e o Caribe aprovado em 1977, que cumpre a mesma funo regionalmente. Em 1991, a Quinta Conferncia Regional sobre a Integrao da Mulherno Desenvolvimento Econmico e Social da Amrica Latina e do Caribe (Curaao) recomenda a elaborao de um programa de ao regional para 1995-2001, quecomplemente os instrumentos anteriores, levando em conta as mudanas registradas na regio durante a dcada de 1980 e a necessidade de aes complementarespara acelerar os processos em curso. Nas resolues 45/129 da Assembleia Geral, 1990/12 do Conselho Econmico e Social, e 36/8A da Comisso da CondioJurdica e Social da Mulher, os Estados-membros das Naes Unidas recomendam celebrar a Quarta Conferncia Mundial sobre a Mulher em Pequim, em 1995, eelaborar uma plataforma de ao para o perodo 1995-2001. Portanto, o Programa de Ao Regional 1995-2001 constitui, ao mesmo tempo, um produto da SextaConferncia Regional sobre a Integrao da Mulher no Desenvolvimento Econmico e Social da Amrica Latina e do Caribe (Mar del Plata, 1994), e uma contribuio

    Quarta Conferncia Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995), e reflete as prioridades dos pases membros da Amrica Latina e do Caribe para os prximos cincoanos.

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    8/132

    ENTR

    EVISTACOMS

    on

    iaMontao lher, pela importante presena de representantes

    da sociedade civil, porque oferece um espao decolaborao interagencial aos organismos dasNaes Unidas que podem responder coordenada-mente s necessidades dos pases e porque seusconsensos inspiraram importantes mudanas.

    4. Quais so os avanos mais importantes

    conquistados a partir da Conferncia?

    Alm da institucionalidade de gnero, himportantes conquistas, como o avano em edu-cao das mulheres, sua entrada no mercado detrabalho, a presena poltica nos parlamentos ea presena mais frequente de mulheres na toma-da de decises, como vem ocorrendo nos ltimosanos na Jamaica, Chile, Argentina, Costa Rica eTrinidad e Tobago. A paridade tambm foi reco-nhecida em vrias constituies e praticamentetodos os pases melhoraram a ateno s vtimas

    de violncia. As atividades de recolhimento deinformao, pesquisas apropriadas e visibilidadedas desigualdades, tudo isso faz parte do contex-to em que atuaram as Ministras e as organizaesde mulheres e em que foi fortalecido o papel daConferncia.

    5. Quais desafios permanecem paraser enfrentados?

    A plena igualdade no foi conquistada, osdireitos trabalhistas das mulheres no so res-

    peitados e ainda estamos longe de reconhecera contribuio delas na vida cotidiana, no cui-dado e na reproduo. Preocupa a situao demuitas mulheres que se mantm na pobreza (hmais mulheres pobres do que homens nessa si-tuao), preocupa a situao das mulheres dospovos indgenas, a quem no se reconhece direi-tos coletivos e culturais, e preocupa a situaodas mulheres afrodescendentes, que em muitospases sofrem uma dupla discriminao. Outro se-tor que merece ateno o das empregadas do-

    msticas. Os direitos reprodutivos so um desafioque se expressa na gravidez na adolescncia, nafeminizao do HIV em alguns pases e em umapersistente e alta mortalidade materna.

    6. O que se espera da XI Conferncia,considerando-se o marco de Pequim + 15?

    Espera-se uma grande participao quepermita fortalecer as alianas entre as organi-

    zaes de mulheres, os governos e os organismosinternacionais para acelerar o cumprimento doscompromissos internacionais, especialmente emrelao ao empoderamento econmico das mu-lheres, ao reconhecimento de seu trabalho noremunerado e ao acesso ao mercado de trabalhoem condies dignas.

    7. Como acontece a participao dasdiferentes naes latino-americanasnas Conferncias? Quais so asprincipais diferenas entre elas comrelao ao compromisso no processodessas Conferncias?

    Existem diferentes formas de participao,mas a tendncia atual de um maior dilogo en-tre mecanismos para o avano da mulher e dasorganizaes sociais. Isso acontece felizmenteem muitos pases, e precisamente neles onde

    se veem maiores progressos.

    8. De que forma as polticas pblicasimplementadas no mbito internacionalpodem ser complementadas pelasresolues validadas nas Conferncias?

    Porque oferecem argumentos, evidncia em-prica e reforam a vontade poltica. A experin-cia com o Consenso de Quito, de 2007, de queos pases o levaram realmente a srio e responde-ram dando a conhecer as mudanas legislativas,

    os programas contra a violncia, a adoo de leisde proteo social, a criao de Observatrios,a adoo de leis de igualdade e de proteo strabalhadoras do lar.

    9. De que maneira acontece o dilogoentre essa instncia internacionale os pases participantes?

    A Conferncia elege uma Mesa Diretiva quese rene duas vezes por ano e da qual participam,alm dos pases eleitos, todos os interessados.

    A experincia mostra que h um alto interesse,posto que em cada reunio participam, em m-dia, 15 pases.

    6

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    9/132

    MariadaC

    onceioTavares

    No ltimo dia 29 de maio, a professora Maria da Conceio Tavares recebeu em suacasa, no Rio de Janeiro, a equipe da Secretaria de Polticas para as Mulheres da Pre-sidncia da Repblica (SPM/PR), para um bate-papo informal sobre a crise econmicaglobal, seus impactos sobre as mulheres e o futuro das relaes internacionais.

    Nascida em Portugal, em 24 de abril de 1930, solicitou a nacionalidade brasileiraem 1957. Diplomada em Matemtica pela Universidade de Lisboa, em 1953; em CinciasEconmicas, em 1960, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e Doutora

    em Economia pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Na graduao em CinciasEconmicas (UFRJ), foi assistente do professor Otvio Gouveia de Bulhes, ministro daFazenda e eminente economista brasileiro. Essa experincia iniciou-a na carreira docen-te, continuada at os dias atuais. Foi professora de vrias geraes de economistas naUFRJ e na UNICAMP, funo de que muito se orgulha. uma das pessoas responsveispela implantao da ps-graduao em Economia no Brasil. Ainda nos anos 1960, foidiretora do Escritrio Regional da CEPAL no Rio de Janeiro e, nos anos 1980, do Insti-tuto de Economia da UFRJ.

    Intelectual com slida e vasta formao histrica, filosfica e literria, professora,militante e deputada federal, na dcada de 1990, pelo Partido dos Trabalhadores. Maria

    da Conceio se transformou, nos ltimos 50 anos, em uma figura pblica emblemtica,e numa referncia decisiva dentro da vida econmica, cultural e intelectual brasileira.

    Seus livros e artigos escritos ao longo desses 50 anos de atividade intelectual de-monstram preocupao permanente em pensar o Brasil e o desenvolvimento econmico.Trs de seus livros so leitura obrigatria nas faculdades de Economia: Auge e Declniodo processo de substituio de importaes (1972), Ciclo e Crise: o movimento recenteda economia brasileira (tese de doutorado, de 1978 e 1998),Acumulao de capital eindustrializao no Brasil (1985 e 3 ed. 1998).

    Confira, abaixo, o contedo da conversa.

    1. Professora, em sua opinio, como ficara ordem econmica mundial fundada namoeda norte-americana, como moeda dereserva, diante da crise de 2008 e seurecrudescimento em 2010?

    No vai ter nenhuma ordem mundial. Vai teruma desordem mundial, porque, objetivamente, odlar continua sendo a moeda dominante. Na ver-dade, a Europa tambm est muito mal, o Japoteve uma crise feroz e a China, apesar de estarem crescimento, tem uma moeda que ainda nodisputa posio internacional. Ento, no temosmais nenhum sistema internacional digno dessenome. As moedas flutuam muito e tambm noh nenhum acordo para substituir o dlar por ou-tras moedas. Os Estados Unidos vetam qualqueracordo. Por exemplo, no ltimo dia 20 de maio,houve uma nova demanda por controle bancrio,mas nada mudou, nada est sendo feito nestesentido. No se tem ordem, tem-se desordem.

    2. Nesse caso, dessa desordem internacionaldo mercado financeiro, como ficaria amobilidade de capitais para os pasesperifricos, para a Amrica Latina, africa? Sero muito afetados? Poucoafetados? O que se pode pensar?

    Na verdade, a mobilidade de capitaisvai continuar. Apenas ser mais instvel. Empases que tm oportunidade de investimento,como, por exemplo, o Brasil, est entrandomuito capital. No apenas investimento direto,mas tambm especulativo, para o mercado deativos. A frica tambm receptora de capitaispor causa das perspectivas do petrleo. Tantoos americanos quanto os chineses estodisputando esse mercado. Na verdade, paraonde no dever haver grande entrada decapitais para os pases desenvolvidos, queforam os mais afetados pela crise.

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    10/132

    Conve

    rsandocom

    MariadaConceioTavares 3. E no caso da Amrica Latina?

    Tem o Mxico que complicado, pois essefoi um dos pases mais afetados pela crise, por-que periferia imediata dos Estados Unidos. Emtodo o caso, o Mxico depende muito de os Es-tados Unidos se recuperarem mais firmemente,porque l basicamente as indstrias so filiais

    americanas.

    4. E quando ao Caribe e Amrica Central?

    So sempre economias um pouco atrapa-lhadas. Nunca so fontes importantes de re-cepo de capitais.

    5. E a Venezuela?

    A Venezuela no tinha entrada de capitais.O dinheiro o do petrleo, que eles gastaramde maneira pouco sbia, porque no mudaram a

    estrutura produtiva. No mudaram nada, por issoso muito dependentes de importaes. Mas oresto da Amrica do Sul no tem muito que vercom isso.

    6. E a Argentina, passou ao largo da crise?

    Passou, sim. Foi um dos nicos pases queno teve recesso na Amrica Latina. Ela passouao largo da crise porque no est ligada ao siste-ma financeiro internacional, desde a questo dadvida. Como eles ainda no resolveram a ques-

    to da dvida externa, j que vrios dos pasescredores no estiveram de acordo em fazer a re-estruturao da dvida argentina, eles no foramafetados pela crise, porque j tinham entrado emcrise antes.

    7. Quer dizer, eles esto saindodo fundo do poo?

    No exatamente, porque eles j saram do fundodo poo h uns dois anos.

    8. Ento, j esto na fase de recuperao.

    Esto na fase de recuperao, mas depen-dem dos fatores internos, um dos quais a ener-gia. A Argentina tem problemas de energia s-rios, de gs, de petrleo. Esse aspecto da ener-gia no est legal. Por outro lado, a economiaargentina est praticamente ligada sia. Noesto exportando nem para os Estados Unidose nem para a Europa. Esto exportando basica-mente para a sia.

    9. a China que est l, professora?

    A China e todo mundo. Mas, basicamente, aChina.

    10. Basicamente, no caso da China, asenhora v futuro para o Mercosul nessaquesto da mobilidade de capitais?

    Mas a mobilidade de capitais no tem quever com o futuro do Mercosul.

    11. Mas o Mercosul ainda tem futuro?

    Sim, mas no por causa disso. Por conta daintegrao dos seus mercados internos e da suaproteo externa. Porque, na verdade, nem o Pa-raguai, nem o Uruguai e nem a Argentina atraemo capital estrangeiro. Somos ns. o Brasil, umdos maiores pases do mundo, depois da China.

    12. No sua opinio, qual a perspectivapara o financiamento dos elevadosdficits em transaes correntes,sem constrangimentos para a polticamacroeconmica norte-americana, narelao com os pases asiticos? Asenhora acha que EUA e China tendem acontinuar essa relao to fraternal?

    Inicialmente, eu achava que no, porquetem uma contradio. Mas at agora a China,apesar de reclamar contra a dominao do dlar,

    no se viu livre das reservas em dlar. Nem elae nem o Japo. Ento, a China e o Japo sozi-nhos tm mais de dois trilhes de dvida pblicaamericana em reservas. E no devem saber o quefazer. Tambm no d para trocar pelo euro, queest em crise. No d para trocar por nada. Essa a verdade. Ento, eles tm que ir se afastandolentamente na margem. As novas reservas, elespodem acumular em outras moedas, mas as queestavam l, em dlar, continuaro!

    13. Ento, nesse caso, a senhora achaque h futuro para o dlar? Qual odestino da moeda norte-americanacomo moeda de reserva?

    A curto prazo, continuar como moeda im-portante de reserva. Continuar porque, comoagora o euro se desvalorizou, quem tinha reser-vas em dlar, no perdeu nada. Quem tinha reser-vas em euros que perdeu. Ento, o impulso parao euro teve uma desacelerao pesada com estanova crise, e a crise europeia ajudou os Estados

    Unidos a manterem sua posio dominante.8

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    11/132

    MariadaC

    onceioTavares

    14. A perspectiva de se pensar que a crisede 2010 enfraqueceu a moeda dosEstados Unidos no tem sentido?

    No tem sentido. Em 2010, enfraqueceu amoeda europeia. Os Estados Unidos, pelo contr-rio, valorizaram sua moeda. S o real valorizoumais, porque entra tanto capital no Brasil que

    ns valorizamos mais que o prprio dlar.

    15. E a Amrica Latina, como ficou?

    Acompanha essa valorizao e a China tam-bm. Ento, no aconteceu nada. O fato queo euro deixou de ser candidato, a curto prazo, atornar-se uma moeda de reserva importante naeconomia mundial com essa desvalorizao.

    16. Isso coloca um freio na perspectivaeuropeia de criar uma hegemonia mundial?

    Na verdade a economia europeia nuncateve nenhuma chance, eu diria. Se algum vaidisputar a hegemonia, a longo prazo, vai ser asia ou a China, em particular. A Europa umcontinente muito envelhecido, muito deprimi-do, com desemprego, em crise fiscal. A Europaest mal. Para ela, a crise no passou comple-tamente, pelo contrrio, se agravou agora coma crise da Grcia. Primeiro, em 2008, bateudireto na periferia do Leste Europeu. E essa,agora, bateu no Mediterrneo. A Grcia prati-

    camente explodiu e Portugal e Espanha estoabalados. E ainda tem o norte da Europa, queno zona do euro, mas tambm sofreu com acrise. A prpria Inglaterra no est bem.

    17. No pensamento latino-americano,os seus escritos da dcada de oitentaso pioneiros nessa discusso dahegemonia norte-americana.

    verdade. E eu acho que difcil derrub-la. uma hegemonia ruim, no consegue congregar

    foras do sistema. No uma hegemonia con-sentida, como foi a do ps-guerra, mas continuadominante. No tem nenhum candidato vista,no curto prazo.

    18. Ento, o que a senhora escreveu nofinal dos anos setenta e incio dosoitenta nunca esteve to atual?

    Houve um estremecimento. Mas a crisebateu muito mais no Japo e na Europa. Mes-mo a de 2008. O mais prejudicado dos pasesdesenvolvidos foi o Japo, que ganhou uma

    trombada; e a Alemanha, em seguida. Ento,na verdade, se voc olhar a queda da produoindustrial, os outros pases desenvolvidos fo-ram os mais prejudicados, mas no os EstadosUnidos.

    19. Apesar do que a imprensa noticiava!

    Nos Estados Unidos, a questo foi financei-ra, o resto conversa. Crise financeira de endi-vidamento e de crdito, mas o governo socorreulogo o sistema financeiro e at agora este conti-nua protegido. No se sabe o que vai acontecer.

    20. Portanto, a crise de 2010 abala o sistemainternacional monetrio, mas o dlarcontinua como moeda reserva.

    No abala o sistema monetrio internacio-nal porque no tem sistema nenhum. Abala o

    euro, especificamente. A crise de 2010 no temque ver com o sistema monetrio internacionalporque o euro no era a moeda dominante ainda.E agora nem candidato . Continua o imprio dodlar.

    21. Esta crise pode trazer consequnciaspesadas para as mulheres? Para asmulheres trabalhadoras, em especial?O que a professora pensa sobre o assunto?

    A crise de 2008 trouxe consequncia basi-

    camente para os homens, porque foi uma criseindustrial e da construo civil, onde o empre-go majoritariamente masculino. Mas agora,com essa estagnao geral, particularmente naEuropa, as mulheres vo ser atingidas, porqueservios e comrcios, atividades que ocupam umenorme contingente feminino, sero provavel-mente atingidas. E tambm o salrio. Os salriosna Europa esto praticamente congelados. Comoj havia diferenas salariais entre mulheres e ho-mens, obviamente a pancada sempre maior nosmais fracos.

    22. Tanto o dlar norte-americano quanto osttulos emitidos pelo mercado financeironorte-americano vo continuar sendo ancora do sistema financeiro global.

    Eu no sei se os ttulos emitidos pelo mer-cado financeiro, mas os ttulos da dvida pblica,seguramente. Os Estados Unidos esto com umdficit fiscal cavalar e, portanto, emitindo dvidapblica, mas esta tem aceitao. O dlar conti-nua sendo aceito como moeda de reserva e comoncora. Todos correm para a dvida pblica ameri-

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    12/132

    cana. Consideram que esse um estado soberanoe que tem poder e ningum se engana muito arespeito do poder americano.

    23. Poder militar e econmico?

    Econmico mas, sobretudo, financeiro. Seo sistema est ancorado na dvida pblica ame-

    ricana, quanto mais ela cresce, mais o mercadofinanceiro internacional continua em dlar. Ocontinente europeu est mal, o Japo est mal ea economia chinesa no mercado financeiro in-ternacional ainda. Seus ttulos e moeda no soaceitos como ncora do sistema. A China vai terque resolver esse problema da moeda internacio-nal deles, mas, por enquanto, no est resolvido.

    24. Em sua opinio, a crise da Europaperturba definitivamente a possibilidadede crescimento dos sistemas financeiros

    domsticos europeus?

    Eu acho que sim. Porque o que vem depoisda crise fiscal a crise dos bancos, no tem jeito.Sobretudo os bancos alemes, que tinham em-prestado mais dinheiro e que no esto dispostosa aceitar a reestruturao das dvidas. Ficam nacarteira com ttulos podres que, na verdade, novalem nada. Esse um dos problemas. O BancoCentral Europeu talvez esteja disposto, eventual-mente. Mas o Banco Central Europeu no mandanos bancos. Os bancos so globais, internacio-

    nais. Londres tambm no est disposta a acei-tar. Ento, na verdade, se os alemes e os ingle-ses no esto dispostos a aceitar, ningum estdisposto.

    25. E a Frana?

    A Frana no tem um sistema financeiro pri-vado internacional forte.

    26. A Frana tem um sistema financeiro pblicomais avanado?

    Mais desenvolvido que os outros. E essetambm no vai aceitar. Ningum vai aceitarnada. Esse que o problema. Em princpio o queeles fizeram foi ajudar. Deram um pacote de aju-da gigantesco. Mas voltando, como os pases emcrise no podem desvalorizar a moeda, porqueesto presos Europa do euro, e por outro ladocomo no tm poltica fiscal compensatria eunificada, eles ficam sem margem de manobra.Esto obrigados a fazer um ajuste para baixo, umajuste de renda e de salrio para baixo. E isso

    depresso.

    27. Isso pode fazer com se questioneo euro como moeda comum?

    Eu acho que pode. Acho que as franjas dossistemas provavelmente quebraro. o que temacontecido. Mas, no momento, eles expandiramdemais o sistema, expandiram o euro para muitospases. Como no tm uma poltica fiscal comum

    e nem social, s unificaram a moeda e o capitalfinanceiro. Mais nada. Unificaram o capital, maso povo, coitado, no tem nada que ver com ocapital, a no ser para levar pancada.

    28. Por isso os tumultos.

    Por isso os tumultos, claro. Fazer um ajustede Fundo Monetrio Internacional em cima de umpas que j est com enorme taxa de desempregoe no est crescendo nada! Imagina na Espanha,que j tem uma taxa de desemprego selvagem. E

    mesmo Portugal. E sem falar na Grcia, porqueaquilo foi uma desgraceira. Ento, realmente, aEuropa no est legal e a crise deles pode se pro-longar por muito tempo. O que assusta, porque aEuropa o bero do comrcio internacional.

    29. E a Europa sempre foi um barrilde plvora, de disputas.

    Sim. Mas eu no associo imediatamente acrise econmica crise militar. Porque no existemais Unio Sovitica, qualquer enfrentamento na

    Rssia por outras razes. A Rssia pode aprovei-tar a situao, mas no creio. No ainda por a.

    30. Mas toda essa crise no pode colocar emquesto o discurso da globalizao? Querdizer, h uma instabilidade latente?

    No discurso at pode, no processo de globa-lizao que no pode. Porque como a globaliza-o feita em dlar e o dlar ainda no sumiu,muito pelo contrrio, no h nenhuma relao.S haveria crise de globalizao se o dlar en-

    trasse em crise. A sim, porque no tem nenhumamoeda substituta. Todos os pases voltariam spolticas monetrias nacionais, mas no o caso.Justamente, essa crise europeia, ao confirmar odlar como moeda internacional, ajuda a mantera posio hegemnica americana.

    31. E a Escandinvia?

    Esto fora do sistema. Eles no tm euro.

    32. E a posio deles foi reforada?

    Reforada eu no diria, porque ningum

    Conve

    rsandocom

    MariadaConceioTavares

    10

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    13/132

    quer ser periferia europeia. Quer dizer, a Europacontinental um mercado preferencial para todosos pases europeus da periferia. Com a Europadiminuindo o crescimento e entrando em estag-nao, o comrcio diminui. Na verdade afeta ata ns, um pouco, porque exportvamos para elesmatrias-primas importantes. No afetar muitoo Mxico, porque o Mxico no era cliente de-

    les, mas dos Estados Unidos. A Argentina j estmandando basicamente para a sia. Mas o Brasil,por exemplo, no. Atinge o comrcio brasileiro.Nem sei se afetar a prpria Rssia, que expor-tadora importante de gs para a Europa. De ummodo geral, o continente europeu ser todo afe-tado. Independentemente de estar ou no estarno euro, via comrcio e via crdito. E na perife-ria, ns somos um pas multilateral em matriade comrcio, tnhamos uma participao relati-vamente importante na Europa.

    33. O que a professora pensa sobre a frica?

    A frica outra coisa.

    34. E a sia?

    A sia no tem nada que ver, tambm.

    35. So outros sistemas?

    Sim, so outros sistemas.

    36. Pode a crise europeia enterrar o euro? Ah, no sei. Isso tambm no d para dizer.O euro um fenmeno poltico, a menos que aAlemanha e a Frana, que foraram o acordo eso os pases mais fortes, sofram uma crise togrande, capaz de afetar toda a zona do euro. En-terrar mais complicado. Vai voltar ao sistemade flutuao europeia que deu um bode em 1990.Enterrar, no creio. Mas pode encolher, a perife-ria pode saltar fora, porque ela no aguenta.

    37. O futuro da Europa seria esse? O futuro europeu est muito incerto. Oeuro, para desaparecer, precisa que a Alemanhae a Frana, que so seus fundadores, estejamde acordo com isso. A sim, a Europa levaria umtombo complicado. Voc teria que desestruturaro sistema todo e fazer polticas nacionais com-pensatrias que, do ponto de vista cambial, do

    ponto de vista da taxa unificada, vai ser uma per-turbao colossal.

    38. E a Inglaterra?

    Ela no tem nada que ver porque a librasempre foi uma moeda internacional. Londres uma praa financeira global, no tem nada que

    ver com os fenmenos regionais. A libra, na ver-dade, depois do dlar, a moeda mais internacio-nalizada.

    39. Professora, e em relao s polticasfiscais? No h nenhuma possibilidadede cooperao?

    Nenhuma. Porque as polticas fiscais, paraserem mais leves, tinham que ter algum outromecanismo de ajuste e no tm, porque no po-dem desvalorizar. Quando aprovaram o Tratado de

    Maastricht1, tinham que ter coordenado as duaspolticas, a monetria e a fiscal. No coordena-ram, e agora a coordenao est sendo recessiva,com a Alemanha puxando o prprio ajuste fiscal.

    40. Ento, essa a origem da crise.

    Origem remota da crise. Fizeram uma moedanica sem ter uma poltica fiscal coordenada. Eisso foi uma besteira, evidente. Voc no podefazer uma poltica sem a outra. Fazer polticamonetria e no fazer poltica fiscal junto no

    d certo. No pode ir cada uma em uma direo.Isso foi a origem. Na verdade, se a crise for mui-to intensa e eles tiverem que refazer o acordo,nesse caso tem que fazer uma nova confernciade Estado; no um negcio que venha esponta-neamente pelo mercado. Teria que ter um acordopoltico pesado. Eu no vejo nada, de onde vaisurgir essa poltica.

    41. E no caso da sia, quer dizer, Japo, Chinae ndia tem futuro?

    Claro. O Japo, coitado, como j um pasgordo, digamos, rico, est meio jiboiando, masa crise os afetou muito. Inclusive porque o Japotambm tinha um comrcio diversificado. No en-tanto, os Estados Unidos j esto colocando bar-reiras para todo mundo. O Japo agora, na verda-de, depende muito do destino da prpria China.A China puxando, o Japo vai junto. o contrrio

    MariadaC

    onceioTavares

    1 O Tratado de Maastricht foi aprovado em 7 de fevereiro de 1992 e entrou em vigor em 1 de novembro de 1993. Este tratado representa uma etapa determinante naconstruo europeia, com a instituio da Unio Europeia, criao de uma Unio Econmica e Monetria e alargamento da integrao europeia (nota da editora).

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    14/132

    2 O termo Bretton Woods I nome pelo qual conhecido o Acordo de Bretton Woods, firmado em 1944, nos Estados Unidos, pelos 45 pases que estiveram presentesao encontro ocorrido na cidade de Bretton Woods e que tinha como objetivo estabelecer regras para a poltica econmica mundial. Segundo esse acordo, as moedasdos pases-membros passariam a estar ligadas ao dlar norte-americano ancorado no ouro que passou a ser a moeda forte do sistema financeiro mundial e, portanto,moeda de reserva. Nesta mesma reunio foram criados o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Mundial para supervisionar este sistema. Durante vinte anos,

    esse sistema funcionou, mas com a degradao das contas norte-americanas, este acerto acabou deteriorando-se e, em 15 de agosto de 1971, o presidente Nixondesvinculou o dlar do ouro. Em 1973, o desmantelamento do Acordo culminou com a flutuao das moedas [conhecido como Bretton Woods II], (nota da editora).

    de antes. Porque, na verdade, a China est coo-perando na sia. como se fosse a Alemanha dasia. Faz dficit com os pases asiticos, puxa ocomrcio dos asiticos, a Alemanha da sia.

    42. E a ndia?

    A ndia vai sozinha. uma economia mais fecha-

    da que vai mais pelo mercado interno e pela tecnolo-gia mais do que propriamente pelas exportaes.

    43. A senhora acredita que existe algumdestino na relao Amrica Latina, Chinae Japo? Essa seria uma possvel sada?

    No caso japons, j houve. Agora j noadianta. O Brasil j teve uma relao muito in-tensa com o Japo. Esto querendo voltar. Masacontece que os chineses no esto querendo,esto desembarcando. E os chineses, claro, dis-

    putaro a Amrica Latina a tapa. J esto dispu-tando a frica e agora esto disputando o Brasil.Esto comprando at terra. E a Argentina, idem.Como eles so carentes de matria-prima, claro,eles vo querer investir para que as empresas se-jam deles. Eles tm fundos. Tm aqueles fundossoberanos gigantescos e esto aplicando em todaparte da periferia.

    44. correto dizer que a China, nessa corridaSul-Sul, concorre com o Japo?

    O Japo no tem nada que ver com isso. OJapo j era.

    45. A China tem vantagem cambial?

    Claro. sobre isso que os Estados Unidosprotestam. A China acompanha o dlar. Tem van-tagem cambial, no h a menor dvida. Todomundo protestou. Alm de ter custo de mo-de-obra muito baixo, no tem custos sociais altos.No tem previdncia pblica, ao contrrio da Eu-ropa e do Japo.

    46. Na realidade, professora, para esclareceraos leitores da revista, os economistascostumam afirmar que as mudanas nosistema financeiro internacional passarampor duas grandes transformaes, do sculoXX para o XXI. o que eles chamam deBretton Woods I, da fundao, e Bretton

    Woods II, que de 19732. Qual o sentidodessas mudanas na perspectiva dessenovo traado geogrfico da economiae das finanas mundiais?

    O que teve muita importncia no traadodas finanas mundiais foi o chamado BrettonWoods II. Na verdade, foi a passagem unilate-

    ral do dlar fixo para o dlar flexvel. E, com odlar flexvel, o dlar flutua. Ao flutuar, acompa-nha mais as medidas de liberalizao, de desre-gulao da conta de capitais que deram lugar globalizao financeira. Isso foi o que unificouo mercado financeiro em primeira instncia, se-guido pela unificao comercial e produtiva, queprovocaram uma mudana enorme da diviso in-ternacional do trabalho. Porque a China no erauma produtora e exportadora de manufaturas,eram o Japo e os Tigres Asiticos que faziamesse papel. Esses se afirmaram no Bretton Woods

    I, mas quem se afirmou no Breton Woods II foi aChina. E ela , hoje, uma grande exportadora demanufaturas baratas para todo o mundo. Isso fazcom que ela reverta as relaes de troca. Comoela importadora de matria-prima, cujo preoainda est relativamente alto, e exportadora demanufaturas, cujos preos esto baixos, ento,as relaes de troca so mais favorveis a ns,por exemplo.

    Essa nossa integrao internacional no temnada que ver com o sculo XIX ou XX. outra in-

    tegrao. uma integrao que depende muito,insisto, do destino da prpria China e da sia.Ns estamos cada vez mais nos dirigindo para asia. A China j o maior importador do Brasil.J no so os Estados Unidos. Quer dizer, isso jaconteceu h uns trs anos.

    47. A crise pode provocar, na opinio daprofessora, uma reconfigurao na divisosexual do trabalho?

    Sexual eu no sei, porque eu no sei o que

    est acontecendo com a composio do mercadode trabalho na China. Como o que est aconte-cendo na China dominante, isso importante.No tenho a menor ideia se a economia chinesausa mais mulheres ou no. Imagino que s usamas mulheres para a produo de artefatos eletr-nicos, como fizeram anteriormente os japonesese os Tigres. No resto das coisas, eu no creio, por

    Conve

    rsandocom

    MariadaConceioTavares

    12

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    15/132

    exemplo no setor de bens de capital, ou na enge-nharia. Seguramente no h nenhuma possibili-dade de ascenso social das mulheres para postosdirigentes nos sistemas bancrios, nos sistemaspolticos, etc. Ela levou um tempo no Japo.Imagina o tempo que vai levar na China.

    48. Voltando historia da globalizao,

    no final dos anos 1990, a professora jafirmava que as grandes instituiesfinanceiras vivem e operam em ummundo global e sem fronteiras, masmorrem nacionalmente.

    Ah, pois . Morrem nacionalmente desdeque os governos as deixem morrer. No caso ame-ricano, se o governo tivesse deixado os bancosmorrerem, o que teria acontecido? Lembram desetembro de 2008? Imediatamente, o governo feza interveno e no deixou quebrarem os demais

    bancos. Gastaram mais de dois trilhes de d-lares para socorr-los e incorporaram os ttulospodres dos bancos. Ento, o que vai acontecercom os bancos nacionais americanos depende dogoverno americano, sem dvida nenhuma.

    49. Nesse caso, quem tem grandes bancospblicos, j tem meio caminho andadopara evitar a quebradeira?

    Bancos pblicos s tm a China e o Brasil.

    50. Na Amrica Latina ningum mais tem?

    A Argentina eu posso dizer, porque o siste-ma bancrio l foi muito afetado. Ficaram o Ban-co da Nao e o Banco de Buenos Aires. Mas ummercado financeiro muito restrito. Privatizaramtodos os bancos durante o neoliberalismo.

    51. Mesmo os europeus perderam o controle decapital, professora?

    Todo mundo perdeu o controle de capital.

    Isso aconteceu na dcada de 1990. A conta decapital abriu para todo mundo, inclusive para oJapo, que no tinha aberto nunca. At deva-garzinho, a China est abrindo, apesar de teremum bom controle de capital. Mas como eles tmfiliais de bancos internacionais no seu territrio,devagar o andor vai caminhando. A menos quehaja uma segunda crise financeira pesada nosbancos, que arrebente com o sistema financeiroglobal, no vejo nenhuma evidncia de que vaiacabar a globalizao.

    52. Quer dizer, no h nenhuma possibilidadede se repetir a crise de 1930?

    No, nenhuma, porque 1930 no tem nadaque ver com essa crise, no sentido de que, em1930, eles eram ultraliberais at na poltica. Querdizer, deixaram quebrar. E no fizeram polticasanticclicas. Em 2008, todo mundo fez poltica

    anticclica, razo pela qual esto todos com dfi-cits fiscais gigantescos. No foi o caso de 1930,em que houve um ajuste fiscal que precipitouuma recesso prolongada.

    Eu no acho que estamos beira de uma re-cesso prolongada. Acho que estamos beira deflutuaes no mercado de ativos, flutuaes nainflao, flutuaes no balano de pagamento.Estamos dentro de um perodo de grande instabi-lidade, com tendncia estagnao relativa. Masno a depresso de 1930, est claro?

    53. A professora no tem uma visopessimista do futuro?

    No, nem os Estados Unidos esto dando lu-gar a isso e muito menos a sia. A nica visopessimista da Europa, por razes bvias, por-que eles esto mal. A Europa pode enfrentar umadepresso.

    54. O FMI liberou recentemente uma previsode 3% de crescimento para a economia

    norte-americana. Para a economia europeia,o Fundo prev pouco mais de 1% agora em2010. O que a senhora acha disso?

    otimismo deles, porque eu no sei da ondevo tirar 1,10%. Porque, na verdade, a Inglaterrano est crescendo, a Alemanha tampouco. S setiraram da Frana e da Itlia. Eu no vi a base declculo do FMI.

    55. O que a professora pensa que significaadministrar as necessidades de

    desenvolvimento da populao mundial,em especial das mulheres, em termosde, por exemplo, acesso educao e capacitao econmica, em um cenrioque deve envolver diferentes estilosde vida e um comportamentoecologicamente sustentvel?

    No h a menor possibilidade de adminis-trar globalmente uma agenda dessas. Essa aagenda mundial que est vigente. Est tudo a.No falta nada. Tem tudo, at as questes am-

    MariadaC

    onceioTavares

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    16/132

    bientais. Nenhum dos fruns mundiais sobre oassunto est de acordo. O Frum de Copenhaguesobre o ecossistema foi um fracasso. Os frunssobre o financeiro, idem. Mesmo que faam leis,na prtica, no funcionam. Isso vai depender daspolticas nacionais. Se os pases fizerem uma po-ltica ativista com grande interveno do Estadonessa direo, cada pas tem chance de melhorar.

    Mas o mundo inteiro no pode administrar umaagenda desse porte. Se o dinheiro ningum con-segue, quanto mais uma coisa dessas. Essa uma agenda complexa, muito complexa.

    O capitalismo nunca foi administrado glo-balmente. O que administrvel, no mximo, o dinheiro, que a nica coisa que importa paraeles. E assim mesmo, isso s depois do sculoXIX. At ento, no se administrava nada.

    56. uma participao tipocapitalismo de Estado?

    No. At mesmo porque o objetivo dos gran-des pases no o capitalismo de Estado. Quemtem hoje esse objetivo a China, que regrediudo socialismo para o capitalismo de Estado. NaRssia eu no creio que se poderia falar queimpera um capitalismo de Estado. Tem muito li-beralismo e virou um pas primrio-exportador.Hoje, capitalismo de Estado s na China. Se nsavanarmos mais nessa direo, talvez o Brasil,no futuro, tenha um capitalismo desse tipo. Mastambm no provvel, porque os nossos capi-talistas no gostam muito da ideia. Eles gostamque o Estado intervenha a favor dos ricos, comoos Estados Unidos. Para socializar os prejuzose deixar privatizar os lucros. Continua a mesmahistria. Nada mudou.

    57. Voltando para anlise da crise, estaincide sobre as mulheres, considerandoque sobre os ombros delas est aresponsabilidade familiar, tanto no Brasilcomo na Amrica Latina e no mundo todo.O que a senhora pensa disso?

    No plalquida diferente, veja voc. Nocaso, insisto, no caso americano, talvez tenhaincidido mais sobre as mulheres da classe alta.Porque os postos altos que foram eliminados, fo-ram seguramente os das mulheres. verdade quehavia poucas mulheres, mas eram as que ocupa-vam os postos de tomada de decises e as queestavam nas classes dominantes. Apesar de queainda tem mulher nas tomadas de decises pol-ticas. J no nosso caso, no. Tnhamos poucas

    mulheres nas decises econmicas, embora algu-mas notrias na parte poltica. Portanto, na parteeconmica, a sim, so as de baixo, as que levammuita pancada. Como elas so administradorasdo oramento familiar e o crdito foi o que sofreumais, um aperto de crdito bate pesado nas mu-lheres que esto exercendo atividades informais.O crdito muito importante, porque bate muito

    pesado nos oramentos familiares e, portanto,nas mulheres, que so, em geral, as responsveispela administrao dos oramentos domsticos.E bateu tambm, do ponto de vista do emprego,pesado nas mulheres que, porventura, tivessemacesso aos postos altos no mercado de trabalho.

    58. Ainda pensando nas mulheres e no acessodelas ao sistema de previdncia social, aprofessora acha que esses sistemas voser muito afetados por essa crise ou pelo

    reordenamento do acesso a esses sistemas? Vo. Todo mundo est criticando o sistemade previdncia social, porque tem muito dficitfiscal. Cada vez que o dficit fiscal aumenta, vaitodo mundo em cima da Previdncia, dizendo quea culpa dela. Na verdade, as discusses, em prin-cpio, no discriminam entre homens e mulheres.Na prtica, outra coisa. Na verdade, como amaior parte dos trabalhadores que no tm car-teira assinada composta por mulheres, difcilpara elas entrar no sistema da previdncia social.

    Mas, de um modo geral, todos os pases desenvol-vidos esto criticando o sistema. O nico que euacho dos desenvolvidos que aguenta, porque temmais tradio, o francs. Toda vez que falam quevo mudar, a turma l protesta, entra em greve. sempre assim.

    Na Frana complicado, porque eles tmmuita tradio no estado do Bem-Estar Social,sobretudo na previdncia social, na sade e naeducao. Ento, qualquer coisa que implique emdesuniversalizar o sistema, tem grande reao.

    Aqui no Brasil, se ganhar a direita, o que prova-velmente vai ocorrer. Mas se ns ganharmos, issono vai ocorrer de forma nenhuma, porque evi-dentemente o nosso sistema de previdncia so-cial, justamente por ter uma cobertura muito am-pla, que no descrimina entre homens e mulherese nem requer carteira assinada, distribuidor derenda. Ento, para o Brasil importante, paramelhorar a distribuio de renda, que o sistemase mantenha. Mas tem grandes objees. Toda adireita defende o aumento da idade da aposen-tadoria e est contra um sistema universal, que

    tenha cobertura ampla.

    Conve

    rsandocom

    MariadaConceioTavares

    14

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    17/132

    59. A professora pensa que ocapitalismo aposta nos sistemasprevidencirios privados?

    No o que eu penso, o que esto fa-zendo. At de sade. Essa reforma da sade dopresidente Obama para as pessoas se filiaremao sistema de sade privado. No sade p-

    blica. Ele quer fazer universal, mas j perdeu.No tem jeito. Imagina! Os Estados Unidos notm a menor hiptese de voltar atrs. A gran-de fonte de resistncia, no caso da sade, aInglaterra e, no caso dos demais sistemas deBem-Estar Social, a Frana e o norte da Europa, claro. A Sucia, a Noruega e a Dinamarca,porque so os pais da criana. O Brasi l, se Deusquiser, deve manter ou at avanar um pouco,no que diz respeito sade e educao. Asade universal, mas os padres so bem bai-xos. Mas universal. o nico sistema univer-sal da Amrica Latina. No podemos esquecerisso. O pessoal tende a esquecer.

    60. Nem a Argentina tem?

    Ningum tem mais nada, porque todo mun-do privatizou na dcada de 1990.

    61. E a educao tambm universal,embora ela seja praticadade forma pblica-privada?

    Mas tambm s ns temos. S o Brasil temum mini-estado de Bem-Estar Social que andamal das pernas, mas existe. E os outros, nem male nem bem. No existe. O Peru um desastre. Stem ONGs tomando conta das pessoas. A Argen-tina e o Chile, que eram os melhores da AmricaLatina, tiveram seus sistemas desestruturadoscom o neoliberalismo.

    62. No caso das mulheres, do acesso delasao mercado de trabalho, a professora

    muito pessimista em relao aos pasesditos centrais? No caso dos paseseuropeus, a situao das mulheresest muito comprometida?

    Sim. Por um lado, est comprometida pelodesemprego nos postos baixos. E, por outro lado,est comprometida pelo desemprego dos de cimaou pelo no acesso aos empregos dos de cima.Tem menos posies no mercado de trabalho eeste disputado no tapa. E eles tinham avan-ado mais. Ento, ruim, porque justamente o

    sistema central, que tinha avanado mais, est

    recuando. Tanto no estado do Bem-Estar Socialquanto na questo das mulheres. No boa aperspectiva nos pases centrais, nesse sentido.Mas espero que a sia compense de alguma ma-neira, que eles melhorem os sistemas. Por en-quanto, no fizeram grandes coisas.

    63. E a Amrica Latina?

    Na Amrica Latina, eu espero que se mante-nha, pelo menos no Brasil. E os outros dependemmuito do governo. No Chile, por exemplo, vaicomplicar porque ganhou o governo conservador.E a presidenta Bachelet tinha feito uma reformada sade, em direo sade pblica. E ele ca-paz de recuar. O que est mais vulnervel, nessacrise, so os sistemas do Bem-Estar Social e, nocaso dos Estados Unidos, substitudo o WelfareState pelo Warfare State, estado de guerra. No

    caso dos demais pases, o dficit fiscal amplia-se e a equipe econmica vem logo em cima daspolticas sociais.

    64. O dficit fiscal tem alguma soluo?

    Soluo sempre tem, resta saber em que pra-zo. preciso recuperar a economia. Para comeode conversa, dficit fiscal s consegue ser resolvi-do quando a economia est crescendo. Como elano est crescendo brilhantemente, a curto prazo,no vejo uma soluo.

    65. Baixo crescimento, desemprego e recesso?

    Mas isso no melhora o dficit fiscal, piora.O problema que, dessa vez, a soluo de que opovo paga no resolve o assunto. O dficit fiscalno se resolve custa do povo, s se resolve custa do capitalismo retomar seu crescimento.

    Alis, diga-se de passagem que o presidentedo Fundo Monetrio Internacional declarou queno estamos com problema fiscal nenhum. Parao Fundo Monetrio, que bastante ortodoxo, o

    Brasil no est com problema. Mesma coisa nabalana de pagamentos, que sempre nos preocu-pa, porque a fragilidade externa uma ameaapermanente nesse pas. Mesmo assim eles noesto preocupados. O Fundo Monetrio acha queo Brasil est bem. a primeira vez que ouvimos oFundo Monetrio dizer que estamos bem. Esperoque tenham razo dessa vez.

    66. E a Amrica Latina no uma preocupao?

    A Amrica Latina toda, assim como todo o

    mundo, muito diferenciada. Eu acabei de fazer

    MariadaC

    onceioTavares

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    18/132

    um seminrio no Chile sobre a Amrica Latina. Seolhar os dados da CEPAL, voc ver que vai desdeo Mxico, que cai 8%, at a Argentina, que sobe3%. A Bolvia cresceu, veja voc. Ento, umaespcie de sanfona. Hoje, no d para falar deAmrica Latina. A Amrica Latina realmente umcontinente muito heterogneo. Tem que ver paspor pas. No uma coisa fcil.

    67. E o Caribe?

    O Caribe fica sempre mal. Esses pases soeconomias muito pequenas. No chegam a serpases propriamente ditos. So naes, diga-mos, e que dependem muito de como anda aeconomia americana, de quanto eles ajudam ouno ajudam. Ali sim, uma periferia imediata.Eles e o Mxico so periferias imediatas dosEstados Unidos. Ento, o destino deles muitodependente do que vai acontecer com a econo-mia americana.

    68. E Cuba?

    Cuba no depende de ningum. E no ti-veram recesso. Tiveram crescimento baixinho,mas no tiveram recesso. Esto isolados, de-pendem da poltica nacional deles e sua eco-nomia est h muito tempo em crise. E estosaindo fora devagarzinho. Esto liberalizandoalgumas contas, tais como o turismo, etc.

    69. E tem entrada de capitais?Capitais chins e indiano?

    Tem, por causa do turismo, porque eles soum centro turstico importante. J foram e conti-nuam sendo.

    70. Professora, falando ainda desse pedao,Amrica do Sul e Amrica Central, quala origem dessa fala to conservadorabrasileira? contra o papel que o Brasil

    vem fazendo na cooperao com os pasesmais pobres da Amrica Central? Voc abreo jornal e, cada vez que o Brasil faz umapoltica especifica, nos deparamos comcrticas severas. Qual a origem dessecomportamento?

    A origem que a direita muito conser-vadora em poltica internacional, razo pelaqual, se ganhar a direita no Brasil, teremos uminterrupo na poltica internacional. De novo.E um recuo, porque avanamos muito nesses

    ltimos oito anos. difcil que a direita recueno Bolsa Famlia, etc. Eles tm que manter mi-nimamente. Mas, na poltica exterior, outracoisa. Coisas dos pobres a doutrina do BancoMundial, e eles no vo mudar isso. Mas sedepender deles a poltica externa, seguramentemudar. A elite brasileira histrica.

    71. Caso acontea outro problema, aexemplo do que ocorreu com o Haiti,por causa do terremoto do incio doano seguramente, em outro governo,no teramos encaminhado assolues que foram realizadas.

    Eu no tenho a menor ideia do que ns te-ramos feito. Como, na verdade, eu no sei quegoverno seria alternativo ao nosso, fica difcilfalar. Sei que, se ganhar a outra banda, seguroque vai mudar a poltica. Tudo. Mercosul, integra-

    o da Amrica Latina, participao nos frunsmundiais, acordos com pases, como o que foirecentemente feito com o Ir, e com a Turquia,isso no haver nada. Eles so muito submissos ideia da poltica dos Estados Unidos.

    72. Professora, o que significa a questo domeio ambiente, da Amaznia?

    Essa questo no depende da polticainternacional, que no est indo a lugar ne-nhum. Eles esto sempre ameaando interna-

    cionalizar a Amaznia, mas no tm condiesde fazer. Ento, depende do que for feito peloBrasil. Por enquanto, estamos atacando a coi-sa do desmatamento. Ainda falta o tal modelode desenvolvimento sustentvel na Amaznia.Como deve ser feito esse desenvolvimento semdepredar o meio ambiente? Ento, agora, asgrandes discusses so em torno das centraiseltricas, energias, por a. O desmatamento jest sendo controlado minimamente.

    73. Ento, professora, voltando um poucopara a rea social, o Programa deAcelerao do Crescimento (PAC), que surgeinicialmente como um projeto mais voltadopara a infraestrutura, foi se ramificando eo tomou um desenho interessante. Agora,ele at se volta para a recomposiodo patrimnio histrico e, em reasespecficas, trouxe tambm uma discussodo que qualificao de mo-de-obra.

    Qualificao de mo-de-obra?

    Conve

    rsandocom

    MariadaConceioTavares

    16

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    19/132

    74. Qualificao de mo-de-obra local nessasatividades mais voltadas para o urbanismo.

    No foi o que eu prestei ateno. O que euprestei ateno foi a guinada da infraestruturaeconmica simples para a infraestrutura social,saneamento, transporte urbano, a questo dasfavelas, a questo do patrimnio. Isso eu vi. Mas

    basicamente um programa de investimento.

    75. Em termos de educao, faz sentido termosuma educao mais tcnica e intermediriapara essas novas reas?

    Acho, no s para as novas reas, mas deum modo geral, que foi feito um avano universi-trio, foram criadas universidades novas na fron-teira, nas zonas atrasadas, foi uma boa poltica. muito interessante, agora resta o ensino tc-nico e depois, claro, resta que a universidade

    apoie a melhora dos professores dos secundrios,porque o ensino secundrio, no geral, no vaimuito bem. Esse assunto tem que ser tratado glo-balmente, tanto do ponto de vista educacionalquanto de todos os pontos de vista. Eu acho quea coisa da educao seguramente a coisa maisimportante para o governo. Os mapas que estono gabinete do Lula so os da educao. Ele estmuito entusiasmado com a meta educacional,considera a educao um dos problemas maisdifceis. Regionalizou o mapa com os problemastodos. Ento, provavelmente, a prxima dcada

    vai ser uma dcada muito importante para a edu-cao.

    76. Estamos chegando ao final, a professoraquer fazer uma concluso?

    Concluso eu no tenho. No que diz respeitoao mundo, h uma incerteza muito grande. Nod para prever o que vai acontecer e no prov-vel que a era de incerteza diminua subitamente,por milagre de Deus ou por milagre chins. in-certo. Est desequilibrado. No h convergncias

    nem no crescimento, nem no emprego e nem nosprogramas sociais.

    77. Definitivamente, a era deouro do capitalismo se foi?

    J tinha ido nos anos 1990. O problema que, mesmo desequilibrados, a mquina do cres-

    cimento eram os Estados Unidos, via comrcio.Ento, esses anos foram expansivos via comrcio,via internacionalizao das finanas, via investi-mento direto. Mas isso tudo agora est em tela dejuzo. Ento, se eles no so mais a locomotiva,no tem mquina de crescimento global, porquea China no locomotiva da economia mundial.Isso por um lado. Por outro lado, como a Amrica

    Latina se saiu relativamente bem nessa crise, de-pendendo dos governos nacionais e da poltica deunio e de apoio recproco da Amrica do Sul con-tinuar, temos chances de uma integrao maiorem infraestrutura, por exemplo. Espero que noa monetria, porque a monetria, como se viu, deprimente. Mas avanou na questo de no usaro dlar como moeda em certas transaes bilate-rais, fazer acerto de contas nos bancos centrais.Est sendo feito com a Argentina, em particularno Mercosul. Ento, eu no estou pessimista, nem

    com o Brasil, pelo contrrio. Uma das crises queme pegou mais otimista foi essa, porque as de-mais, eu no estava nada otimista. Mas nessa euestou. Acho que temos chances de sair dela bem.

    Dada essa diviso internacional do trabalhoser diferente da anterior, e dado que quem puxaas matrias-primas no a Europa e nem os Es-tados Unidos, acho que o fato de a sia puxar bom. O problema maior que eu vejo do chinsvirar subimperialista. Vir para c, investir direto,comprar tudo. A eu vejo problema. Receio que

    a China possa nos prejudicar na concorrncia in-ternacional de manufaturas e nos tomar recursosnaturais e patrimoniais. Mas isso um risco quetodos correm, porque eles, evidentemente, novo ficar s para dentro e tambm no vo fi-car dependendo das exportaes americanas, queeles sabem que no vo se reativar como antes.A China tem o mercado interno prprio, tem umaindstria que foi montada para exportar. Ento,como no pode exportar, pode fazer como os Es-tados Unidos fizeram antes. Quando no podiamexportar, faziam o investimento direto. Tendema repetir a performance americana no que dizrespeito insero internacional deles. Assim, aChina capitalista, sobretudo no que diz respeito sua insero internacional.

    78. Obrigada, professora.

    MariadaC

    onceioTavares

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    20/132

    Artigo

    I. O SENTIDO DO DESENVOLVIMENTO

    OLHANDO PARA O FUTURO

    A inflexo histrica

    Diz-se que o sculo XX no terminou em 2000, esim em 1989, com a queda do muro de Berlim. Essa mu-dana teve lugar no marco da consolidao de um novoparadigma produtivo, em cuja base estava a aceleraodo conhecimento cientfico-tecnolgico, uma progressi-va globalizao dos mercados e das comunicaes, assimcomo a exacerbao da competitividade pelo efeito com-binado das anteriores.

    Em todo esse tempo, imperou um modelo de desen-volvimento que nos disse que para termos sociedadesmais justas e igualitrias bastava apenas que a econo-mia crescesse, que para isso era importante deixar que osmercados funcionassem livremente e sem regulaes, eque o Estado um obstculo ao crescimento e igualdade.Resumindo, a tese de crescer para igualar.

    Sustentamos com muita responsabilidade que essatese equivocada. E junto com a crise econmica globalesse modelo de desenvolvimento parece ter colapsado.

    O crescimento condio necessria para igualar, verdade, mas no o suficiente. preciso uma ao fortee decidida do Estado, baseada no princpio da igualdadede direitos. Por outro lado, deixar o crescimento da eco-nomia nas mos apenas do mercado demonstrou ser umerro, j que necessria uma ao do Estado na macroe-conomia, na poltica industrial, em pesquisa e desenvol-vimento, em educao, em inovao, aes necessriaspara o crescimento da economia na era da informao edo conhecimento. E to importante quanto crescer paraigualar, o igualar para crescer.

    A atual crise financeira, considerada a mais profundadesde a Grande Depresso, marca o fim de um ciclo decrescimento e bonana, e impulsiona uma nova maneirade pensar o desenvolvimento. A crise que explodiu em2008 no s teve um impacto econmico significativo acurto prazo, como ainda gerou um profundo debate so-bre o devir da lgica de acumulao econmica, sobre asregras de funcionamento do sistema econmico mundiale o papel das polticas pblicas e do Estado na dinmicaeconmica e social.

    Com relao ao ciclo econmico, a crise ps fim aum perodo de bonana da economia mundial sustenta-

    A HORA DA IGUALDADE1Alicia Brcena *

    * Secretria Executiva da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe das Naes Unidas

    1 Artigo baseado no documento de posio do Trigsimo terceiro perodo de sesses da CEPAL, La hora de la igualdad Brechas por cerrar, caminos por abrir,LC/G.2432(SES.33/3), Maio de 2010, Naes Unidas, Santiago

    do em uma bolha financeira sem precedentes. Essa crise

    teve origem devido a uma combinao de fatores, entreos quais encontram-se profundos desequilbrios globais,nveis de liquidez internacional muito elevados junto compolticas monetrias pro-cclicas e um processo de globa-lizao e inovao financeira inadequadamente regulado.Esses elementos permitem explicar a dinmica da crise eas enormes dificuldades para super-la.

    Em sntese, a equao entre mercado, Estado e socie-dade que prevaleceu nas ltimas trs dcadas, mostrou-seincapaz de responder aos desafios globais de hoje e deamanh. O desafio ento colocar o Estado no lugar que

    lhe cabe de frente para o futuro.

    A hora da igualdade

    A desigualdade na Amrica Latina e no Caribe per-corre cinco sculos de discriminao racial, tnica e degnero, com cidados de primeira e segunda categoria e apior distribuio de renda do mundo. Percorre dcadas re-centes em que se exacerbou a heterogeneidade em quantos oportunidades produtivas da sociedade, deteriorou-seo mundo do trabalho e segmentou-se o acesso proteosocial. Percorre as desigualdades frente globalizao. A

    crise iniciada em 2008 em escala global um momentoem que a igualdade aparece novamente como valor intrn-seco do desenvolvimento que buscamos. Ao confrontar asbrechas, a sociedade migra do individual ao coletivo, ebusca superar os vcios e esquecimentos da desigualdadecosturando o fio da coeso social.

    A igualdade de direitos brinda o marco normativoe serve de base para pactos sociais que se traduzam emmais oportunidades para aqueles que tm menos. Um pac-to fiscal que procure uma estrutura e uma carga tributriacom maior impacto re-distributivo, capaz de fortalecer o

    papel do Estado e a poltica pblica para garantir umbraisde bem-estar parte dessa agenda da igualdade, assimcomo tambm o uma institucionalidade trabalhista queproteja a segurana do trabalho.

    Igualdade social e dinamismo econmico no deve-riam ser caminhos divergentes no caminho das naes,no devem ser objetivos subordinados um ao outro. Ogrande desafio encontrar as sinergias entre ambos. Oque propomos vai nesta direo: deve-se crescer paraigualar e igualar para crescer. No horizonte estratgico dolongo prazo, igualdade, crescimento econmico e susten-tabilidade ambiental devem caminhar de mos dadas.

    18

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    21/132

    Na considerao do valor da igualdade, e na maneiracomo se conjuga com o crescimento, no se pode deixar delado a mudana climtica, um fator que determina marca-damente o futuro de todos. Igualdade significa, nesse sen-tido, solidariedade com as geraes futuras que vivero emum cenrio mais incerto e com maior escassez de recursosnaturais. Significa, alm do mais, interceder pela celebra-o de acordos internacionais para mitigar os efeitos damudana climtica de tal modo que se respeite o princpiode responsabilidades comuns porm diferenadas, e queno sejam os pobres nem os pases pobres os que termi-nem assumindo os maiores custos desta mudana.

    O Estado e a poltica

    Uma sociedade que no se educa, que no investe emcoeso social, que no inova, que no constri acordosnem instituies slidas e estveis tem poucas possibilida-des de prosperar. Ante esses desafios, o Estado deve ser ca-paz de prover uma gesto estratgica com vistas ao longoprazo, e intervir no desenho do desenvolvimento nacional.

    O Estado deve ter a capacidade de promover um di-logo que lhe garanta maior legitimidade para arbitrar nosdiferentes interesses com claridade de objetivos scioe-conmicos mediante a regulao, o que implica melhoraras competncias reguladoras do prprio Estado.

    No mbito poltico, o Estado tem um papel de prota-gonista ao qual no pode renunciar. Trata-se de velar por

    mais democracia e igualdade, duas caras da moeda da po-ltica. Com relao democracia, o Estado deve procurarmelhorar a qualidade da poltica em seus procedimentos,promover agendas estratgicas que reflitam a deliberaode um amplo espectro de atores e velar para que a vonta-de popular se traduza em pactos que deem legitimidadepoltica e garantam polticas de mdio e longo prazo.

    Em matria de igualdade, o Estado deve se ocuparem aumentar a participao dos setores excludos e vul-nerveis nos benefcios do crescimento. O exerccio plenodos direitos e de uma voz pblica que constitua o vnculoentre a poltica e a igualdade social.

    preciso contar com polticas de Estado que somema dinamizar o crescimento, promover a produtividade,fomentar uma maior articulao territorial, impulsionarmelhores condies de emprego e de institucionalidadede trabalho e prover bens pblicos e proteo social comclara vocao universalista e re-distributiva.

    II. A AGENDA DE UM DESENVOLVIMENTO COM IGUALDADE: SEIS REAS ESTRATGICAS

    2. Uma poltica macroeconmica para o desenvolvimento inclusivo

    A Amrica Latina e o Caribe podem e devem crescermais e melhor. Para isso, o papel das polticas macroeco-nmicas no um assunto trivial nem indiferente.

    De fato, o entorno macroeconmico surte diversosefeitos no desenvolvimento. Entre eles, encontram-se os

    impactos sobre a taxa de investimento, a estabilidade depreos, a intensidade do valor agregado gerado nas expor-taes e sua inter-relao com o resto da produo inter-na (PIB), a inovao e sua distribuio entre diferentessetores da economia, o desenvolvimento das pequenase mdias empresas e a formalidade ou precariedade domercado de trabalho.

    A experincia latino-americana e caribenha mostraum elevado grau de vulnerabilidade s condies exter-nas, tanto por movimentos cclicos de fluxos financeiros,que afetam com freqncia e relevncia os tipos de mu-dana, como por variaes nos termos do intercmbio;deste modo, a demanda agregada nas economias nacio-nais experimentou contnuos altibaixos cclicos associa-dos aos ajustes econmicos a choques provocados por va-riaes nessas variveis de magnitude considervel, queprovocaram intensas flutuaes da atividade econmica edo emprego (ver o grfico 1).

    Grfico 1

    AMRICA LATINA E CARIBE (19 PASES): TAXA ANUALDE VARIAO DOS CHOQUES EXTERNOS E CRESCIMENTO

    DA DEMANDA AGREGADA, 1990-2009a

    (Em porcentagem do PIB)

    Fonte: Comisso Econmica para Amrica Latina e Caribe (CEPAL), sobre a base de

    cifras oficiais e de Ffrench-Davis (2005).

    a Os choques externos representam a transferncia lquida de recursos provenien-tes do exterior, mais o efeito da relao de intercmbio, ambos medidos comoporcentagens do PIB. A transferncia lquida de recursos inclui o fluxo lquidode capitais (incluindo erros e omisses) menos o balano lquido de rendas (pa-gamento lquido de fatores) mais o balano lquido de transferncias correntes,excluindo porm as remessas de trabalhadores emigrados.

    Na Amrica Latina e no Caribe observou-se uma es-treita associao entre a brecha recessiva e a taxa de

    A HORA DA IGUALDADE /Alicia Brcena

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    22/132

    investimento em capital fixo, que reflete a subutilizaodos fatores produtivos. A persistncia das brechas reces-sivas se traduz, assim, em um decisivo desalento para oinvestimento produtivo e um vis regressivo ou de iniqui-dade por seu efeito negativo sobre o emprego e sobre asempresas de menor tamanho.

    Esses efeitos negativos explicam, em grande parte,o modesto crescimento das economias da regio nas duasdcadas de hegemonia do assim chamado modelo neoli-beral. Os xitos, sem dvida muito importantes, em ter-mos de controle da inflao, a conquista de certa discipli-na fiscal e o impulso exportador no foram acompanhadosde um crescimento vigoroso do PIB. Em mdia, entre 1990e 2009, a regio cresceu, em termos do PIB per capita,aproximadamente 1,7% ao ano, enquanto que no mundoa mdia girou em torno de 2,0% anual e na sia oriental2o crescimento do PIBper capitanesse perodo foi de 4,1%

    anual. Diante de cenrios de grande volatilidade, o Estadotem a obrigao de proporcionar um entorno macroeco-nmico estimulante para o investimento produtivo, a ino-vao e a gerao de emprego decente. Requer-se, por-tanto, uma coordenao estrita entre as polticas mone-trias, cambiais, fiscais e de conta financeira da balanade pagamentos. Nesses mbitos, essencial um conjuntocoerente de polticas macroeconmicas para aproximaras economias de sua fronteira potencial, proteg-las davolatilidade externa e fortalec-las mediante o uso pr-

    ativo dos instrumentos disponveis (financeiros, fiscais,cambiais).

    Em primeiro lugar, conseguir economias menos vo-lteis e mais prximas de seu potencial de crescimentorequer que se avance no controle da conta financeira dabalana de pagamentos. Isso no sinnimo de medidasprotecionistas genricas, nem do fechamento dos fluxosfinanceiros transnacionais. O capital estrangeiro pode terum papel valioso caso gere nova capacidade produtiva.

    Em segundo lugar, a necessria solidez e autonomiatcnica dos bancos centrais no deve ser entendida como

    algo excludente de uma necessria coordenao macroe-conmica com os governos e com estruturas institucio-nais permeveis aos indicadores que provm da economiano financeira. A inflao importa, mas no a nicacoisa importante.

    Em terceiro lugar, existe uma estreita relao entrea desigualdade medida por rendimentos e capital educa-tivo e trs variveis macroeconmicas: volatilidade fiscal,pr-ciclicidade fiscal e baixas taxas de crescimento eco-nmico. Para desamarrar este n, preciso aplicar regrasfiscais claras e contra-cclicas que apontem no sentido de

    reduzir a volatilidade agregada e expandir a base fiscalpara aumentar o gasto e imprimir ao investimento socialum trao a favor da igualdade. A reduo da pobreza e adistribuio da renda no melhoraro significativa e sus-tentavelmente na Amrica Latina e no Caribe sem polti-cas fiscais ativas que incidam na eficincia e no potencialdistributivo dos mercados.

    Em quarto lugar, as polticas monetria e cambial de-veriam se alinhar com esses objetivos gerais, procurandopreos macroeconmicos que incentivem investimentosdos agentes, que tendam a diminuir a heterogeneidadeestrutural, isto , que difundam capacidades trabalhistaspara o conjunto do sistema produtivo.

    Em quinto lugar, o desenho e a construo de umsistema financeiro inclusivo e orientado ao fomento pro-dutivo requer que se expanda e desenvolva o instrumentaldisponvel para administrar riscos, diversificar o acesso eesticar os prazos de financiamento. Esforo especial deve-se fazer nesse sentido para apoiar as pymes e potencia-lizar o papel das micro-finanas, em diferentes escalas emediante diversas instituies. Este um ingrediente es-sencial para crescer com igualdade. A reforma do mercadode capitais nessa direo significa fortalecer a banca p-blica, e especialmente a banca de desenvolvimento, comoum instrumento que permita potencializar e democratizaro acesso ao crdito, sobre tudo a longo prazo e orientadopara o financiamento do investimento.

    Finalmente, evitar que se acumulem desequilbrios

    na demanda agregada, na conta corrente ou no tipo decmbio, com oportunas polticas contra-cclicas, requercontnuos mini-ajustes das variveis macroeconmicas,que permitem evitar a necessidade de maxi-ajustes trau-mticos, que costumam envolver sobre-ajustes dos preosmacroeconmicos e recesses regressivas em termos deigualdade.

    A sustentabilidade do desenvolvimento exige pol-ticas pblicas consistentes com a incluso social, querdizer, que apontem no sentido de um padro de inserointernacional onde se reduzam, complementariamente, as

    brechas internas e externas. A maneira como se aborda areforma dos mercados de capitais nacionais e a conexocom os mercados de capitais financeiros internacionaisrepresentam um desafio crucial para conseguir uma ma-croeconomia orientada para o desenvolvimento econmi-co e social sustentvel.

    3. A convergncia produtiva

    Dois traos distinguem claramente as economiaslatino-americanas e caribenhas das desenvolvidas em ma-tria de produtividade. O primeiro a brecha externa,

    2 Mdia de seis pases.

    A HORA DA IGUALDADE /Alicia Brcena

    20

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    23/132

    quer dizer, o atraso relativo da regio em relao a suasprprias capacidades tecnolgicas com relao fronteirainternacional (ver o grfico 2). A velocidade com que aseconomias desenvolvidas inovam e difundem tecnologiasem seu tecido produtivo supera a velocidade com queos pases da Amrica Latina e do Caribe so capazes deabsorver, imitar, adaptar e inovar a partir das melhoresprticas internacionais. O segundo aspecto distintivo a brecha interna, definida pelas elevadas diferenas deprodutividade que existem entre setores, dentro dos seto-res, e entre empresas nos pases, muito superiores s queexistem nos pases desenvolvidos. Isso conhecido comoheterogeneidade estrutural, e denota marcadas desigual-dades entre segmentos de empresas e trabalhadores, com-binadas com a concentrao do emprego em estratos demuito baixa produtividade relativa.

    Grfico 2AMRICA LATINA E OS ESTADOS UNIDOS:

    PRODUTIVIDADE RELATIVA ECOEFICIENTE DE VARIAO

    (ndice 1990=100)

    Fonte: Comisso econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL), sobre a basede cifras oficiais dos pases e da OIT, Laborsta (http://laborsta.ilo.org/).

    Nota: A linha azul mede a brecha externa, pois mede a distncia entre a produti-vidade do trabalho da regio e a produtividade do trabalho dos Estados Unidos. A

    linha vermelha mede a brecha interna, pois mede a disperso do cociente entre aprodutividade do trabalho de cada um dos nove grandes setores de atividade eco-nmica considerados dos pases da Amrica Latina e a produtividade do trabalhodo mesmo setor nos Estados Unidos.

    A heterogeneidade estrutural contribui para explicar,em grande parte, a aguda desigualdade social latino-ame-ricana. De fato, as brechas na produtividade refletem e aomesmo tempo reforam as brechas em quanto a capacida-des, a incorporao do progresso tcnico, a poder de ne-gociao, a acesso a redes de proteo social e s opesde mobilidade ocupacional ascendente ao longo da vidaprofissional. Ao mesmo tempo, a maior brecha interna re-

    fora a brecha externa, e se alimenta parcialmente dela.

    Na medida em que os setores de baixa produtividade tmenormes dificuldades para inovar, adotar tecnologia e im-pulsionar processos de aprendizagem, a heterogeneidadeinterna aprofunda os problemas de competitividade sist-mica. Dessa forma, so gerados crculos viciosos no sde pobreza e baixo crescimento, como tambm de apren-dizagem lenta e frgil mudana estrutural.

    As maiores brechas internas de produtividade naregio significam maiores brechas salariais e uma piordistribuio da renda. Desse modo, a convergncia nosnveis de produtividade setoriais (convergncia interna)deveria levar a uma melhor distribuio da renda e a umamenor excluso social. Por outro lado, a reduo da bre-cha externa de produtividade com relao aos EstadosUnidos (convergncia externa) supe maiores nveis decompetitividade e a possibilidade de reduzir diferenas derenda por habitante com os pases desenvolvidos.

    Os setores de alta produtividade da regio (mine-rao, eletricidade e setor financeiro) representam umaporcentagem bastante reduzida da ocupao formal quese mantm praticamente estvel entre 1990 e 2008 (de7,9% para 8,1%); pelo contrrio, reduz-se a participaono emprego formal dos setores de produtividade mediana(indstria e transporte), de 23,1% em 1990 para 20,0%em 2008 e, ao mesmo tempo, aumenta a dos setores debaixa produtividade (agricultura, construo, comrcio eservios comunais e pessoais), de 69,0% em 1990 para71,9% em 2008.

    A evoluo da produtividade relativa da AmricaLatina com relao dos Estados Unidos mostra que ossetores de alta produtividade da Amrica Latina fecham abrecha externa entre 1990-2008. J na maioria dos seto-res de mdia e baixa produtividade, como a agricultura, aindstria, o transporte e o comrcio, a brecha se amplia,o que levou a um considervel aumento da disperso daprodutividade relativa. Dito de outra forma, uma pequenaporcentagem de empresas e trabalhadores se aproxima dafronteira internacional. O resto se distancia dela, o querefora as profundas desigualdades.

    Na Amrica Latina, os agentes de menor tamanhorelativo constituem um conjunto muito heterogneo, quevai desde micro-empresas de subsistncia at empresasmedianas exportadoras relativamente dinmicas. Se com-pararmos o desempenho dessas empresas na regio como que se registra em pases desenvolvidos, ressaltam doisaspectos importantes. Em primeiro lugar, as diferenasna produtividade relativa de cada pas (entre as grandesempresas e o resto) so muito maiores na Amrica Latinaque nos pases desenvolvidos. Enquanto a produtividadede uma micro-empresa no Chile equivale a apenas 3% dade uma grande empresa no mesmo pas, na Frana, as

    A HORA DA IGUALDADE /Alicia Brcena

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    24/132

    empresas de tamanho mais reduzido mostram uma pro-dutividade equivalente a 71% com relao das grandesempresas. Em segundo lugar, as diferenas entre micro-empresas, por um lado, e pequenas e mdias empresas,por outro, tambm so maiores na regio em comparaoaos pases desenvolvidos considerados. Enquanto no Bra-sil a produtividade de uma micro-empresa equivale a 25%da de uma empresa mediana e a 37% da de uma pequenaempresa, na Espanha essas mesmas relaes so de 60%e 73%, respectivamente.

    Por outro lado, enquanto na regio os setores inten-sivos em recursos naturais da regio adquiriram crescenteimportncia desde a dcada de 1980, os pases desenvol-vidos modificaram sua estrutura produtiva e suas modali-dades de produo para setores intensivos em tecnologia,como consequncia de uma maior incorporao das tec-nologias da informao e das comunicaes.

    Do ponto de vista das polticas, um enfoque macro-econmico orientado estritamente para as metas de in-flao claramente insuficiente. Prope-se, nesse marco,transformar a estrutura produtiva a partir de trs eixosintegrados de poltica: i) o industrial, com um vis incli-nado a setores com maior contedo de inovao (fecha-mento das brechas internas entre setores); ii) o tecnol-gico, centrado no fortalecimento da oferta e sua articu-lao com a demanda para criar e difundir conhecimento(fechamento da brecha externa em relao a da fronteirainternacional) e iii) o apoio s pymes, em que se reco-

    nheam as desigualdades das empresas para responder asinais de preo (fechamento das brechas entre agentes).

    Priorizar o desenvolvimento de setores com altocontedo de conhecimento e romper o crculo viciosoem relao dotao de fatores, centrado nos recursosnaturais, supe que os Estados desenvolvam uma novainstitucionalidade, tributao e estratgia em relaoao tecido produtivo e seus agentes. Uma robusta bancade desenvolvimento, com capacidade de financiamentoe planificao a longo prazo algo essencial. De outraparte, existem instrumentos que procuram o avano das

    fronteiras produtivas de nossas sociedades: fundos tec-nolgicos setoriais, sistemas de propriedade pblica ourenda que tributem as atividades extrativas associadas arecursos estratgicos, combinao de instrumentos co-merciais e fiscais (tarifas, renncias fiscais seletivas eimpostos) orientados para apoiar setores exportadoreschave ou que integram cadeias em plataformas transna-cionais. Finalmente, no se pode eludir o compromisso demdio e longo prazo de um forte aumento do investimen-to pblico orientado pesquisa e ao desenvolvimento e infra-estrutura. Sem capacidades produtivas articuladascom a produo, e sem uma logstica que transforme aspossibilidades em plataformas reais de criao de riqueza

    e comunicaes, os gargalos do crescimento no serosuperados.

    4. A convergncia territorial

    As brechas de produtividade e sociais se refletem na

    segmentao territorial e por sua vez se nutrem dela. Adesigualdade espacial a outra face que expressa e re-fora as brechas internas e externas de produtividade, ea segmentao territorial inibe encadeamentos nos pa-ses dados os problemas de infra-estrutura. Nos pases, oscontrastes entre distintos territrios quanto aos nveis derenda, pobreza, produtividade e acesso ao bem-estar con-tribuem para os contrastes agregados que tais indicadoresexibem nacionalmente.

    Um indicador ilustrativo a brecha de PIBper capitaentre a regio mais rica e a mais pobre de um pas. Ao

    comparar alguns pases da Amrica Latina com alguns daOrganizao de Cooperao e Desenvolvimento Econmi-cos (OCDE), vemos que nos ltimos, o indicador pratica-mente no supera as duas vezes (em mdia localiza-secerca de 1,76), enquanto que nos pases da regio chegaa superar as oito vezes. Da a importncia das polticasque contemplem no apenas a convergncia produtiva,como tambm a convergncia espacial.

    Em termos de macrorregies, no caso da Amrica doSul, observa-se uma concentrao de populao menorde 18 anos com graves privaes nas regies andina e

    amaznica, em cujos territrios mais de 88,8% da popu-lao encontra-se nessa situao. No Mxico e na AmricaCentral, observa-se que as zonas mais crticas tendem alocalizar-se onde h uma alta incidncia de populao in-dgena (sul de Mxico e Guatemala). A populao infantilcom maior vulnerabilidade nutricional se concentra naszonas altas da Amrica Central e na serra e no altipla-no dos Andes, com maior populao de origem indgena,onde as mes so analfabetas absolutas ou no chegarama terminar a educao primria e vivem em condio depobreza extrema (condio que alm do mais inclui umlimitado acesso a gua potvel e servios de sade).

    Nas cidades, sobretudo nas grandes, a heterogenei-dade territorial adota a forma de segregao residencialintra-urbana, onde se d um vnculo claro entre hetero-geneidade estrutural e segmentao do mercado de tra-balho, dados os custos do transporte e as dificuldades deacesso a lugares e redes. A segregao residencial signi-fica que os diferentes grupos scioeconmicos de umacidade ou metrpole vivem de maneira separada, com es-cassa ou nula convivncia residencial.

    Essa a base territorial do crculo vicioso de repro-duo da pobreza e da marginalidade nas cidades, ondese concentra grande parte da populao latino-americana

    A HORA DA IGUALDADE /Alicia Brcena

    22

  • 5/23/2018 AUTONOMIA ECONMICA

    25/132

    e caribenha. Remediar a desigualdade territorial , tam-bm, abordar a desigualdade geral partindo pela articula-o dos espaos mais marginalizados com os setores maisdinmicos.

    Cabe ao Estado um papel central se a criao de

    fundos de coeso territorial se colocar como eixo estra-tgico de uma maior igualdade territorial. Um fundo decoeso territorial tem ao menos um triplo objet