Autor: P. B. Kerr. - Visionvox...Eu vi-o assim que a terra começou a tremer. Durante milhares de...

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Autor: P. B. Kerr. Título: A Aventura De Akhenaton. Editor: Difel, 2004. Título original: The Akhenaton Adventure. Género: Juvenil. Digitalização e Correcção: Dores Cunha. Nota: A numeração da página surge no rodapé. Estado da obra: Corrigida. Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Os Filhos da lâmpada A Aventura De Akhenaton. Tradução de Fernando Ferreira Alves Difel Este livro foi escrito para, e com a ajuda de, IKilliam Falcon Finlay Kerr, Charles Foster Kerr, e Naomi Rose Kerr, todos de London SidJI. Que sejam semprefelizes. Título original: The Akhenaten Adventure Copyright 2004, P. B. Kerr Revisão Tipográfica: Maria de Fátima St. Aubyn Impressão e acabamento: Tilgrafica, Braga Depósito Legal nº 17528/04 ISBN 972-29-0721-2/Novembro 2004 Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Editor PRÓLOGO Passavam poucos minutos do meio-dia num dia quente de Verão, no Egipto. Hussein Husseiout, o filho de onze anos, Baksheesh, e Effendi, o cão de ambos, estavam acampados no deserto, trinta quilómetros a sul do Cairo. Como era habitual, estavam a escavar, ilegalmente, à procura de artefactos históricos que pudessem vender na sua loja. Nada se movia no deserto excepto uma cobra, um bosteiro, um pequeno escorpião e, ao longe, um burro que puxava uma carroça de madeira carregada de folhas de palma por um caminho íngreme de terra batida. Tudo o resto era solidão e uma quietude ardente, e o visitante ocasional mal poderia imaginar que aquela encosta deserta de pedra e areia fazia parte do maior local de escavações arqueológicas do Egipto, e que uma fortuna incalculável de monumentos e tesouros se escondia ainda sob aquele terreno árido. Baksheesh gostava de ajudar o pai a encontrar coisas no deserto. Porém, estava muito calor e, de cinco em cinco minutos, Baksheesh ou o pai pousavam a pá e voltavam ao Land Rover para beberem água e passarem alguns minutos 7 a refrescarem-se com o ar condicionado do carro, antes de voltarem para a escavação. O trabalho também era perigoso, pois, para além das cobras e dos escorpiões, aquela área estava cheia de buracos profundos, nos quais um homem desprevenido ou um camelo poderiam facilmente cair. Tinha sido uma boa manhã de trabalho: até então, tinham encontrado várias estatuetas Ushebti ancestrais, um par de peças de cerâmica

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  • Autor: P. B. Kerr.Título: A Aventura De Akhenaton.Editor: Difel, 2004.Título original: The Akhenaton Adventure.Género: Juvenil.Digitalização e Correcção: Dores Cunha.Nota: A numeração da página surge no rodapé.Estado da obra: Corrigida.Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

    Os Filhos da lâmpadaA Aventura De Akhenaton.Tradução de Fernando Ferreira AlvesDifel

    Este livro foi escrito para, e com a ajuda de,IKilliam Falcon Finlay Kerr, Charles Foster Kerr, e Naomi Rose Kerr, todos de London SidJI.Que sejam semprefelizes.Título original: The Akhenaten AdventureCopyright 2004, P. B. KerrRevisão Tipográfica: Maria de Fátima St. Aubyn Impressão e acabamento: Tilgrafica, BragaDepósito Legal nº 17528/04ISBN 972-29-0721-2/Novembro 2004Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Editor

    PRÓLOGOPassavam poucos minutos do meio-dia num dia quente de Verão, no Egipto. Hussein Husseiout, o filho de onze anos, Baksheesh, e Effendi, o cão de ambos, estavam acampados no deserto, trinta quilómetros a sul do Cairo. Como era habitual, estavam a escavar, ilegalmente, à procura de artefactos históricos que pudessem vender na sua loja. Nada se movia no deserto excepto uma cobra, um bosteiro, um pequeno escorpião e, ao longe, um burro que puxava uma carroça de madeira carregada de folhas de palma por um caminho íngreme de terra batida. Tudo o resto era solidão e uma quietude ardente, e o visitante ocasional mal poderia imaginar que aquela encosta deserta de pedra e areia fazia parte do maior local de escavações arqueológicas do Egipto, e que uma fortuna incalculável de monumentos e tesouros se escondia ainda sob aquele terreno árido.Baksheesh gostava de ajudar o pai a encontrar coisas no deserto. Porém, estava muito calor e, de cinco em cinco minutos, Baksheesh ou o pai pousavam a pá e voltavam ao Land Rover para beberem água e passarem alguns minutos7a refrescarem-se com o ar condicionado do carro, antes de voltarem para a escavação. O trabalho também era perigoso, pois, para além das cobras e dos escorpiões, aquela área estava cheia de buracos profundos, nos quais um homem desprevenido ou um camelo poderiam facilmente cair.

    Tinha sido uma boa manhã de trabalho: até então, tinham encontrado várias estatuetas Ushebti ancestrais, um par de peças de cerâmica

  • partidas e um pequeno brinco de ouro. Baksheesh estava muito contente, pois tinha sido ele a desenterrar o brinco de ouro, que o pai dizia ser muito valioso; com os raios do sol quente do deserto, o anel tinha ardido como um círculo de fogo nos dedos sujos de Hussein.- Vai almoçar, rapaz - disse ele. - Já o mereces. No entanto, o próprio Hussein continuava a escavar, na esperança de encontrar mais artefactos enterrados.- Sim, pai.Baksheesh voltou ao Land Rover, seguido de perto por Effendi, que esperava conseguir alguma coisa para comer, e deixou cair a porta da caixa de carga. O rapaz ia pegar na lancheira quando, de súbito, o Land Rover se moveu. Pensando que talvez o travão de mão não estivesse bem seguro, Baksheesh correu rapidamente até à porta do condutor, com a intenção de saltar lá para dentro e travar melhor o veículo; porém, quando tentou agarrar a maçaneta da porta, esta fugiu-lhe da mão. Alguns momentos mais tarde, Baksheesh sentiu um abalo terrível sob os pés, como se um qualquer gigante subterrâneo tivesse socado8o tecto rochoso que o cobria e, olhando para baixo, viu que o solo parecia rolar sob os seus pés em ondas que percorriam todo o comprimento do vale. Perdendo o equilíbrio, o rapaz caiu contra o carro, feriu ligeiramenteo cotovelo e depois gritou, enquanto um segundo e mais violento abalo se seguia rapidamente ao outro.Baksheesh voltou a levantar-se a custo e tentou equilibrar-se, o que se tornou mais fácil quando parou de olhar para o solo e, em vez disso, Fixou o olhar na parede da escarpa. A quatrocentos metros de distância, a escarpa era um sítio que ele e o pai conheciam bem, pois tinham trabalhado ali muitas vezes. Porém, ali, mesmo diante dos seus olhos, uma face inteira da mesma cedeu e caiu no solo tremeluzente do deserto, formando um grande arco de pó, rocha, pedras e areia.Baksheesh sentou-se abruptamente, tentando, a custo, evitar uma nova queda. O rapaz nunca tinha presenciado um terramoto e, no entanto, sentia que aquele movimento assustador do solo não podia ser tomado por outra coisa. O seu pai, pelo contrário, parecia mais encantado do que assustado e começou a rir-se histericamente enquanto tentava, sem sucesso, voltar a levantar-se.- Finalmente - gritou - finalmente - aparentemente convencido de que o terramoto o iria beneficiar.Os abalos tornaram-se cada vez mais violentos e os tremores misturavam-se com alguns sacões verticais, como se a natureza pretendesse confundir Hussein Husseiout, que tentava agora manter-se direito, fingindo que caminhava9sobre o convés de um navio durante uma tempestade. Face a um Baksheesh espantado, parecia que o seu pai tinha enlouquecido de vez.- Dez anos - gritou Hussein bem alto, sobrepondo-se ao rugido trovejante do solo. - Esperei dez anos por isto.Para espanto de Baksheesh, a boa disposição do pai não dava sinais de esmorecer, nem mesmo quando uma elevação explosiva de terra e rocha levantou o Land Rover dois metros acima da sua cabeça, fazendo capotar o veículo.

    - Pai, pare! - gritou o rapaz, agarrando em Effendi, que latia e tremia de medo. - O pai está louco. Pare, por favor, senão vai morrer.Na verdade, e enquanto procurava equilibrar-se no solo vacilante, Hussein Husseiout corria tanto perigo como o seu filho e o cão, que

  • estavam agarrados ao chão; mas o rapaz sentiu que havia algo de irreverente no comportamento do pai, como se os espíritos da terra pudessem ver uma falta de respeito na boa disposição e no comportamento aparentemente destemido daquele homem e, consequentemente, os destruíssem aos três.E então, tão repentinamente como tinham começado, os estrondos subterrâneos desvaneceram-se, o movimento aterrador acabou, o pó e a areia assentaram, a quietude ardente regressou e tudo voltou a acalmar, tudo excepto Hussein Husseiout.- Não é maravilhoso? - gritou, e só então, quando o solo tinha finalmente parado de se mover, é que ele se pôs de joelhos e, ainda sorrindo como um louco, juntou as mãos como se estivesse a rezar.10O

    LUgAR MAIS QUENTE DA TERRABaksheesh voltou-se para olhar para o Land Rover capotado, e abanou a cabeça. - Parece que vamos ter de caminhar até à estrada e pedir ajuda - disse o rapaz. Sinceramente, não vejo o que é que isso tem de tão maravilhoso.- Não, é mesmo maravilhoso - insistiu o pai, erguendo um pedaço de pedra pouco mais pequeno que um CD.- Olha. Eu vi-o assim que a terra começou a tremer. Durante milhares de anos, o vento e a areia têm sido os guardiães do tesouro dos Faraós. Mas, de vez em quando, a terra treme e o que outrora estava enterrado pode então ser visto.Para Baksheesh, a pedra teria tudo menos o aspecto de um tesouro e, na verdade, qualquer outra pessoa teria provavelmente ignorado o pedaço quadrado de pedra basáltica macia, cinzenta e coberta de sulcos cinzelados que Hussein ergueu para lhe mostrar; mas Hussein tinha visto imediatamente o que era: uma estela egípcia.- É uma placa de pedra sobre a qual está gravada uma inscrição ancestral na escrita hieroglífica da Décima Oitava Dinastia - explicou o pai do rapaz. - Se esta pedra for o que penso que é, então descobrimos a chave que nos ajudará a decifrar um mistério que dura há milhares de anos. Este pode muito bem vir a ser o dia mais grandioso das nossas vidas. Um homem como eu espera uma vida inteira por uma oportunidade como esta. Por isso é que é tão maravilhoso, meu filho. Por isso é que estou tão feliz.11OS NOMES DOS CÃES O Sr. e a Sra. Edward Gaunt viviam em Nova Iorque, no número 7 da East 77th Street, numa velha casa citadina de sete andares. Tinham dois filhos, John e Philippa, que, apesar de serem dois gémeos de doze anos, eram os gémeos menos parecidos que se poderia imaginar (o que os deixava bastante aliviados e satisfeitos). As pessoas até tinham dificuldade em acreditar que eram gémeos, por serem tão diferentes. John, dez minutos mais velho, era alto e magro, tinha o cabelo castanho e liso e gostava de se vestir de preto. Philippa era mais pequena e tinha o cabelo ruivo e ondulado e uns óculos com armação de osso que a faziam parecer a mais inteligente dos dois; ela gostava de se vestir de cor-de-rosa. Ambos tinham um pouco de pena dos gémeos verdadeiros e acreditavam que tinham tido sorte, embora fosse aborrecido, sobretudo quando as pessoas faziam comentários sobre como eram diferentes, como se nunca ninguém tivesse reparado nisso antes.Contudo, nas suas cabeças a história era bem diferente. John e Philippa tinham muitas vezes as mesmas ideias.

  • 12Às vezes, na escola, quando o professor fazia uma pergunta, ambos punham a mão no ar para responderem precisamente ao mesmo tempo.Quando viam concursos televisivos respondiam às perguntas em uníssono, e era impossível batê-los no Pictionary quando jogavam em equipa.

    O pai deles, o Sr. Gaunt, era banqueiro, o que é, outro modo de dizer que era rico. A Sra. Gaunt, mais conhecida na sociedade nova-iorquina como Layla, era uma mulher muito bonita e fazia muitas obras de caridade, para as quais era sempre muito solicitada, pois tudo aquilo em que se envolvia tinha sucesso. Dava muitos jantares, a conversa dela brilhava como um candelabro de cristal e irradiava charme, o que quer dizer que era esperta e bonita; numa palavra, a combinação perfeita.No entanto, era inegável que o Sr. e a Sra. Edward Gaunt formavam um casal inverosímil, quase tão inverosímil como a ideia de os seus filhos poderem ser gémeos. Layla, com o seu cabelo negro e o magnífico físico de uma atleta, tinha mais de um metro e oitenta descalça, enquanto o seu marido, Edward, mal chegava ao metro e cinquenta com os seus sapatos Berluti, tinha o cabelo grisalho e um pouco comprido e usava óculos escuros. As pessoas reparavam em Layla quando ela entrava numa sala; mas raramente reparavam em Edward que, felizmente, preferia que assim fosse, sendo um homem tímido e reservado que se contentava em deixar a sua mulher e a casa de 77th Street ocuparem as luzes da ribalta.13A casa dos Gaunt, no Upper East Side de Nova Iorque, parecia mais um templo do que um lar e aparecia frequentemente em todo o tipo de revistas cor-de-rosa. A porta da frente estava protegida por um enorme portão de ferro forjado e todas as paredes da casa tinham requintados painéis de mogno.Havia muitas e belas pinturas francesas, móveis ingleses antigos, tapetes persas raros e jarrões chineses de elevado valor. Às vezes, Philippa dizia que achava que os pais se preocupavam mais com a mobília do que com os filhos; mas ela sabia que isso não era verdade, e dizia-o apenas para dar nas vistas, tal como o seu irmão gémeo John gostava de dizer que o número 7 parecia mais uma galeria de arte do que uma casa adequada a alojar duas crianças de doze anos. Quando John dizia isto, o que normalmente acontecia sempre que o Sr. Gaunt chegava a casa com mais um quadro velho e desinteressante, o Sr. Gaunt ria-se e dizia ao filho que se o número 7 fosse uma galeria de arte certamente não permitiria ali cães, mesmo os dois cães que os Gaunt tinham como animais de estimação.Alan e Neil eram dois grandes rottweilers e eram animais espantosos, quanto mais não fosse por parecerem entender tudo o que se Lhes dizia. Uma vez, John, demasiado preguiçoso para se levantar e procurar o comando à distância da televisão, ordenara a Alan que mudasse o canal e, para surpresa sua, a verdade é que Alan tinha executado o seu pedido. Neil não era menos inteligente que Alan e ambos os cães sabiam qual era a diferença entre o Fox Kids, o Disney Channel, a Nickelodeon e a cNN.14Os dois cães acompanhavam muitas vezes os dois gémeos nas suas viagens por Nova Iorque e John e Philippa eramprovavelmente as únicas duas crianças da cidade que se sentiam suficientemente seguras para andarem no Central Park à noite.Porém, o facto de dois cães tão inteligentes terem nomes tão vulgares era motivo de grande irritação para John.

  • - Os primeiros rottweiler. foram criados pelos antigos Romanos - queixou-se ele aos pais numa manhã ao pequeno- almoço, perto do início das férias de Verão. - Como cães de guarda. São praticamente os únicos animais de estimação que vêm com um alerta sanitário do governo. Quando mordem, exercem uma pressão maior do que a de qualquer outro cão, com a possível excepção daquele outro, com três cabeças, que guarda o Hades.

    - Cérbero - murmurou o Sr. Gaunt e, pegando no seu jornal, o New York Times, começou a ler acerca do terramoto no Cairo, que era ilustrado por uma grande e dramática fotografia na primeira página.- Eu sei, pai - disse John. - De qualquer modo, é por isso que os rottveiler são uma das raças favoritas do exér cito e da polícia. Logo, parece-me que dar-Lhes nomes como Alan e Neil é um bocado ridículo.- Porquê? - quis saber o Sr. Gaunt. - Foi assim que sempre Lhes chamaram.- Eu sei. Mas, pai, se eu quisesse dar nomes a dois rottweilers, ter-Lhes-ia dado nomes mais adequados. Nomes como Nero e Tibério, talvez. Como os dois imperadores Romanos.15- Nero e Tibério não eram pessoas lá muito simpáticas,querido - disse a mãe de John.- Pois não - concordou o pai. - Tibério não tinha qual quer afabilidade E era um ser humano desprezível. Nero era pura e simplesmente louco. Ainda para mais, matou a mãe, Agripina. E a mulher, Octávia. E queimou a cidade toda. - O pai riu-se cruelmente. - Vá lá, diz-me, que raio de exemplo para um cão é este?John mordeu o lábio; tinha sempre dificuldade em discutir com o pai. Há algomas pessoas que falam latim, como os juízes e os papas, que as torna pessoas muito difíceis de enfrentar numa discussão.- Está bem, talvez não um qualquer imperador Romano - concedeu John. - Então talvez outra coisa. Um nome um pouco mais canino. Como Elvis, quem sabe.- Caso não tenhas reparado - retorquiu o Sr. Gaunt com severidade - nenhum dos nossos dois cães é particularmente canino, como tu próprio referiste. Os rottueilers são, como dizes, preferidos pelas forças da lei e pelo exército. Não são uma raça que abane muito o rabo como a maioria dos cães. Algumas famílias têm um cão que consegue ir buscar o jornal à caixa de correio. Nós temos cães que podem ir a correr até à confeitaria e trazer um saco de donuts sem sequer comerem um. Nem o Elvis era capaz de fazer isso, se queres que te diga. E, já agora, diz-me:16quão canino é levares-te a ti próprio ao veterinário quando estás doente? Ou pôr dinheiro num parquímetro? Sabes uma coisa? Gostava de ver o imperador Nero a tentar pôr dinheiro num parquímetro.- Para além disso - acrescentou, dobrando o jornal. Já é um bocado tarde para essas coisas. Eles são cães adultos. Nós chamamos-lhes Alan e Neil desde que nasceram. Achas que vão começar a responder a nomes novos, de um momento para o outro? Um cão não é como uma estrelapop estúpida ou um actor de cinema. Essas pessoas habituam-se a terem um novo nome estúpido. Como Pink, Dido ou Sting. Mas um cão assume o seu nome de um modo que mais nenhum animal é capaz.Depois, o Sr. Gaunt olhou para a filha.- Não concordas, Philippa?Philippa meneou a cabeça, pensativa.

  • - É verdade que não são cães muito caninos. Por isso, o que penso é isto: se lhes explicássemos, com muito cuidado, que cada um teria um nome novo, poderíamos ver como reagiam. Um cão que é suficientemente esperto para distinguir a cNN da Fox Kids é provavelmente esperto o suficiente para lidar com o facto de ter um nome novo.- Mas ainda não percebi o que é que os nomes deles têm de mal. Alan e Neil são ambos nomes celtas. Alan quer dizer bonito e Neil significa campeão. Não percebo mesmo.- Eu acho que é uma excelente ideia, querido - respondeu a Sra. Gaunt. - A verdade é que nem com toda17a imaginação do mundo se poderia propriamente descrever Alan como sendo bonito. E Neil nunca ganhou nada na vida dele. - Depois, a mãe sorriu como se o assunto estivesse resolvido. - Então, que nomes lhes vamos dar? Devo admitir que gosto bastante do nome Elvis. Alan é o maior dos dois, tem um apetite muito maior. É um verdadeiro Elvis.O Sr. Gaunt lançou um olhar duro e inquiridor à mulher, como se discordasse totalmente da sua opinião.- Layla - disse ele calmamente -, isto não tem piada.- E, já agora, vamos tentar chamar Winston a Neilsugeriu Philippa. - Como Winston Churchill. Ele é o mais feroz dos dois, e, com as suas bochechas e rosnadelas, parece-se mesmo com Winston Churchill.- E também gosta de charutos - acrescentou John. Sempre que alguém nesta casa fuma um charuto, o Neil aproxima-se logo e começa a aspirar o ar, como se gostasse do fumo.- Pois é - disse Philippa. - Ele gosta mesmo, não é?- Então a única pergunta que resta é quem é que Lhes vai dar a notícia - disse John.- Tem de ser a mãe - disse Philippa. - Eles ouvem-na sempre. Como todos nós a ouvimos. Até o pai.Isto era verdade: Alan e Neil obedeciam sempre à Sra. Gaunt sem hesitações.- Continuo a não concordar - insistiu o Sr. Gaunt.- Muito bem, então vamos fazer uma votação - propôs John. - Quem estiver a favor da mudança dos nomes dos cães, levante a mão.18Enquanto três mãos se erguiam no ar, o Sr. Gaunt soltou um suspiro de derrota.- Bom, estejam à vontade. Mas aposto que Alan e Neil não vão gostar nada da ideia.- Vamos ver - disse a Sra. Gaunt. - Sabes, devíamos ter pensado nisto antes, querido. As crianças têm toda a razão.Depois, ela pôs os dedos na boca e soltou um assobio estridente que faria inveja a qualquer cowboy.Alguns segundos mais tarde, os dois cães chegaram à cozinha e apresentaram-se diante da Sra. Gaunt, como se estivessem à espera de instruções.- Agora ouçam-me com muita atenção, rapazes - disse ela. - Foi decidido que vão ter nomes novos, com um estilo mais canino.Neil olhou para Alan e rosnou calmamente. Alan limitou-se a bocejar de modo pomposo e sentou-se.- Não quero discussões por causa disto - insistiu a Sra. Gaunt. - Neil? De agora em diante o teu nome será Winston. E Alan? O teu nome será Elvis. Perceberam?Os cães ficaram em silêncio, por isso a Sra. Gaunt repetiu a pergunta, após o que, desta vez, ambos os cães ladraram ruidosamente.

  • - Fixe - disse John.- Eu, pelo menos, vou continuar a usar os nomes antigos - declarou o Sr. Gaunt. - Os cães podem habituar-se a nomes novos, mas eu tenho a certeza de que não me vou habituar.19- Winston? Deita-te - ordenou a Sra. Gaunt, e o cão anteriormente conhecido como Neil deitou-se no chão da cozinha. - Elvis? Levanta-te. - E o cão anteriormente conhecido como Alan levantou-se.- Espectacular - disse John. - Quem disse que burro velho não aprende línguas?- Estes cães deviam era ir à televisão - comentou Philippa.O Sr. Gaunt pôs bruscamente de lado o jornal e levantou-se da grande mesa de cerejeira da cozinha.- Nem pensem nisso! - exclamou, saindo a passos largos com o ar de quem estava bastante irritado com a sua família.Mais tarde, os gémeos foram para a escola, como erahabitual e, como de costume, nada de mais aconteceu. John e Philippa eram muito bons alunos na maioria dasdisciplinas, excepto a Matemática, mas era em Educação Física que realmente se distinguiam, quanto mais não fosse por terem uma forma física muito, muito boa, bastante melhor que a da maioria das crianças da sua escola, muitas das quais eram preguiçosas e gordas. A razão pela qual os gémeos eram tão fortes residia no facto de serem ambos claustrofóbicos, o que significa que detestavam estar em espaços fechados. Detestavam sobretudo elevadores, o que, como se pode imaginar, lhes trazia alguns problemas numa cidade com tantos edifícios altos, como Nova Iorque. Enquanto a maioria das pessoas usava o elevador, John e Philippa usavam as escadas, às vezes subindo20até cinquenta ou sessenta lanços de escadas para chegarem ao seu destino. Isto tornava os gémeos fortes como um par de pulgas. De facto, a verdade é que as pulgas teriam de ir para um ginásio para terem uma forma física tão boa como a de John e Philippa. Mas o facto é que mesmo duas crianças tão fortes como eles não conseguiam ser tão rápidas como um elevador e, por isso, chegavam francamente atrasados a quase tudo. E isto era algo que poderia deixar os seus pais muito zangados, não fosse o facto de Edward e Layla Gaunt compreenderem muito melhor os seus filhos do que estes alguma vez poderiam sequer desconfiar.21UMA VISITA AO DENTISTA A maioria das crianças anseia pelo fim do último período e o início das férias de Verão. Mas, para os gémeos, o primeiro dia de férias estava sempre associado a uma certa dose de medo e aversão, pois era este o dia que a Sra. Gaunt escolhia invariavelmente para marcar uma consulta no dentista para John e Philippa.

    John e Philippa tinham dentes bons e fortes, tão brancos como pastilhas de hortelã-pimenta e direitos como uma fila de carros estacionados. Nunca algum deles tinha precisado sequer de um chumbo" e, de facto, normalmente não havia muitos motivos para se preocuparem. No entanto, tinham sempre a sensação de que um dia o Dr. Larr lá iria encontrar algo que precisasse de ser feito e, então, todas as brocas, agulhas, escavadores e sondas de aço reluzente que estavam na sua mesa, como tantos outros instrumentos de tortura, iriam subita e dolorosamente entrar em acção.Os gémeos já tinham visto filmes suficientes para saberem que qualquer dose de dor era possível a partir do momento em que um dentista

  • decidisse começar a trabalhar22a sério, em vez de simplesmente levar a cabo os exames de rotina a que se tinham habituado.Esta era, talvez, a explicação para o facto de, na manhã da consulta marcada com o Dr. Larr, John ter acordado de um sonho extremamente vívido, no qual sofrera de uma dor de dentes atroz: o tipo de dor de dentes atroz que transforma um homem adulto numa criatura lamurienta cheia de pena de si, ou faz com que um urso pardo feroz se torne o melhor amigo de um rapaz suficientemente corajoso para assumir o papel de dentista veterinário; o tipo de dor de dentes que, segundo o sonho de John, tinha terminado com a extracção de todos os seus dentes.Ofegante, coberto de suor e tremendo de medo, John caiu da cama, agarrando-se ao rosto, aliviado por uma dor de dentes tão má não ter passado de um pesadelo. Mas havia outro aspecto mais curioso no seu sonho, pois enquanto estivera a dormir, o espelho da parede ao lado da sua cama tinha rachado de uma ponta à outra; não só o espelho, mas também a cabeceira da cama, pelo que a fenda se estendia nitidamente do vidro para a madeira. Ou talvez fosse ao contrário, uma vez que até havia uma pequena marca de queimadura e um rasgão na fronha da almofada, no ponto onde ele tinha pousado a cabeça, pelo que era quase como se a dor criada pela mente sonhadora do rapaz se tivesse manifestado através de um certo poder sobre a matéria circundante que constituía a mobília doseu quarto.23Pelo menos, foi esta a primeira ideia de John acerca do sucedido.- O que é que fizeste? - perguntou Philippa, enquanto examinava os estragos, da entrada do quarto. - Tiveste fome durante a noite e começaste a mordiscar a parede?- Ouve lá, tenho cara de hamster? - replicou John, irritado. Ele mal se atrevia a contar à irmã o que pensava poder ser a explicação para a estranha fenda na parede, com medo de que ela se risse dele.- Não - disse ela. - Mas às vezes tens o mesmo cheiro. Depois, ela foi até ao espelho e passou cuidadosamente o dedo pela fissura.- Se não soubesse, diria que isto parece o resultado de um tremor de terra. Só que o último com uma magnitude assinalável no Estado de Nova Iorque foi um 5, 1 em 1983.- Parece que sabes muito sobre isso - observou John, impressionado.- Vi um telefilme sobre o assunto há umas semanas- disse ela, franzindo as sobrancelhas. - É estranho.- Pois, é claro que é estranho - disse John, mas Philippa já tinha saído do quarto e, durante vários minutos, John não pensou mais no que a irmã tinha dito, até ela reaparecer com um exemplar do New York Times.

    - Olha para isto! - exclamou ela atirando o jornal para as mãos do rapaz.- O jornal de ontem? O que é que tem?- Houve um terramoto no Egipto.- O que é que isso tem a ver com a racha no meu espelho?24- Observa - disse Philippa e, voltando a pegar no jornal, encostou-o ao espelho de modo a que a fotografia daprimeira página de uma fenda na parede do mundialmentefamoso Museu Egípcio de Antiguidades no Cairo ficasseao lado da racha do espelho de parede de John.John ficou boquiaberto: não havia como negar o facto

  • de que as duas fendas em ziguezague e aparentementealeatórias eram idênticas.- Uau! - sussurrou John. - Mas isso é muito fixe!Philippa voltou a franzir o sobrolho.- Tu fizeste isto de propósito. Só para me assustares.- Não fiz nada - insistiu John. - A sério. Simplesmente acordei e isto estava aqui, juro.- Então o que é que aconteceu?- Sei que isto vai parecer estúpido, mas eu sonhei quetinha tido uma dor de dentes muito forte. E o mais estranho é que a fenda parece começar no ponto onde a minhabochecha estava assente na almofada.Em vez de gozar com ele, Philippa inspeccionou a almofada.- Mas então por que é que eu não tive esse sonho? - perguntou ela. - Quero dizer, muitas vezes nós partilhamoso mesmo sonho, não é?- Eu também pensei nisso - admitiu John. - E cheguei à conclusão de que é porque eu tenho mais medo dodentista que tu.Philippa meneou a cabeça: sim, era verdade.25- Mas, mesmo assim, isso não explica a semelhançaentre a fenda da tua parede e a fenda da parede do Museu do Cairo.As crianças ainda estavam a falar sobre a fenda na parede quando, algumas horas mais tarde, subiram os vinte e quatro lanços de escadas até ao consultório de Maurice Larr, na Terceira Avenida.Os gémeos encontraram a mãe, que tinha usado o ele vador, na sala de espera onde o Dr. Larr já estava a falar com ela, não sobre cirurgia dentária, mas sim sobre ténis, um jogo de que tanto a Sra. Gaunt, como o Dr. Larr, gostavam muito.O Dr. Larr olhou por cima dos seus óculos e piscou umolho às crianças.- Ela deu cabo de mim - disse ele, descrevendo a última partida que tinham jogado. - Fez-me em picadinho e comeu-me ao almoço. A vossa mãe podia ter sido pro fissional. Há mulheres que ganham a vida a jogar ténis que gostariam de ter um serviço como o da vossa mãe. E, para além disso, é bonita, sabem? Só isso já é raro. Já viram quantas mulheres campeãs de ténis que têm o aspecto de quem devia estar no torneio masculino? Mas não a vossa mãe. Vocês deviam ter orgulho dela.Os gémeos menearam a cabeça educadamente. Estavamhabituados a ouvir a mãe ser elogiada por ser boa nisto ou naquilo. Imunes a algo tão difícil de definir como o charme, às vezes os gémeos pensavam que a sua mãe parecia ter um estranho e até misterioso poder sobre as pessoas,

    26quase como se a vida lhe tivesse dado aquele bocadinho extra, para que tudo nela fosse um bocadinho melhor do que o normal. Os cabeleireiros elogiavam o seu belo e lustroso cabelo negro e diziam que ela devia fazer um anúncio a um champô. Os estilistas elogiavam o seu corpo perfeito e diziam que ela devia ter sido modelo. Os esteticistas elogiavam a sua pele firme e macia como a seda e diziam que devia lançar a sua própria linha de cosméticos. Os escritores elogiavam a sua inteligência e diziam-lhe que devia escrever um livro. Os convidados dos jantares elogiavam os seus pratos e diziam que ela devia ter um restaurante. As instituições de caridade elogiavam a sua capacidade de angariar dinheiro para boas causas e diziam que devia ter sido

  • diplomata.Para John e Philippa não havia nada de surpreendente na opinião elogiosa do Dr. Larr sobre a aptidão da sua mãe para o ténis.- Pára, Mo - pediu a Sra. Gaunt, rindo-se. - Estás a envergonhar-me.Mas os gémeos sabiam que ela não se importava mesmo nada. Se a sua mãe tinha um ponto fraco era o facto de gostar de ser elogiada, e engolia tudo do mesmo modo que as pessoas gulosas comem demasiados bolos.O Dr. Larr olhou para as crianças, esboçou o seu sorriso mais amigável e esfregou as mãos.- Muito bem, qual de vocês vai ser o primeiro a subir para a cadeira do tio Mo?- John - disse a Sra. Gaunt, e era tudo o que bastava dizer. A Sra. Gaunt estava habituada a que lhe obedecessem27como se obedece a um juiz ou a um polícia, sem qualquer objecção.John sentou-se na cadeira, enquanto o Dr. Larr calçava um par de luvas de látex que faziam com que as suas mãos parecessem ter sido mergulhadas num balde de natas. Depois, o Dr. Larr colocou-se ao lado de John e carregou num botão do chão com a ponta do seu mocassim com borlas para que a cadeira, que mais parecia um sofá de couro, se elevasse, deixando John a sentir-se como a cobaia de um mágico que punha um voluntário do público a levitar.- Abre bem a boca - ordenou o Dr. Larr, acendendo uma luz que aquecia o nariz de John.John lá abriu a boca.- Só um pouco mais, por favor, John. Obrigado. E, munindo-se de um espelho semelhante a um minúsculo taco de golfe e de uma afiada mas igualmente pequena sonda, que mais parecia um cajado de pastor, o Dr. Larr espreitou para a boca de John, aproximando-se o suficiente para John poder sentir o odor a pasta dentífrica do seu hálito e o aftershave Acqua di Parma, que o pai de John também usava, na sua pele macia e bronzeada.- Mmm-hmm - disse o Dr. Larr com o ar de um homem que dizia Mmm-hmm" mil vezes por dia. E depois: - Meu Deus! Meu Deus! O que é que temos aqui?John agarrou-se com mais firmeza aos braços da cadeira, nervoso.- Meu Deus! O que é isto. E outro? Ai, Jesus! Levantando os óculos de protecção e baixando a máscara facial, o Dr. Larr voltou-se para a Sra. Gaunt.

    28- Refresca-me a memória, Layla. Que idade tem o John?- Tem doze, Mo.- Bem me parecia, bem me parecia.Abanou a cabeça e sorriu rasgadamente.- Nunca vi tal coisa num rapaz com a idade do John. Jovem? Tu tens dentes do siso. És a pessoa mais nova com dentes do siso que eu alguma vez vi.- Dentes do siso? - A Sra. Gaunt sentou-se pesadamente e suspirou. - Só me faltava essa.- Dentes do siso? - perguntou o John, apoiando-se nos cotovelos para se soerguer. Ter dentes do siso não parecia, nem de perto, nem de longe, tão mau como ter cáries que precisassem de ser chumbadas". - O que é que são dentes do siso?- Chamam-se dentes do siso porque normalmente só os temos quando somos muito mais velhos. Regra geral, parte-se do princípio de que se tem de ser mais velho para se ter siso, embora isso seja um pouco estranho

  • tendo em conta o comportamento de alguns adultos.- O problema, Layla - continuou o Dr. Larr - é que o maxilar do rapaz ainda não tem a largura suficiente para acomodar quatro dentes novos. Sim, é verdade, John. Tal como no Apocalipse. São quatro. E se o teu maxilar não tem a largura suficiente para todos estes dentes novos, isso causa problemas aos outros dentes. Estes dentes do siso vão apertar os outros até porem o teu lindo sorriso todo torto e desalinhado. E não é isso que nós queremos,pois não?29- Então o que é que o senhor me está a dizer? - perguntou John, embora pensasse já saber a resposta àquela pergunta.- Esses dentes têm de sair, John. Vou ter de extraí-los. Quatro extracções, para ser mais preciso. Vai ser necessária uma cama de hospital. Vais ter de receber uma anestesia geral e ser posto a dormir enquanto nós os arrancamos.- O quê? - John ficou visivelmente mais pálido.- Ei, ei, ei - disse o Dr. Larr amavelmente. - Não há motivo para preocupações, jovem. Eu próprio o farei. Nem te vais aperceber. É canja. Layla? Se calhar posso marcar isto para depois de amanhã, se for conveniente?- Eles têm mesmo de ser arrancados agora, Mo? - perguntou a Sra. Gaunt. - Não podíamos deixar isto para depois? Quero dizer, isto é muito inconveniente.- Numa boca tão jovem como a do John - disse o Dr. Larr -, seria recomendável que isto fosse feito o quanto antes. Para além do aspecto estético, os outros dentes podem ficar encavalitados. E ainda há o risco de um abcesso ou de uma infecção.- Claro, Mo - suspirou a Sra. Gaunt. - Tu é que sabes. Se eles têm de sair, que saiam. Só não estava era preparada para que isto acontecesse tão cedo, percebes?- Quem é que poderia estar preparado para algo tão precoce como isto? Muito bem. Por agora é tudo, jovem. Vamos dar uma vista de olhos à tua irmã, Philippa. Phil, anda cá e abre a boca como uma cantora de ópera.Philippa sentou-se na cadeira e abriu bem a boca. Tinha a certeza de que o Dr. Larr não iria encontrar nada de

    30interessante na sua boca e dar-se-ia por feliz se ele pensasse que os seus dentes eram os menos interessantes do mundo. Ser a pessoa mais nova com dentes do siso parecia bastante típico de John. Ele estava sempre a exibir-se, pensou Philippa enquanto tentava relaxar e pensar no filme em que ia votar quando aquela visita ao dentista acabasse: a Sra. Gaunt levava sempre os gémeos ao cinema depois de uma ida ao dentista.- Uau! Não acredito - pasmou o Dr. Larr. - E esta agora, hein? Eu bem sei que vocês são gémeos, mas uau!A Sra. Gaunt soltou outro suspiro.- O que foi, Dr. Larr? - perguntou Philippa, só que como tinha a boca cheia com os dedos do Dr. Larr e instrumentos dentários, soou mais como: U-e oi, d-or-ar"O Dr. Larr, que compreendia perfeitamente este tipo de linguagem, retirou os instrumentos e os dedos e tirou a máscara, revelando um sorriso rasgado. - Eu digo-te o que é, minha menina. É história dentária. Tu também tens dentes do siso, tal como o teu irmão gémeo.- Perfeito, simplesmente perfeito - murmurou a Sra. Gaunt de um modo que fez John pensar que não era nada aquilo que ela queria dizer.

  • - Bem - disse Philippa olhando com um ar triunfante para John -, visto que eu sou dez minutos mais nova que John, acho que isto me torna a pessoa mais nova com dentes do siso que o senhor já viu, em vez do borbulhas. Philippa chamava sempre borbulhas ao irmão, quando queria irritá-lo.31- Acho que tens razão - disse o Dr. Larr, dirigindo um sorriso rasgado à Sra. Gaunt. - Estes miúdos. São espantosos.- Sim - disse a Sra. Gaunt, sem grande convicção.- Espantosos.- Não sei por que é que hei-de ficar surpreendido - continuou, pegando na mão da Sra. Gaunt e afagando-a.- Não sei mesmo. Sobretudo tendo eles uma mãe tão excepcional.Philippa sentiu as sobrancelhas a franzirem-se perante a injustiça daquele comentário. Ali estava ela, a pessoa mais nova com dentes do siso que ele alguma vez vira, e ele estava a tentar dizer que tudo se devia à sua mãe. Como se fosse algo que ela tinha feito, como ser boa jogadora de ténis ou ter uma óptima pele.- Então, o que é que isso quer dizer? - perguntou Philippa.- Sarilhos - respondeu a Sra. Gaunt. - É isso que quer dizer.- Quer dizer, os meus dentes do siso também têm de sair?- Sim, Philippa. Provavelmente seria melhor fazê-lo ao mesmo tempo que o teu irmão. Pomo-vos em camas opostas, para não se sentirem sós. - E, olhando para Layla, o Dr. Larr abanou a cabeça. - A sério, Layla, não custa nada.Penosamente, a Sra. Gaunt lá combinou tudo com o Dr. Larr e depois caminhou com as crianças de regresso à casa da 77th Street.32- Dadas as circunstâncias - começou ela - acho que é melhor adiarmos a nossa ida ao cinema. Tenho de dar a notícia ao vosso pai. Há preparativos a fazer.- Como telefonar para uma agência funerária - disse John, esperando retribuir à sua irmã com alguma ansiedade pelo anterior comentário do borbulhas.

    - Não sejas pateta, querido. O Dr. Larr tem razão. Não há motivo para nos preocuparmos. - Ela sorriu levemente como se estivesse a tentar convencer-se a si própria do que dizia. -Já agora, acho que posso contar-vos - continuou a Sra. Gaunt. - Não quis falar nisto em frente ao Dr. Larr. Ele estava muito entusiasmado. Mas dentes do siso precoces não são propriamente raros no meu lado da família. A verdade é que eu só tinha mais dois anos que vocês quando os meus próprios dentes do siso apareceram. E olhem para mim agora. Esboçou um sorriso perfeito, como o dos anúncios de pasta dentífrica, mas cheio de tristeza e preocupação. - Eu tenho dentes perfeitos.- Sim, mas o hospital. - queixou-se John.- Vejam isto desta perspectiva - disse a sua mãe. - É um ritual de passagem para a vida adulta. O crescimento é isto. No vosso caso, a dobrar - acrescentou ela. - Quer dizer, vocês são gémeos.A Sra. Gaunt suspirou e acendeu um cigarro, fazendo com que os gémeos ficassem carrancudos: detestavam que ela fumasse. Sempre parecera o lado menos encantador de Layla Gaunt, sobretudo em Nova Iorque onde as pessoas se preocupam mais com o fumo do que com as armas.33- A mãe tem mesmo de fumar? - perguntou John,nervoso.- Fazemos assim - disse a Sra. Gaunt, ignorando a censura dos seus

  • filhos. - Se vocês enfrentarem isto com coragem e tirarem esses dentes do siso sem espalhafato, podem ir para o campo de férias. Que é que vos parece?- A mãe está a falar a sério?- Claro que sim - insistiu a Sra. Gaunt. - Só vos peço que enfrentem isto com coragem. E que eu possa ficar com os vossos dentes do siso.- Mãe? A mãe quer os nossos dentes? - disse Philippa.- Os oito dentes? Ugh, que nojo. Mas esteja à vontade.- Para que é que quer os dentes? - perguntou John.- Chamem-lhe uma lembrança, se quiserem. Estava a pensar em mandar banhá-los em ouro e depois pendurá-los numa pulseira.- Fixe - disse John. - Um pouco como um canibal. Sim, consigo perceber isso.- Vocês vão divertir-se imenso - disse a Sra. Gaunt. - Háum campo de férias fabuloso que eu conheço, em Salem, no Massachusetts, onde podem.- Mãe - protestou Philippa. - Eu não quero ir para o mesmo campo que ele.- E eu também não quero ir para um campo qualquerno Massachusetts com ela - disse John. - Quero aprender alguns métodos de sobrevivência.- Posso garantir-vos que a Alembic House é um dosmelhores campos mistos da América do Norte - disse34a Sra. Gaunt. - Trezentos hectares de campos, colinas, ribeiros e bosques com uma costa de três quilómetros. Vocês vão divertir-se imenso. É claro que, se não quiserem ir, podem passar o Verão com o vosso pai e eu, em Long Island, tal como sempre fazemos.

    John olhou para Philippa e encolheu os ombros. Alembic House parecia melhor do que não ir para campo nenhum; e qualquer coisa era melhor do que passar mais um Verão aborrecido nos Hamptons. Philippa respondeu ao irmão com um aceno intuitivo.- Não, Alembic House parece-me boa ideia - disse Philippa.- Sim, é claro - concordou John. - Quando é que podemos ir?- Provavelmente vão precisar de alguns dias para recuperar da operação antes de se sentirem suficientemente bem para viajar - disse a Sra. Gaunt. - E é óbvio que terei de discutir isto com o vosso pai. Eu sei que ele estava à espera de poder passar algum tempo convosco este Verão. Mas que tal durante a próxima semana?SÓ SE VIVE DUAS VEZESChegou a manhã da operação e John e Philippa estavam no Hospital Pediátrico Memorial W. C. Fields - um belo edifício moderno no parque Gramercy de Nova Iorque, à frente do qual havia uma grande estátua de bronze do escultor Antony Gormley que retratava um homem de rosto alegre a segurar um frasco de medicamentos. A operação estava marcada para as nove da manhã, o que significava que as crianças tinham sido proibidas de tomar o pequeno-almoço; por isso, quando o Dr. Larr passou pelo quarto deles, pouco antes das oito, para lhes apresentar o anestesista, o Dr. Moody, a fome e os nervos de John estavam, na ausência temporária da sua mãe, que entretanto tinha ido buscar um café ao Starbucks da Union Square, a fazê-lo sentir-se um pouco irascível.- Então - disse ele ao Dr. Moody - que tipo de material de abate é que o senhor se propõe a usar comigo e com a minha irmã?O Dr. Moody, um homem alto de ar abatido que não estava habituado a discutir o tipo de anestésico que iria36

  • usar com ninguém, muito menos com um miúdo de doze anos, esboçou um sorriso incomodado.- Bem, já que perguntas, vou usar um medicamento chamado cetamina, que dá sempre óptimos resultados.John, que tinha andado a ler tudo sobre anestésicos na Internet e que, por isso, achava que sabia tanto sobre o assunto como qualquer outro rapaz, franziu o sobrolho.- Mas isso não é o que os veterinários dão aos animais quando os querem sedar?- As crianças, hoje em dia - disse o Dr. Larr, sorrindo.- Não se lhes pode impingir nada, sabe?- Eu não estava a tentar impingir nada a ninguém - disse o Dr. Moody, tentando conter a sua irritação. - Estás preocupado com o facto de eu usar cetamina, jovem?- Não, senhor, não estou nada preocupado - respondeu John calmamente. - Na realidade até queria que fosse cetamina.- Oh? E porquê?- Diz-se que é o melhor para dar ao paciente uma EPM. Ou pelo menos as características principais de uma EPM.- Uma EPM? Acho que nunca ouvi falar nisso - admitiu ele, rangendo os dentes.- Uma Experiência Próxima da Morte - retorquiu John, de modo indiferente. - O senhor sabe, quando estamos a ser operados e quase morremos e viajamos por um túnel escuro até à luz e somos arrebatados por um anjo no outro lado.O rosto do Dr. Moody encheu-se de raiva. O Dr. Larr apercebeu-se disso e tentou pôr água na fervura.37

    - John, John - disse ele, ansioso. - Tem calma. Vai correr tudo bem. Isto vai ser canja. O Dr. Moody é um óptimo anestesista. O melhor de Nova Iorque.- Claro - disse John. - Não tenho qualquer dúvida. Apenas pensei que seria fixe ver um anjo. Mesmo que fosse uma alucinação.- De uma coisa podes ter a certeza - sossegou-o o Dr. Moody. - Nunca nenhum dos meus pacientes despertou de uma anestesia dizendo que tinha visto um anjo.- Por que será que isso não me espanta? - murmurouJohn.A porta abriu-se e a Sra. Gaunt entrou com uma grande caneca de café Starbucks na sua mão bem tratada.- E por falar em anjos - disse o Dr. Larr. - Ei-la. Philippa gemeu e depois desviou o olhar, indignada.- Podemos começar? - pediu ela. -Já fiquei sem pequeno-almoço - disse. - Não quero perder o almoço também.Na parede do corredor do quarto deles havia uma exposição criada por outras crianças do hospital, com desenhos, cartazes e histórias sobre como era ser-se operado. Porém, nenhuma das histórias e desenhos escritos e pintados por outras crianças que tinham estado no hospital lhes dava qualquer ideia sobre como era mesmo ser-se operado. No entanto, ela tinha de reconhecer que devia ser bem difícil escrever sobre isso. Num instante ela estava a segurar a mão da mãe e a sentir qualquer coisa fria a subir-lhe pelo braço, e no momento seguinte perdera todo o tacto. Era como se alguém tivesse activado um interruptor na cabeça que lhe desligara todos os sentidos.38Ou quase todos.

  • Philippa depreendera, pela conversa da sua mãe com oDr. Moody, que no instante em que o anestésico começasse a fazer efeito ela não teria qualquer sensação; mas,assim que a cetamina fez efeito, ela deu por si a caminharpor um rio sinuoso e labiríntico que corria por uma caverna quase infindável até um rio sem sol, o que poderia serum pouco assustador, não fosse o facto, bastante curiosoaté, de John também estar presente.- O que é isto? - perguntou ela. - Um sonho ou umadaquelas EPM de que estavas a falar?John olhou em volta.- Não sei. Mas isto não se parece lá múito com umtúnel, e, que eu veja, não há nenhum anjo, nem uma pequena luz branca.Quando chegaram à margem de um oceano que parecianão ter vida, viram uma espécie de pavilhão real orientalflutuando no ar, cerca de quinze metros acima das ondas,com cúpulas e pequenas janelas com vidros em ponta dediamante que reflectiam o sol.Observando a expressão da irmã, John apercebeu-se deque ela estava constrangida.- Não te preocupes, mana - disse ele. - Vais ficar bem.- Devo estar a sonhar - disse Philippa.John franziu as sobrancelhas.- Por que é que dizes isso?- Porque tu estás a ser simpático comigo - explicou ela.- Ei, nós não podemos estar os dois a ter o mesmo sonho.39

    - Quem disse que estamos? Eu só estou a ter um sonho em que tu estás aqui a afirmar que estás a ter o mesmo sonho que eu, mais nada.- Dito assim faz todo o sentido - disse John. - Mascomo é que tu podes ter a certeza de que não és tu que estás no meu sonho?- Não tenho. Acho que não vou saber ao certo até ambos despertarmos da anestesia.Passado um momento, uma das janelas da cúpula abriu-se e um homem bastante grande com olhos cintilantes e cabelo flutuante inclinou-se para a frente e acenou-lhes.- Ei, Phil, sabes aquilo que eu disse? Como gostava deconhecer um anjo? Era só bazófia. Isto é assustador.- Eu também estou assustada.John pegou na mão da irmã e, segurando-a com firmeza - o que a fez sentir-se um pouco melhor - pô-la atrás de si, como se pretendesse protegê-la do que quer que fosse acontecer. Havia alturas em que John parecia o melhor irmão do mundo.- Não fiquem aí parados como um par de jarras - insistiu o homem da janela da cúpula. - Subam.- Como? - gritou John. - Não há escadas.- A sério? - O homem inclinou-se um pouco mais para a frente e olhou para o mar. - Tens toda a razão. Parece que estamos a flutuar no ar e não no mar. Enganei-me, De qualquer modo, isso resolve-se num instante.E, gradualmente, como uma enorme nave espacial a aterrar num qualquer planeta proibido, o pavilhão real,40com aquele misterioso estranho, começou a descer do céu, até pousar, solidamente, na praia.- Aqui estamos - gritou o homem. - Agora despachem-se. Não temos muito

  • tempo, sabem?Ainda de mãos dadas, os gémeos entraram no edifício que estava cheio de espelhos que faziam com que todas as divisões parecessem uma caverna de gelo. Ouvia-se uma mulher a cantar com o acompanhamento de um instrumento musical que nenhum dos dois conseguia devidamente identificar.- Afinal, talvez seja mesmo um anjo - disse Philippa, temerosa. - Isto é uma alucinação, não é?- Se não for, então estás metida num grande sarilho.- Eu?- Tu disseste que este sonho era teu, e não meu, lembras-te?Os gémeos ouviram passos a ecoar mais à frente e depois viram-no, alto e escuro, com um fato vermelho e uma gravata e camisa vermelhas, sorrindo rasgadamente.- Então, não me reconhecem? - disse o homem, num tom de voz alto e grave, que percorreu a cavernosa sala vermelha e dourada como uma sirene de nevoeiro.- Não me parece que os anjos se vistam de vermelho- murmurou Philippa.- Não estás a pensar que é o diabo, pois não? - perguntou John.- Falaste no diabo? - balbuciou o homem. - Onde é que foste buscar essa ideia? Eu sou o vosso tio Nimrod, como é óbvio. De Londres.41Depois fez uma pausa, como se estivesse à espera de um reconhecimento clamoroso.- Nós conhecemo-nos quando vocês nasceram - continuou ele.

    - O senhor tem de nos desculpar por não nos lembrarmos - disse John.- A sério? - O tio Nimrod parecia surpreendido.- Mas já ouvimos falar em si - acrescentou Philippa docemente. - Só que estamos um pouco espantados por o vermos aqui, no nosso sonho. Enquanto estamos a ser operados.- Sim, peço desculpa pelo subterfúgio - disse Nimrod.- Mas, infelizmente, não há nada a fazer. - O tio Nimrod abriu os braços. - Então, não tenho direito a um abraço ou um beijo, nada?E como era um sonho e, afinal de contas, se tratava do seu tio, que eles reconheciam vagamente de uma fotografia na secretária do escritório da mãe, sorriram corajosamente e abraçaram-no com delicadeza.- Mas que sítio é este? - perguntou Philippa, franzindo as sobrancelhas.- Não gostam? É o Pavilhão Real de Brighton - disse Nimrod. - Na costa sul de Inglaterra. Achei que ficaria bem no vosso sonho. Vocês sabem. O homem de Porlock?Os gémeos lançaram-Lhe um olhar inexpressivo.- Coleridge? Em Xanadu, Kubla Khan ergueu um magnífico palácio de prazer"? Não? Bem, não importa. É óbvio que não ensinam isto nas escolas americanas.42- E quem é que está a cantar?- É a criada abissínia, com um xilofone - explicou ele, abanando a cabeça acanhadamente. - Estava em promoção. Bom, mas não importa. Como disse, não temos muito tempo, tendo em conta a natureza dos anestésicos modernos.Em seguida, apontou para uma mobília antiga de aspecto elegante disposta em volta de uma mesa de jogo.- Vamos sentar-nos e conversar.Eles sentaram-se e Nimrod pegou num grande copo de madeira no qual deixou cair cinco dados.

  • - Podemos jogar enquanto conversamos - disse ele, afável.- Jogar a quê? - perguntou John.- Dados, rapaz, dados. Lançamo-los enquanto conspiramos, tal como os romanos. Primeiro, eu. - Nimrod lançou os dados, fez um esgar e recolheu-os com a palma da mão antes de John e Philippa conseguirem registar o que ele tinha lançado.- O que é que estamos a conspirar? - perguntou John.- Vamos ver - disse ele, olhando para o seu relógio de ouro. - Aquilo que quiserem. - Nimrod deixou cair os dados no copo e passou-o a John.- É a tua vez.- Gostava de saber quais são as regras - disse John.- Só há uma regra neste jogo - explicou Nimrod, enquanto John lançava três seis. - A regra mais importante em qualquer jogo. E isso é ter-se sorte. O que tu claramente tens, meu rapaz.43Philippa recolheu os dados.- Tudo o que ele consegue fazer - disse ela, deixandocair os dados no copo e atirando-os para a baeta verde da mesa de jogo -, eu faço melhor - terminou, soltando um pequeno guincho de prazer quando viu que tinha lançado quatro seis.- Excelente - comentou Nimrod, recolhendo os dados.

    - Agora vamos ver o que conseguem fazer juntos. Passou o copo a John e depois pôs a mão de Philippa em cima da do seu irmão gémeo. - Vamos lá, então. Não tenho o dia todo.Os gémeos entreolharam-se, encolheram os ombros edepois lançaram. cinco seis.- Tal como desconfiava - disse o tio Nimrod.- Então e esta? - aplaudiu John.- Têm mais sorte juntos do que individualmente. Issoé bom. É muito bom. Pode ser-nos bastante útil.- Como? - quis saber John. - Dê cá - disse Philippa -, deixe-me ver esses dados.- Não estão viciados - defendeu-se Nimrod.- A sorte não existe - troçou Philippa.- Pelo menos, é o que o pai pensa.- Oh, minha querida, não digas isso - ralhou o tioNimrod. - A probabilidade de se lançar cinco seis é de seis elevado à quinta potência, ou seja 0, 0001286. Calculo que a maioria das pessoas teria de atirar os dados 3888 vezes para ter sequer cinquenta por cento de probabilidade de conseguir cinco seis. O que é apenas um44pomposo modo matemático de dizer que vocês são um par de miúdos bem sortudos.- Nunca reparei nisso - disse John.- Ainda não, talvez. Mas irás reparar. Têm de começar a jogar astaragli.- O que é isso?- É um jogo que se joga com sete dados hexagonais - disse Nimrod. - Um jogo que foi inventado há milhares de anos para enganar a sorte. Posso explicar-vos as regras, se quiserem.- Acho que não vale a pena - insistiu Philippa. - Se isto é um sonho.- Que disparate! Os povos aborígenes da Austrália, por exemplo, reconhecem que sonhar é tão importante como a vida real. Muitas vezes, é onde todas as coisas realmente importantes acontecem.- Pois, e veja o que lhes aconteceu - contrariou John.- Eu gostava de conhecer outra cultura humana que tenha tido tanto sucesso como os aborígenes - disse Nimrod. - Tudo o que eles têm já

  • dura há oitenta mil anos. Tu, por outro lado. aposto que não eras capaz de me dizer o que recebeste no Natal há dois anos.Nimrod meneou a cabeça com firmeza como se quisesse encerrar a discussão, guardou os dados no bolso e voltou a olhar para o relógio.- Em todo o caso, agora que já determinámos que vocês são sortudos, vamos falar sobre os vossos futuros. Ouçam-me com muita atenção. Eu preciso da vossa ajuda. Por isso, eis o que quero que façam. Quando tiverem recuperado45da vossa operação, seja por que motivo for, não devem mencionar à vossa mãe que me viram. É que eu fiquei muito mal visto aos seus olhos desde que vocês os dois nasceram, por motivos que não quero explicar agora. Mas prometo contar- vos tudo quando chegarem a Londres.- Londres? Nós vamos a Londres?- Assim que quiserem. Vocês querem ir a Londres, não querem?- É claro - disseram os gémeos.

    - Então só têm de dizer aos vossos pais, delicadamente, que gostariam muito de passar algum tempo comigo. Em Londres. Sozinhos. É o que estou a tentar dizer-vos.- Nimrod voltou a olhar para o relógio. - Meu Deus, o nosso tempo está a acabar. Vocês vão despertar a todo o momento.John riu-se.- O senhor está a brincar, não está? Eles nunca con cordarão com isso. De modo algum.- Muito pelo contrário - disse o tio Nimrod. - Acho que vão ver que eles vão aceitar a ideia. A não ser, isto é, que vocês queiram mesmo ir para esse campo de férias em Salem. Embora, na verdade, seja mais uma escola.- Uma escola? - John sentiu-se indignado.- Sim - disse Nimrod. - Uma escola de Verão, para crianças sobredotadas.- Escola de Verão. - John repetiu as palavras com um sentimento similar a repugnância.- Então aconselho-vos a virem a Londres. Mas lembrem- se de nunca mencionarem que fui eu quem vos deu46a ideia. Isto é mesmo muito importante. A vossa mãe e eu não estamos totalmente de acordo quanto a uma série de assuntos.- Tais como? - perguntou John.- Bem, para começar, a maneira como dois jovens devem passar as férias de Verão. Há a escola tipo vamos divertir-nos", que eu subscrevo. E há a escola de pensamento tipo não nos vamos divertir mesmo nada, em Salem, para a qual a vossa mãe tenciona enviar-vos este Verão.- Não há dúvidas - disse Philippa, enquanto John meneava a cabeça em aprovação.Nimrod levantou-se.- Muito bem. Por agora é tudo. Vocês estão a começar a despertar.- Espere um minuto - disse John.- Acabou tudo - disse o tio Nimrod.- E se eles disserem que não? - perguntou ele.- Acabou tudo - anunciou o Dr. Larr.John sentou-se, cambaleante, na sua cama de hospital e levou instintivamente a mão ao maxilar, sondando as novas cavidades nas suas gengivas com a ponta da língua.- A vossa boca vai parecer-vos um pouco mole durante alguns dias - explicou o Dr. Moody, o anestesista. - Mas isso é normal. E eu vou trazer-vos qualquer coisa para as dores.

  • Sorriu e saiu da sala de operações.- Ele já foi? - perguntou Philippa, sentando-se na suaprópria cama.47- Sim, já foi - disse o Dr. Larr, pensando que a pergunta de Philippa era para si. - Queres ver os teus dentes do siso? - perguntou. - Aqui os tens - disse ele, entregando-lhe uma bandeja de aço em forma de rim com quatro pequenos dentes do siso, cobertos de sangue.Philippa achou que pareciam peças de um jogo de xadrez que tinha acabado mal.- Ugh - disse ela. - Tire-os daqui.- Viste-o? - perguntou John à sua irmã gémea. - O tio Nimrod.- Sim, e tu?

    - Estão aqui mesmo - disse o Dr. Larr, ainda pensando, não sem razão, que os gémeos estavam a falar sobre os dentes extraídos, e passando a John a bandeja com os seus dentes do siso. - Dá uma vista de olhos, John.John olhou e sentiu-se ligeiramente enjoado. Pensou que os seus dentes se pareciam com algo que um caçador furtivo africano teria cortado a algum elefante pequeno, mas raro. Ao mesmo tempo, teve a confirmação de que não seriam apenas as profissões de banqueiro e contabilista que ia evitar: também nunca iria ser dentista.- Sim - respondeu John a Philippa. - Vi-o, sim.- Então - disse Philippa. - Terá sido só o efeito da cetamina? Um sonho? E o facto de sermos gémeos?- Talvez.- Seja como for, é algo que acho que não devíamos mencionar à mãe e ao pai. Pelo menos, por enquanto.48MUDANÇASNa noite do seu regresso a casa, altura em que já tinham o aspecto de quem tinha enchido as bochechas de comida como um par de hamsters esfomeados, os gémeos estavam parados nas escadas quando ouviram os pais a conversar.- Bem - disse um deles -, ambos parecem estar bem, não achas? Quero dizer, até agora ainda não aconteceu nada de estranho.- Achas que não? - inquiriu a Sra. Gaunt.- Não. Pelo menos que eu tenha reparado. - O Sr. Gaunt fez uma pausa. - O que foi? O que foi? Conta-me. Aconteceu alguma coisa?- Nada, querido. Bem, nada de especial, pelo menos. É só que, a não ser que eu esteja muito enganada, o John já está a mudar. - A Sra. Gaunt suspirou. - Não reparaste? Desde que voltou do hospital, as borbulhas do rapaz desapareceram.Philippa olhou atentamente para o rosto de John.- Ei borbulhas, sabes que mais? A mãe tem razão. Desapareceram. Não há uma única borbulha na tua cara.49John trepou pelas escadas acima e dirigiu-se ao quarto de vestir da mãe e ao espelho de corpo inteiro que ficava em frente do seu enorme guarda-roupa.Durante a maior parte do último ano, John tinha sido assolado por borbulhas - vermelhas e impiedosas colinas impossíveis de esquecer e que, de vez em quando, rebentavam de um modo horrível.- Seria de pensar que alguém dissesse alguma coisa antes - resmungou John para si mesmo. Examinando o seu rosto, esticou a pele para um lado e para o outro, mas, por muito que tentasse, John não conseguia

  • encontrar uma única borbulha ou ponto negro no seu novo rosto imaculado. Normalmente, tentava evitar ver-se ao espelho para não ficar deprimido por ter tantas borbulhas, mas agora não percebia por que é que o resto da sua família não tinha reparado no que parecia ser um milagre ou, no caso da sua mãe, porque é que ela via a ausência de borbulhas no rosto de John como motivo de preocupação.Philippa apareceu à porta e parecia ter pressentido a irritação do irmão em relação à sua família.-Juro - disse ela -, quando voltámos do hospital a tua cara ainda parecia um mapa da Lua.- É incrível - disse John. - Parece que afinal aqueles médicos tinham razão. As marcas desapareceram mesmosozinhas!

    - Sim - disse Philippa, pouco convencida pela renovada confiança do seu irmão na medicina. - Claro. Se éisso que queres pensar, estás à vontade!50- O que é que queres dizer?- Não achas que se está a passar qualquer coisa estranha aqui?- Talvez - concordou John. O rapaz ainda estava demasiado impressionado com o seu próprio rosto para prestar muita atenção ao que a irmã dizia. - Não sei. -John soltou um suspiro sonoro e acrescentou: - Acredita, se uma coisa destas te tivesse acabado de acontecer, Phil, de certeza que também te estarias a sentir muito bem.- Então de que é que achas que eles estavam a falar, ainda agora?- Não sei. Talvez da adolescência. Ouvi dizer que há muitos pais que FIcam nervosos quando chega essa altura. As hormonas dos seus filhos despertam e os pais começam a mandá-los ao psiquiatra. Os pais do Felix Grabel mandaram-no consultar um ESPECIALISTA quando lhe começou a crescer um bigode.- Os pais do Felix Grabel são mais esquisitos que ele- contrapôs Philippa. - Mas, se queres ver uma coisa estranha, então vem comigo. Vou mostrar-te algo bem estranho.Philippa levou John até ao seu quarto, no piso de cima, um sítio onde ele raramente entrava tal era a aversão que sentia ao gosto da irmã por brinquedos carinhosos, animais de peluche e cartazes de boy bands com ar de meninas. Na parede por trás da porta havia uma tabela de altura com o título pessoas baixas de Hollywood, (vê como és mais alto do que a tua estrela de cinema favoRITA,51proclamava). Philippa apontou para a entrada mais recente, feita no dia anterior à extracção dos dentes do siso.- Anteontem tinha exactamente um metro e meio de altura - disse ela, passando uma régua e um lápis a John.- Agora vê. - Philippa tirou os sapatos e depois colocou-se entre Tom Cruise e Robert De Niro.John pousou a régua na cabeça da irmã e marcou a altura dela com o lápis.- Tenho quase a certeza de que cresci - disse ela.- OK, Phil - disse John. - Já está.Philippa afastou-se da tabela e ambos soltaram um grito de espanto. Era indubitável: Philippa estava visivelmente mais alta. John verifIcou quanto é que ela tinha crescido.- Vinte e cinco milímetros? - aFIrmou. - Não pode ser. Deves ter-te enganado na última vez em que te mediste.- Não - insistiu Philippa. - A Sra. Trump ajudou-me. A Sra. Trump era a

  • mulher que os pais empregavam como cozinheira e governanta.- Então ela deve ter-se enganado. Ninguém cresce vinte e cinco milímetros em menos de quarenta e oito horas.- Está bem. Quando é que te mediste pela última vez?- Na semana passada. O pai mediu-me. Ele diz que assim que eu chegar a um metro e setenta já posso ter um par novo de esquis. Ele não se ia enganar. É sempre tão preciso!- Então vamos ver.Entraram no quarto de John, onde o rapaz se encostou à sua própria tabela do James Bond (compara-te com o52

    007, ) entre Sean Connery e Pierce Brosnan, e esperou que Philippa tirasse a medida.- Não há dúvida - disse ela. - Tu também cresceste. Vamos ver. quarenta milímetros.- A sério? Uau, é verdade! Isto é mesmo fixe.- É como te digo - continuou Philippa. - Está a passar-se qualquer coisa muito estranha, aqui. Primeiro, temos dentes do siso dez anos mais cedo que o normal; depois, enquanto estamos a ser operados para nos tirarem os dentes, ambos sonhamos com o nosso tio. Ainda para mais, ambos crescemos extraordinariamente de um dia para o outro.- E não te esqueças das minhas borbulhas.- Não esquecendo as tuas borbulhas.- E a fenda na parede do meu quarto. Como era exactamente igual à da parede daquele museu egípcio.Philippa reflectiu por um momento e depois disse:- Queres saber outra coisa que é estranha? É de mim, ou o ar condicionado também te parece estar um pouco alto?- Desde que voltámos do hospital. -John encolheu os ombros. - A Sra. Trump. Provavelmente aumentou o ar condicionado. Quando está a aspirar os tapetes costuma ficar com calor.- Vamos perguntar-lhe.Os gémeos desceram cinco lanços de escadas a correr até à cozinha da cave, onde a Sra. Trump estava a esvaziar a máquina de lavar a loiça. Custava a acreditar, mas, 53OUtrora, numa galáxia distante e há muito tempo atrás, a Sra. Trump tinha ganho um concurso de beleza; as crianças tinham visto as fotografias e os recortes de jornal que o comprovavam. No entanto, o tempo não tinha sido lá muito clemente para a Sra. Trump, e agora era uma mulher vulgar e cabisbaixa, com menos um dente no maxilar superior e duas filhas a morar na Europa, que nunca via.- Sra. Trump? - perguntou Philippa. - A senhora aumentou o ar condicionado?- Não, não aumentei o ar condicionado. Por que haveria de o fazer? Eu adoro trabalhar num forno. Há pessoas que pagam muito dinheiro para irem a um ginásio e ficarem sentadas na sauna. Mas eu? Eu tenho a sorte de poder vir para aqui e receber o mesmo tratamento, e de graça.A Sra. Trump riu-se da sua graçola e, fechando ruidosamente a gaveta dos talheres, inclinou-se para a frente na banca da cozinha e sorriu, cobrindo a boca com a mão para que as crianças não reparassem na falta do dente, o quE elas faziam sempre.- Temos sentido um pouco de frio desde que regressámos do hospital - disse John.A Sra. Trump pousou uma mão fria na testa de John.- Não me parece que tenhas febre - disse ela. - Mas provavelmente estás

  • a ficar constipado.- A sério - insistiu John. - Nós sentimo-nos bem. Só estávamos era com um pouco de frio, mais nada.- Frio, diz ele - troçou a Sra. Trump. - Estão trinta e dois graus lá fora, com setenta e cinco por cento de humiDADE.54- Depois, abanou a cabeça. - Tudo o que posso dizer é: não me culpem a mim, culpem a vossa mãe. Ouçam lá,o que ouvi dizer sobre vocês é verdade?

    Philippa ficou tensa e lançou um olhar desconfiado à Sra. Trump.- Mas o que é que a senhora ouviu?- Vocês são crianças muito sortudas - disse a Sra. Trump. - Quando eu era miúda, nunca fui para um campo de férias. Nunca fui para lado nenhum.- Para onde é que ia, Sra. Trump? - perguntou Philippa, fazendo um pouco a vontade à sra. Trump enquanto voltava a relaxar. - Se pudesse ir para qualquer sítio.- Se tivesse dinheiro? Ia a Roma ver as minhas duas filhas. Casaram as duas com italianos.- É muito caro, ir a Roma? - perguntou John.- Para alguém como eu, é bastante caro, se queres que te diga. Mas talvez um dia vá, se ganhar a lotaria.- Alguém tem de a ganhar - disse Philippa, que gostava da Sra. Trump e tinha pena dela. - Por que é que não há-de ser a senhora?- Talvez um dia. - A Sra. Trump levantou os olhos e uma mão na direcção dos céus. - Quem me dera.Philippa suspirou e sentou-se de repente numa cadeira da cozinha.- Estás bem, querida? - perguntou a Sra. Trump.Philippa meneou a cabeça.- Sim. Por um momento senti-me um pouco esquisita, mais nada. Como se tivesse perdido toda a minha energia.55Abanou a cabeça.A Sra. Trump foi buscar um copo de água para Philippa, que o bebeu antes mesmo de se lembrar que detestava o sabor da água de Nova Iorque.Um minuto ou dois mais tarde, sentindo-se melhor, Philippa soltou um suspiro e sorriu.- É estranho. Agora sinto-me bem outra vez.- É como eu estava a dizer. Depois de uma operação, não devemos começar logo a andar por aí. Vocês deviam era estar na cama. Queres mais água?- Ugh. Não, obrigada - disse Philippa. Os olhos dela incidiram sobre a bolsa da Sra. Trump, que estava aberta na banca, e no maço de cigarros que conseguia ver perto do cimo.- Mas. Sabe, é muito estranho, não consigo mesmo explicar isto, mas de repente, tenho uma vontade enorme de. - Philippa hesitou em concluir o que ia dizer, como se fosse demasiado terrível para contar, o que, de facto, era. Ela estava espantada consigo mesma.A Sra. Trump soltou uma gargalhada e depois, meio constrangida, cobriu a boca com a mão, sobretudo o dente que faltava, enquanto adivinhava o que Philippa estava a sugerir.- Vocês dois dizem coisas engraçadíssimas - disse ela.- Não consigo explicar - disse Philippa. - Quero dizer, eu detesto a ideia de fumar cigarros. Acho que fazem muito mal. E gostava que a minha mãe não fumasse. Mas56sinto uma súbita atracção pela ideia de acender um. Por favor, Sra.

  • Trump. Posso acender um dos seus?A Sra. Trump olhou para John.- Ela está a brincar, ou quê?

    John encolheu os ombros e ficou calado. Estava silenciosamente à espera que a Sra. Trump concordasse, porque o mais estranho era que ele estava a ter a mesma sensação estranha que a sua irmã gémea. A ideia de um cigarro, e sobretudo o fumo que gerava, bem como a pequena brasa de calor da ponta, pareciam fascinantes e não o enchiam da aversão que normalmente sentia quando via um fumador.A verdade é que ele parecia precisar de fumo e calor, quase como se o seu corpo pensasse que aquele processo ígneo de acender um cigarro pudesse oferecer um calor capaz de responder ao frio que continuava a sentir.- Por favor - insistiu Philippa. - Por favorzinhozinhozinhozinho.- Queres que eu seja despedida? - A Sra. Trump riu-senervosamente. - Meu Deus, nunca ouvi tal coisa. Já alguma vez fumaste?- Não - disse Philippa. - Acho que simplesmente me senti atraída pela ideia de fumar.- Eu também - confessou John. - E não sei porquê.- Isso é porque vocês são gémeos - disse a Sra. Trump. John acenou em concordância.- O que se passa é. - disse ele. - Para ser sincero, nós só estávamos a brincar.57Lançou um olhar elucidativo à irmã, tentando fazê-la compreender.- Por isso, pode ir para o jardim fumar um cigarro, como faz sempre. Nós pensámos que se disséssemos que queríamos um a senhora ficaria tão chocada que talvez desistisse de fumar. Não foi, Phil?- Sim - disse ela, começando a compreender onde o irmão queria chegar com aquilo. Por algum motivo, Philippa tinha começado a pensar no modo como Winston, o rottweiler anteriormente conhecido como Neil, se aproximava quando o pai deles fumava um charuto, e começava a aspirar o ar.- Era só uma piada de mau gosto. Pode ir fumar um à vontade. Não queremos tirar-lhe esse prazer.A Sra. Trump abanou a cabeça. Na verdade, na altura em que as crianças tinham entrado na cozinha ela estava prestes a ir ao jardim fumar um cigarro, algo por que ansiava há várias horas. Pegou no maço de cigarros Salem e foi para o jardim. O plano deles formou-se quase telepaticamente: os gémeos seguiram a Sra. Trump e sentaram-se ao seu lado numas cadeiras de jardim, observando atentamente enquanto ela acendia o cigarro e depois expelia uma nuvem de fumo azul.- É aí que fica o campo de férias para onde suposta mente vamos - disse Philippa. - Em Salem.A Sra. Trump parecia surpreendida.- É um sítio estranho para um campo de férias - disse ela. - Com a história que tem.58- Foi o que pensámos - disse John. - Nós estávamosa encenar a peça de Arthur Miller, As Bruxas de Salemna escola. E... - Ele inalou o ar carregado de fumo.- A senhora tem razão: não é o tipo de sítio para ondese espera ir num campo de férias.- Pois não - corroborou a Sra. Trump. - Ainda assim,acredito que vão gostar, quando chegarem lá.- Sim - disse Philippa, inspirando profundamente o

  • fumo da Sra. Trump através das suas narinas dilatadas. Só que temos estado a pensar que talvez preferíssemos irà Europa.Gradualmente, a Sra. Trump começou a sentir-se observada pelas crianças, que a fitavam como gatos vendoalguém a comer uma bela posta de peixe.- Está uma noite encantadora - disse John, inocentemente, enquanto a sua irmã fungava ruidosamente.- Está, não está? - disse Philippa, enquanto o seu irmãofazia o mesmo.A Sra. Trump franziu as sobrancelhas.- Vocês estão a... - Zangada, a governanta levantou-se, atirou o cigarro para a laje e esmagou-o com a suasapatilha. - Sinceramente - disse ela, regressando à cozinha. - Nunca vi tal coisa. Devia era contar à vossa mãe,isso é o que devia fazer. Vocês têm sorte por eu não ser dotipo de pessoa que denuncia os outros. Mesmo que essasduas pessoas mereçam umas boas palmadas.59Sentindo-se bastante envergonhados, os gémeos ficaram sentados no jardim, olhando fixamente para o céu cor de laranja.- Era assim tão óbvio, o que estávamos a fazer? - perguntou John.- Deve ter sido, senão ela não teria reparado.- Há uns minutos atrás, na cozinha, quando te sentaste e gemeste, o que é que tinhas?- Não sei, John. - Philippa fez uma pausa, enquanto tentava encontrar uma descrição que pudesse satisfazer o irmão. - Era como se tivesse qualquer coisa a puxar pela minha cabeça. Algo há muito esquecido. Só sei que, de repente, pensei em como seria bom se a Sra. Trump ganhasse mesmo a lotaria, porque assim teria dinheiro para ir visitar as filhas. Mas, assim que pensei nisso, senti-me subitamente cansada. Do mesmo modo que nos sentimos depois de termos feito uma corrida. - Encolheu os ombros. - Acho que só durou um momento. Foi como se estivesse prestes a desmaiar.- E agora?- Agora sinto-me bem.- Hormonas - disse John.- Como assim?- Estive a pensar no que disseste antes, e acho que eles talvez saibam o que nos está a acontecer.- Talvez. Não sei. - Philippa levantou-se, abraçando-sea si própria.- Anda. Vamos voltar para dentro. Tenho frio.60Os pais ainda estavam a falar na sala de visitas e, comoantes, os gémeos sentaram-se nas escadas para voltarema escutá-los. Escutar às escondidas nas escadas é o modocomo a maioria das crianças descobre as coisas importantes que afectam as suas vidas. E os gémeos depressa seaperceberam de que o Sr. e a Sra. Gaunt estavam dispostos a dar uma maior importância aos seus dentes e à ida para o campo de férias em Salem do que, de certo modo, pareceria apropriado.- Santo Deus! Logo agora que estava tudo tão bem! - disse o pai. - Tinha de acontecer isto. - Parece que não sabias que este dia acabaria por chegar - disse a Sra. Gaunt. - Fiz o meu melhor para tornar esta

  • casa normal. Fiz sacrifícios pessoais consideráveis comomulher. Desisti do que estava a fazer quando te conheci. Aquilo era uma novidade para os gémeos, que pensavam que a sua mãe nunca tinha feito nada senão ser suamãe.- Eu sei, eu sei, e não penses que não te estou agradecido, Layla, minha querida.- Mas eu sempre, sempre fui directa contigo sobre os nossos filhos, Edward.- Claro, claro, só que eu nunca esperei que isto acontecesse tão cedo. Quero dizer, pelo amor de Deus, Layla,qual é o pai que conta que os seus filhos percam os dentesdo siso antes sequer de serem adolescentes? Eu tinha vinte e quatro anos quando me tiraram os dentes do siso.Vinte e quatro.61- Eu disse-te. O processo de envelhecimento é diferente, no meu lado da família.- E eu não o sei? - suspirou o Sr. Gaunt. - Olha para ti, Layla. Tens um aspecto fabuloso. E eu, eu nem sei o que pareço. Mais velho, de qualquer modo. Pareço teu pai, ou algo assim.- Mais velho e distinto - disse a Sra. Gaunt. - E olha que eu gosto disso num homem.- Oh, pára. Eu sou imune à lisonja. Tenho um espelho da barba que me diz a verdade todas as manhãs. Diz-me, então, o que vai acontecer agora?- Eles vão passar o Verão na Alembic House, tal como combinámos. Antes das coisas começarem a acontecer.- Santo Deus, Layla, da maneira como tu o dizes até parece que é. - o Sr. Gaunt sussurrou a palavra seguinte, como se não conseguisse proferi-la, pelo que, pelo menos por momentos, os gémeos não conseguiram ouvir o que ele disse. -... tê-los por perto.- Mas tu não te apercebes? É exactamente isso. Eles podem ainda não saber, mas o facto é que estão no limiar de uma espécie de despertar. Por isso é que estou preocupada. Ou os enviamos ao Dr. Griggs ou tu vais ter de aprender a ter cuidado com o que dizes. Todos nós.- Layla, diz-me que não estás a falar a sério - pediu o Sr. Gaunt. - Eles são os meus próprios filhos, pelo amor de Deus. Por que é que eu teria de ter cuidado com o que digo?- Porque eles não conseguem evitar. Suponhamos que um deles se zanga contigo. E depois?62- Mas, que diabo, o que estás a propor parece tão drástico - opinou o Sr. Gaunt. - Esse campo. Alembic House. É um sítio agradável? Como é que é esse tal Griggs?- Edward, querido, não há motivo para preocupações, posso garantir-te. Isto é para o bem deles. Vamos enviá-los para Alembic para aprenderem a estabelecer parâmetros quanto ao que podem ou não fazer. William Griggs tem imensa experiência nestes assuntos. Muito mais do que eu. Queres que ambos tenham uma vida normal e feliz,não queres?- Claro que quero. Tu sabes que sim.

    - Basta - sussurrou John. - Acho que está na altura de descobrirmos um pouco mais sobre Alembic House e esse tal Dr. Griggs, não achas?Philippa seguiu o irmão até ao quarto dele, onde, sentando-se em frente ao computador, John começou a escrever algo num motor de pesquisa da

  • Internet. Passado menos de um minuto, o rapaz tinha o que procurava.- Dr. William Griggs, pedopsiquiatra e pediatra.- Especialista na transfiguração, transformação, transmutação e socialização em geral de crianças sobredotadas. Proprietário e Consultor-Chefe de Alembic House, em Salem, no Massachusetts, Clínica e Escola de Verão para jovens sábios, crianças-prodígio, e genii juniores. O que é um genii?- É o plural em latim de génio, seu palerma.- Então é tal e qual como o tio Nimrod disse, no nosso sonho. Não é um campo de férias. É uma escola de Verão. Para génios.63- Genii. - Philippa franziu as sobrancelhas. - A palavra é genii. Saíste-me cá um génio.- Espera um minuto - disse John. - Espera só um minuto.- O que foi?- Não vês o que isto prova? Era impossível sabermos que isto não era um campo de férias a sério. Por isso, como é que podíamos, afinal, ter sonhado com esse facto? -John abanou a cabeça em sinal de negação. - Não, aquilo não foi mesmo um sonho.Philippa meneou a cabeça em sinal afirmativo.- Sim, estou a ver aonde queres chegar. Queres dizer que foi mesmo Nimrod quem falou connosco.- Está decidido - disse John. - Vamos simplesmente dizer-lhes e pronto. Tal como Nimrod disse. Que queremos ir para Londres. Se ele teve razão em relação à escola de Salem, faz todo o sentido que tenha razão quanto aos nossos pais nos deixarem ir a Londres, se lhes pedirmos.Philippa retraiu-se. A verdade é que ela tinha um pouco de medo da ideia de viajarem para Londres sozinhos, só não queria que John o soubesse.- Talvez fosse melhor deixarmos a decisão para amanhã. Depois vemos como as coisas estão, de manhã.John acenou em concordância.- Boa ideia. - Empurrou suavemente Philippa em direcção à porta do seu quarto. - Até lá vou ficar aqui a contemplar a possibilidade real de ser um génio. Sempre quis ganhar o prémio Nobel de qualquer coisa.64O GRITOO dia seguinte começou com um grito bem alto. John saltou da cama e entrou no quarto da irmã, que estava sentada na cama, a esfregar os olhos e a bocejar.- O que é que se passa? - perguntou Philippa. - Acho que ouvi um grito.- A mim também me pareceu ouvi-lo - disse John.Foi até ao lavatório e, quando olhou para o espelho, verificou que, afinal, as borbulhas não haviam feito o seu regresso vingativo durante a noite; de facto, o seu rosto continuava macio e livre de borbulhas.- Que alívio - disse. - Pensei que tivesse sido umsonho.- O quê? O grito?- Não, as minhas borbulhas terem desaparecido.

    Os gémeos desceram as escadas e depararam-se com opai e a mãe a sussurrar no corredor.- Talvez seja só uma coincidência - disse o Sr. Gaunt.- Sabes quais são as probabilidades deste tipo de coincidência? - perguntou a Sra. Gaunt. - Cerca de um paradez milhões. Não, isto é só o começo.65

  • - Talvez estejas a tirar conclusões precipitadas.- Achas? Não me parece.- Além disso, como é que eles poderiam fazê-lo? Nem sequer sabem. - O Sr. Gaunt deteve-se por instantes. - Ou será que sabem? Mas, por outro lado, talvez tenhas razão. É um bocado suspeito, isto acontecer tão pouco tempo depois. - Quando viu os gémeos, o Sr. Gaunt interrompeu o que dizia: - Hã, bom dia crianças - cumprimentou, nervoso.- Ouvimos um grito - disse Philippa. - O que é que aconteceu?O Sr. Gaunt olhou para a mulher e esboçou um sorriso.- A vossa mãe vai contar-vos tudo, não vais querida? Eu tenho de ir trabalhar. Já estou atrasado. Agora, eh, portem-se bem crianças, e tentem não se meter em sarilhos.- O que é que o pai quer dizer com isso? - perguntouJohn.- Nada - respondeu o Sr. Gaunt, Fingindo-se inocente.- Absolutamente nada. É só uma expressão. Como, por exemplo, tenham cuidado, Ou tenham um bom dia". Não precisam de ficar ofendidos. Garanto-vos que não estava a implicar convosco.- Mas foi exactamente isso que me pareceu - retorquiu John. - Acho que é um bocado injusto sugerir que seja alguma vez necessário evitar metermo-nos em sarilhos. Como se o facto de nos metermos em sarilhos fosse algo normal para nós.66Mal acabou de falar, John pensou que talvez tivesse ido longe de mais ao falar com o pai daquele modo. E, no preciso momento em que proferiu a última palavra, John já estava à espera que o pai tirasse os seus óculos escuros e o fitasse com o seu olhar mais penetrante. Por isso, o que aconteceu a seguir foi ainda mais surpreendente.O Sr. Gaunt pediu desculpa.- Peço desculpa, John. Desculpa, Philippa. Sim, tens razão. Falei sem pensar. Na verdade, não podia pedir filhos mais bem-comportados do que vocês.Enquanto falava, o Sr. Gaunt levou a mão ao bolso de trás, pegou num enorme maço de notas do tamanho de uma sanduíche, e tirou um par de notas de cem dólares.- Aqui têm - disse, atirando o dinheiro a John e Philippa. - Uma para cada um. Comprem o que quiserem. Para o campo de férias.- Edward, isso não é necessário - protestou a Sra. Gaunt.- Estás a ser paranóico.

    John, que achava que ser paranóico era algo muito bom, sobretudo se o resultado era cada um deles receber cem dólares, estendeu a mão para aceitar o dinheiro do Sr. Gaunt antes que a sua mãe o convencesse a mudar de ideias, e Ficou chocado ao ver o pai tremer quando lhe tocou na mão. E o prazer que John sentia por estar a receber uma nota de cem dólares depressa desapareceu quando percebeu que o seu pai parecia ter medo dele. Olhando para a irmã, John percebeu que Philippa também tinha reparado nisto, e, enquanto a sua mãe seguia o Sr. Gaunt pelos67degraus da frente da casa até à limusina que o esperava, John agarrou no braço de Philippa e sussurrou-lhe ao ouvido:- Tu viste aquilo? - perguntou ele. Viste o pai? O modo como olhou para nós? Nunca mais vamos ter uma oportunidade melhor do que esta.- Para quê?- Para fazermos o que Nimrod sugeriu. Para lhes dizermos que queremos ir à Europa.- Não sei.

  • - Queres passar o Verão todo numa escola para jovens génios?- Genii - corrigiu Philippa. - O plural é genii. Se fosses mesmo um génio talvez te lembrasses disto. - Philippa acenou em concordância. - Está bem. Vamos tentar.Os gémeos seguiram o pai até ao seu carro.- Temos estado a pensar - disse John. - E não queremos ir para esse campo de férias. Nós fomos vê-lo à Internet. E parece que esse sítio em Salem é mais uma escola que um campo de férias.- E, ainda por cima, esse tal Griggs é um psiquiatra- disse Philippa, como se isso piorasse a situação.- Sim. Ele vai pôr-nos logo a tomar Ritalin.- Oh, John, isso é um disparate - disse a Sra. Gaunt.- O Dr. Griggs é um homem maravilhoso. Alembic House é um sítio maravilhoso, para crianças sobredotadas - acrescentou ela, afagando o cabelo de Philippa. Onde vocês podem aprender a tirar partido de todas as vossas capacidades.68- Mas eu não quero ser uma criança sobredotada - insistiu John. - Eu quero ser uma criança normal.- Então o que é que vocês querem? - perguntou o Sr. Gaunt.- Queremos ir à Europa.- É verdade - disse Philippa. - Queremos ir visitar o nosso tio Nimrod, em Londres.- Sozinhos - disse John. - Queremos ir sozinhos. O Sr. Gaunt estava a franzir o sobrolho e a abanar a cabeça.- Com certeza que.John tinha a certeza de que a palavra seguinte seria um não" mas, no último momento, o Sr. Gaunt trocou um olhar com a sua mulher, e ambos os gémeos a viram abanar a cabeça, como se o aconselhasse a não proferir uma recusa.O Sr. Gaunt conteve-se e, em vez de responder a John com uma negativa, sorriu; depois, para espanto das duas crianças, meneou a cabeça.- Com certeza - disse ele. - Mas com certeza. Se isso é o que ambos querem. Se querem ir para Londres sozinhos, então é isso que terão de fazer. Não concordas, Layla?- É claro - disse ela pacientemente, como se os gémeos tivessem feito a sugestão mais razoável do mundo. - Não vejo por que não. São ambos suficientemente responsáveis para viajarem sozinhos. Vou falar hoje com Nimrod, para lhe dizer que vocês gostavam de passar algum tempo com ele e saber qual é a melhor altura para irem.69- E depois vou pedir à minha secretária para vos reservar os bilhetes de avião - disse o Sr. Gaunt. - A Classe Executiva da BA está bem para vocês?

    John ficou boquiaberto. Ele e Philippa nunca tinham viajado em nada que não a classe económica.- Classe Club? - perguntou, espantado perante tal perspectiva.- Está bem, está bem, então é Primeira Classe - disse o Sr. Gaunt. - Não há qualquer problema.Vendo o rosto do pai naquele instante, John teve o pressentimento de que não lhe teria sido recusado o pedido de entrar para um circo.- Classe Executiva está óptimo, pai - disse Philippa.- E obrigada.- Sim, muito obrigado, pai - disse John, sorrindo. O Sr. Gaunt esboçou um sorriso afável, fechou a porta da limusina e, respirando mais facilmente agora que estava longe dos Filhos, mandou o seu motorista

  • arrancar.Os gémeos voltaram a subir os degraus até à porta da frente, ainda acenando à limusina que então desaparecia de vista. A mãe sorriu-lhes com delicadeza.- Mas o que é que desencadeou tudo isto? - perguntou. - Vocês nunca falaram muito em Nimrod.- Não me parece que tenhamos culpa disso - disse Phi lippa. - A mãe também não fala muito nele. - Ela abanou a cabeça. - Não consigo perceber porquê. Ele é seu irmão.- Já fomos muito chegados, tal como vocês os dois.- A Sra. Gaunt encolheu os ombros. - Mas fomo-nos afastando, simplesmente.70John e Philippa seguiram a mãe até à cozinha, onde Philippa abraçou a mãe pela cintura. - É muito amável da sua parte deixar-nos ir para Londres sozinhos.A Sra. Gaunt esboçou um sorriso corajoso, mas era óbvio para os gémeos que algo a entristecia.- Não fique triste - pediu Philippa.- Qualquer mãe se sente um pouco triste quando vê os seus filhos a crescer - admitiu a Sra. Gaunt. - Simplesmente aconteceu mais cedo do que estava à espera. Como os dentes do siso. Provavelmente porque vocês são gémeos. Daqui a uns anos vão querer ir para a universidade, e depois vão sair de casa. - suspirou. - É a vida, acho eu.Na cozinha, Winston e Elvis afastaram-se de John quando este tentou dar-lhes os bons dias, afagando-Lhes as orelhas.- O que é que se passa convosco? - perguntou, perseguindo os dois cães à volta da mesa com a mão estendida à sua frente para mostrar que não lhes queria fazer mal.A Sra. Gaunt lançou um olhar irado aos dois rottweilers.- Primeiro, o Edward e, agora, vocês - disse ela. - Isto realmente é de mais. Winston? Elvis? Venham cá.Relutantes, os dois cães apresentaram-se acanhadamente à frente dos sapatos da Sra. Gaunt. Ela apontou um dedo indicador severo e bem esticado aos seus enormes focinhos.- Vocês estão a ser muito parvos - disse ela. - Não há motivo absolutamente nenhum para qualquer de vocês ter medo de alguém nesta casa, sobretudo dos meninos.71Se voltarem a portar-se mal, não há mais comida nem televisão durante o resto do dia. Perceberam?Os cães ladraram em uníssono.- Agora peçam desculpa a John por terem sido tãomalcriados.

    Envergonhados, os cães baixaram a cabeça, caminharam até John e depois lamberam-Lhe as mãos num gesto de contrição.- Tudo bem, não há ressentimentos - disse ele; e, naverdade, tinha ficado bem mais intrigado por algo que a sua mãe tinha dito. Mas por que é que ele nunca o tinha percebido até então? Winston e Elvis gostavam mesmo de ver televisão. E essa noção dava toda uma nova dimensão à capacidade que os cães tinham de mudar de canais.- Onde está a Sra. Trump? - perguntou Philippa. Em vez de estar a preparar o pequeno-almoço das crianças, como era costume, a Sra. Trump tinha desaparecido de vista.- Está no jardim, a apanhar ar - disse a Sra. Gaunt.- Foi a Sra. Trump que gritou? - perguntou John.

  • - Não sei qual foi a quantia exacta, mas parece que elaganhou a lotaria de Nova Iorque.- O quê? - gritou Philippa. - Mas isso é fantástico!Quanto?- Como disse, não tenho a certeza. Estas coisas são umpouco misteriosas para mim. Mas, segundo ela me disse; escolheu seis números, e acredita que pode ter ganhojackpot.72Vendo o jornal sensacionalista que a Sra. Trump costumava ler em cima da banca, John pegou nele e viu que já estava aberto na página com os números premiados e a estimativa do valor do jacpot.- Uau! - disse ele. - Diz aqui que houve um só vencedor de um jackpot de trinta e três milhões de dólares.John olhou à volta da cozinha e viu o bilhete de lotaria da Sra. Trump junto à sua bolsa. Pegou nele e verificou os números.- Fantástico! - murmurou o rapaz. - Ela tem mesmoos seis números!- Não é maravilhoso? - disse Philippa. - Agora a Sra. Trump pode ir a Roma visitar as filhas.- Foi isso que ela disse que gostava de fazer? - perguntou a Sra. Gaunt.- Sim. Ela disse que um dia gostava de ganhar a lotaria porque lhe parecia ser a única maneira de alguma vez poder pagar a viagem.- Estou a começar a perceber o que aconteceu - disse a Sra. Gaunt.- Como? - perguntou Philippa.- Começo a perceber por que é que o vosso pai estava aborrecido esta manhã - disse a Sra. Gaunt razoavelmente. Vendo a filha a franzir o sobrolho com perplexidade, acrescentou: - Quero dizer que ele vai ter pena de a ver partir. Porque ela faz quase parte da família. Estão a ver alguém com trinta e três milhões de dólares a querer ser governanta? Ela provavelmente vai querer ter a sua73própria governanta, agora que é uma mulher rica. Não fazia ideia de que fosse tanto dinheiro.Entraram no jardim e depararam com a Sra. Trump, arefrescar-se abanando um pacote de tremoços. O seu rosto estava manchado de lágrimas e o seu