Avaliação de uma Crítica À Noção Kantiana de “Agir por Dever
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Avaliação de uma Crítica 1
Avaliação de uma Crítica À Noção Kantiana de “Agir por Dever”
por Zulena dos Santos Silva
A noção de "agir por dever" defendida por I. Kant é incoerente para
muitos críticos, entre eles Philippa Foot1. Esta autora questiona a diferença
entre imperativo hipotético e o categórico estabelecida por Kant.
Examinando o conceito de "imperativo" apresentado nos escritos de Kant
sobre moralidade, a autora nos lembra que isso significa uma declaração
de que algo deve ser feito. Um imperativo diz o que é bom fazer, e isso é
prescrito para um ser racional finito, ou seja, para um ser que pode não
seguir tal prescrição. Como tal, ele exprime uma obrigação ou dever, uma
ordem da razão.
Imperativos são hipotéticos quando a prescrição do que deve ser
feito está direcionada para um interesse, o qual consiste na finalidade ou
objetivo a ser alcançado por meio do que é ordenado fazer. Assim, o dever
está baseado no interesse. O imperativo moral não diz o que deve ser em
vista de um interesse particular do agente. A regra moral é válida e adotável
independentemente deste fim. Isso quer dizer que o imperativo moral vale
enquanto prescrição universal que atenta para o outro como fim em si
mesmo e é seguida com autonomia. Com isso, Kant está contrastando o
agir por dever, segundo a lei moral, e o agir por motivos particulares,
inclinações.
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Philippa Foot, todavia, chama atenção para a heterogeneidade da
classificação dos imperativos hipotéticos. Ela assinala que, por vezes, o que
se quer depende de uma inclinação passageira, por outras, depende de um
projeto a longo prazo em que os sentimentos e inclinações do momento são
irrelevantes. É certo que aquilo que se quer a longo prazo representa um
interesse, o que é fundamento do imperativo hipotético. A questão, no
entanto, é que o interesse nem sempre é uma inclinação particular, e nem
todo objetivo a longo prazo pressupõe inclinação. Sendo assim, parece
estranho que os imperativos hipotéticos não possam ser considerados
morais, ou mais precisamente, que os juízos morais sejam categóricos e
não hipotéticos.
Segundo a crítica, à primeira vista Kant parece estar correto ao
estabelecer essa distinção que implica dois sentidos para o "dever". O dever
relacionado ao imperativo hipotético depende de querer um fim. Por assim
dizer, tal dever é relativo, sustentado apenas na medida em que se quer o
fim. E se alguém quer determinado fim, deve escolher os meios adequados
para alcançá-lo; caso contrário, não obterá aquilo que deseja. Em situações
ditas morais, a força de imposição do imperativo categórico não depende de
um fim ou interesse particular. P. Foot chama atenção que, neste caso, a
falta de vínculo entre a ação ou o que deve ser feito e um interesse parece
não significar que o dever careça de apoio ou justificação, mas antes
denotar que ele seja de outro tipo.
Contudo, para a autora, é problemático atribuir aos juízos morais
dignidade e necessidade especiais, quer dizer, um tipo diferente de
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exigência que não a do imperativo hipotético, mas sim a do dever
incondicionado, independente de nossos interesses. É preciso demonstrar
este valor, o que equivale perguntar sobre qual a necessidade de juízos
morais serem compreendidos dessa maneira, por que temos de adotar uma
moral incondicionada. Quais as razões que temos para agir assim? Qual a
necessidade de um imperativo que dita um dever desvinculado de
interesses particulares?
Essas são as questões que P. FOOT pensa ser necessário responder,
mas, conforme sua interpretação, Kant não consegue fazer isso. Sua crítica
a Kant destaca a falta de uma prova da especificidade dos juízos morais,
pois há outras declarações normativas que não são hipotéticas, nem
propriamente morais, como p.ex. as regras de etiqueta ou as de clube. Tais
regras não deixam de ser aplicadas mesmo quando alguém não se
interessa por elas ou tenha razões para ignorá-las. Segundo P. Foot, isso
quer dizer que estas regras valem sem nenhum vínculo com os interesses
dos agentes.
P. FOOT admite que pode-se objetar que aquelas regras não-
hipotéticas só devam valer enquanto apresentem razões para serem
adotadas. Porém, segundo ela, tais regras não se impõem por razões.
Ora, se não são impostas e adotadas por razões, como podemos dizer
que sua validade não repousa em interesses particulares? A autora admite
essa aparente contradição para chamar atenção de quanto a idéia de
imperativo categórico é indefinida, na medida em que se assemelha a outras
regras não-hipotéticas, se entendemos que essas últimas não são apoiadas
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nos interesses dos agentes nem apresentam razões.
Nesse ponto podemos ver alguns problemas na crítica de P. Foot. Em
primeiro lugar, considerando que ela diz que regras não-hipotéticas como as
de etiqueta ou as de clube têm seu valor independente dos interesses dos
indivíduos, podemos dizer que elas são adotadas em vista do seu interesse
em pertencer a um determinado clube ou sociedade.
Em segundo lugar, no caso de que tais regras não se impõem por razões,
podemos dizer que se admitirmos que as regras de etiqueta ou as de clube
são sociais e se impõem por coerção, esta funciona, na verdade, como uma
razão para adesão àquelas regras.
O que precisa ser esclarecido aqui é o que se entende por “razão” moral
para agir. No sentido atribuído por Kant, é um argumento que vale
independentemente do interesse do agente e que são adotados livremente, e
não por coerção, exigência social. Daí poder-se ainda tentar dizer que
considerações morais apresentam razões, enquanto que aquelas outras
normas não-hipotéticas não se apoiariam em razões.
No entanto, é exatamente isso o que dever ser esclarecido no entender
de P. FOOT, ou seja, é preciso explicitar o sentido do dever moral em
relação a outras declarações normativas não-hipotéticas, as quais,
segundo ela insiste, também independem dos interesses dos agentes e de
razões, entendendo-se estas como incondicionais.
Aqui podemos conceder que os interesses dos indivíduos podem ser
tomados como particulares, enquanto as regras de etiqueta ou as de clube não
se valem da arbitrariedade do indivíduo, ao contrário impõem um “dever
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coletivo” ou, se se quiser, coerção coletiva. Podemos também admitir, como já
o dissemos, que essas regras não implicariam razões, no sentido de ter valor
incondicional. Isso é o que podemos interpretar das afirmações de P. FOOT.
Levando em conta, então, a dificuldade de justificar a obrigatoriedade do
imperativo moral incondicional, P. FOOT conclui que juízos morais como
outros são normativos e o aspecto normativo não garante a pretensão de
razão dos juízos morais. Por que estes oferecem razões e os outros não?
Como P. Foot insiste, tudo o que podemos dizer é que os deveres não-
hipotéticos são ensinados e o comportamento nestes casos é exigido, não
apenas recomendado como no caso dos hipotéticos. Ainda assim a autora
concede que pode ser dito que regras de etiqueta não são impostas, como o
seriam as morais, e que, portanto, seriam mais precisamente hipotéticas.
Desse modo, parece que os juízos morais são categóricos porque o
aprendizado moral é severo, mais coercitivo que o das demais normas de
comportamento. A inevitabilidade ou necessidade da moral parece resultar da
maneira como é ensinada.
Dessas reflexões críticas pode resultar ou que os juízos morais não têm
sentido por não oferecerem razões, ou que estas não são claras e relativas às
circunstâncias de aprendizagem.
Na interpretação de P. Foot, essas questões são respondidas insistindo-
se que o agir moral se realiza porque são aceitas as razões para agir. Na
concepção de Kant, as ações morais valem por si mesmas, sua correção
prescinde de qualquer motivo. Nessa perspectiva, ele estabeleceu o contraste
entre agir por respeito à lei moral e o agir conforme o dever, este atendendo a
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motivos particulares.
No entanto, substituindo a noção de dever moral pela idéia de
virtude, segundo Philippa Foot, pode ser dispensada a noção de
imperativo categórico, que parece não resistir às avaliações mencionadas
acima. Como exemplo, a caridade é uma virtude que pode ser realizada sem
segundas intenções, em vista do bem dos demais. Na mesma condição estão
a justiça e a honestidade, todas associadas ao imperativo hipotético, tendo em
vista um fim que é o bem de todos. Essas virtudes revelam atitudes sem
motivo de obrigação ou dever moral. Sendo assim, as pessoas são motivadas
por fins morais não porque representam o dever, mas porque estes despertam
sua devoção.
Nesse caso, a demarcação entre o dever moral e as outras regras não-
hipotéticas é clara, o que não podemos dizer a respeito da diferenciação do
imperativo categórico com relação àquelas. Os fins morais são distintos de
regras como as etiquetas, pois não pode ser dito que ocorre devoção ou
dedicação para estas. Nessa perspectiva, proposta por P. FOOT, o dever é
interligado a fins que os homens têm de fato, fins com que as pessoas se
preocupam e aos quais dedicam suas vidas. Isso é o que vale, que sejam
necessidades de fato, ainda que necessidades subjetivas e condicionais.
A idéia de decisão dos homens pelo dever constitui o pressuposto dessa
alternativa à moral incondicional. Isso contraria a posição de Kant. Ele
certamente admite que a nossa vontade pode ser determinada pela lei moral
ou não; mas isso não seria um caso de decisão, e sim que as leis morais
tornam-se uma obrigação para uma vontade imperfeita. Seres racionais podem
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até escolher inclinações em detrimento da lei; no entanto, isso não retira o seu
valor.
Porém, P. Foot insiste que mesmo que aceitemos essa perspectiva de
Kant – de que o valor da lei moral é necessário e não relativo – é preciso
conceder que a natureza da vontade humana não é perfeita. Contudo, da
constatação da imperfeição humana não decorre que os deveres morais
tenham de ser desprezados, sendo seguidas apenas as inclinações. Para Ph.
Foot, os imperativos hipotéticos é o que nos resta nestas condições de fato,
em que tanto a imperfeição humana quanto a necessidade de dever moral são
relevantes. A moral baseada nestes imperativos não é necessariamente moral
de inclinações. Os interesses podem mudar, mas não se quer entender que
devam ser renunciados por causa de obrigações ou deveres. Por que regras
morais não podem ser hipotéticas? O que significa dizer que são categóricas?
Philippa Foot finaliza suas críticas levando em conta e rebatendo uma possível
objeção a elas. Pode ser dito que o reconhecimento do dever é pressuposto
para que aqueles fins sejam adotados; um sistema moral já está sendo aceito
quando alguém se volta para causas como a justiça e a liberdade. Mas para
Philippa Foot parece estranho que isso seja motivo para aquele que rechaça a
obrigação da lei moral. Isso pode valer para o homem moral, aquele que se
dedica a tais finalidades. Sendo imoral, alguém pode negar as exigências
morais, e "porque deve" não é razão para ele se interessar por estas causas.
Dizer-lhe, por outro lado, que sofrerá conseqüências devido a seu egoísmo
não é justificativa para a imposição do dito "dever moral", senão não seria
categórico, incondicional. Logo, ela conclui que a noção categórica do dever
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moral é mera ilusão.
No entanto, vamos apresentar aqui objeções à posição de Philippa Foot.
Primeiramente, podemos dizer que Kant não descartaria o valor das virtudes;
mas o que se entende por virtude é o que precisamos indicar aqui.
Entendida como disposição ou capacidade natural, virtude não justificaria
o valor moral das atitudes humanas, i.e. virtude no sentido de inclinação não
poderia avaliar o valor moral de uma ação, pois seria relativa, ora em vista ao
bem de todos, ora valendo para alguns indivíduos_ como exemplo, a caridade
ou gentileza que não é uma disposição presente igualmente em todos. Se
atitudes virtuosas, entendidas nesse sentido, fossem morais, a idéia de moral
estaria condicionada à capacidade humana de ser ou não virtuoso, o que
compreenderia a moralidade como determinada por algo que não um valor em
si mesmo; as virtudes assim são ainda algo contingente, do qual não se pode
pretender ou imaginar como igual em todos.
Nesse sentido, também vale apontar que aquele que se desobriga da
moral categórica também é indiferente a essa alternativa, porque pode não ser
naturalmente virtuoso. Além disso, como contingente, sem apresentar uma
disposição igual em todos os agentes, a virtude pode não se prestar
unicamente ao bem (à moral), ou mesmo acontecer que um indivíduo seja
naturalmente virtuoso sem ser moral.
Dizer ainda que tais capacidades podem ser formadas e desenvolvidas
por educação, orientada para a "justa medida", nos impele a perguntar sobre
qual critério adotar na definição do “meio termo”, isto é, do que for a melhor
ou mais adequada virtude para tal ou tal situação, ou ideal coletivo.
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Na visão de Kant, a maneira precisa de pensar a moral consiste em
entender esta idéia como uma possibilidade da vontade em atender um critério
racional por si mesmo, a lei moral ou Imperativo Categórico. Este critério
determinante (possível) da vontade humana não seria contingente. O problema
de uma tal concepção do valor moral como incondicionado está em
compreender se uma pessoa pode adotar a lei moral e se ao fazê-lo o faz, na
verdade, por acidente, por motivos circunstanciais apenas.2
Aqui vale ressaltar a diferença entre o imperativo categórico e as regras
ditas não-hipotéticas. Podemos dizer que, segundo Kant, regras de etiqueta e
de clube são circunstanciais. Isso quer dizer, essas regras são adotadas por
motivos ou razões outras que não elas próprias. Sendo assim, como não dizer
que, em última análise, tais regras sejam hipotéticas? Se quero me associar a
um clube, usufruir de lazer neste clube, devo aceitar suas regras; se quero
lançar mão da conveniência, em certas situações, devo seguir a etiqueta.
Adotamos tais regras por interesses particulares e a validade das mesmas é
prudencial.
Dito isso, prossigamos no esclarecimento do outro sentido de “virtude”,
com o qual formaremos nova objeção à crítica de P. Foot, na verdade, uma
objeção já concedida por ela, como vimos anteriormente, e a qual
reforçaremos.
Virtude pode também ser entendida como força de caráter, o que quer
dizer que a vontade é capaz de inibir suas inclinações, respeitando a lei moral.
O que podemos admitir é que virtudes ou certos sentimentos acompanham o
dever moral e revelam o reconhecimento de um pressuposto moral. Este,
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segundo Kant, seria a lei moral com suas formulações de universalidade,
autonomia e respeito recíproco. Logo, não é a virtude por si que se impõe
como razão moral , antes baseia-se no Imperativo Moral que se impõe como
critério. Quanto a isso podemos acrescentar que ideais ou virtudes como
"justiça" e "honestidade", indicados por Philippa Foot, têm valor moral na
medida em que expressam os critérios da lei moral. Se as condições de uma
atitude são a universalidade, idéia de um agir que vale para todos, e
consideração do outro como fim em si mesmo, esta atitude é justa. Também
podemos dizer que ser honesto é antes de tudo considerar o outro, bem como
a si mesmo, como fim e não um meio.
Com isso, percebemos que o imperativo categórico serve como critério
para atitudes morais, até porque nem tudo ou nem sempre o que é dirigido ao
bem comum vale igualmente (tomando o outro como um fim, e não apenas a si
próprio) para todos, ou é uma escolha autônoma ou respeita os outros e a si
mesmo como fim. Como saber que certos ideais são para o bem de todos? As
pessoas podem continuar a "dar a vida" por seus ideais de bem coletivo, p.ex.,
mas a escolha desses ideais já pressupõe o critério ou padrão normativo
representado pelo imperativo categórico.
Avaliando de perto, percebemos que certos fins não estão formulados
hipoteticamente, mas antes comprometem-se com as exigências da lei moral
incondicional. Em outras palavras, podemos afirmar, como objeção à crítica a
Kant feita por P. Foot, que o imperativo categórico não é indiferente a um fim,
mas diz que este fim escolhido atende as suas formulações. Vale ainda dizer
que, mesmo que imperativos hipotéticos não almejem inclinações, seu fim é
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relativo para aqueles que o desejam num certo momento. Podemos conceder
que os homens decidem o que vale ou não moralmente quando levam em
conta seus projetos de vida. E talvez os imperativos hipotéticos sirvam como
condição desses valores e projetos existenciais. No entanto, estes, por serem
relativos à vontade do agente, não servem como razão para a ação de todos,
ainda que pretenda acolher a todos. Desse modo estes fins não seriam
motivos também para o homem imoral. Sendo assim, a justificação moral pelo
dever por si mesmo não perde nada com relação à alternativa dos ideais ou
fins do bem coletivo. Da perspectiva de Kant, o imperativo moral seria razão
para agir moralmente, ainda que em suas resoluções os homens não o
adotem.
É preciso ressaltar a esse respeito que o fato de os homens não agirem
segundo a prescrição do imperativo incondicionado pode ser interpretado
como contingente: ou não se age moralmente porque se deixa prevalecer
motivos condicionais, particulares ou porque a ação é conforme, porém sem
ser por dever3. Quanto a isso ainda é preciso dizer que tais possibilidades
circunstanciais não retiram o valor da moral incondicional, pois podemos agir
circunstancialmente, sem que com isso descartemos ou não reconheçamos a
obrigatoriedade ou o valor do imperativo moral como concebido por Kant.
No entanto, no caso do homem imoral ou cético, fica em aberto a possibilidade
de mostrar que sua atitude tem que pressupor o critério incondicionado, ou
seja, que ele não pode deixar de ser moral, conquanto atitudes céticas ou
radicalmente contra a moral põem em questão a pretensão de uma moral
incondicional valer para nós, seres humanos. Este, contudo, é um projeto para
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estudo futuro.
Notas
1- Cf. FOOT, Philippa.“Morality as a System of Hypothetical Imperatives”, in
Immanuel Kant; Critical Assesments.– Londres:Routledge,1995.pp.274-84.
2- Cf. ALLISON, H. E. Kant's Theory of Freedom, p. 114. Sobre o valor da lei
moral e os motivos circunstanciais da ação cf. pp.56-58 desta dissertação,
onde o assunto é desenvolvido a partir do esclarecimento das noções de
“contingência motivacional” e “contingência de concordância”.
3- Cf. Nota 2.