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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca Avaliação de desempenho do programa de triagem neonatal do estado do Rio de Janeiro Tese apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências na área de Saúde Pública. Judy Botler Orientadores: Luiz Antonio Bastos Camacho - ENSP-FIOCRUZ Marly Marques da Cruz - ENSP-FIOCRUZ Rio de Janeiro 2010

Transcript of Avaliação de desempenho do programa de triagem neonatal do ... · ABSTRACT The performance...

Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca

Avaliao de desempenho do programa de triagem

neonatal do estado do Rio de Janeiro

Tese apresentada Escola Nacional de Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz como

requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias na rea de Sade Pblica.

Judy Botler

Orientadores:

Luiz Antonio Bastos Camacho - ENSP-FIOCRUZ Marly Marques da Cruz - ENSP-FIOCRUZ

Rio de Janeiro 2010

Catalogao na fonte Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca de Sade Pblica

B749 Botler, Judy

Avaliao de desempenho do programa de triagem neonatal do estado do Rio de Janeiro. / Judy Botler. Rio de Janeiro : s.n., 2010.

239f. il., tab., graf.

Orientador: Camacho, Luiz Antonio Bastos Cruz, Marly Marques da

Tese (Doutorado) Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2010

1. Triagem Neonatal. 2. Avaliao de Desempenho. 3. Cobertura

Efetiva. 4. Avaliao de Resultados (Cuidados de Sade). I. Ttulo.

CDD 22.ed. 618.9201

A todas as crianas que tiveram ou tero sua

histria de vida modificada por este programa.

AGRADECIMENTOS

Escola Nacional de Sade Pblica, por acolher a triagem neonatal como uma questo de

Sade Pblica.

FAPERJ e CNPq, pelos recursos disponibilizados essenciais para o xito desse projeto.

Aos meus Orientadores Luiz Antonio Bastos Camacho e Marly Marques Cruz que, com sua

generosidade, tornaram-se verdadeiros amigos e cmplices nessa jornada.

Aos professores da Escola Nacional de Sade Pblica que ampliaram os horizontes dos

conhecimentos dessa mente antes limitada pelas restries impostas pela clnica.

Secretaria de Estado de Sade e Defesa Civil do Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de

Sade e Defesa Civil do Rio de Janeiro, por acolherem e entenderem o papel desta pesquisa com

fonte de informao para a melhoria do programa de triagem neonatal do estado do Rio de

Janeiro

s instituies que participaram da pesquisa, por permitirem o acesso s informaes

necessrias sua execuo.

amiga Karla, com quem aprendi o verdadeiro significado da palavra lealdade.

Ao Daniel, Constncia e Pmela que, de forma entusiasmada, colaboraram na concretizao

deste trabalho.

Aos colegas do Doutorado, que tornaram a experincia desses quatro anos extremamente

prazerosa.

Aos funcionrios da Escola Nacional de Sade Pblica, pelo sorriso amigo e a permanente

disponibilidade em todos os momentos em que recorremos sua ajuda.

amiga Mnica Maria Magnanini pela ajuda valiosa com seus conhecimentos estatsticos.

Ao Mrio, grande amor de toda e para toda a minha vida, meu grande incentivador, minha

origem e destino, com quem tenho uma impagvel dvida pelo tempo roubado de nosso convvio

e de gratido pela pacincia com meus momentos de grande ansiedade.

minha filha, Gisele, por ter me escolhido como me e me ensinado as alegrias dessa relao

to delicada.

minha me Ellen, eterna companheira de sucessos e desventuras, sempre ao meu lado, com

seu sorriso carinhoso e enorme ombro amigo, alm de suas valiosas contribuies nas verses

dos abstracts para o ingls.

Ao meu pai, Marcos (in memoriam), com quem aprendi que conhecimento o nico patrimnio

que no pesa e ningum nos tira.

Ao Dr. Ricardo M. R. Meirelles, por sua participao em boa parte da minha trajetria

profissional e sua contribuio na construo do programa de triagem neonatal do estado do Rio

de Janeiro.

Louco quem v a realidade somente como ela ,

e no como ela deveria ser.

Dom Quixote de La Mancha - Miguel de Cervantes

RESUMO

A avaliao de desempenho do programa de triagem neonatal (PTN) do estado do Rio de

Janeiro (RJ) teve como foco os componentes de estrutura e processo. A pesquisa foi

realizada em trs etapas: (1) reviso bibliogrfica sobre a cobertura efetiva e o momento da

coleta dos testes em PTN de diversos pases do mundo, especialmente no Brasil; (2) anlise

retrospectiva dos resultados obtidos pelos dois Servios de Referncia em Triagem

Neonatal (SRTN) do estado do RJ entre 2005 e 2007; (3) avaliao nos dois modelos de

PTN e em uma amostra de convenincia de 66 Unidades de Coleta (UC) selecionadas em

92 Municpios do estado do RJ a partir de instrumento desenvolvido para avaliao de PTN.

Nos pases industrializados, a cobertura efetiva e a coleta oportuna esto consolidadas.

Naqueles em desenvolvimento, h obstculos de natureza poltica, econmica, social e

cultural a serem superados. No Brasil, h heterogeneidade de cobertura em funo do

estgio de implantao dos PTN. No estado do RJ, em 2007, a cobertura chegou a 88,2%,

com 61,7% das coletas realizadas acima de 8 dias e com incidncia global de

hipotireoidismo congnito de 1:1.030 recm-natos vivos e de fenilcetonria de 1:25.025

recm-natos vivos. Houve diferenas nas incidncias de hipotireoidismo congnito e

fenilcetonria entre os dois modelos de PTN e ao longo do tempo. As incidncias da doena

falciforme (1: 1.288 recm-natos) e do trao falcmico (1: 21 recm-natos) foram elevadas

e homogneas em ambos os modelos e ao longo do tempo, alm de compatveis com a etnia

da populao. Os intervalos de tempo intermedirios entre o nascimento e a confirmao

diagnstica estavam acima das metas preconizadas resultando em mediana de idade no

diagnstico de 48 dias, no modelo A, e 47,5 dias, no modelo B. A avaliao das UC

mostrou unidades de sade alcanando desempenho satisfatrio e muitas outras com

problemas de acesso, falhas na capacitao de profissionais e falta de material para coleta e

educacional. Os atrasos na liberao dos resultados dos testes foram atribudos a

caractersticas do fluxo em um dos modelos, e insuficincia de recursos materiais e

humanos em ambos. Os resultados indicam que as atividades de TN esto incorporadas s

aes bsicas de sade da criana em quase toda a rede de servios pblicos de sade, e que

as condies tpicas das unidades permitem que o PTN alcance bom desempenho. No

obstante, ajustes no PTN, em todos os nveis, foram apontados com vistas a incrementar sua

efetividade. Essa abordagem poder ser replicada em outros PTN.

Palavras-chaves: Triagem neonatal, avaliao de desempenho, cobertura efetiva.

ABSTRACT

The performance evaluation of the newborn screening program (NBSP) of the State of Rio

de Janeiro (RJ) focused on its structure and process components. The research was

performed in three stages: (1) bibliographic review on the effective coverage and timeliness

of bloodspot specimen collections in NBSP of different countries worldwide, especially in

Brazil; (2) retrospective analysis of the results obtained by the two existing NPSP models in

the State of Rio de Janeiro, from 2005 to 2007; (3) evaluation of the two models and a

convenience sample of 66 Collecting Units (CU) selected from 92 Municipalities of the

State of RJ after the development of an evaluation tool for NBSP. In industrialized

countries, effective coverage and timely bloodspot collection are consolidated. In the

developing ones, there are obstacles of politic, economic, social and cultural nature to be

overcome. In Brazil, the coverage is heterogeneous in view of the establishment stage of the

NBSP. In the State of RJ, in 2007, coverage reached 88,2%, with 61,7% of collection

performed later than the 8th day of life and with a global incidence of congenital

hypothyroidism of 1:1,030 of live newborns, and of phenylketonuria of 1:25,025 of live

newborns. There were differences regarding congenital hypothyroidism and

phenylketonuria incidences between both models and the time interval considered.

Incidence of sickle cell disease (1:1,288 newborns) and falcemic trait (1:21 newborns) were

homogeneous in both models and in the time interval considered, as well as compatible with

the population ethnicity. Intermediate time intervals from birth and diagnostic confirmation

were longer than the recommended timing resulting in a median age of diagnosis of 48 days

at A model, and 47,5 days at B model. The evaluation of the CU showed healthcare units

reaching a satisfactory performance, while many others having access problems, failures in

staff training, lack of material supply for collecting bloodspot specimens as well as of

instruction material. The delays in results liberation of tests were attributed to the flow

features of one the models, and insufficiency of material and human resources in both.

Results indicate that NBS activities are incorporated to the basic children healthcare in

almost every service of the public healthcare network, and that the typical unit conditions

can allow NBSP reach a good performance. However, NPSP adjustments were indicated at

all levels in order to improve its effectiveness. This approach may be replicated in other

NBSP.

Key-words: Neonatal screening; performance evaluation; effective coverage.

S U M R I O

Lista de tabelas

Lista de figuras

Lista de abreviaturas

1. Introduo 13

1.1. Histrico da Triagem Neonatal 17

1.1.1. Situao da Triagem Neonatal na Amrica Latina 18

1.1.2. Histrico da Triagem Neonatal no Brasil 19

1.1.3. Triagem Neonatal no Estado do Rio de Janeiro 21

2. Justificativa 23

3. Referencial terico 24

3.1. Triagem Neonatal: aspectos tericos e conceituais 24

3.2. Estrutura e processo dos programas de triagem neonatal 26

3.3. Noes sobre as doenas contempladas pelo PNTN 29

3.3.1. Fenilcetonria (Hiperfenilalaninemias) 29

3.3.2. Hipotireoidismo congnito 32

3.3.3. Hemoglobinopatias 36

3.3.4. Fibrose Cstica (FC) 39

3.4. Avaliao de programas de sade 43

3.4.1. Avaliao de desempenho de programas 46

3.4.2. Avaliao em programas de triagem neonatal 49

4. Objetivos 53

5. Material e Mtodos 54

5.1. Reviso bibliogrfica sobre cobertura e grau de oportunidade

das coletas dos testes de triagem 54

5.2. Anlise retrospectiva do desempenho do programa de triagem

neonatal do estado do Rio de Janeiro entre 2005 e 2007 54

5.3. Avaliao do desempenho do programa de triagem neonatal do

estado do Rio de Janeiro 55

6. Artigo 1 Triagem neonatal o desafio de uma cobertura universal

e efetiva 61

7. Artigo 2 Anlise do desempenho do programa de triagem neonatal

para fenilcetonria, hipotireoidismo congnito e

hemoglobinopatias no estado do Rio de Janeiro de 2005 a 2007 78

8. Artigo 3 Avaliao do desempenho das unidades de coleta do programa

de triagem neonatal do estado do Rio de Janeiro 104

9. Artigo 4 Avaliao de desempenho dos servios de referncia em

triagem neonatal do estado do Rio de Janeiro 128

10. Consideraes finais 155

11. Referncias Bibliogrficas 157

12. Anexos

Anexo I - Questionrios e roteiros utilizados no trabalho de campo

Anexo II Documentos de aprovao para realizao da pesquisa

Anexo III Modelo de Termo de Anuncia assinados pelos gestores

Anexo IV - Modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Lista de Tabelas

Artigo 1

Tabela 1 - Programas que apresentaram estimativa de intervalo de tempo entre

nascimento e a coleta dos testes para triagem neonatal. Artigo 2 Tabela 1 Evoluo da Cobertura do Programa de Triagem Neonatal no Estado do Rio

de Janeiro - 2002 e 2007.

Tabela 2 Distribuio de testes por faixa etria de coleta por SRTN - perodo de 2005

e 2007.

Tabela 3 Valores crticos dos diferentes mtodos laboratoriais, taxas de reconvocao

e freqncia das doenas detectadas nos diferentes Servios de Referncia em Triagem

Neonatal do estado do Rio de Janeiro, entre 2005 e 2007.

Artigo 3 Tabela 1 - Proporo das Unidades de Coleta do Programa de Triagem Neonatal,

agrupadas por tipo, em que os elementos de estrutura selecionados esto adequados.

Estado do Rio de Janeiro, 2009.

Tabela 2 - Proporo das Unidades de Coleta do Programa de Triagem Neonatal,

agrupadas por tipo, em que os elementos de processo selecionados esto adequados.

Estado do Rio de Janeiro, 2009.

Artigo 4

Tabela 1 Avaliao do desempenho dos Servios de Referncia em Triagem Neonatal

do estado do Rio de Janeiro em estrutura e processo.

Lista de Figuras

Figura 1 Contribuio parcial dos diferentes Servios de Referncia em Triagem

Neonatal atuantes no estado do Rio de Janeiro credenciados para o PNTN, entre 2004 e

2007.

Figura 2 Modelo lgico de um Programa de Triagem Neonatal.

Figura 3 Estrutura do instrumento para avaliao de desempenho do Programa de

Triagem.

Figura 4 Diviso administrativa do estado do Rio de Janeiro.

Figura 5 Diviso administrativa do municpio do Rio de Janeiro.

Artigo 1

Figura 1 - Cobertura da triagem neonatal na Europa em 2004 (modificado de Loeber24).

Figura 2 - Cobertura dos PTN na sia e regio do Pacfico em 2006(modificado de

Padilla30).

Figura 3 - Cobertura dos PTN na Amrica Latina, em 2005 (modificado de Borrajo35).

Figura 4 - Cobertura estimada dos PTN nos diversos estados brasileiros, organizados

pela fase de implantao em que foram credenciados para o PNTN em 2005

(modificado de Carvalho37*).

Artigo 2 Figura 1 Faixas etrias (em dias) na coleta dos testes dos casos reconvocados por

resultados alterados em ambos os SRTNs (n = 3482).

Figura 2 Intervalos de tempo entre o nascimento e a confirmao diagnstico,

observados com os casos reconvocados por resultados alterados (confirmados ou no),

em ambos os SRTNs, entre 2005 e 2007.

Artigo 3

Figura 1 Correlao entre scores de estrutura e processo das Unidades de Coleta de

testes de triagem neonatal no estado do Rio de Janeiro em 2009.

Figura 2 Score individual de estrutura e de processo das Unidades de Coleta de

Triagem Neonatal do Estado do Rio de Janeiro, agrupadas por tipo de unidade, em

2009.

Artigo 4

Figura 1 Fluxograma de testes, resultados e busca ativa por amostras invlidas e

confirmao diagnstica de resultados alterados de fenilalanina, TSH e hemoglobina no

SRTN A

Figura 2 Fluxograma de testes, resultados e busca ativa por amostras invlidas e

confirmao diagnstica de resultados alterados de fenilalanina, TSH e hemoglobina no

SRTN B

Figura 3 Algoritmo diagnstico do hipotireoidismo congnito nos SRTN A e B.

Figura 4 Algoritmo diagnstico da fenilcetonria nos SRTN A e B.

Lista de Abreviaturas

AP - rea programtica em sade

APAE -RJ Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais do Rio de Janeiro

BD Bom desempenho

BH4 Tetrahidrobiopterina

DF Doena Falciforme

FD Fraco desempenho

FC Fibrose cstica

Hb - Hemoglobina

HC Hipotireoidismo Congnito

HEMORIO Instituto de Estadual de Hematologia do Rio de Janeiro

HG Hospitais Gerais

HIV Vrus da imunodeficincia adquirida

HPLC Cromatografia lquida de alta performance

IEDE Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro

IRT Tripsina imuno-reativa

MCAD Deficincia de acil-coenzima A deidrogenase de cadeia mdia

MS Ministrio da Sade

MT Maternidades

OMS Organizao Mundial da Sade

PAH Fenilalanina-hidroxilase

PEAS Performance Evaluation and Assessment Scheme

Phe - Fenilalanina

PKU - Fenilcetonria

PNTN Programa Nacional de Triagem Neonatal

PSE Postos de Sade do estado do Rio de Janeiro

PSF Programa Sade da Famlia

PSM Postos de Sade do Municpio do Rio de Janeiro

PTN Programa de Triagem Neonatal

RA regio administrativa

RJ Rio de Janeiro

SES-RJ Secretaria Estadual de Sade do Rio de Janeiro

SETRIN Servio de Referncia em Triagem Neonatal do Hospital da Lagoa

SH Servio de Hematologia

SINASC Sistema de Nascidos Vivos

SMS-RJ Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro

SRTN Servio de Referncia em Triagem Neonatal

SUS Sistema nico de Sade

UC Unidade de coleta para testes de triagem neonatal

UC B Unidade de coleta vinculada ao SRTN B

TN Triagem Neonatal

TSH Hormnio estimulante da tireide (tireotrofina)

T4-livre tiroxina-livre

1. Introduo

As doenas detectadas pela triagem neonatal (TN) so geralmente assintomticas

no perodo neonatal, no tm um grupo considerado de alto risco e se caracterizam pela

capacidade de causar grandes danos no crescimento e desenvolvimento das crianas

acometidas se o diagnstico e tratamento no forem realizados no momento oportuno.

O termo triagem neonatal se refere a testes que podem ser realizados nas

primeiras horas de vida do recm-nato e que, se feitos no momento e da forma

adequados, permitem evitar conseqncias catastrficas ao seu desenvolvimento,

incluindo a morte1.

Em sade pblica, triar significa identificar, dentro de uma populao em que

no se percebe sinais e sintomas da doena de interesse, aqueles indivduos que esto

sob risco de desenvolver uma doena especfica e que se beneficiariam de investigao

adicional (para confirmar e/ou excluir este risco) e da ao preventiva ou teraputica

imediatas2. O procedimento de triagem deve ser capaz de alterar a histria natural da

doena em uma parcela significativa da populao triada3-4.

Segundo dados da Organizao Mundial de Sade (OMS), estima-se que, no

ano de 2005, tenham nascido 136.476.000 crianas no mundo5, das quais 2% somente

no Brasil6. Diferente de muitos pases em desenvolvimento em que o cenrio favorece

a preocupao com a maior morbidade e a mortalidade neonatal decorrentes de causas

infecto-contagiosas e desnutrio, no Brasil, um grupo progressivamente maior de

doenas congnitas, assintomticas no nascimento, vm ocupando espao crescente no

foco da ateno ao recm-nato.

Na anlise dos dados de mortalidade infantil at o primeiro ano de vida do

Ministrio da Sade (MS) brasileiro, possvel se observar que, em todos os anos, a

primeira causa de mortalidade decorre de afeces originadas no perodo perinatal.

Entretanto, se, em 1990, as anomalias congnitas se encontravam em quinto lugar

como causa de mortalidade, estas chegaram ao segundo lugar em 2000, demonstrando

que o Brasil est prximo da tendncia de reduo da mortalidade neonatal por outras

causas (infecto-parasitrias, doenas do aparelho respiratrio, endcrino-metablicas e

nutricionais) assim como nos pases mais desenvolvidos7.

No Brasil, ao longo dos anos, as famlias tm aumentado a expectativa de vida

e diminudo o tamanho de sua prole. Quando vista sob uma perspectiva global, a TN

parece oferecer apenas uma pequena contribuio para a sade pblica. Entretanto, na

13

medida em que o desenvolvimento progride e os padres sociais baseados em grandes

famlias e altas taxas de morbidade e mortalidade infantis evoluem para um padro de

taxa de natalidade reduzida e melhora da sobrevida, a TN passa a assumir importncia

crescente e pode servir como encorajamento para essa transio8.

Em outras palavras, quando doenas imuno-prevenveis passam a ser

equacionadas por medidas preventivas como os programas de vacinao, os sistemas de

sade passam a concentrar sua ateno em doenas menos comuns e mais complexas,

porm com efeitos deletrios prolongados sobre o desenvolvimento infantil. O sucesso

na preveno primria de diversas doenas, traduzida pela reduo na prevalncia destas

atravs de medidas profilticas (como o caso de doenas infecciosas), permitiu

deslocar esforos para problemas de sade passveis de preveno secundria, ou seja,

em que no h como reduzir a prevalncia de determinadas doenas, mas o seu

diagnstico e tratamento precoces possibilitam a reduo na incidncia das seqelas

decorrentes da falta ou atraso nos respectivos tratamentos9.

Nas quatro dcadas de sua existncia, a TN se revelou um programa de sade

pblica vital, capaz de evitar a morte e o retardo mental1,10-11. Ela evoluiu

conceitualmente de um teste laboratorial para uma nica doena - Fenilcetonria

(PKU) para programas de sade pblica bem mais abrangentes e complexos12. Houve

grandes avanos tecnolgicos nessa rea com a incorporao de novas metodologias

(sendo a espectrometria de massa a mais recente delas) que ampliaram de forma

exponencial as possibilidades diagnsticas, sugerindo grandes expanses nos painis

de doenas passveis de triagem13.

Em 1968, a OMS criou uma fora-tarefa com especialistas que definiram os dez

critrios de Wilson & Jungner para a seleo de doenas candidatas aos painis de

PTN, considerados atuais at os dias de hoje14-15, a saber: a doena triada deve

representar um importante problema de sade; deve haver tratamento disponvel para

os casos detectados; deve existir infra-estrutura para confirmao diagnstica e

tratamento; deve existir um perodo antes do incio dos sintomas da doena em que a

interveno melhore o desfecho; deve haver um teste de triagem adequado; o teste

deve ser aceito pela populao; a histria da doena deve ser clnica e

laboratorialmente bem definida; deve haver um protocolo que defina quem deve ser

tratado como paciente; o teste deve ser custo-efetivo; a busca de casos deve ser um

processo contnuo.

14

Para a Secretaria de Vigilncia em Sade (SVS) do Ministrio da Sade

brasileiro, uma condio representa um problema de sade pblica quando tem algumas

caractersticas, dentre as quais: magnitude (doenas com elevada freqncia, que

afetam grandes populaes, com altas taxas de incidncia, prevalncia, mortalidade e

anos potenciais de vida perdidos); transcendncia (caractersticas que conferem

relevncia especial doena como severidade potencial de letalidade,

hospitalizao e seqelas; relevncia social valor imputado pela sociedade, como

medo, repulsa ou indignao; e relevncia econmica capacidade de causar

prejuzos, como restries comerciais, reduo na fora de trabalho, absentesmo

escolar e laboral, custos assistenciais e previdencirios); e vulnerabilidade (medida

pela disponibilidade de instrumentos especficos de preveno e controle da doena,

propiciando a atuao efetiva dos servios de sade sobre os indivduos e

coletividades)16.

As doenas mais comumente diagnosticadas pelos PTN tm uma magnitude

relativamente pequena, porm de elevada transcendncia (em todos os seus aspectos) e

vulnerabilidade. Este grupo de doenas apresenta freqncias bastante variveis, porm

com potencial mrbido, incapacitante e causador de seqelas de tal ordem que tornam

sua severidade, relevncia social e econmica indiscutveis.

As decises quanto seleo das doenas dos PTN, apesar de bastante

variveis, so orientadas prioritariamente pela possibilidade de a interveno precoce

poder trazer benefcios para o desenvolvimento normal dos casos acometidos se

detectados e tratados oportunamente.

A necessidade de interveno em fase pr-sintomtica leva busca constante da

cobertura efetiva, ou seja, alm do acesso universal ao teste, tambm deve existir a

preocupao com sua execuo no momento e da forma adequados17.

Como o teste inclui o diagnstico de doenas metablicas, a coleta deve ser

feita com tempo suficiente para que ocorra acmulo do metablito especfico no

sangue (tempo mnimo de 48 horas de alimentao), mas sem ultrapassar o tempo

mximo em que possvel se evitar as complicaes decorrentes do incio tardio do

tratamento. A Academia Americana de Pediatria18 recomenda a coleta no momento

mais prximo da alta hospitalar nos recm-natos a termo e em bom estado de sade, e,

em hiptese alguma, esta pode ultrapassar o stimo dia de vida.

Nos pases industrializados a meta de cobertura universal j foi alcanada e os

esforos atuais se concentram em melhorar a sua efetividade, com medidas que

15

garantam que as coletas sejam realizadas no momento ideal19-22 e a introduo de

novas tecnologias para expanso dos respectivos painis. J em pases em

desenvolvimento, onde a desnutrio e as doenas infecto-contagiosas ainda

representam a principal causa de morbidade e mortalidade neonatal, os PTN tm-se

defrontado com barreiras para a sua adequada implementao, passando por problemas

que envolvem questes como financiamento adequado, implementao tecnolgica,

logstica do programa, sensibilidade cultural, capacitao e apoio poltico23-26.

O acesso ao teste e o momento da coleta sofrem influncia de uma variedade de

fatores, porm esta apenas a primeira etapa de uma cadeia de eventos que precisa ser

bem articulada para que o programa alcance seus objetivos. Todas estas etapas

dependem de investimentos em financiamento, recursos humanos capacitados, de

estruturas fsicas e operacionais adequadas, e fornecimento contnuo e ininterrupto de

insumos diagnsticos e teraputicos.

A prtica da TN representa uma interface entre a administrao pblica e o

diagnstico e tratamento de diversas doenas congnitas, j que pretende beneficiar

grandes populaes, envolvendo um amplo espectro de profissionais e instituies de

grande diversidade, com mobilizao de recursos materiais e tcnicos de alto custo

que, sem a articulao de gestores do setor de sade pblica, no teriam como obter

xito no alcance de seus objetivos. Assim, as consideraes relacionadas a um PTN de

alta qualidade incluem os dois campos.

Um PTN bem-sucedido requer a implementao de um sistema que

compreenda uma diversidade de atividades (poltica, financiamento, testagem, busca

ativa de casos suspeitos ou crianas cujas amostras foram inadequadas, confirmao

diagnstica, tratamento e monitoramento), diferentes sujeitos (administradores,

enfermagem, tcnicos, mdicos, nutricionistas, crianas e famlias), toda a parte

gerencial e financeira. Todos os componentes do sistema interagem com um contexto e

nunca esto sob o controle de uma nica organizao ou indivduo, o que faz com que

o desenvolvimento de um sistema que oferea alta qualidade de desfecho apresente

desafios peculiares27.

Qualquer processo avaliativo para programas dessa natureza no pode se

restringir apenas ao aspecto inicial da cobertura, devendo contemplar todas as suas

etapas componentes de forma a permitir intervenes que produzam melhorias na

qualidade do programa de maneira global desde o planejamento, passando pela

16

coleta, chegando at o tratamento e acompanhamento dos casos detectados no longo

prazo.

Segundo Therrell28, os sistemas de TN comportam seis elementos: capacitao,

triagem, busca ativa, confirmao diagnstica, tratamento e acompanhamento, e

avaliao. Os seis componentes requerem avaliao e controle de qualidade individual

e conjuntamente. O Health Resources and Services Administration (HRSA-EUA) e

National Newborn Screening and Genetic Resource Center (EUA) elaboraram o

Performance Evaluation and Assessment Scheme (PEAS)29-30, apresentado como um

extenso checklist dos vrios aspectos envolvidos nas diversas etapas dos principais

componentes dos PTN para auto-avaliao de adequao dos mesmos.

No Brasil, apesar da existncia de um Programa Nacional de Triagem Neonatal

(PNTN)31 visando padronizar todas as atividades relativas TN, com a proposta de

alcanar uma cobertura efetiva, tem-se observado que alguns estados ainda encontram

dificuldades em garantir que o tratamento ocorra dentro da janela de tempo ideal para a

preveno de seqelas. O intervalo de tempo entre o nascimento e o incio do

tratamento dos casos detectados tem-se mostrado longo e este fato reflete obstculos

encontrados na estrutura e processo dos PTN que sugerem a necessidade de uma

avaliao mais cuidadosa de todas as etapas envolvidas.

1.1. Histrico da Triagem Neonatal

O desenvolvimento da metodologia que permitia a dosagem de fenilalanina

(Phe) em cartes de papel-filtro representou o grande marco introdutrio dos PTN32

porque ampliou o acesso ao teste, facilitando o transporte de amostras coletadas em

localidades remotas at um nico laboratrio central de referncia via correio.

Em 1974, Dussault et al.33 desenvolveram radioimunoensaio que permitia dosar

tiroxina (T4) no mesmo tipo de material, o que depois foi estendido tireotrofina

(TSH), permitindo, assim, o acrscimo do diagnstico do HC infra-estrutura dos

PTN j existentes. A partir de ento, os PTN se organizaram e se disseminaram pelos

pases industrializados ao redor do mundo. Posteriormente, novas metodologias foram

desenvolvidas e novas doenas foram incorporadas aos painis gerando as discusses

j mencionadas, que culminaram com os critrios de Wilson & Jungner (OMS) j

citados, que servem at hoje para nortear a seleo de doenas em muitos pases14-15.

17

Atualmente, nos pases onde os PTN j se encontram plenamente

implementados o foco das discusses se concentra nas novas possibilidades

tecnolgicas e nas questes ticas que envolvem o armazenamento dos grandes

volumes de amostras residuais, o seu objetivo e a quem pertence esse enorme

patrimnio gentico34-35.

1.1.1. Situao da Triagem Neonatal na Amrica Latina

A TN se iniciou na Amrica Latina na dcada de 70, com um projeto para

deteco de PKU e outras aminoacidopatias, no Mxico, e outra iniciativa, no Brasil,

com a introduo do primeiro PTN de erros inatos do metabolismo da Amrica Latina

por Schmidt, em So Paulo36-37.

A partir de 1985, vrios pases comearam seus programas piloto e, no Brasil,

comearam a surgir novos centros de TN. Poucos foram os programas que

desenvolveram nesta poca uma estrutura completa para um PTN. Na dcada de 90,

apenas Costa Rica, Chile e Uruguai haviam conseguido alcanar a implementao de

programas no nvel nacional36.

Foram necessrios vrios anos para que algumas iniciativas de TN conseguissem

plena integrao com os sistemas pblicos de sade e sua implementao sistemtica e

contnua dentro de uma estrutura de programa. Surgiram problemas de diversas

naturezas: falta de recursos econmicos e fontes de financiamento; a existncia de

outras prioridades frente da TN, como a desnutrio, parasitoses e doenas

infecciosas; desconhecimento das autoridades de sade sobre a importncia e os

benefcios da TN; dificuldades de integrao com os sistemas de sade, tornando os

programas fragmentados e representando grande obstculo ao alcance dos objetivos da

TN; restries econmicas impedindo a expanso do painel de doenas detectadas36.

Do ponto-de-vista da cobertura, paradoxalmente, os trs pases com coberturas

mais prximas de 100% representam pouco menos de 5% do total de nascimentos da

Amrica Latina. Estima-se que, em 2005, a cobertura da TN em toda a Amrica Latina

tenha ficado em torno de 49,3%36.

A incidncia do HC foi estimada em 15 pases (27.656.850 nascidos vivos) em

torno de 1:2.777 (1:1667-1:3670). No caso da PKU, a incidncia estimada foi de

1:20.996 (1:12.473-1:51.989) em 5 pases (15.515.854 nascidos vivos). Pode-se

observar certa variao na incidncia de HC, porm dentro de uma margem

18

relativamente estreita. O mesmo no se viu com a PKU, em que as incidncias

apresentam diferenas marcantes, principalmente quando se compara os pases da

Amrica do Sul em conjunto com o grupo de pases da Amrica Central e Caribe36.

Com relao Fibrose Cstica, Argentina e Brasil tinham incidncia estimada

em 1:5.345 e 1:41.549, respectivamente. No caso das hemoglobinopatias, o nico pas

em condies de apresentar alguma informao era o Brasil, com incidncia estimada

para DF da ordem de 1:2.043 com uma distribuio heterognea no pas, ficando as

menores incidncias para os estados do sul36,38-39.

Apesar das disparidades entre os diferentes pases da Amrica Latina, possvel

se observar um crescimento significativo e mantido nas atividades de TN ao longo dos

anos. Os maiores desafios se encontravam nos pases onde a TN ainda no existia ou

suas atividades ainda eram muito incipientes36.

1.1.2. Histrico da Triagem Neonatal no Brasil

A primeira iniciativa em TN no Brasil atribuda a Schmidt37, na dcada de 70,

quando este implementou o primeiro PTN para deteco de PKU. Na dcada de 80,

vrios estados brasileiros iniciaram programas isolados, tendo em comum a opo pela

deteco da PKU e do HC. Em diversos estados, foi criada legislao prpria, sendo a

primeira no estado de So Paulo, seguido pelo Rio de Janeiro, Paran entre outros. Em

virtude da grande diversidade tnica caracterstica da populao brasileira, alguns

estados optaram por introduzir outras doenas conforme as caractersticas

epidemiolgicas locais (como o caso de doenas como a doena falciforme,

deficincia de biotinidase, entre outras).

A necessidade de uniformizao de procedimentos e informaes sobre a TN

levou a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia a criar uma Comisso de

Triagem Neonatal40 que promoveu dez fruns de debate, entre 1989 e 1999, reunindo

profissionais envolvidos com o tema das mais diversas regies do pas. O ltimo frum,

realizado em 1999, deu origem criao da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e

os assuntos debatidos nos fruns serviram de base para a legislao que orientou a

criao do PNTN pelo Ministrio da Sade (MS), em 200131.

Em 2001, foi criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN),

previsto para ser executado de forma articulada pelo MS, Secretarias Estaduais de

Sade dos estados, Distrito Federal, e municpios, estabelecendo uma hierarquia de

19

responsabilidades em todos esses nveis. Seus objetivos incluam a ampliao da

cobertura de nascidos vivos e criao de uma padronizao mnima com relao s

atividades relativas TN, fundamentadas no princpio de que os PTN devem incluir as

etapas de: TN, confirmao diagnstica, tratamento e acompanhamento dos casos

diagnosticados31. Para a adequada compreenso e fiel cumprimento de todas as etapas

previstas, foram publicadas quatro edies do Manual de Normas Tcnicas e

Operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal41-44.

Todos os estados da federao seriam credenciados em fases de implantao de

acordo com as doenas para as quais teriam as condies mnimas para atender s

etapas da triagem neonatal supra citadas, a saber:

Fase I PKU e HC;

Fase II PKU, HC e Hemoglobinopatias;

Fase III - PKU, HC, Hemoglobinopatias e Fibrose Cstica (FC)31.

As Secretarias de Sade dos estados e Distrito Federal credenciaram Servios de

Referncia em Triagem Neonatal (SRTN), que teriam a estrutura mnima necessria

para a realizao da TN, confirmao diagnstica, tratamento e acompanhamento dos

casos diagnosticados. Tambm caberia aos SRTNs a articulao com uma rede de coleta

e a formalizao de convnios com servios de mdia e alta complexidade para dar

apoio diagnstico e teraputico necessrios a algumas destas enfermidades, alm da

organizao de uma rede assistencial complementar (ambulatorial e hospitalar) em

condies de oferecer a retaguarda necessria ao adequado atendimento aos pacientes

em tratamento e acompanhamento31.

As Secretarias Municipais de Sade ficariam responsveis pela construo e

manuteno da infra-estrutura mnima das Unidades de Coleta (UC) dentro de suas

reas de jurisdio, que seriam em nmero suficiente para garantir cobertura e acesso de

suas respectivas populaes ao PNTN31.

Posteriormente, foram publicados Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas

para cada uma das doenas contempladas45-48 e novas portarias para incluso na Tabela

do SIA-SUS de medicamentos/alimentos especficos de forma a garantir a adeso dos

pacientes aos respectivos tratamentos49-51. Os dados gerados pelos SRTN seriam

registrados mensalmente em relatrio especfico e informados Coordenao Estadual e

Nacional do PNTN44.

20

1.1.3. Triagem Neonatal no Estado do Rio de Janeiro

No estado do RJ, a TN deu seus primeiros passos na dcada de 80, quando o

Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE) e a Associao de Pais e

Amigos dos Excepcionais do Rio de Janeiro (APAE-RJ) iniciaram paralelamente seus

PTN.

A primeira manifestao pblica relacionada questo da triagem neonatal no

estado se deu com a publicao da Lei estadual n 854, de 3 de junho 1985, que

dispunha sobre a obrigatoriedade do diagnstico precoce da PKU e do HC em todas as

maternidades do estado52. Entretanto, tal lei jamais foi regulamentada.

A APAE-RJ, entidade filantrpica, iniciou suas atividades de TN para PKU e

HC em 1985, quando enviava o material colhido para a APAE-So Paulo, onde os testes

eram realizados. A partir de 1988, os testes passaram a ser realizados em laboratrio

prprio, porm com gesto terceirizada de uma entidade privada53.

O IEDE, instituio pblica subordinada ao governo do estado do RJ, a partir de

uma parceria firmada com a Disciplina de Endocrinologia da Escola Paulista de

Medicina, iniciou a TN para HC em 1988, passando a incluir a PKU a partir de 199154.

No mesmo ano, o governo estadual designou o IEDE como rgo responsvel pela

coordenao e normatizao dos procedimentos de TN para aquelas doenas no mbito

da rede oficial do estado do RJ55.

Apesar da inexistncia de uma poltica especfica direcionada TN, ambas as

instituies procuraram criar estruturas e processos que contemplassem todas as etapas

da TN citadas anteriormente da maneira que julgaram ser mais adequados, com insumos

e atividades remunerados pelo SUS.

Em 1994, a Secretaria Municipal de Sade do RJ criou um programa PTN,

distribuindo as atividades laboratoriais e de assistncia por trs plos: APAE-RJ,

Hospital Miguel Couto e Centro Municipal de Sade Belizrio Penna53.

Pressionada pela Associao de Portadores de Doena Falciforme do Estado do

Rio de Janeiro (AFARJ), a Secretaria de Estado de Sade, em 1998, promoveu uma

parceria entre o IEDE e o HEMORIO (Instituto Estadual de Hematologia Arthur

Siqueira Cavalcanti) prevendo a incluso das hemoglobinopatias no painel de doenas

j existentes. Foi criado, assim, o Programa Primeiros Passos de TN, como referncia

para o governo do estado do RJ56.

21

Com a criao do PNTN, em 2001, o Estado do RJ foi credenciado para a fase II

do com trs SRTN cadastrados: IEDE, APAE-RJ e Secretaria Municipal de Sade do

RJ (que passou a centralizar suas atividades no Hospital da Lagoa, mantendo vnculo

com a APAE-RJ)57-58.

A cobertura do estado foi compartilhada pelos trs SRTNs at que, em 2005, a

Secretaria Municipal de Sade do RJ decidiu desativar o seu SRTN e dividir a

respectiva demanda entre os demais, da seguinte forma: 2/3 dos seus testes passariam a

ser feitos pelo IEDE e 1/3 seriam mantidos na APAE-RJ. Desta forma, o IEDE passou a

ser responsvel por algo em torno de 75% da demanda de todo o estado do RJ, enquanto

os 25% restantes ficaram a cargo da APAE - RJ.

Figura 1 Contribuio parcial dos diferentes Servios de Referncia em Triagem

Neonatal atuantes no estado do Rio de Janeiro credenciados para o PNTN, entre 2002 e

2007.

2005 2007

22

2. Justificativa

Por sua natureza assintomtica no perodo neonatal e a inexistncia de grupos

considerados de alto risco, o acesso TN deve ser universal. No estado do RJ, apesar da

existncia de dois SRTNs, a cobertura global em 2007 foi de 88%.

Diretrizes internacionais como as da Academia Americana de Pediatria18 e o

U.S. Preventive Task Force59, assim como o Manual de Normas Tcnicas e

Operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal60 preconizam que as coletas

dos testes devam ser feitas por puno de calcanhar entre o terceiro e o quinto dia de

vida jamais superando o stimo dia de vida. No estado do RJ, apesar da ampla rede de

UC (442), 62% das coletas ocorrem em prazo superior a oito dias de vida.

A Academia Americana de Pediatria61, o U.S. Preventive Task Force59 e o

Newborn Screening Programme Centre do Reino Unido62 afirmam que o tratamento do

HC e da PKU iniciados at a segunda semana de vida so capazes de garantir o pleno

desenvolvimento neurolgico do recm nato. Tratamentos iniciados aps esta data

incorrem no risco de prejuzos, ainda que estes sejam mnimos, no desenvolvimento

neuro-cognitivo dos casos afetados61. No estado do RJ, a mediana de idade no

tratamento para PKU e HC, em 2007, foi de 48 dias.

Os PTN so uma realidade bastante bem consolidada em diversos pases do

mundo e, particularmente no Brasil, aps a implantao do PNTN. A sua natureza

complexa, com vrios nveis de instituies, atividades e de recursos humanos, exige

grandes investimentos de ordem financeira, poltica, educacional e logstica. No entanto,

a literatura tem demonstrado que a maioria das avaliaes dos PTN tendem a concentrar

seu foco em um determinado aspecto como as questes laboratoriais, os resultados, ou

as avaliaes de relao custo-benefcio para incluso de novas doenas. Tem havido

uma carncia de avaliaes mais abrangentes dos PTN incluindo estrutura, processo e

resultados, em toda a sua complexidade.

H, portanto, necessidade de se avaliar o sistema de TN com relao aos

aspectos que afetam o acesso ao teste, o momento da coleta e todas as etapas que vo

at a confirmao diagnstica e o incio do tratamento, para que se possa identificar

fragilidades no sistema e buscar solues para torn-lo mais efetivo.

Diante do exposto, se destaca as seguintes questes a serem respondidas pelo

presente estudo: Qual o desempenho do PTN do estado do RJ em termos de acesso

23

(oportunidade) ao teste e cobertura do programa? Quais os fatores que facilitam e

dificultam o diagnstico e incio do tratamento precoce dos casos detectados?

Para responder estas questes foi realizada uma avaliao de desempenho do

PTN no estado do RJ com vistas a identificar e explicar seus aspectos bem sucedidos e

os problemas que afetam a cobertura e o diagnstico oportuno dos casos detectados,

buscando propor solues que contribuam na tomada de decises para melhorias na

qualidade dos servios prestados.

3. Referencial terico

3.1. Triagem Neonatal: aspectos tericos e conceituais

A TN se baseia em testes realizados nos primeiros dias de vida em recm-natos

assintomticos e que, se realizados no momento adequado, permitem detectar diversas

doenas a tempo de se intervir oportunamente para prevenir as seqelas indesejveis de

um tratamento tardio ou da falta do tratamento. A Academia Americana de Pediatria e

a Associao Americana de Tireide definem como prazo ideal para preveno de

seqelas neurolgicas no HC o incio do tratamento em 2 semanas. O PTN do Reino

Unido estabelece como meta de incio para o tratamento da PKU a idade de 18 dias de

vida62.

A adequada implementao dos PTN exige a participao de componentes intra

e extra-laboratoriais. Em termos de impacto sobre a sade pblica, provvel que a

TN alcance diariamente um nmero maior de vidas do que qualquer outro programa de

sade pblica, e sua influncia se reflete alm do perodo neonatal, pelo resto da vida

dos casos detectados63.

A OMS definiu claramente os critrios de Wilson & Jungner14 j mencionados

que devem nortear a seleo das doenas dos PTN quando considerados como

programas de sade pblica. A estes critrios, Khoury et al.64 acrescentaram a

importncia da avaliao dos testes e intervenes, a disponibilidade dos dados com

seus valores preditivos positivos e negativos com relao a determinada doena para a

populao-alvo, assim como a segurana e efetividade do teste e das respectivas

intervenes.

24

Com relao ao desenvolvimento de polticas e a implementao da TN,

Khoury et al. recomendam a implantao dos PTN e as respectivas intervenes

baseadas em evidncia cientfica, aceitao da TN pela populao-alvo, estruturas

disponveis para vigilncia adequada, preveno, tratamento, capacitao,

aconselhamento gentico e suporte social, anlise de custo-efetividade, acesso efetivo

TN e intervenes correspondentes para a populao-alvo, e salvaguardas com

relao privacidade dos dados coletados64.

Todos estes critrios geram a necessidade de planejamento adequado do

sistema que com uma estrutura institucional que inclua profissionais capacitados de

diversas categorias profissionais, tanto para diagnstico como para tratamento, alm de

uma super-estrutura que propicie ampla articulao entre instituies envolvidas direta

ou indiretamente em aes de TN. Nesse contexto, so necessrios investimentos

materiais, tecnolgicos, de recursos humanos qualificados, de alta complexidade e

elevados custos financeiros. O dilogo permanente entre a estrutura administrativa do

PTN e a administrao pblica de sade torna-se crtico para o bom desempenho de

todo o conjunto.

Mesmo com todo esse investimento, diversas anlises econmicas vm

demonstrando que a TN parece ser uma dentre as intervenes em sade que, alm de

benfica para os pacientes, em algumas situaes torna-se poupadora de recursos

financeiros65-70. No longo prazo, o financiamento de PTN parece apresentar relaes de

custo-benefcio e custo-efetividade positivas para a sociedade70, particularmente para

algumas doenas como o caso da PKU66-69 e do HC69-71. Os benefcios do diagnstico

precoce atravs da TN vo da preveno do retardo mental (nos casos de PKU72 e HC 10-11,61) at a possibilidade de se evitar o bito, como no caso da hiperplasia adrenal

congnita66, 73.

Foram criadas vrias normas, diretrizes e legislaes nos diversos pases do

mundo, buscando padronizar as atividades que compem os sistemas de TN18, 62,74-78.

No Brasil, o PNTN criou as suas diretrizes elencadas em quatro manuais de normas

tcnicas e rotinas operacionais41-44, que serviro de base para a avaliao que se

pretende realizar neste trabalho.

25

3.2. Estrutura e processo dos programas de triagem neonatal

De uma forma geral, os PTN, independentemente das doenas que compem o

seu painel, costumam apresentar estruturas e processos semelhantes (sendo possveis

algumas particularidades dependendo da realidade do sistema de sade de cada pas):

Educao pr-natal direcionada aos profissionais de sade que atendem s

gestantes e s respectivas famlias. Visa dar orientaes sobre TN - sua

importncia; o momento ideal, local e maneira adequada de realizao da coleta;

detalhes sobre as doenas triadas, etc. Alguns programas elaboram material

educativo especfico para distribuio nos servios de pr-natal e obstetrcia.

Coleta geralmente realizada por profissionais de sade que atendem o recm-nato

no momento da alta hospitalar da maternidade ou em unidades de sade com infra-

estrutura adequada. As coletas de sangue, feitas por puno de calcanhar com

lancetas especficas, devem ser realizadas entre o 3. e o 5. dia de vida (jamais

ultrapassando o 7. dia18,60,79). Como algumas doenas detectadas so de natureza

metablica, h necessidade de o recm-nato (RN) entrar em contato com o

metablito a ser analisado por tempo suficiente para demonstrar o seu acmulo na

circulao.

O sangue colhido deve ser pingado em cartes de papel-filtro apropriados,

devidamente identificados, que devem ser adequadamente secos em temperatura

ambiente antes do envio para o laboratrio78-79. So necessrias capacitaes

regulares especficas para os profissionais que realizam as coletas para que estas

sejam feitas no momento e da forma adequadas.

Algumas situaes especiais exigem uma 2 coleta posterior, como o caso dos RN

prematuros, de baixo peso ou em estado crtico, que podem ter resultados falso-

negativos na TN para o HC, e a Associao Mdica Brasileira e Sociedade

Brasileira de Endocrinologia e Metabologia recomendam uma nova coleta em 7 a

14 dias80. No caso de transfuses sangneas o PNTN recomenda a re-coleta em 90

dias60.

Transporte das amostras de sangue as coletas de amostras de sangue seco em

cartes de papel-filtro32 facilitaram o seu transporte para um laboratrio central,

mesmo que este seja distante. Na maioria dos PTN, tem-se lanado mo dos

servios de correio postal, embora alguns programas optem pela entrega via

26

portador. A periodicidade e a regularidade deste transporte representam questes

crticas para o bom desempenho do programa81. Nos EUA e Reino Unido, as

diretrizes orientam que o envio das amostras deva ocorrer no mesmo dia ou no

mximo no dia seguinte coleta62, 78-79. O PNTN recomenda que este perodo no

seja superior a cinco dias60.

Recepo e cadastro das amostras as amostras devem ser recebidas por uma

equipe capaz de analisar a qualidade do sangue obtido e separar as amostras

inadequadas (crculos sem sangue, sangue insuficiente, em excesso, ainda mido,

coagulado, amostra diluda ou contaminada, amostra com anis de soro). Estas

implicam na necessidade de reconvocao das crianas para nova coleta. Todas as

amostras tm seus dados digitados em um banco de dados especfico e so

organizadas da maneira apropriada para encaminhamento rea tcnica para

anlise de acordo com o fluxo de cada laboratrio de TN.

Procedimentos laboratoriais o laboratrio de TN tem uma peculiaridade que o

distingue de um laboratrio geral de patologia clnica. Enquanto o laboratrio de

patologia clnica realiza dosagens de um grande nmero de parmetros para poucas

amostras de sangue, o laboratrio de TN se caracteriza por dosar poucos

parmetros para um grande nmero de amostras de sangue distintas. consenso

que, para alcanar sua mxima efetividade, um laboratrio de TN, deve realizar no

mnimo 30.000 testes por ano. A fragmentao em pequenos laboratrios prejudica

a sua adequada implementao e geralmente resulta em testes da baixa qualidade e

custos mais altos79. A tecnologia tem levado os laboratrios maior automao, o

que permite maior agilidade em seus processos e menor risco de falhas humanas.

Resultados normais os prazos considerados aceitveis para liberao de

resultados variam de 2 a 4 dias teis, nos EUA e Reino Unido76,79,82-83, e at o

mximo de 7 dias, no Brasil60. Estes podem ser enviados diretamente para a famlia

ou para a unidade de coleta (UC), via correio postal. Em alguns pases, o resultado

comunicado ao mdico assistente, que, ento, informa e orienta a famlia.

Busca ativa de casos suspeitos Os testes de TN com resultados alterados levam

suspeio da existncia de doena sem, contudo, significar que todos sejam casos

positivos. Esta suspeio requer confirmao diagnstica e, para tanto, necessrio

um esquema gil de busca ativa que, geralmente envolve a equipe de Servio

Social do laboratrio, que entra em contato diretamente com as respectivas famlias

ou atravs das unidades perifricas de coleta. Em alguns pases, como nos Estados

27

Unidos, o resultado suspeito comunicado ao Pediatra assistente, que se

responsabiliza pela localizao da criana para confirmao diagnstica e

tratamento.

Confirmao diagnstica a criana localizada submetida a uma nova coleta de

sangue, que pode ser feita na unidade perifrica de coleta ou no prprio laboratrio

de TN, para dosagem de marcador(es) mais especfico(s) para a doena suspeitada.

Uma parcela destes casos confirmar o diagnstico e ser encaminhada para

tratamento. O percentual de casos confirmados varia conforme a doena triada, j

que a sensibilidade e a especificidade variam entre os diferentes testes disponveis.

Tratamento os casos confirmados so encaminhados para tratamento

especializado, que poder ser medicamentoso ou diettico, dependendo da doena

detectada. Poder ser necessria uma abordagem multidisciplinar que envolver

profissionais de diversas categorias: pediatra, endocrinologista, pneumologista,

geneticista, hematologista, neurologista, nutricionistas, psiclogas, enfermagem,

assistentes sociais, entre outros.

Dispensao de medicamentos/alimentos especiais alguns programas garantem o

fornecimento contnuo dos insumos para tratamento, como o caso do programa

brasileiro45-47. Para isso, necessrio haver uma estrutura de estocagem e

dispensao adequados.

Acompanhamento no longo prazo Por se tratarem de doenas crnicas, cujo

tratamento muitas vezes impe restries severas, sobretudo as dietticas, e de

acompanhamento para o resto da vida, esta abordagem multidisciplinar

importante para garantir a adeso ao tratamento, para a preveno de seqelas e

apoio ao paciente e sua famlia na sua adaptao na vida em sociedade no longo

prazo.

Armazenamento, uso e acesso s amostras residuais a razo mais bvia e vlida

para reteno de uma amostra obtida em um PTN aps a sua utilizao seria para

controle de qualidade do processo analtico. Em caso de dvida, a amostra original

pode ser re-analisada para resposta a dvidas. Para isso, existem diretrizes que

orientam sobre as condies em que estas devem ser armazenadas, temperatura e

umidade adequadas, o registro apropriado, alm de normas de restrio de acesso e

garantias de privacidade dos dados obtidos84-88.

28

No contexto dos PTN, procurou-se identificar como os seus elementos se

enquadravam no clssico modelo proposto por Donabedian de estrutura-processo-

resultado [89]. No componente estrutura se inclui: a rede de UC, recursos humanos,

os insumos laboratoriais, insumos teraputicos, o equipamento mobilizado, sistema de

informtica, meios de comunicao, meios de transporte, oramento, estrutura de

laboratrio, e ambulatrio.

No componente processo identificou-se atividades como capacitao de

profissionais, coletas dos testes, transporte das amostras ao laboratrio, anlise da

qualidade do material recebido, cadastramento na base de dados, realizao

laboratorial dos testes, distribuio de resultados, busca ativa para a 2 coleta ou para

confirmao diagnstica, comparecimento para realizao da 2 coleta, confirmao

diagnstica, avaliao clnica, tratamento, aconselhamento gentico, orientao

diettica, dispensao de medicamentos/alimentos especiais, suporte psico-social, e

acompanhamento no longo prazo, alm do armazenamento de amostras residuais.

No componente resultados surgem os indicadores de cobertura, medidas de

tempo de cada intervalo (nascimento-coleta; coleta-chegada ao laboratrio; chegada-

liberao de resultados; reconvocao-comparecimento; comparecimento-confirmao

diagnstica/incio de tratamento), proporo de comparecimentos s reconvocaes,

clculos de incidncia de cada doena, entre outros.

3.3. Noes sobre as doenas contempladas pelo PNTN

3.3.1. Fenilcetonria (Hiperfenilalaninemias)

A fenilalanina (Phe) um aminocido essencial presente em todas as formas de

protena da dieta alimentar (incluindo o leite materno). A hiperfenilalaninemia um

termo genrico para concentraes de fenilalanina acima dos valores normais no

sangue. Este quadro pode ter conseqncias clnicas dependendo da patogenia e sua

gravidade. A sua principal manifestao clnica se traduz em prejuzo no

desenvolvimento da funo cognitiva resultantes do desequilbrio neuroqumico.

Hiperfenilalaninemias so distrbios da hidroxilao da Phe decorrentes da

deficincia da enzima fenilalanina-hidroxilase ou de seu cofator tetrahidrobiopterina

(BH4), levando ao acmulo do aminocido na corrente sangnea a nveis capazes de

causar danos ao sistema nervoso, principalmente quando este est em formao72.

29

A distino clnica entre Fenilcetonria (PKU) e hiperfenilalaninemia no-PKU

feita de forma arbitrria e se baseia nos nveis plasmticos de Phe. No primeiro caso,

esto os pacientes com nveis de Phe igual ou superior 10,0 mg/dL. As

hiperfenilalaninemias no-PKU apresentam valores de Phe entre 3,0 mg/dL e 10,0

mg/dL (mtodo fluorimtrico) ou entre 5,0 mg/dL e 10 mg/dL (mtodo enzimtico). A

PKU clssica uma doena em que h prejuzo no desenvolvimento cognitivo,

enquanto a hiperfenilalaninemia no-PKU representa uma condio benigna sem

maiores conseqncias72.

A incidncia da PKU varia conforme a composio tnica das diferentes

populaes, podendo ficar em torno de 1: 3.042 recm-natos vivos na Eslovnia,

chegando a 1: 32.766 na regio de Flandres (Blgica)90. H descrio de forte

incidncia entre judeus de origem iemenita, canadenses de origem francesa e diversas

pequenas populaes europias (principalmente de origem irlandesa e escocesa)72. No

Brasil, estima-se que a incidncia esteja em torno de 1:25.294 nascidos vivos36.

A PKU uma doena autossmica recessiva, porm duas condies so

necessrias para gerar manifestaes clnicas: a deficincia enzimtica e a exposio

Phe. Nestes casos, restrio de fenilalanina na dieta capaz de neutralizar os efeitos

deletrios do aminocido em excesso na circulao se institudos a tempo. Nas formas

em que h deficincia do cofator BH4, a mutao isolada a principal causa da doena

associada (ou seja, nestes casos, a restrio protica da alimentao no suficiente

para evitar o acmulo da Phe)72.

Os distrbios relacionados sntese de BH4 chamam especial ateno porque

esta enzima participa da hidroxilao de outros dois aminocidos L-triptofano e L-

tirosina no crebro. Os metablitos destas reaes so precursores dos

neurotransmissores serotonina e das catecolaminas, que tm grande influncia no

desenvolvimento e funo cerebral. O diagnstico diferencial dessas variantes pode ser

necessrio na avaliao do prognstico e tratamento de alguns casos de

hiperfenilalaninemia neonatal72.

A patognese do distrbio cerebral nas hiperfenilalaninemias envolve efeitos da

Phe sobre processos celulares cerebrais, como mielinizao, sntese protica e

suprimento deficiente de neurotransmissores (como catecolaminas e serotonina)72.

O quadro clnico de pacientes que nunca trataram a doena inclui crises

convulsivas (em 25%) - metade deles evolui com retardo mental profundo e a outra

metade com algum dficit neurolgico. H relatos de alteraes cutneas,

30

odontolgicas, oculares, de crescimento e comportamento. Tambm ocorrem alteraes

semelhantes esclerodermia nas vsceras, provavelmente secundrias as anormalidades

do metabolismo do triptofano.

O tratamento se baseia na restrio diettica de Phe, que, se iniciada no perodo

neonatal, capaz de modificar o fentipo metablico e evitar as conseqncias

neuropsicolgicas da doena. No caso da deficincia de BH4, a reposio enzimtica

capaz de abolir a hiperfenilalaninemia.

Triagem neonatal

A TN para fenilcetonria foi introduzida no passado atravs do teste da fralda

adicionava-se cido frrico urina buscando a existncia de cido fenilpirvico

(metablito final da fenilalanina, que dava urina um odor caracterstico de urina de

rato)15. Entretanto, este teste demonstrou baixa sensibilidade, alm de enormes

dificuldades operacionais.

A partir do desenvolvimento do ensaio para fenilalanina por inibio bacteriana,

proposto por Robert Guthrie (1962-1963), foi possvel a obteno de um teste mais

sensvel e factvel. O advento do papel-filtro foi o fator-chave para a disseminao da

TN como programa de sade pblica em larga escala32.

Posteriormente, diversas metodologias, como a cromatografia, a fluorimetria e,

mais recentemente, a espectrometria de massa tornaram a TN mais sensvel e gil

fatores fundamentais para o xito dos programas.

A confirmao diagnstica se baseia em novas dosagens de Phe, seus

metablitos (cido fenilpirvico) e resposta da Phe plasmtica BH4. A dosagem de

biopterinas em amostras de sangue seco em papel-filtro pode ser realizada pelo

bioensaio protozoolgico (Chritidia fasciculata). Existem ensaios que medem a

atividade das biopterinas ou seus metablitos de forma direta, atravs de diversos

mtodos. A dosagem de precursores de neurotransmissores, como a tirosina e triptofano

permitem identificar os casos de deficincia de BH4. Essa possibilidade se tornou mais

factvel a partir do advento da espectrometria de massa.

Em plena era de expanso da TN, uma nova preocupao surge no horizonte. A

gerao de pacientes do sexo feminino portadoras de hiperfenilalaninemia representa

um problema srio. A hiperfenilalaninemia durante a gestao causa srios efeitos no

embrio e no feto suas conseqncias incluem a microcefalia, o retardo mental,

31

crescimento intra-uterino prejudicado em 80 por cento dos fetos expostos;

acompanhados de malformaes cardacas e de outras estruturas em 20 por cento dos

casos72. O prximo grande desafio da era ps-TN ser garantir que estas gestantes

mantenham um controle rigoroso dos nveis de Phe em fase pr-concepcional e durante

toda a gestao, ou que o aconselhamento gentico possibilite que essas mulheres

tomem decises informadas sobre futuras gestaes.

3.3.2. Hipotireoidismo congnito

O HC uma das causas evitveis mais comuns de retardo mental. Na maioria

dos casos, o distrbio permanente e resulta de uma anormalidade no desenvolvimento

da glndula (disgenesia) ou um defeito na sntese dos hormnios tireoidianos

(dishormonognese) tambm denominado hipotireoidismo primrio. Menos

comumente, a funo tireoidiana neonatal alterada transitria, atribuvel passagem

transplacentria de medicamentos utilizados pela me (agentes de contraste,

amiodarona, antisspticos iodados, etc.), anticorpos antitireoidianos maternos, carncia

ou excesso de iodo. Raramente, o HC pode ser causado por alteraes hipofisrias ou

hipotalmicas (hipotireoidismo central ou secundrio/tercirio)10,91.

Os hormnios tireoidianos tm efeitos de grande importncia em virtualmente

todos os sistemas orgnicos. Eles agem estimulando a absoro de glicose, a gliclise, a

gliconeognese, a liplise, a calorignese e a sntese de protenas. Eles ainda aumentam

a captao de oxignio por alguns rgos como corao, fgado e rim. Tambm

apresentam efeitos profundos no crescimento e diferenciao celular, que so

especialmente evidentes nas primeiras duas dcadas de vida92.

O hipotireoidismo pode ser definido como estado resultante da insuficincia ou

incapacidade do hormnio tireoidiano de exercer sua atividade biolgica. Esta pode

ocorrer por uma falha na produo do hormnio, de uma deficincia no seu transporte,

ou por um bloqueio na interao com seu receptor na clula-alvo (tambm denominado

sndrome da resistncia ao hormnio tireoidiano). No caso especfico do HC, ocorre a

falha na produo hormonal como principal mecanismo fisiopatolgico.

O cretinismo conhecido h sculos, e a etiologia e o tratamento da doena se

tornaram conhecidos no incio do sculo passado, entretanto o diagnstico clnico

sempre foi um grande desafio. Na dcada de 70, Klein e Raiti sugeriram que o

tratamento precoce poderia atenuar as anomalias neurolgicas encontradas nos cretinos

32

no tratados. A instituio do tratamento at o terceiro ms de vida levaria a uma

melhora da inteligncia em 85% das crianas93. Jacobsen et al. observaram, antes do

advento da TN, que apenas um tero dos pacientes poderiam ser diagnosticados

clinicamente antes dos trs meses de idade94. Sendo assim, poderia se esperar que dois

teros dos nascidos vivos evolussem com retardo mental.

Quando ainda no havia TN, o HC produzia um quadro clnico bastante florido:

dificuldade de suco, constipao, inatividade, hipotonia, hrnia umbilical,

macroglossia, ressecamento cutneo, manchas na pele, fontanela posterior alargada,

fcies edemaciado tpico95.

Atualmente, os benefcios da TN em relao ao HC so amplamente

reconhecidos por sua capacidade de evitar seqelas graves no desenvolvimento

neurolgico dos recm-natos com a instituio oportuna do tratamento adequado93. O

atraso no incio do tratamento pode levar, no apenas ao retardo mental, como outras

seqelas neurolgicas, como descoordenao motora, ataxia, diplegia espstica,

hipotonia muscular, estrabismo, incapacidade de aprendizado e diminuio da

ateno10,96.

Patogenia

A causa mais comum de HC permanente a disgenesia (85 a 90% dos casos). J

existem algumas mutaes genticas identificadas relacionadas ao HC permanente

(fatores de transcrio TTF1, TTF2 e PAX8; e nos genes codificadores da protena

symporter de sdio/potssio, tireoperoxidade e tireoglobulina)96-97.

As concentraes de hormnio tireoidiano so baixas no feto durante a primeira

metade da gestao, quando este inteiramente dependente do suprimento materno

controlado pela placenta. A partir do meio da gestao, o eixo hipotlamo-hipfise-

tireoidiano comea a funcionar e se encontra maduro a termo, no momento do parto.

Apesar da importncia crtica do hormnio tireoidiano em diversos sistemas orgnicos,

especialmente o crebro, a maioria dos recm-natos se mostram assintomticos no

nascimento, pois so parcialmente protegidos pela transferncia placentria de

hormnio materno10, 91.

33

Triagem neonatal e freqncia

Na dcada de 60, o aparecimento do radioimunoensaio facilitou os estudos da

funo tireoidiana com as dosagens de tiroxina (T4) e tireotrofina (TSH). Em 1972,

Dussault adaptou a dosagem de T4 do eluato obtido de amostras de sangue seco colhidas

em papel-filtro para deteco de PKU na provncia de Quebec54. Foram implantados

programas-piloto de TN em Quebec (Canad) e Pittsburgh (Pensilvnia), em 1974, e

atualmente j se encontram amplamente distribudos pela Europa Ocidental, Amrica do

Norte, Japo, Austrlia, e partes da Europa Oriental, sia, Amrica do Sul e Central.

Nos Estados Unidos, mais de 5 milhes de recm-natos so triados e aproximadamente

1400 recm natos com HC so detectados anualmente. L, o principal objetivo de

erradicao do retardo mental causado por HC j considerado alcanado91.

Alm do profundo benefcio clnico, estima-se que o custo de manuteno da

triagem para HC muito menor do que o diagnstico, tratamento e acompanhamento

dos casos diagnosticados em idade mais avanada65, 69,71,91.

A literatura vinha referindo uma incidncia global da doena entre 1 para 3.000

e 1 para 4.000 recm-natos vivos91, 98-99. Entretanto, a incidncia sofre influncia de

diversos fatores tnicos, genticos, ambientais, alimentares, de gnero, entre outros.

Indivduos do sexo feminino tendem a apresentar maior incidncia da ordem de 2:1. As

diferenas tnicas demonstram que asiticos e latino-americanos de origem hispnica

apresentam maior incidncia do que em afro-descendentes54, 91. Recentemente, Harris et

al. relataram que modificaes na composio tnica da populao de Nova York

aumentaram em 40 a 50% a incidncia do HC naquele estado. Eles tambm

mencionaram que, no estado da Califrnia, a incidncia entre prematuros dobra em

relao s crianas nascidas a termo100.

A carncia alimentar de iodo uma das principais causas do HC em diversos

pases como Algria, Zaire, Blgica, Arbia Saudita e algumas reas da Itlia, como a

Siclia. Muitos pases lanaram mo da iodao do sal de cozinha para controlar esta

situao54, 91.

O eixo hipotlamo-hipfise-tireoidiano controla a secreo do hormnio

tireoidiano (T4) a partir de uma sintonia fina capaz de manter concentraes estveis

deste hormnio em qualquer indivduo. Qualquer diminuio na produo do T4 pela

tireide leva a um aumento da concentrao de TSH. Isso s no acontece quando a

34

deficincia na produo causada por uma deficincia central na produo de

TSH10,54,91,93,98-99.

As estratgias de TN podem utilizar as dosagens de TSH isolado, T4 isolado, ou

a combinao dos dois hormnios. Em todas elas h necessidade de confirmao

subseqente quanto os resultados so alterados. A maioria dos programas na Europa,

Japo, Canad, Mxico e Estados Unidos utilizam a dosagem inicial do TSH e

confirmao diagnstica posterior nos casos em que este hormnio se encontra

elevado91. A desvantagem deste mtodo que os pacientes que apresentam elevao

tardia do TSH, hipotireoidismo central e hipotiroxinemia, no sero detectados pela

triagem neonatal. No caso da deficincia de TBG, isso no representa um problema j

que se trata de uma condio benigna, que no trar repercusses clnicas to graves

quanto o hipotireoidismo propriamente dito. Os casos de hipotireoidismo central e

hipotiroxinemia geralmente so mais raros e o desenvolvimento de seqelas menos

contundente91.

Nos Estados Unidos, as coletas geralmente so feitas no momento da alta, j que

a Academia Americana de Pediatria faz esta recomendao para que, desta forma,

nenhum caso seja perdido18. Algumas vezes, a coleta precoce feita antes de 48 horas

de vida, o que representa um problema na utilizao do TSH, j que os nveis podem

estar fisiologicamente elevados, induzindo a um nmero expressivo de resultados falso-

positivos. Esta uma das razes para a qual se recomenda que a coleta seja feita a partir

de 48 horas de vida31, 91. A utilizao de valores de corte diferenciados de acordo com o

momento da coleta pode ser uma soluo.

No caso da utilizao primria de T4 seguida da dosagem de TSH, possvel se

detectar a deficincia de TBG e o hipotireoidismo central. Contudo, h uma tendncia a

um elevado nvel de resultados falso-positivos em situaes como prematuridade, baixo

peso, transfuso sangnea, doenas perinatais diversas, levando a um nmero muito

alto de reconvocaes para confirmao diagnstica, comprometendo a logstica de

retaguarda de confirmao e diminuindo a eficincia dos PTN54, 91.

A estratgia ideal seria a dosagem combinada de ambos os hormnios, porm

essa de custo elevado e invivel em termos de sade pblica. Por isso, h uma

tendncia TN preferencial isolada com TSH54, 91. Os valores de corte variam em cada

PTN, porm a conduta perante os resultados alterados semelhante. Todos so

reconvocados para uma avaliao clnica e novas dosagens sricas de TSH e T4-livre.

Em alguns centros tambm realizada ultrassonografia e cintilografia tireoidiana com

35

123I ou 99mTc (embora muitos deixem essa avaliao para mais tarde, entre 2 e 3 anos de

idade, quando feita uma ampla investigao etiolgica)91.

O tratamento iniciado com L-tiroxina na dose de 10 a 15 g/kg/dia e o

monitoramento posterior segue protocolos prprios com freqncias variadas de

reavaliao, quando as doses so reajustadas conforme a necessidade91.

3.3.3. Hemoglobinopatias

As alteraes hereditrias da hemoglobina resultaram de uma adaptao contra a

malria e constituem-se na condio monognica mais comum no mundo. Estima-se

que aproximadamente sete por cento da populao mundial seja de portadores destes

distrbios e que entre 300.000-400.000 crianas nasam com as formas graves da

doena a cada ano. Embora estas condies sejam mais freqentes em regies tropicais,

os fluxos migratrios tornaram-nas visveis na maioria dos pases101.

A doena falciforme (DF) se originou na frica e foi trazida Amrica pela

imigrao forada dos escravos. No Brasil, distribui-se de forma heterognea, com

maior freqncia onde h maior proporo de antepassados negros na populao (regio

Nordeste e estados de So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais). Em So Paulo, o trao

falcmico tem prevalncia de 2,72%102-103 e em Minas Gerais, 3,2%. No estado do RJ,

h um caso de DF para cada 1.196 nascidos vivos e um portador de trao falcmico pra

cada 27 nascidos vivos38. Por outro lado, no Rio Grande do Sul a prevalncia da DF

1:39.000 recm-natos refletindo a heterogeneidade na composio tnica da populao

brasileira39.

Patogenia

Dentre as hemoglobinopatias, a DF a patologia mais freqente e impactante

por sua elevada prevalncia e pela gravidade de suas manifestaes clnicas. Antes da

implementao dos PTN no estado do RJ, apenas dois por cento das crianas afetadas

alcanavam a idade de cinco anos, sendo a infeco bacteriana a maior causa de

complicaes nestes pacientes, seguida por febre, seqestro esplnico e sndrome mo-

p38. Segundo dados do HEMORIO, antes do advento da TN, a mortalidade global dos

portadores de DF era de 5,06% e a mortalidade de crianas com at doze anos de idade

chegava a 16,5%. A introduo da TN no estado do RJ para DF reduziu a mortalidade a

36

nveis prximos de zero, demonstrando a importncia da implantao deste

procedimento para a reduo da morbidade e mortalidade de recm-natos,

particularmente em reas onde a doena tem elevada prevalncia38.

As alteraes hereditrias da hemoglobina se encontram em trs grupos que se

superpem: variantes estruturais da hemoglobina; talassemias (que se caracterizam pela

diminuio na taxa de sntese de uma ou mais cadeias de globina); e as condies em

que h persistncia da hemoglobina fetal alm do perodo neonatal104. Para efeito de

TN, h particular interesse nas variantes estruturais da hemoglobina e, mais

especificamente, naquelas que apresentam quadro clnico e representam um problema

de sade pblica, como as hemoglobinas S, C e E.

A hemoglobina S foi a primeira variante identificada e est relacionada DF

causa de morbidade e mortalidade considerveis na frica e em todas as populaes

para onde houve migraes de indivduos de descendncia africana. Neste grupo, so

includos os heterozigotos (tambm denominados portadores de Trao Falcmico

hemoglobina AS), os homozigotos (portadores de Doena Falciforme hemoglobina

SS) e os estados heterozigotos compostos (SC e SD) ou -talassemia (Hb S

talassemia).

A hemoglobina S difere da hemoglobina A (normal) pela substituio da valina

pelo cido glutmico na posio 6 da cadeia de -globina. Em solues de hemoglobina

concentradas, que so parcial ou totalmente desoxigenadas, esta substituio de

aminocidos leva polimerizao e formao de fibras intracelulares que causam a

deformidade celular, levando hemcia a assumir a forma de uma foice. Esta

deformidade das hemcias faz com que as mesmas percam flexibilidade e tenham uma

passagem defeituosa atravs da micro-circulao. Esta causa das manifestaes vaso-

oclusivas observadas na DF. Alm disso, estas alteraes estruturais levam a uma

reduo na sobrevida das hemcias e uma anemia hemoltica crnica104.

Quadro clnico

O quadro clnico da DF geralmente surge no primeiro ou segundo ano de vida. A

criana geralmente tem dificuldade de suco, infeces recorrentes, crises de dactilites

dolorosas (sndrome mo-p) ou palidez. Pode haver ictercia, bao palpvel, e

achado hematolgico de afoiamento das hemcias. Com o passar do tempo, a

37

esplenomegalia tende a desaparecer em decorrncia da fibrose e atrofia esplnica

secundria aos infartos repetidos ocorridos no rgo104.

As crises lgicas so as manifestaes mais comuns e importantes da DF se

caracterizam pela rpida instalao, localizadas nos membros, regio lombar, abdome

ou trax. O mecanismo no claro, mas j se observou, em bipsias de medula ssea

das regies dolorosas, que invariavelmente h infarto medular. Pode haver febre

moderada, talvez decorrente do infarto sseo104. A sndrome mo-p ocorre

precocemente na infncia e se caracteriza por um edema doloroso de aparecimento

sbito no dorso das mos e dos ps.

O segundo principal problema clnico encontrado na primeira infncia a grande

propenso para infeces, principalmente por Streptococcus pneumoniae, Salmonella

sp, Escherichia coli, e Haemophilus influenzae. Estas infeces podem se manifestar na

forma de gastrenterites, osteomielites (infeco em um osso infartado), pneumonia

pneumoccica e septicemia. O choque sptico uma causa comum de bito no perodo

neonatal e mais tarde na infncia. Um grande fator facilitador para infeces a funo

esplnica prejudicada concomitante ao bloqueio generalizado do sistema

reticuloendotelial104.

Tambm nos primeiros anos de vida, pode haver crise de seqestro esplnico,

quando o bao aumenta seu volume de forma rpida, repleto de hemcias afoiadas

nestes casos, grande parte do sangue circulante capturada pelo bao, levando anemia

profunda e morte104.

A sndrome torcica apresenta eleva morbidade e mortalidade em todas as idades

e se caracteriza por dor pleurtica, febre, tosse e dispnia progressiva. Este quadro se

deve obstruo generalizada das artrias pulmonares com as hemcias afoiadas

levando ao infarto pulmonar. Pode haver crise abdominal semelhante a uma peritonite,

porm a rigidez abdominal e a queda do estado geral so menos intensas104.

Outra causa comum de bito em pacientes de todas as idades a crise aplstica

aparentemente relacionada com um agente semelhante ao parvovrus humano. As crises

neurolgicas agudas refletem o infarto cerebral em pacientes mais jovens ou hemorragia

nos mais velhos.

Estudos angiogrficos revelam ocluses ou estenoses de grandes artrias

derivadas da cartida. O termo crise hemoltica freqentemente utilizado para

descrever exacerbaes agudas do componente hemoltico da DF. O priapismo pode

38

ocorrer como resultado da ocluso dos vasos que drenam o sangue dos corpos

cavernosos penianos pelas clulas afoiadas104.

Triagem neonatal

O prognstico dos pacientes com DF tem melhorado consideravelmente com a

implantao de PTN e a introduo de algumas intervenes como a orientao aos

familiares sobre o que a doena, como reconhecer precocemente as eventuais

complicaes, acompanhamento mdico sistemtico, antibioticoterapia profiltica e

implementao de esquema adicional de imunizaes38, 101.

A transfuso sangnea ou ex-sangneo-transfuso podem ser necessrias para

tratamento das complicaes agudas e crnicas da DF101. A hidroxiuria uma opo

teraputica para a reduo da freqncia das vaso-ocluses38,101.

O que fica absolutamente claro que muitos pacientes com DF necessitam de

atendimento especializado em centros de referncia, alm de cuidados e vigilncia

constantes por toda a vida101. Outra questo que no pode ser esquecida a situao

dos heterozigotos AS, AC, etc. (portadores do conhecido trao falcmico), que

surgem na TN com elevada freqncia, mas que no podem ser rotulados como doentes.

O esclarecimento aos pais sobre mitos e verdades desta condio e o aconselhamento

gentico sobre a possibilidade destas crianas virem a ter filhos doentes em proles

subseqentes torna-se uma questo fundamental para os PTN105.

3.3.4. Fibrose Cstica (FC)

A FC foi descrita pela primeira vez na literatura na dcada de 30,

caracterizando-se por infeces respiratrias baixas recorrentes e insuficincia

pancretica. uma doena associada com uma sobrevida curta e qualidade de vida

comprometida, necessitando de cuidados mdicos ao longo de toda a vida106.

O leo meconial ocorre em 10 a 20% dos recm-natos com fibrose cstica e pode

ser a manifestao mais precoce da doena. A maioria dos indivduos afetados necessita

de fisioterapia diria, cursos repetidos de antibioticoterapia para as infeces

pulmonares, suplementao de enzimas digestivas e dieta hipercalrica por toda a vida.

No sexo masculino, os indivduos afetados quase sempre apresentam azoospermia,

porm a infertilidade tambm ocorre nas mulheres8.

39

Nos Estados Unidos, a sobrevida mediana destes pacientes de 31,1 anos para o

sexo masculino e 28,3 anos para o sexo feminino. No Reino Unido, a sobrevida

estimada em 40 anos106.

Gentica e freqncia

A FC um dos distrbios hereditrios recessivos mais comuns nas populaes

caucasianas. A doena causada por uma mutao no gene regulador transmembrana da

Fibrose Cstica (CFTR) no cromossomo 7. As mutaes neste gene resultam em uma

disfuno epitelial do transporte de ons e lquidos atravs da membrana apical das

clulas epiteliais das vias reas, pncreas, intestino, glndulas sudorparas e vasos

deferentes.

H uma grande variao na gravidade clnica e outras complicaes da FC que

podem incluir a cirrose heptica, diabetes, obstruo intestinal recorrente, osteoporose e

artropatias relacionadas FC107.

Foram identificadas mais de 900 mutaes para este gene relacionadas FC,

sendo a mais freqente a F508 uma deleo de trs bases do gene. Esta mutao,

junto com outras dez no-F508, responsvel por mais da metade da populao com

mutaes FC106.

A FC ocorre em aproximadamente 1: 2.500 nascidos vivos, embora a incidncia

precisa dependa da ancestralidade da populao analisada107. A prevalncia do status de

portador do gene para FC varia muito entre os diferentes grupos tnicos, sendo mais

comum na populao do norte da Irlanda (prevalncia de carreador de 1: 21 e

prevalncia da doena de 1:1.807). Nos Estados Unidos e no Reino Unido, a

prevalncia de portador do gene de 1: 25, e na Holanda fica em torno de 1: 30.

Existem suposies de que a elevada freqncia de portadores reflete uma adaptao

gentica para proteo contra a febre tifide, que representou um perigo maior no

passado106.

No Brasil, o PNTN s credenciou trs estados para a realizao da TN de FC:

Paran, Santa Catarina e Minas Gerais. Por esta razo, os dados de incidncia disponvel

se referem apenas a estes trs estados: Paran incidncia de 1: 9.520 recm-natos108;

Santa Catarina 1: 8.776109; e Minas Gerais 1: 10.338 recm-natos110. Estes dados j

sugerem que, no Brasil, a incidncia tende a ser menor do que nos pases europeus e

40

talvez exista heterogeneidade entre os diversos estados conforme sua composio

tnica.

O aconselhamento gentico uma parte necessria e vital para o

acompanhamento das famlias de crianas com FC, pois permite uma melhor

compreenso dos resultados e oferece informaes importantes relacionadas a futuras

decises reprodutivas para os pais da criana em questo bem como de outros membros

da famlia111.

Triagem neonatal

Os primeiros PTN em nvel populacional que utilizavam a tripsina

imunorrreativa (IRT) comearam na dcada de 80, apesar de ainda existirem alguns

programas experimentais em que era dosada a albumina do mecnio107. Com a

esperana de melhorar o desfecho da doena nestas crianas, alguns pases da Europa,

Estados Unidos e Austrlia passaram a incluir a dosagem de IRT nos PTN neonatal j

existentes106.

A sensibilidade do teste de IRT (85.7%) e a especificidade (99.8%) tm sido

melhoradas com uma segunda coleta para IRT ou atravs da anlise da mutao F508

nas amostras de sangue em papel-filtro. A confirmao diagnstica feita

posteriormente com o teste do suor106.

No Brasil, um estudo realizado por Cabello et al.112 revelou baixa freqncia de

mutaes F508 em um grupo de pacientes fibrocsticos detectados pela TN no RJ

(26,58% dos casos analisados), o que representa um problema para o tipo de estratgia

que utiliza a dupla dosagem de IRT seguida da anlise desta mutao. Assim, no

estudo-piloto realizado no estado do RJ, em 2007, optou-se pela dupla coleta para IRT

seguida pela confirmao diagnstica com teste do Suor. O estudo gentico, neste caso,

requer um painel que v alm das mutaes F508.

A literatura vem apresentando intenso debate sobre a validade de se incluir a TN

para FC nos programas de TN porque h dvidas sobre o real benefcio do diagnstico

precoce na melhora da qualidade de vida e sobrevida destes pacientes. Tem-se

observado que as crianas com a FC detectada na TN apresentam melhor estado

nutricional, melhor crescimento e menos hospitalizaes do que as que tm diagnstico

clnico posterior106.

41

A TN tem demonstrado uma reduo no risco de complicaes que expe a vida

a risco ou bito desde o perodo neonatal at fases mais tardias na infncia. As famlias

se beneficiam do diagnstico precoce porque evitam o perodo de 1 a 15 meses entre o

incio dos sintomas e o diagnstico, acompanhados de muita ansiedade, frustrao e

stress emocional. Os custos de diagnstico e possvel tratamento (atravs de menos

hospitalizaes) so diminudos com a TN.

Desfechos clnicos

Os principais desfechos clnicos da FC envolvem o estado nutricional precrio e

a insuficincia respiratria, que a causa principal de bito nestes pacientes (95%)107.

A mutao no gene CFTR resulta na obstruo dos ductos pancreticos em

aproximadamente 85 a 90% dos casos com FC. Estes pacientes apresentam

insuficincia pancretica excrina e, com isso, a secreo de enzimas digestivas

diminuda de forma grave. Com isso, ocorre diminuio da absoro de gordura,

protena e vitaminas lipossolveis que, se no tratadas, resultam em desnutrio. A

dificuldade de suco causada pela desnutrio freqente (e um dos sinais suspeitos)

no momento em que as crianas so diagnosticadas clinicamente como casos de FC107.

Como a TN permite o diagnstico da FC em crianas mais novas, pressupe-se

que estas crianas possam iniciar mais cedo o tratamento com reposio de enzimas

pancreticas (PERT), vitaminas lipossolveis A, D, E e K, e uma dieta hiperlipdica,

resultando em melhor estado nutricional.

A progresso da doena pulmonar da FC o principal fator determinante da

qualidade de vida e sobrevida destes pacientes. Inicialmente, a infeco e inflamao

da