Ayrton Mugnaini - Cazuza

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    Cazuza Ayrton Mugnaini Jr

    (Obra indita para a Editora Online BMGV Music Software Net Editora Ltda. Rua Joo Moura 861

    So Paulo . Capital cep: 05412-022 (55-11) 883.6055)

    ** Cazuza **

    "Um Pierr meio bossa-nova e rock and roll"

    ndice

    Prefcio

    Introduo

    "Mentiras sinceras me interessam"

    Estudo Crtico

    "Pra mim tudo ou nunca mais"

    Cronologia

    "Eu no tenho data pra comemorar"

    As Mortes do Poeta

    "Eu vi a cara da morte e ela estava viva"

    Discografia

    "Meu canto o que me mantm vivo"

    Composies

    "Meu fantasma guardando lugar pra amanh"

    Regravaes e Originais

    "Segredos de liquidificador"

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 1

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    Msicos

    "Agora eu ando muito bem acompanhado"

    Filmografia

    "Pode seguir o teu brinquedo de star"

    Opinies

    "Mesmo meus amigos mais canalhas me do razo"

    Sobre o autor

    "No h perdo para o chato"

    Introduo

    Como bom, e como difcil, viver sem preconceitos. A MPB e o rock

    brasileiro passaram por uma boa reformulao nos anos 80, e eu, na qualidade

    (ou defeito) de compositor do grupo Lngua de Trapo, posso dizer que fiz

    parte dela. Mas, como bom (ou mau) paulistano, tive no incio uma pequena

    toro nasal com relao ao contingente carioca desta nova gerao de artistas.

    certo que entre meus heris de ento e sempre estavam Noel Rosa, Mrio

    Reis, Pixinguinha e muitos outros nascidos do lado "errado" da Via Dutra,

    mas no incio dos anos 80 a msica do Rio feita desde os anos 60 no me

    atraa tanto. A malandragem do samba dera lugar aos barquinhos e peixinhos

    da bossa-nova, e meu lado roqueiro preferia o Ira!, o Ultraje, coisas mais

    "urbanas"; mesmo a stira da Blitz, Lo Jaime, Asdrbal e outros me parecia

    muito "engraadinha", no muito profunda, mais para alienada; Eduardo

    Dusek era to bom que "nem parecia carioca", e os Tits, ainda presos a seus

    radinhos e sorvetes, me pareciam "acariocados".

    Enfim, o tempo e a idade me ajudaram a me livrar de tais noes

    preconcebidas; hoje sei que, no fundo, no existe msica carioca ou paulista, CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 2

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    branca ou negra, nova ou antiga; o que existe msica bem feita ou mal feita,

    e humoristicamente correta ou incorreta. E nem precisei de muito tempo ou de

    tanta idade assim; em 1985 eu j estava colaborando no Pasquim do Rio como

    correspondente paulistano, devorando o Planeta Dirio e a Casseta Popular

    (incluindo suas colaboraes para a paulistanssima Folha de So Paulo) e

    tendo a honra de composies minhas no repertrio d'O Esprito da Coisa. E

    uma ou outra gravao do rock carioca me despertava o interesse, alguma

    coisa do Kid Abelha, muitas faixas (mais tarde LPs inteiros ou quase) de Lulu

    Santos. Mas o Baro me parecia um caso parte, com seu estilo mais prximo

    do que me agradava, rock direto, simples e forte, comparvel aos melhores

    grupos paulistanos, e letras que fugiam do lugar comum. Especialmente

    interessante me parecia o cantor, com nome de romance de literatura infantil

    (embora, anos depois, eu viesse a saber que era coincidncia) e dico que,

    alm de fugir dos "ss" e "xx" to tpicos de sua cidade, inclua uma peculiar

    priso de lngua que, alis, no era privilgio dele: como portador de um

    defeito similar, acabei tendo um ataque de se-ele-pode-fazer-sucesso-eu-

    tambm-posso e me promovi de compositor para "cantautore".

    E desde 1986 assumi uma terceira faceta, a de msico da noite paulistana,

    "operrio da alegria", usando contrabaixo, violo e guitarra como ferramentas.

    A primeira cantora que acompanhei ficou horrorizada com a sugesto de uma

    amiga, de que ela cantasse "S As Mes So Felizes"; j a segunda arrasava ao

    cantar "Maior Abandonado". Em 1992, com o samba retornando de seu exlio

    das rdios, acompanhei um cantor paulista de MPB que empolgava com "Faz

    Parte Do Meu Show", "Codinome Beija-Flor" e, de quebra, "O Poeta Est

    Vivo". Paralelamente a isso, toquei num grupo de rock cujo repertrio inclua

    "Bete Balano". E meu primeiro LP acabou incluindo uma

    pardia/homenagem, "Imunologia". CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 3

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    Pois bem, a oportunidade de escrever um livro sobre Cazuza foi uma boa

    diverso, tanto pelo assunto em si, como por ser mais um desafio para

    pesquisador. Afinal, quando iniciei este livro, em 1994, o Brasil ainda era o

    pas onde menos se ouvia msica brasileira, e continua no tendo muita

    pacincia de preservar sua prpria memria. O que acaba sendo mais uma

    prova de que Cazuza veio para ficar, j que ele continua sendo cantado,

    regravado e reeditado - uma espcie de verso carioca e moderna de Raul

    Seixas, compositor e intrprete que uniu a boa literatura ao em princpio

    "iletrado" rock and roll e msica popular de sua terra e sua poca (para Raul

    o baio, para Cazuza a bossa-nova), dois grande compositores e intrpretes

    populares que sobrelevaram o brega e descomplicaram o chique, e que

    tambm se tornaram grandes personagens, pessoa e artista independentes um

    do outro (e, proporcionalmente ao tempo de carreira, Cazuza igualou-se a

    Raul em importncia e repercusso).

    Mas, como eu ia dizendo, o Brasil tem dificuldades em preservar sua

    memria. Mesmo uma biografia curta e recente como a de Cazuza torna-se um

    desafio, com muitos dados errneos ou incompletos e muitos erros e lapsos

    aceitos sem discusso. Por exemplo, o Jornal da Tarde transformou a

    "agranulocitose" (falta de grnulos que conduzem os glbulos no sangue) que

    levou Cazuza numa "granulofitose" exclusiva (o oposto, excesso de grnulos).

    Enfim, aqui est meu livro sobre Cazuza, obviamente sem pretenses de

    esgotar o assunto, mas sim de mostrar porque sua obra permanece. Meu ponto

    de partida s poderia ter sido o livro Cazuza, do jornalista e dramaturgo

    Eduardo Du; consultei tambm as entrevistas de Cazuza para as revistas

    Bizz, Veja e Manchete, alm de livreto da exposio O Tempo No Pra e de

    jornais como Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, Jornal da Tarde. Tambm me

    ajudaram muito a Enciclopdia da Msica Brasileira Erudita, Folclrica e CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 4

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    Popular da Art Editora (Brasil, 1977), The Penguin Encyclopedia Of Popular

    Music (Inglaterra, 1990), e The Rolling Stone Illustrated History Of Rock And

    Roll (EUA, 1980), no esquecendo o livro Chega De Saudade de Ruy Castro

    (Brasil, 1991), Pequena Histria Da Msica Popular - Da Modinha Lambada

    de Jos Ramos Tinhoro (Brasil, 1991), The Brazilian Sound de Chris

    McGowan e Ricardo Pessanha (EUA, 1991), Cartola - Os Tempos Idos de

    Marilia T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho (Brasil, 1993).

    Afinal, como se sabe, nenhuma cultura compartimento estanque, e Cazuza

    nunca escondeu suas influncias estrangeiras, inevitavelmente mais fortes em

    sua gerao, embora ele acabasse por sobrelev-las, justamente por ter tido to

    raro quanto benfazejo (h quanto tempo no ouvias esta palavra?) acesso

    MPB com MPB maisculos de Cartola, Nelson Cavaquinho, Maysa e Dolores

    Duran, que se tornaram parte integrante de seu estilo e ajudaram a mostrar a

    todo o Brasil que msica carioca no era s cantinho, violo e Corcovado ou

    chope, batata frita e jeito de virada.

    E tive sorte de contar com pessoas que colaboraram com este livro

    diretamente, indiretamente ou mesmo sem perceber (fs de Cazuza ou no). A

    lista tem que comear por Joo e Lucinha Arajo, literalmente os pais da

    criana, e pelo Spacca, grande cartunista e imitador e cazuzfilo sem o qual

    este livro melhor nem pensar, alm, claro, de Ruth Cavalcanti, f de

    primeira hora e batalhadora de sempre; os quatro me deram a honra de

    verificar o manuscrito do livro e fazer inmeras sugestes e corrigendas. E

    todo amor que houver nessa vida tambm para Sylvio Passos, Ben Alves,

    Wagner Amorosino, Cristina Azuma, Cal Moreira, Neder Abdalla, Luiz

    Tonus, Paulo Cavalcanti, Assis ngelo, Tom Gomes, Ren Ferri, Albert

    Pavo, Jos Ramos Tinhoro, Kid Vinil, Lngua de Trapo, Espao Persona,

    Mauricio Ruella e Ovelha Negra, Fabian Chacur, Dr. Durval Fernando Tricta, CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 5

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    Baro Vermelho, Joo Gordo, Leila Pinheiro, Dilza Mugnaini, Cynthia & Luc

    Quoniam, Fernanda Couto, Kiko Vianello, Kie Matsumoto, Adelina Bracco,

    Juliana Resende, A.S., Bog; gravadoras Eldorado, PolyGram e Warner (nos

    bons tempos da Cssia Afonso); Mrcio e Celso da Rdio Gazeta, 97 FM,

    Brasil 2000 FM; lojas Ventania, Faunus, Baratos Afins, Jpiter, Nuvem Nove,

    Sweet Jane (watashiwa nani o shimashita ka? Moitido!), Cludio, Z Ferreira

    e todo mundo da Feira do Bexiga, e pode haver outros nomes, que protejo por

    amor, mas no lembro por falha momentnea mesmo.

    A.M.J.

    abril de 1997

    Estudo Crtico

    J faz sete anos que o cidado Agenor tomou seu trem para as estrelas, aps

    uma passagem breve porm rica em folclore e peripcias, mas o poeta Cazuza

    continua vivo, e o melhor de sua obra ainda faz parte do show de muita gente

    boa. Nada mau para um artista popular num pas de pouca memria e muitos

    rtulos. Alm de ser honrosa exceo entre cantores, cuja fama, segundo a

    ilustre frase de Tinhoro, "acaba um dia aps a morte", Cazuza, embora

    surgido como um dos tantos roqueiros dos anos 80, conseguiu transcender o

    rtulo de "roqueiro". Nada contra algum ser roqueiro, claro, mas Cazuza

    tambm era f de MPB, da qual se tornou dolo.

    Para mim, Cazuza j haveria de ficar na histria s por um de seus hits,

    "Faz Parte Do Meu Show", uma bossa-nova sem disfarces, embora com sabor

    moderno, que se destacou entre os roquinhos e baladonas de 1988 como a

    proverbial flor que surge das fendas do asfalto. Faanha esta que considero CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 6

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    impossvel de se exagerar, porque ela mesma j foi um exagero, e at

    mereceria um livro para si. Afinal, talvez os anos 80 tenham sido o pior (ou

    menos timo) perodo por que passou a MPB, o que valoriza ainda mais esta

    poreza (uma entre outras, conforme veremos mais tarde) de Cazuza. Seno,

    ouamos.

    Por MPB, entenda-se no somente "Msica Popular Brasileira", mas

    principalmente - e em princpio - toda a msica popular feita no Brasil que no

    seja rock. Ou seja, por exemplo, Roberto Carlos, apesar de figura central do

    i-i-i, pode ser considerado, em retrospecto, como MPB, por temperar seus

    rocks e baladas com sambas, toadas, bossa-novas e at fox-trotes brasileira

    ("Amlia" de Ataulfo/Mrio Lago; "Ternura Antiga" de Dolores Duran; "Meu

    Pequeno Cachoeiro" do conterrneo Raul Sampaio; suas prprias "Joo E

    Maria" e "Vista A Roupa, Meu Bem"); at "Quero que V Tudo Pro Inferno",

    com todos seus rgos eltricos, guitarras idem e rebeldia "infernal", era

    sustentada por uma batida de bossa-nova. (Razes do verdadeiro rock

    brasileiro, em oposio ao rock simplesmente feito no Brasil, mesmo que com

    qualidade, a partir de modelos estrangeiros.) Mas quando surgiu, no semestre

    de 1965, o rtulo MPB designava a fuso de bossa-nova, jazz e velha guarda

    (ou seja, o samba tradicional) praticada por artistas como Elis Regina, Edu

    Lobo, Jair Rodrigues, Wilson Simonal, Jorge Ben (antes do Jor), o Zimbo

    Trio, Nara Leo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria

    Bethania... enfim, todos os que no fossem bossanovistas ou jazzistas

    ortodoxos e que no fossem exatamente fs de i-i-i, que, apesar do nome

    abrasileirado, tinha bem ntidas suas origens no "yeah,yeah,yeah" dos Beatles

    e, portanto, no combinava com os ideais nacionalistas da MPB. A qual

    chegava a promover passeatas contra a guitarra eltrica e a promover festivais

    de samba com frases como "Queremos ver os Beatles pelas costas". CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 7

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    Realmente, nada de muito "politicamente correto", como se diria hoje; para

    usar um adjetivo tambm pouco PC, muitos MPBzeiros mais radicais

    aparentavam ser verdadeiros xiitas.

    Mas s aparentavam. Uma das comparaes mais felizes que j vi na vida

    a de Ruy Castro, que em seu livro Chega De Saudade define a MPB como

    "uma espcie de irm menor do MDB" e que, "no muito por acasso, comeou

    na mesma poca". O MDB, Movimento Democrtico Brasileiro, foi criado

    pelos militares como uma "Arena do B", para contentar polticos que no

    quisessem (ou para os quais no fosse muito conveniente) se filiar ao partido

    do governo, a Aliana Renovadora Nacional. Quem votou no perodo de 1965

    a 1982 costumava saber (mas no dizer em voz alta) que escolher entre

    candidatos da Arena do MDB era como decidir entre mandioca ou aipim. Se a

    Arena era temida como o partido dos milicos, o MDB era um excelente abrigo

    para o proverbial cidado liberal que prega a democracia e o sacrifcio mas

    cujo maior alvio no ter que desistir de seus dois carros. Voc sabe, aquele

    cidado que diz ser necessrio mudar tudo sem mexer em nada, o pequeno

    burgus que gosta de tudo diludo, com muitos sonhos e plulas douradas, que

    se considera av do socialismo s porque seus filhos foram "carapintadas" em

    1991, e que pode at achar este livro muito bonito, mas experimente perguntar

    a ele sobre este pargrafo e ouvir as frases imortais, "Deus me ajudou" ou

    "Vamos mudar de assunto". (No a toa que a maior mudana por que passou

    o MDB foi a sigla, para PMDB.)

    claro que, como j dizia o Pasquim, MPB sempre melhor que MDB.

    Radicalismos e estrangeirismos parte, a primeira fase da MPB, at mais ou

    menos 1970, teve muitos timos artistas e momentos. Por exemplo, Wilson

    Simonal, ao contrrio do que aparenta aos olhos de hoje, no foi apenas o

    prottipo de garoto-propaganda da Brahma, usando o dedo para reger platias CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 8

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    que com ele cantavam "Meu Limo, Meu Limoeiro" num arranjo sacundim-

    brega ou para, ao que consta, apontar determinados sditos rebeldes durante a

    dinastia dos Mdici; melhor lembrarmos dele por suas interpretaes cheias

    de balano e improvisos, embora um tanto "americanizadas" demais, em

    gravaes como "Garota Moderna" (Evaldo Gouveia/Jair Amorim) ou "Nan"

    (Moacir Santos/Mrio Telles). Enfim, escolher os melhores da MPB questo

    de gosto pessoal, e opes no faltam.

    Mas, como diz o poeta, h sempre um "mas". A ndole pacfica e

    versatilidade do brasileiro acabaram, como si acontecer (gostaram?), caindo

    no exagero, e as influncias estrangeiras passaram a ser influentes demais. O

    rock and roll, surgido nos EUA em 1954 como uma fuso branca de country,

    jazz e rhythm & blues, foi bem divulgado - e quase sempre bem aceito - em

    todo o mundo. No incio, era apenas um ritmo a mais, ao lado do baio, da

    polca, do bolero e tantos outros. No Brasil, como em outros pases, o rock

    pegou pelas mos e vozes de artistas no-roqueiros: Nora Ney lanou o

    primeiro disco, "Rock Around The Clock", em 1955, e o primeiro rock de

    compositor brasileiro a chegar ao disco foi "Rock And Roll Em Copacabana",

    de Miguel Gustavo (famoso por sambas irnicos como "E Da? (Proibio

    Intil e Ilegal)", hit com Isaurinha Garcia, marchinhas como "Fanzoca De

    Rdio" e "Brigite Bardot" e patriotices como "Pra Frente Brasil"), rock este

    lanado por Cauby Peixoto, ele mesmo, professor, em maio de 1957. Apesar

    de Juca Chaves cantar j em 1960 que "o rock and roll nesta terra uma

    doena", bom lembrar que no faltavam antdotos. O hit-parade braslico,

    como o norte-americano, ainda era territrio livre e democrtico, e assim

    permaneceu por algum tempo, at daqui a algumas linhas.

    Pelas ruas brasileiras de 1964/65 os rdios gemiam, as lojas de discos

    bradavam e os passantes assobiavam compactos to diversos quanto "Garota CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 9

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    De Ipanema" de Tom/Vincius, com Pery Ribeiro, "Dominique" da freira

    belga Soeur Sourire, "Pau-De-Arara" de Lyra/Vinicius com Ary Toledo,

    "Help!" dos Beatles, "La Bamba" com Trini Lopez, "Ti Guarder Nel Cuore"

    com Riz Ortolani (compare esta com "Kid" dos anglo-americanos Pretenders,

    de 1980, para ter uma idia do seu sucesso), "A Taste Of Honey" com Herb

    Alpert, "Zorba, O Grego" com Mikis Theodorakis, o folk-rock de protesto

    "Eve Of Destruction" com Barry McGuire, "La Mamma" de e com Charles

    Aznavour, alm de variaes europias do twist como "Letkiss" e La Yenka" e

    das novidades da Jovem Guarda e da MPB com Elis, Roberto e suas turmas.

    Havia discriminaes e "igrejinhas", mas era possvel escolher de um cardpio

    at que bem variado, com o bnus extra de s vezes pular do rdio um Zimbo

    Trio ou um Yardbirds. E as tribos rivais da MPB e da Jovem Guarda tentavam

    ocasionais aproximaes, como quando Silvinha Telles gravava "No Quero

    Ver Voc Triste" ou Gil e Caetano perderam o medo das guitarras eltricas e

    do rock o suficiente para inaugurar o Tropicalismo.

    O engraado que, com o tempo, a MPB e o governo sempre trafegaram a

    estrada daa democracia em sentidos inversos. O aperto do AI-5 no impediu

    que muitos dos melhores astros da MPB, como Chico ou Caetano,

    continuassem produzindo com qualidade, ainda que exilados e/ou censurados.

    Mas esta mesma censura acabou por atrapalhar e intimidar a fluncia de MPB

    de qualidade em grande escala, alm dos j proverbiais desvios de verbas

    (afinal, o Brasil sempre foi um pas politicamente corrupto) inclurem uma

    descoberta "fenomenal" das gravadoras: para qu gastar dinheiro com

    estdios, fitas ou promoo de artistas brazucas, se era bem mais prtico e

    econmico recber uma matriz estrangeira prontinha para lanar? Com tudo

    isso, a balana comeou a se desequilibrar em favor da msica estrangeira - ou

    melhor, a pior msica estrangeira, de consumo imediato e prazo de validade CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 10

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    no muito amplo - , e o brasileiro acabava ou caindo fora do Brasil ou

    aderindo aos modismos, at gravando em ingls. (Para os adolescentes, a

    tragdia era ainda maior, segundo resumiu Cazuza: "A minha gerao no

    podia falar, ento a nica maneira que a gente de ir contra aquilo era se

    drogando.")

    Por volta de 1979/80 a MPB j havia cooptado o rock (ou vice-versa), mas

    a "fusion" rock-MPB que as rdios mais tocavam no era a fuso espontnea

    ou bem-pensada de um Raul Seixas ou um Tom Z, mas sim rocks de astros

    da MPB ("Eclipse Oculto" de Caetano, "Realce" de Gil), com o rock e a MPB

    usando os efeitos de apelo mais fcil um do outro. Do Nordeste, o Sul mal

    ouvia Marins ou Jackson do Pandeiro, preferido diluies sem muita protena

    de Beatles ou Dylan, com muitas guitarras eltricas e uma pitada de sotaque

    nordestino, ou seja, rock e MPB feitos para quem no gostava de rock e MPB.

    Eram os Ramalhos preparando o terreno para os Maltas. Enquanto isso,

    universitrios mais radicais faziam o que podiam para se "purgarem" de tanta

    imposio cultural ianque - ou melhor, de tanto mau uso e pouco

    discernimento de influncias estrangeiras. O fim dos anos 70 trouxe o que se

    convencionou chamar de "abertura democrtica", mas no faltava quem

    condenasse os Beatles como "americanos" e achasse Z Ramalho o mximo -

    resqucios do bem-intencionado porm paternalista CPC, Centro Popular de

    Cultura, movimento surgido em 1964 por onde Carlos Lyra, Billy Blanco e

    outros procuravam conscientizar o povo, reprovando estrangeirismos como

    gilete e coca-cola e criticando a "alienaon", mas no esquecendo os acordes

    "estrangeiros" da bossa-nova ou mesmo a balada-rock-doo-wop. Para mim, o

    CPC s faltava elogiar o vegetarianismo comendo um big-mac.

    Um dos conselhos mais sbios e menos seguidos "nunca tome o caminho

    mais fcil". Cazuza, como j dissemos, pode ter surgido como roqueiro, mas CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 11

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    foi um dos poucos que tinham plena conscincia de que nem tudo era s rock -

    nem mesmo o prprio rock, o gnero musical mais aberto a influncias

    externas, o que ajuda a explicar ter sido ele o genro mais influente em todo o

    mundo. O rock, tambm como j dissemos, comeou sua dominao mundial

    em 1955 - mais precisamente em 9 de julho, quando "Rock Around The

    Clock", gravada por Bill Haley um ano antes, emplacou o primeiro lugar no

    hit-parade norte-americano. Nosso amigo Agenor, portanto, j bebia rock and

    roll na mamadeira, no sendo "culpado" por "escolher" o rock anos mais tarde.

    E veja s: "Rock Around The Clock" foi gravada em 12 de abril de 1954,

    quase exatamente quatro anos antes da chegada de Agenor. Realmente,

    Cazuza estava predestinado a ser roqueiro. S que justamente no ms e ano de

    seu nascimento, abril de 1958, foi lanado nada menos que o LP que hoje

    reconhecido como nada menos que o primeiro disco de bossa-nova: Cano

    Do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, com msicas de Tom e Vinicius e o

    violo ainda annimo porm j caracterstico de Joo Gilberto; uma das

    faixas, "Chega De Saudade", foi tambm o primeiro hit de Joo, alguns meses

    mais tarde. (Curioso que Joo regravou Lobo mas no Cazuza, embora este

    tenha composto em parceria com sua filha, Bebel Gilberto.)

    No toa que Cazuza se definiu como "meio bossa-nova, meio rock and

    roll". E quando "Faz Parte Do Meu Show" foi lanada, em 1988, estava

    completado o ciclo que mencionamos pargrafos atrs, sobre o governo e a

    MPB andarem em sentidos opostos: jornais, televiso e discos estavam uma

    permissividade s, mas todo e qualquer artista brasileiro (inclusive os grupos

    heavy mais radicais que gravavam em ingls) era chamado de MPB.

    Pois , falamos em permissividade, que muita gente confunde com

    liberdade; fazer o que se quer no fazer o que d na telha. O primeiro Rock

    In Rio, em 1985, misturando Kid Abelha, Ivan Lins e Elba Ramalho a alguns CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 12

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    roqueiros, realizado em janeiro (visando competir frontalmente com o

    carnaval, como bem repara Tinhoro), foi o que faltava para que o rock - ou

    melhor, algumas de suas caractersticas mais bvias e estereotipveis -

    tomasse conta do Brasil de uma vez. E no ano seguinte veio outro golpe,

    vindo, embora indiretamente, de quem menos muita gente esperava: Tom

    Jobim, que autorizou um arranjo pop-rock dos menos imaginativos para

    "guas De Maro" (cabe aqui outro parntese de Tinhoro: "guas De

    Maro" tem mais que uma ligeira semelhana com a toada folclrica "guas

    Do Cu", portanto "Jobim vendeu o folclore".) Enfim, a dcada de 80 expirou

    com a MPB e o rock to distintos entre si quanto Coca e Pepsi.

    A todo-poderosa Rede Globo de Televiso tambm no ajudou muito. Foi

    ela quem promoveu o ltimo festival de msica televisionando de grande

    repercusso (malgrado a tentativa da Record em 1992), o "Festival dos

    Festivais" em 1985. Apesar de algum ecletismo nas concorrentes, a maioria

    era pop-rock, e a emissora, embora no proibisse os sambas, chorinhos e

    bossas-novas includas entre as concorrentes, cometeu um ato falho ao montar

    o palco "como um show de rock", como j admitiam os press-releases do

    evento. Pelo menos o "Festival dos Festivais" teve o mrito de revelar

    nacionalmente grandes nomes dos anos 80, embora nem todos defendessem

    msicas to boas quanto mereceriam (ser que "Escrito Nas Estrelas" ou "Os

    Metaleiros Tambm Amam" motivaram algum a ouvir outras gravaes de

    Tet Espndola ou do Lngua de Trapo?) Uma das poucas boas canes desse

    festival foi tambm, pelo que posso me lembrar, o nico sucesso realmente de

    MPB e de qualidade desse perodo, alm de "Faz Parte Do Meu Show":

    "Verde", do Eduardo Gudin/J.C.Costa Netto, que revelou Leila Pinheiro. E, no

    mesmo LP em que incluiu "Verde", Leila tambm gravou Cazuza, "Todo

    Amor Que Houver Nessa Vida". CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 13

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    Leila realmente uma cantora sem preconceitos, e os compositores que

    gravou so dos mais diversos: Guinga, o francs Erik Satie (1866/1925),

    Walter Franco, Bscoli/Menescal, Chico Buarque. Dos "roqueiros", Leila

    favoreceu Cazuza e Renato Russo; como explicou a este que vos escreve, "o

    forte em Cazuza e Renato a potica". Por sinal, Cazuza adorou quando

    Renato e o Legio surgiram para o grande pblico em 1984/5: "P, o Renato

    melhor que, eu ele faz a mesma coisa que eu quero fazer... Comecei a sair da

    dor-de-cotovelo e resolvi falar do Brasil tambm."

    Mas impossvel falar de Cazuza sem esse seu lado "dor-de-cotovelo",

    desbragadamente romntico, a um passo do se-cantar-o-amor--ser-brega-

    ento-eu-sou-brega. A obra de Cazuza mostra um romntico nos dois sentidos

    do termo, tanto o amor como temtica predominante ("Eu queria fazer uma

    msica sem o menor esprito crtico, tipo Roberto Carlos, assim, sabe:

    'Acorda, meu amor, eu te amo.'") quanto a escola esttica do sculo XIX

    caracterizada pelo lirismo e pelo individualismo; o que importa a viso

    pessoal do mundo e das coisas. At que Cazuza chega perto de Raul Seixas

    como um dos compositores que mais falaram na primeira pessoa; "Eu vi a cara

    da morte/ e ela estava viva" ("Boas Novas"), "Eu mereo um lugar ao

    sol/ganhar pra ser/carente profisional" ("Carente Profissional"), "Meu canto

    redime meu lado mau" ("Quando Eu Estiver Cantando"), "Todo mundo tem

    um ponto fraco/ Voc o meu, por que no?" ("Ponto Fraco"), "No me

    convidaram pra essa festa pobre/que os homens armaram pra me convencer"

    ("Brasil"), "Me ame como a um irmo/Mentiras sinceras me interessam"

    ("Maior Abandonado"), "Pobre de mim que vim do seio da burguesia"

    ("Burguesia"), "Jogado a seus ps/Eu sou mesmo exagerado" ("Exagerado"),

    "Descerebrem-se, celebrem/eu t aqui pra animar" ("Rock Da

    Descerebrao"), "Tudo em nome do amor/ Essa a vida que eu quis" ("Pro CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 14

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    Dia Nascer Feliz"), "Tomei champagne e cicuta/ com ccomentrios

    inteligentes/ mais tristes que os de uma puta" ("S As Mes So Felizes"),

    "Gosta de ouvir Lulu Santos/ e acha o Cazuza um anjo" ("A Garota De

    Bauru")...

    Cazuza deu sua contribuio para tentar limpar no s a MPB, mas tambm

    o rock brasileiro, dos maniquesmos, cacoetes, primarismos e frmulas gastas,

    tanto na forma quanto na temtica. Antes dele. o msico popular s podia

    cantar o amor, o protesto (poltico ou social, velado ou explcito) ou,

    raramente, jogos de palavras que no fundo eram apenas suporte para a

    melodia, seguindo a esttica msica-pela-msica. Cazuza fugiu da banalidade

    chopp-batata-frita e ao mesmo tempo tirou dos roqueiros a vergonha de cantar

    eu-te-amo. Os bossanovistas tinham como misso na vida abolir o samba-

    cano dos anos 50; Cazuza o recuperou, mas purificado dos exagerados

    melodramticos e "bregas": "Eles, sim, eram exagerados, eu no", afirmou,

    "minhas msicas todas tm uma coisa criticando isso."

    O samba-cano uma das maiores influncias de Cazuza desde a infncia,

    quando ele visitava a coleo de discos dos pais, e as regravaes de clssicos

    do genro feitas nos anos 70 por Caetano, Bethania e outros ajudaram muito.

    Na verdade, o rtulo "samba-cano" j era usado desde os anos 20, para

    designar o samba onde o mais importante era a melodia, um samba mais para

    ser cantado do que danado; um dos exemplos mais ilustres (e talvez o mais

    antigo) "Linda Flor (Ai Ioi)", de Henrique Vogeler/Luiz Peixoto. Foi nos

    anos 50 que o samba passou a ser cantado com andamento cada vez mais

    lento, dando-lhe semelhana com o bolero, ritmo ideal para expressar fossa,

    grande paixo, dor-de-cotovelo. Os grandes mestres deste novo samba-cano

    so Lupicnio Rodrigues (1914/1974), Dolores Duran (1930/1959) e Antonio

    Maria (1921/1964). Lupicnio deixou "Felicidade ("Felicidade foi-se embora/e CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 15

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    essa saudade no meu peito ainda mora"), "Ela Disse-Me Assim" ("E o remorso

    est me torturando/por ter feito a loucura que fiz") e "Nervos De Ao" ("Voc

    sabe o que ter um amor, meu senhor/ter loucura por uma mulher/e depois

    encontrar esse amor, meu senhor/nos braos de um outro qualquer"). So de

    Dolores "Castigo" ("a gente briga/diz tanta coisa que no quer dizer/briga

    pensando que no vai sofrer"), "Fim De Caso" ("Eu desconfio que o nosso

    caso/est na hora de acabar/h um adeus em cada gesto/em cada olhar") e

    "Ternura Antiga", regravada como dissemos, por Roberto ("vivo s porque te

    espero/ai, esta amargura, esta agonia"). Agora, Antonio Maria deve ter sido o

    campeo da autopiedade; pea ao garom um gim com arsnico para ouvir

    "Ningum Me Ama" ("Ningum me ama, ningum em quer/ningum me

    chama de meu amor"). "Cano Da Volta" ("Nunca mais vou fazer/o que meu

    corao pedir... o corao fala muito e no sabe ajudar") e "Se Eu Morresse

    Amanh" ("no faria falta a ningum"). Esta escola blues dark de MPB

    motivou, alm de Cazuza, grandes precursores da bossa-nova como Maysa,

    Tito Madi, Jamelo e Agostinho dos Santos; e, com tanto baixo astral, s

    vezes fcil de esquecer que Lupiscnio, Dolores e Antonio Maria tambm

    tiveram momentos leves e alegres como, respectivamente, "Se Acaso Voc

    Chegasse", "A Noite Do Meu Bem" e "Manh De Carnaval".

    A bossa-nova, msica de jovens vivendo todo o otimismo do ps-guerra

    nos anos 50, foi totalmente avessa a tais exageros derrotistas, mas seu

    otimismo a fez cometer seus prprios exageros, aquela saraivada de

    diminutivos e a inflexo vocal apelidada por um crtico de "afnica". Estes so

    outros riscos que Cazuza conseguiu evitar. E, por sinal, seu estilo como cantor

    no incio nada tinha de afnico, pelo contrrio, ele gritava ("era para me

    defender"). Alguns crticos no gostaram, nem ele prprio, at que por volta

    do LP Ideologia resolveu tomar aulas de canto e empostao vocal; "J que CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 16

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    estou num palco e as pessoas pagam pra me ver, ento eu tenho obrigao de

    melhorar". Virou folclore sua autocrtica, quando chegava a impedir que

    ouvissem seus discos em sua presena e, se no conseguisse impedir, ficava se

    criticando o tempo todo, "errei, desafinei, podia ter feito melhor..." Tanta

    autocrtica era contrabalanada quando Cazuza encontrava algum de seus

    dolos cantores, como ngela Maria ou Elza Soares - consta que, sempre que

    encontrava Elza, fosse onde fosse, inclusive na rua, Cazuza no hesitava em se

    ajoelhar e lhe beijar os ps. Sim, ele era mesmo exagerado.

    E pena que Cazuza, pelo menos ao que me consta, no tenha conhecido

    pessoalmente outro de seus dolos e seu grande xar, Agenor (nascido

    Angenor) de Oliveira, ele mesmo, o Cartola (1908/1980), talvez o melhor

    compositor dos morros cariocas, cujas letras emocionadas e melodias quase

    sempre avessas a clichs surpreendem at hoje. Tal como Cazuza, Cartola foi

    dono de uma inspirao que nem a doena fatal conseguiu abater ou impedir

    que ele gravasse quase at o fim da vida (no caso de Cartola, foi um cncer

    que ele simplesmente no se preocupou em operar; pena, quem sabe ele

    chegasse a nossos dias, mas enfim...). Aps os remorsos e amarguras do

    samba-cano e os barquinhos e peixinhos da bossa-nova, experimente os

    versos de Cartola, em amostras de 1993 a 1979: "Para ter uma companheira/

    at promessas fiz/consegui um grande amor/mas eu no fui feliz/E com raiva

    para os cus/os braos levantei/blasfemei" ("Sim"); "A sorrir eu pretendo levar

    a vida/Pois chorando/eu vi a mocidade perdida/Finda a tempestade/o sol

    nascer/finda esta saudade/hei de ter outro algum para amar" ("O Sol

    Nascer"); "Voc tambm me lembra a alvorada/quando chega

    iluminando/meu caminho to sem vida" ("Alvorada"); "Tive, sim/outro grande

    amor antes do teu (...) mas comparar com teu amor seria o fim/eu vou

    calar/pois no pretendo, amor, te magoar" ("Tive, Sim"); "Vem/tudo belo CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 17

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    por onde eu passei/ser onde eu passar/Vem/ao meu lado eu sei/vais sorrir,

    vais cantar/No me convence essa tua tristeza/Vem/h um Deus/h uma

    natureza" ("Vem"). No esquecendo, claro, "O Mundo Um Moinho",

    regravada por Cazuza; e podemos lembrar ainda "Ensaboa", lanada em 1975

    por Clementina de Jesus e que mereceu um interessante arranjo reggae no

    segundo LP de Marisa Monte. esta, para mim, a distino entre as letras de

    Cartola e as do samba-cano: Cartola blasfema, queixa-se s rosas, reage

    contra o sofrimento, em vez de se conformar com ele.

    Como todo bom brasileiro, Cazuza no escapou de influncias estrangeiras,

    mas soube filtr-las, preferendo a literatura beat dos anos 50 de autores como

    Jack Kerouac (de quem Cazuza tomou emprestados os versos "Minha vida que

    no me ama, minha amada que no vai me amar: seduzo as duas" na

    contracapa do LP S Se For A Dois e o verso "S as mes so felizes" para

    sua famosa ccomposio deste ttulo, onde Cazuza inclusive cita outro ilustre

    poeta beat norte-americano, Allen Ginsberg), a fossa jazzstica da cantora

    Billie Holiday (1915/1959), a pioneira do blues Bessie Smith (1894?/1937) e o

    rock and roll que conheceu melhor ao visitar Londres aos 17 anos, sendo seus

    preferidos Janis Joplin (1943/1970, que ele at citou em "A Garota De

    Bauru"), os Rolling Stones e o Led Zeppelin. No toa que Cazuza comps

    blues ("Blues Da Piedade") e se notabilizou num grupo de rock, o Baro

    Vermelho, opo melhor que as drogas para se enfrentar a represso brasileira

    dos anos 70, como ele mesmo admitiu: "Eu fui salvo pelo rock."

    Por falar em rock, Cazuza foi muito comparado a Lou Reed, grande

    retratista do submundo, e penso que ele merece outra comparao bem

    interessante. Ele o equivalente brasileiro de outro ilustre letrista e cantor do

    rock, Jim Morrison (1943/1971), o famoso vocalista dos norte-americanosThe

    Doors. Digo mais: acho que Cazuza superou Morrison em muitos aspectos. CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 18

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    Antes que voc, caro(a) f dos Doors, exera sua liberdade de expresso e

    escreva para a editora me vilipendiando, vejamos:

    1) Ambos eram filhos nicos bem-nascidos. Cazuza, como se sabe, filho

    de Joo Arajo, diretor artstico de gravadoras, trabalhando em vrias desde

    1953 ("passei por todas as funes de uma gravadora", diz) at fundar a Som

    Livre em 1969, tendo ajudado a revelar Gil, Caetano, Tom Z, Carlos Lyra,

    Ronnie Von e mil outros, e de Lucinha Arajo, cantora bissexta ("minha

    carreira restrita, tipo de dona-de-casa que no tem o que fazer", brinca), com

    trs LPs gravados (incluindo um tema da novela Sol De Vero, "Tal Qual Eu

    Sou", de Vital Lima/Herminio Bello de Carvalho, e que, lanado tambm em

    compacto, inclui no lado-B um belo dueto com Cauby Peixoto em "Falando

    De Amor" de Tom Jobim). Jim Morrison, tambm como se sabe, filho do

    contra-almirante George Steve Morrison. A diferena entre Cazuza e Morrison

    que o mundo demorou para saber do pedigri deste ltimo; o primeiro press-

    release dos Doors d os pais de Jim como "mortos". De fato, no era

    conveniente para a imagem de um cantor to rebelde ter pais to ilustres. S

    que a atitude de Jim, de fingir ser rfo, est aberta a opinies diferentes; para

    uns rebeldia, e para outros, nada mais que uma fuga cmoda do problema

    que era um roqueiro rebelde ter pais respeitveis - lembra-se do que falamos

    sobre "seguir o caminho mais fcil"? Ao passo que Cazuza no s assumiu

    publicamente os pais - afinal, ser bem-nascido no foi culpa dele - como ainda

    fez a famosa transio: no comeo ele era filho de Joo e Lucinha Arajo; no

    fim, eles passaram a ser pais de Cazuza. Isto mais do que pode ser dito de

    Julian Lennon, Dweezil Zappa, Ataulfo Alves Jr. ou Neusinha Brizola.

    2) Ambos soltaram o dipo, pelo menos em discos. Jim Morrison, voc

    sabe, f-lo em "The End": "Papai, sim, filho?, quero mat-lo, mame, eu

    quero... aaahhhh!!" Cazuza, voc tambm sabe, atacou em "S as Mes So CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 19

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    Felizes": "Voc (...) nem quis comer a tua me". (Ah, sim, ambas tambm

    falam de amigos trados: "This is the end, my only friend..."; "Voc nunca

    traiu o teu melhor amigo...") Mas enquanto fica no ar a dvida sobre as

    intenes de Morrison, se ele estava falando ou no a srio (como disse o

    crtico Lester Bangs nos anos 70, "a ltima vez que ouvi "The End", soou

    engraada. (...) a viso de "Rei Lagarto" costumava ser mrbida da maneira

    mais bvia possvel, e, portanto, barata."), Cazuza tambm d margem a

    dvidas, mas de forma bem mais (intencionalmente) divertida, como chegou a

    declarar numa entrevista, ao ser perguntado justamente sobre "S as Mes So

    Felizes" e sua poro edipiana. Alm de dizer que faria sexo no s com sua

    me mas tambm com seu pai, Cazuza ainda brincou: "Apesar de meu pai e

    minha me ainda serem bem desejveis, eles no correm o menor risco

    comigo. Eu gosto de broto, pra mim 25 anos j velho."

    3) Ambos trouxeram para o rock letras de estilos at ento inditos no rock:

    Cazuza e sua temtica de samba-cano, e Jim com suas influncias do poeta

    francs simbolista, decadente e porra louca Arthur Rimbaud (1854/1891) e do

    grande escritor e poeta visionrio ingls William Blake (1757/1827). Alis, o

    modo de vida anrquico de malucos como estes pode ser definido como puro

    rock and roll "avant la lettre".

    4) Ambos se notabilizaram em grupos de rock com muita influncia de

    rhythm & blues de segunda mo e rock ingls. O Baro Vermelho, no

    segredo algum, sempre adorou os Stones, e os Kinks eram o grupo ingls

    preferido de Jim Morrison. E tanto Cazuza quanto Morrison deixaram seus

    grupos, mas ambos os brasileiros saram ganhando, ao passo que Morrison

    no teve tempo para uma carreira-solo e os Doors no deram muito certo sem

    ele.

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 20

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    5) Ambos foram emritos porraloucas, experimentando de tudo em matria

    de sexo, drogas e rock'n'roll. S que hoje em dia difcil saber ao certo se a

    arrogncia de Morrison era ou no a srio ("Eu sou o Rei Lagarto/eu posso

    fazer qualquer coisa/posso fazer a terra parar"), ao passo que Cazuza consegue

    ser positivo em sua loucura ("eu no posso causar mal nenhum/a no ser a

    mim mesmo"). E ambos, infelizmente morreram cedo, Morrison aos 27,

    Cazuza aos 32.

    A impetuosidade de ambos no amor traduziu-se em msica. Morrison

    cantou "Al, eu te amo/voc no vai me dizer teu nome?" em "Hello, I Love

    You", e Cazuza pediu "Quero algum pra ter do meu lado... quero algum/no

    sou exigente" em "Eu Quero Algum". (Curiosamente, j que Cazuza era f de

    velha guarda - e os Doors gostavam de nossa bossa-nova a ponto de usarem

    sua batida em "Break On Through", "Light My Fire" e outras -, vale lembrar

    que Ismael Silva, por exemplo, j havia usado o mesmo tema em sua "Me

    Diga Teu Nome", de 1932: "Tens um olhar que me consome/Por caridade,

    meu bem, me diga teu nome".)

    6) E nenhum dos dois poderia deixar de fazer alguns escandalozinhos em

    pleno palco. S que os do pobre Morrison foram bem mais descontrolados e

    patticos, como quando ele contou platia que ele e uma garota haviam sido

    intimidados pela polcia no camarim (tudo bem ser contra a represso, mas

    tem jeito e hora pra tudo, n?), ou melhor ainda, quando ele, caindo de

    bbado, perguntou casa cheia "You wanna see my cock?" e mostrou seu

    pingolim por alguns segundos. Cazuza, alm de ocasionalmente mostrar o

    traseiro (o que j era quase "de rigueur" em shows de rock nos anos 80), foi

    muito mais emocionante ao cuspir na bandeira nacional que lhe atiraram no

    palco ao cantar "Brasil". "Fiz de propsito, o cara que me jogou a bandeira era

    um ufanista." CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 21

  • Airton Pgina 22 28/4/2004

    Se o Rei Lagarto podia "fazer tudo", Cazuza tambm: " tudo permitido no

    palco, depende de seu pblico gostar, porque se ele no gostar ele te

    apedreja... Eu s fao loucuras no palco quando o pblico est nas minhas

    mos, quando eu sei que posso fazer qualquer coisa que eles vo adorar, como

    adoraram eu ter cuspido na bandeira. Foi o meu show mais aplaudido no

    Caneco."

    Interessante que, ao contrrio do que pareceu para muita gente (inclusive

    este que vos escreve), a impunidade de Cazuza por ter cuspido na bandeira

    ocorreu pela liberao dos costumes e no em funo da doena, que ele j

    contrara, mas s assumiria publicamente quatro meses depois do episdio.

    Cazuza teve mais sorte e mais compostura que a maioria dos roqueiros;

    embora mais da metade das notcias publicadas a seu respeito fale diretamente

    de sua enfermidade, note que esta porcentagem bem favorvel sua obra -

    quase a metade -, ao passo que astros como Madonna, Michael Jackson e Elba

    Ramalho, para citarmos apenas trs exemplos, tm sido bem mais lembrados

    por travessuras extramusicais.

    J se passaram mais de dez anos da divulgao dos primeiros casos da

    sndrome de imuno-deficincia (Aids), uma doena realmente zen, que no

    uma doena em si, mas que leva a todas as outras. Cazuza foi uma dentre

    outras poucas vtimas do mundo do rock que pipocavam no noticirio

    internacional, como o alemo Klaus Nomi e o portugus Antnio Variaes,

    at Freddie Mercury (1946/1991), vocalista do grupo ingls Queen, tornar-se o

    primeiro superstar do rock a sucumbir dita. Tanto Freddie quanto Cazuza

    sabiam do preconceito que rotulava a Aids como exclusiva de homossexuais

    (ambos eram "bi" assumidos) e demoraram para assumir publicamente que

    haviam sido vitimados (Freddie, alis, esperou praticamente at as vsperas de

    sua morte, porm ainda o suficiente para mostrar dignidade em lutar contra a CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 22

  • Airton Pgina 23 28/4/2004

    doena at o fim). Mas, olhando as coisas em perspectiva, a morte de Cazuza,

    embora triste, prematura e lamentvel, foi natural. Afinal, Cazuza foi um

    exemplo de artista que seguiu risca o existencialismo, viveu-como-quis-e-

    morreu-como-quis. Sua Aids foi seu equivalente da tuberculose que levou

    Noel Rosa (1910/1937), ou as complicaes hepato-pancreticas que

    vitimaram Raul Seixas (1945/1989), ou a infinidade de complicaes

    digestivas e circulatrias em que culminaram os excessos alimentares e

    farmacuticos de Elvis Presley (1935/1977), sem falar no j citado Jim

    Morrison. E para falarmos somente de Brasil, a coragem de Cazuza em

    admitir sua Aids era quase indita, num pas em que a culpa pelo que h de

    errado sempre dos outros. Pode reparar: aqui no Brasil, Cazuza "o nico

    roqueiro com Aids", do mesmo jeito que, at bem recentemente (quando o

    grupo Planet Hemp e outros iniciaram campanha pela liberao da maconha),

    Lobo foi "o nico drogado", todos os outros ou j experimentaram ou nem

    sabem o que isso. Essa histria de "sempre seguir o caminho mais fcil"

    implica tambm em construir desvios e atalhos e promover farta distribuio

    de panos quentes ao invs de procurar resolver diretamente os problemas.

    O ser humano reconhecido como o nico animal que sabe que um dia vai

    morrer, e tem sempre andado s voltas com angstia por seu tempo ser to

    curto, preocupaes metafsicas e maneiras de se perpetuar de uma forma ou

    de outra. Cazuza, alm de ter sido um pouco do "Tutankamon" que disseram

    por a, teve em comum com o roqueiro vanguardista e irreverente norte-

    americano Frank Zappa (1940/1993) a conscincia de sua j curta vida ser

    mais curta ainda e consequente necessidade de deixar mais e mais provas de

    sua passagem por este vale de lgrimas (h quanto tempo voc no ouvia esta

    expresso?); em funo dessa mesma urgncia, os ltimos trabalhos de Zappa

    (desde 1983) e Cazuza (Burguesia e Por A...), esto, para alguns crticos, CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 23

  • Airton Pgina 24 28/4/2004

    ligeiramente aqum da excelncia que ambos sempre mantiveram. Hoje,

    ouvindo-se objetivamente estes dois ltimos discos de Cazuza, nota-se bons

    momentos comparveis ao melhor de sua obra ("Quando Eu Estiver

    Cantando", "Andride Sem Par", "Perto Do Fogo") ao lado de msicas at

    hoje polmicas ("Eu Agradeo" assemelha-se um pouco demais a "Blind" dos

    Talking Heads, e eu, pelo menos, ainda no consegui entender porque Cazuza

    precisou esculhambar a indefesa Janis Joplin em "A Garota De Bauru").

    J bastante debilitado mas ainda com a cabea a dez mil e com a mesma

    fome de bola de sempre, incapaz de simplesmente se entregar doena,

    continuando a gravar e fazer shows at onde fosse possvel, chegando a gravar

    algumas faixas deitado, Cazuza conseguiu ir to longe quanto Jimmie Rodgers

    (1897/1933), o chamado "Father of Country Music" e primeiro superstar do

    gnero, vtima de tuberculose, a qual, contudo, no o impediu de gravar at a

    antevspera de sua morte; a gravadora teve que providenciar uma maca

    especial no estdio para Rodgers repousar entre as tomadas.

    Enfim, Cazuza, como todo ser humano, teve suas virtudes e defeitos, mas,

    como nem todo ser humano, conseguiu fazer com que as primeiras se

    destacassem mais que os segundos. Ele deveria ter gostado das melhores

    brincadeiras feitas com ele (como as pardias do cearense Falco, "eu sei que

    a burguesia fede/mas tem dinheiro pra comprar perfume", ou deste que vos

    escreve, "imunologia, eu preciso de uma pra viver", sem falar nas grandes

    imitaes de seu tiete e no menos grande cartunista e imitador Spacca).

    Apesar de admitir que era, antes de tudo, um letrista, Cazuza conseguiu

    triunfar tambm como ocasional melodista (tocava um pouco de violo, mas

    dizia que preferia compor em parceria, "um disco com material s meu seria

    um bode") e intrprete de estilo todo pessoal, mais recitando do que

    propriamente cantando, inclusive composies alheias (reparaste como os fs CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 24

  • Airton Pgina 25 28/4/2004

    que compareceram a seu enterro cantaram "Vida Louca Vida", hit de Cazuza e

    Lobo, composta por este e Bernardo Vilhena?).

    Ao lado do Baro, Lobo e outros, Cazuza trouxe maturidade para o rock

    carioca, at ento lotado de garotinhos e garotinhas perdidos na selva com

    chopp e batata frita, sem, contudo, desperdiar munio histericamente em

    cima de presidentes mauricinhos. Ele passou por cima de rtulos e polmicas

    como rock X MPB, elite X povo, refinamento X breguice, engajamento X

    alienao, loucura X caretice, vaidade X desleixo, paulistas X cariocas X

    baianos (Cazuza foi amigo e/ou parceiro de todos).

    No uma pessoa acima de contrastes, Cazuza se divertia ao contar seus

    pequenos desajustamentos com o mundo real. "No sei cuidar das coisas,

    imposto de renda me d tique nervoso. Tenho que chamar um amigo pra

    resolver pra mim, este ano [1985] perdi at o lance da restituio, por no ter

    guardado nenhum comprovante. Sou meio dessituado, meio perdido. O carro

    morre no meio da rua porque esqueci de pr gasolina." Lucinha Arajo lembra

    outra do filhote, em 1989: "Na realidade, sou eu quem toma conta do dinheiro

    dele. Quando ele comeou a ganhar dinheiro, em 82, no tempo de Bete

    Balano, chegou um dia me trazendo um cheque todo amassado de Cr$

    200,00, para que eu pagasse suas contas de luz e telefone, que no chegavam a

    Cr$ 10,00. Fiquei apavorada: vi que ele no tinha a menor noo do valor do

    dinheiro. Perguntei-lhe ento o que devia fazer com o troco: 'Fica de presente

    pra voc!' Ento me horrorizei: 'Como que voc pode me dar 95% do que

    ganha como presente?', perguntei. Em seguida, sugeri que me desse uma

    procurao para que eu pudesse cuidar dos seus interesses financeiros. Ele

    concordou e parece que valeu." E Pel iria se deliciar com outra confisso de

    Cazuza: "Quando fui votar, no sabia direito como fazer."

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 25

  • Airton Pgina 26 28/4/2004

    Mas at que Cazuza no se saiu to mal para um garoto brasileiro tpico da

    "gerao Nova Repblica", espremido entre o milagre econmico dos anos 50

    e a represso das duas dcadas seguintes, "uma moada que cresceu vendo

    TV, dividida entre o medo e a ignorncia", como admitiu o prprio Cazuza. O

    qual, contudo, nasceu com tutano suficiente para no se deixar cooptar por

    candidatos presidncia da Repblica ou gravadoras que desejavam lan-lo

    como "dolo gay" logo que saiu do Baro. Pois , na nsia de vender, as

    gravadoras costumam se esquecer do que vende.

    Filho de artistas, dolo de muita gente, incluindo outros artistas, Cazuza foi

    ele mesmo um artista certo na hora certa. Quatorze anos aps seu primeiro

    disco, o tempo no pra de mostrar que o melhor de sua obra realmente ficou,

    no s para alimentar o eterno debate letra-de-msica--ou-no--poesia, mas

    tambm como uma bela e eficiente crnica do Brasil neste fim-de-sculo,

    sempre com sob uma viso toda pessoal e, melhor ainda, com um senso de

    herana e traio bem aplicada ao presente, embora de interesse restrito (ao

    menos por enquanto) ao Brasil. E Cazuza aproveitou bem seu pouco tempo

    neste planeta, dentro da tradio de um Noel Rosa ou Alusio de Azevedo.

    "Meu canto o que me mantm vivo"; de fato, enquanto a troposfera

    continuar propcia propagao dos sons ou a poluio no impedir a leitura

    dos encartes dos discos com as letras, o poeta Cazuza continuar vivo. !

    Cronologia

    1958

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 26

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    4 de abril - Nasce Agenor de Miranda Arajo Neto, filho nico de Joo

    Arajo (nasc. 1935) e de Maria Lcia Arajo (nasc.1936), no bairro da zona

    Sul carioca do Botafogo, na Casa de Sade So Jos.

    O nome Agenor homenagem ao av paterno. "Meu av morreu dois anos

    antes de eu nascer, mas para mim muito importante, uma figura presente." O

    pernanbucano Agenor de Miranda Arajo foi vtima de sfilis aos 28 anos,

    vindo a contrair arteriosclerose precoce dez anos depois e vivendo mais vinte

    como, segundo a famlia, um doido alegre. Cazuza ainda h de compor

    "Nabucodonosor" em homenagem ao av ("Nabuco me ensinou/ a ser louco

    como eu sou").

    O apelido "Cazuza" tambm herana nordestina, sendo expresso

    pernambucana para "molequinho"; nada a ver, ao contrrio das aparncias,

    com Cazuza, clssico da literatura infanto-juvenil lanado por Viriato Corra

    em 1937 (e escrito, segundo o prprio Viriato, a partir de histrias de infncia

    contadas por um senhor de quem ele s conseguiu apurar que atendia pelo

    apelido de Cazuza e faleceu, veja s, em Pernanbuco).

    1961

    Cazuza ganha uma bola de futebol do pai e, para surpresa geral, nem pensa

    em sair chutando, driblando e goleando: pega a bola no colo e a nina como se

    fosse uma boneca. "Foi a primeira decepo que meu pai teve comigo."

    1963

    Primeiros "shows" do futuro cantor: Cazuza transforma a mesa de centro da

    sala de visitas num palco, faz de uma vassoura seu microfone, dubla discos na

    vitrola e faz vibrar a platia seleta, composta de seus pais.

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 27

  • Airton Pgina 28 28/4/2004

    1964

    Entra para a escola Chapeuzinho Vermelho, e a que tem sua primeira

    grande decepo ao descobrir que seu nome Agenor e no Cazuza. E s vai

    se conformar ao descobrir que o cantor/compositor Cartola, um de seus dolos,

    tambm se chama Agenor.

    Sempre mimado, Cazuza tem vergonha (embora mais tarde venha a se

    orgulhar) de contar aos amigos que sua me costureira (a transio da classe

    mdia para alta vir com o tempo).

    1965

    Aps a breve primeira fase do "showman", nascem o gegrafo e o escritor.

    Cazuza passa horas esquecidas em seu quarto devorando a Enciclopdia Barsa

    e estudando mapas-mundi, a ponto de virar consultor geogrfico dos colegas

    de escola. E descobre o prazer de escrever, redigindo seus primeiros textos.

    1966

    Aps viajar pelo mundo, Cazuza torna-se urbanista, estudando tudo sobre

    cidades, planejamento urbano e construo civil, fazendo maquetes e

    construindo uma cidade atrs da outra.

    Mas, entre a investigao de um mapa ou a construo de uma metrpole,

    Cazuza sempre arruma tempo para escrever. Seus pais sempre ho de se

    lembrar da mquina de escrever batucando noite adentro. "Eu no poderia

    imaginar que eram letras de msica e poesias o que ele escrevia", conta Joo

    Arajo.

    1967

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 28

  • Airton Pgina 29 28/4/2004

    A esta altura diretor artstico da gravadora Philips, Joo Arajo sempre

    recebe em casa visitas de grandes nomes da MPB, como Caetano Veloso, Elis

    Regina, Jair Rodrigues e Gilberto Gil. D para imaginar a emoo de Cazuza

    no meio de tanta gente boa; ele jura que ainda vai ser igual a eles.

    1968

    Cazuza entra para o Santo Incio, um colgio de padres. Mas a esta hora

    sua grande religio mesmo a msica, e seus santos graais so os discos do

    pai, especialmente Cartola, Maysa, Lupicnio, Dolores Duran e Nelson

    Gonalves.

    Dezembro - O governo militar mostra sua cara com o Ato Institucional (ou

    melhor, inconstitucional) n 5, e a casa de Joo Arajo acaba se tornando um

    grande quartel-general da MPB.

    1970

    Hei, rei! Joo Arajo leva Cazuza para visitar Roberto Carlos, gravando no

    recm-criado estdio da Som Livre. "Ele me convidou para ir tomar um

    refrigerante com ele numa padaria ali perto", recordar Cazuza, "e eu queria

    andar devagarinho para que as pessoas vissem que estava ali, uma criana

    orgulhosa por estar do lado dele." Cazuza s reencontrar Roberto

    pessoalmente bem mais tarde, j fora do Baro. "Ele precisava do estdio

    onde eu estava gravando, me ligou e disse: ', meu Baro...' Eu respondi que

    no era mais o Baro, mas ele disse que eu vou ser sempre. E ele est certo, eu

    vou ser sempre um Baro Vermelho. Ele o Rei e me elegeu seu Baro."

    E o "bunker" dos Arajo recebe novos hspedes ocasionais: os Novos

    Baianos, que transformam o apartamento em, o que mais poderia ser, uma

    comunidade hippie. Cazuza se encanta com o espelho retrovisor que Baby CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 29

  • Airton Pgina 30 28/4/2004

    Consuelo usa na cabea: "O que eu mais queria na poca era um espelho

    igualzinho pra mim."

    Alm de se declarar "comunista convicto", s de pirraa contra Mdici,

    Cazuza inicia sua vida de bemio e trava seu primeiro contato com a

    maconha. "Fumei meu primeiro baseado, olhei para as estrelas e pensei que a

    maconha era o mximo."

    Mais divertida sua expulso do Colgio Santo Incio, por ultrapassar o

    limite de recuperaes e da pacincia dos padres, com sua rebeldia (incluindo

    uso de maconha nos corredores). Lucinha Arajo resolve levar Cazuza para

    uma escola mais liberal, o Anglo-Americano. Bota liberal nisso: "L encontrei

    a minha verdadeira turma", dir Cazuza. "Quase todo mundo da minha classe

    fumava e cheirava. Era o paraso."

    A paixo de Cazuza pelas drogas - "nica maneira de ir contra aquilo tudo",

    j que era ditadura e "a gente no podia falar, no podia fazer nada" - o leva a

    ser detido vrias vezes por posse de maconha. "Geralmente eu ia para a 14

    Delegacia, em Copacabana, e meu pai ia l me soltar."

    1973

    As detenes de Cazuza por porte de drogas j chegam a oito, e o filho

    prdigo vive s turras com seus pais. "Eu chegava e, como bom ariano, ao

    invs de abrir a porta eu derrubava na porrada. A minha adolescncia foi

    muito sofrida, tive muitos problemas, mas hoje em dia meus pais so meus

    melhores amigos."

    Por esta poca, Cazuza tem sua iniciao sexual, numa festa de amigos em

    Petrpolis. "Foi na minha fase meio pirada. Eu estava 'alto' e a menina me

    pegou meio fora. Ela era sapato... Fui currado", contar Cazuza doze anos

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 30

  • Airton Pgina 31 28/4/2004

    mais tarde, s gargalhadas. "Depois a gente se namorou, mas aquilo no era o

    que ela queria."

    1974/75

    At agora, Cazuza no muito amigo de rock and roll. "O mximo que eu

    curtia eram coisas do tipo 'Alone Again (Naturally)' [megahit pop do ingls

    Gilbert O'Sullivan], gua com acar." A coisa muda quando Cazuza vai

    passar umas frias em Londres, com um primo ("mais ajuizado"). E Cazuza

    volta sem falar ingls, mas com muito rock na cabea, especialmente os

    Stones, Led Zeppelin e Janis Joplin. "Aos 17 anos fui salvo pelo rock."

    1976

    Como todo garoto vindo de classe mdia, Cazuza tem que trabalhar ou

    estudar bonitinho. E Joo Arajo o aperta para prestar vestibular, oferecendo

    motivao no muito acadmica: se passar, Cazuza ganha um TL usado (no

    um Fusca zero quilmetro, como diro alguns). Cazuza aprovado em

    Comunicao e ganha o carro.

    1977

    Aps trs semanas de aulas na Hlio Alonso, Cazuza abandona a faculdade

    - afinal, ele s prometera entrar na faculdade, no fazer o curso todo, e trato

    trato, no ? Muito bem: sempre compreensivo, Joo Arajo lhe arruma ento

    um emprego em sua gravadora, a Som Livre, onde Cazuza acaba fazendo um

    pouco de tudo: redao de press-releases, assessoria de imprensa, at seleo

    de fitas-demo a serem submetidas posteriormente ao diretor artstico.

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 31

  • Airton Pgina 32 28/4/2004

    1979

    Cazuza recebe proposta de promoo na Som Livre, mas acaba recusando

    por um motivo muito simples e decisivo: um artigo de jornal dizendo que

    somente 20% da humanidade faz o que gosta.

    Deixando a Som Livre, escrevendo ainda amadoristicamente, sem

    perspectiva alguma, Cazuza resolve sair um pouco do Brasil. E vai para San

    Francisco, na Califrnia, onde divide um apartamento com um chins e estuda

    pintura e fotografia. E faz contato com uma de suas grandes influncias: a

    literatura da "beat generation" os anos 50, pais dos hippies, cujos grandes

    nomes so Jack Kerouac e Allen Ginsberg.

    Cazuza s fica oito meses nos EUA. "Eu sempre fui patriota, de gostar de

    ser brasileiro, tanto que eu voltei correndo", comentar anos depois. "Sou

    daquelas pessoas que tm amor terra, mesmo na poca da ditadura, com

    aquele clima tenso, militarismo..."

    1980

    Sai Do Mesmo Vero, LP de Lucinha Arajo, pela RCA.

    Cazuza se enturma com o pessoal do grupo performtico Asdrubal Trouxe

    O Trombone, que, junto com um agitador cultural chamado Perfeito Fortuna,

    pensa em erigir um circo na Praia do Arpoador - o qual acaba realmente sendo

    erigido: o Circo Voador.

    Cazuza participa da pea Pra-Quedas Do Corao, fazendo uma imitao

    humorstica do musical A Novia Rebelde (de Richard Rodgers/Oscar

    Hammerstein II), do qual canta hits como a valsa "Edelweiss"; "Canta muito, e

    muito bem, foi muito bonito", lembrar Lucinha.

    1981 CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 32

  • Airton Pgina 33 28/4/2004

    Sua prxima pea infantil, e seu papel sob medida, o de filho mimado; o

    elenco inclui Carla Camurati, Bebel Gilberto e Rosane Goffman.

    Outubro - O desempenho de Cazuza chama a ateno de Lo Jaime, ele

    mesmo cantor de rock and roll. Lo sugere que Cazuza visite os ensaios de um

    grupo de amigos seus que procura um vocalista - o Baro Vermelho. E l vai

    Cazuza ver o bairro do Rio Comprido tremer ao som desses garotos que tocam

    uma mistura de Stones e Zeppelin no ltimo volume. Cazuza e o Baro se do

    muito bem; inclusive Cazuza mostra suas poesias a algum pela primeira vez,

    compondo cinco msicas com o guitarrista Roberto Frejat (nasc. 1962) logo

    na primeira semana., o Baro acaba por chamar a ateno do produtor,

    jornalista e agitador Ezequiel Neves (nasc. 1936), que j dera muita fora para

    grupos como Made In Brazil e resolve fazer o mesmo com o Baro aps ouvir

    uma fita demo (alis, antes de Ezequiel, esta fita esteve com Nelson Motta,

    que tambm adorou). E tudo isso sem o conhecimento de Joo Arajo -

    imaginem sua cara: "Um dia, depois que voltei de uma viagem, a Lucinha me

    disse 'seu filho vai estrear hoje noite, num bar chamado Calipso, com um

    conjunto chamado Baro Vermelho'. Foi um susto v-lo naquele show meio

    mambembe..."

    O trabalho que Ezequiel Neves e Guto Graa Mello (maestro e produtor da

    Som Livre) tiveram para convencer Joo Arajo a aceitar seu filho no Baro

    Vermelho e, ainda por cima gravar o grupo na Som Livre foi muito bem

    definido pelo prprio Joo como uma "catequese". "O Ezequiel Neves e o

    Guto Graa Mello que me fizeram ouvir com ateno as msicas do meu

    filho. Mas confesso que no foi no primeiro dia que eles conseguiram isso. Foi

    s l pelo terceiro, quarto dia, depois de muita catequese, que decidi ouvir as

    fitas que me levavam." E Joo custou, mas acabou gostando: "Achava um som

    meio sujo. S descobri o talento do Cazuza depois de Exagerado, seu primeiro CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 33

  • Airton Pgina 34 28/4/2004

    LP solo." Convencer Joo Arajo a gravar o Baro na sua prpria gravadora

    tambm no foi muito fcil: "Como fui filho de dona de ginsio, sei o quanto

    duro ser filho do dono."

    1982

    E l est o Baro Vermelho gravando no estdio da Rua Assuno.

    Julho - Chega s rdios "Down Em Mim", composio somente de Cazuza,

    nica faixa do primeiro compacto do Baro, visando promover o primeiro LP

    do grupo.

    Agosto - Sai o primeiro LP, Baro Vermelho. Apesar da promoo, dos

    elogios da imprensa (na maioria espontneos, bem entendido) e da presena de

    futuros clssicos como "Ponto Fraco" e "Todo Amor Que Houver Nessa

    Vida", o disco no vende l essas coisas. "Foi muito mal gravado", comentar

    mais tarde o contrabaixista D, "mas tinha as letras do Cazuza, que eram

    fortes."

    Para muitos, a nica distino imediata do Baro ter um vocalista filho do

    dono da gravadora, que canta berrando e, ainda por cima, tem a lngua presa.

    Mas o LP j abre com Cazuza berrando "pouco importa que essa gente vai

    falar, podem falar mal, eu j t rouco, louco..."

    1983

    Mas quem fala muito bem do Baro Caetano Veloso, de quem chegou a

    vez de tietar aquele garotinho cujo pai ele visitava nos longnquos anos 60.

    Tendo-lhe chegado aos ouvidos o LP do grupo, Caetano se encanta com

    "Todo Amor Que Houver Nessa Vida" e a inclui no show de lanamento de

    seu novo LP, Uns. Em troca, o Baro passa a cantar uma msica deste LP,

    "Eclipse Oculto". CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 34

  • Airton Pgina 35 28/4/2004

    Janeiro - A RCA lana o LP Tal Qual Eu Sou de Lucinha Arajo.

    Agosto - Sai o segundo LP do grupo, cujo ttulo segue o exemplo de seus

    grandes dolos, Stones e Zeppelin: Baro Vermelho 2. A qualidade sonora

    bem melhor que a do primeiro LP, mas as vendagens nem tanto.

    Ainda este ano, a vez de outro grande medalho da MPB pescar uma

    msica do Baro: Ney Matogrosso, com "Pro Dia Nascer Feliz". Ney telefona

    para Cazuza a fim de lhe pedir permisso para cantar a msica: "Aqui Ney

    Matogrosso!" Cazuza, que estava dormindo, responde "E aqui a Gal Costa!"

    e bate o telefone. Naturalmente, tudo acaba se esclarecendo e "Pro Dia Nascer

    Feliz" torna-se um dos grandes hits de Ney. "Ele foi nossa fada-madrinha",

    resumir Cazuza mais tarde.

    E estria o filme Bete Balano, cuja msica-tema, composta e interpretada

    pelo Baro Vermelho, coloca o grupo de vez na berlinda (gostaram?). De

    quebra, o Baro participa do filme.

    1984

    Agosto - O Baro Vermelho j conhece a consagrao, que veio com uma

    boa ajuda de shows por todo o Brasil. E nesta data lana seu terceiro LP,

    Maior Abandonado, puxado por hits como a faixa-ttulo, "Bete Balano", "Por

    Que A Gente Assim?" e, de quebra, "Baby Suporte" entra na trilha da

    novela Corpo A Corpo.

    17 de outubro - O Baro vem a So Paulo estrear seu show Maior

    Abandonado, no Radar Tant, e se hospeda no hotel Brasilton. Aps o show, o

    grupo d uma festa no prprio local.

    18 de outubro - A cozinha do Baro (D e Guto) fica num quarto. Logo de

    manh, batem porta. D acorda, vai atender e... "quando abri estava l o

    prprio delegado [Paulo] Fleury, com uma arma na minha cara e eu nu." E l CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 35

  • Airton Pgina 36 28/4/2004

    vai o Baro (exceto Cazuza, que divide um quarto do hotel com Ezequiel

    Neves) para a delegacia, onde ficam at as 20h; Cazuza fica indignado por ter

    sado "limpo" e exige ser preso tambm.. "A gente tinha dois shows naquela

    noite", continua D, "pagamos a fiana e fomos direto para o Juventus lotado".

    Isto , direto mas nem tanto: saem da delegacia distribuindo autgrafos para

    uma multido de fs. E os shows so um grande sucesso.

    19 de outubro - De volta ao Rio, o Baro v as manchetes: "Baro

    Vermelho preso por droga". Frejat: "A polcia achou que ia encontrar de tudo.

    E, nada, plantaram l um pouco de fumo." Consta que o prprio Fleury, ao ver

    a repercusso do fato na mdia, disse a Cazuza: "Agora sim, vocs so uma

    banda de rock porque vocs danaram. A Rita Lee passou a vender 400 mil

    cpias depois que foi presa." Para Ezequiel Neves, no s o Baro se

    beneficiou da promoo: "Era uma armao do Fleury para se promover.

    Antes de entrar no hotel ele j estava dando entrevista para as televises. Eles

    tentaram de tudo para pegar o Cazuza, que era o mais escandaloso, a vitrine do

    grupo." A bola sete fica para Frejat: "O nico que no danou foi o Cazuza.

    Ele ficou puto da vida por no ter danado."

    1985

    20 de janeiro - J que para o rock tomar conta do Brasil, que seja do

    melhor: o Baro abre a ltima noite do Rock In Rio. Cazuza canta abraado

    bandeira brasileira - e ela no far parte de seu show pela ltima vez.

    Maio - "Eu Queria Ter Uma Bomba" sai em compacto e est na trilha da

    novela A Gata Comeu.

    A esta altura, o Baro Vermelho j artista do primeiro time, alm de se

    notabilizar como o primeiro grupo de rock a se apresentar ao vivo em todos os

    principais centros urbanos do Brasil. "Foi uma oportunidade de conhecermos CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 36

  • Airton Pgina 37 28/4/2004

    o Brasil", recorda Frejat, que aproveita para interpretar: "talvez por toda essa

    absoro de informaes distintas, e por uma interpretao diferenciada,

    houve um abismo to grande entre o que a banda queria fazer e o que o

    Cazuza estava pretendendo."

    De fato, o Baro quer continuar fazendo rock and roll, ao passo que Cazuza

    quer mesclar ao grupo suas influncias de samba-cano. "Havia duas foras

    de direcionamento artstico", diz Frejat. "Durante um tempo essa frico fez

    coisas produtivas, depois elas tenderam a virar inimigas."

    Esta "inimizade" chega a transparecer em entrevistas imprensa, como ao

    Jornal do Brasil, quando Cazuza diz que "todo mundo virou roqueiro, no tem

    mais ningum fazendo samba-cano. Precisamos redimir a msica

    brasileira". Frejat interrompe o discurso de Cazuza, dizendo que "papo de

    velho dos anos 60", alm de desligar o gravador do reprter dizendo "isso no

    faz parte da entrevista do Baro Vermelho".

    Mais um show no Radar Tant traz mais emoes, desta vez antes do grupo

    subir ao palco. "Eu brigava muito com eles", lembrar Cazuza, "porque o

    Frejat todo certinho, supercareta, e eu , louco do jeito que era, s vezes no

    combinava muito, na estria desse show, tocou a campainha para a entrada e o

    Frejat veio me chamar. Eu estava cheirando uma e disse 'J vou'. Ele ficou

    puto, saiu batendo a porta. Eu fui atrs dele e, quando ele saiu, deu um chute

    de retro na porta e ela bateu na minha cara, fiquei todo sangrando. Xinguei ele

    bea. Frejat, todo preocupado, me pedia desculpas... Fui para hospital, me

    costuraram e o mdico disse 'voc s no pode abrir a boca'. 'Mas como?! Eu

    vou subir ao palco agora!' E o show acabou sendo o mximo!"

    As brigas entre Cazuza e o Baro tambm so o mximo. "O final da poca

    com o Cazuza foi uma das coisas mais horrveis", recorda Guto. "No nibus,

    de manh, nas turns, j estavam todos de mau humor, era uma neurose pura." CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 37

  • Airton Pgina 38 28/4/2004

    D: "Muitas coisas influram na sada dele. O Frejat queria cantar uma msica

    e o Cazuza morria de cimes." (Alis, todos no Baro estavam querendo

    cantar.) A imprensa no ajuda muito, promovendo o grupo como "Cazuza e o

    Baro Vermelho". Nem os vrios "amigos", que desde o primeiro disco j

    vinham dizendo a Cazuza que s ele prestava no grupo. Cazuza chega a pensar

    em sair do Baro e fazer dupla com Frejat; Ezequiel Neves, eterno produtor e

    "madrasta" do grupo, a princpio contra a sada de Cazuza, mas acaba

    concordando.

    Uma semana antes do incio das gravaes do quarto LP, Cazuza tem uma

    conversa com Ezequiel. Cazuza se sente culpado pela situao e reluta em

    deixar o grupo: "Eles casaram, esto comprando casas, tm filhos, como que

    vou deix-los na misria?" Ezequiel: "Eles tm fora, e voc vai cair fora

    agora." De modo que, no momento de assinar o contrato para o novo LP,

    Ezequiel e Cazuza comparecem para anunciar que Cazuza est fora. Para

    Ezequiel, no importa que o Baro esteja no topo do sucesso, com muita grana

    entrando: "No tem mentira no rock and roll."

    Agosto - De modo que Cazuza anuncia oficialmente sua sada do Baro

    Vermelho, um dia aps Maior Abandonado ser agraciado com o Disco de

    Ouro.

    Por esta poca, Cazuza comea a se queixar de ter febre todo fim de tarde.

    "Naquela poca eu no estava nem a, nem poderia imaginar que pudesse estar

    com Aids, tomava duas aspirinas e caa na noite." Este "no estar nem a" ser

    motivo para um de seus raros arrependimentos: "Se nesse comeo eu tivesse

    ido logo a um mdico, hoje estaria muito melhor." Alis, Cazuza adoece aps

    voltar de um show no Nordeste e o mdico diagnostica uma infeco

    bacteriana. "Estava com o organismo fraco, muita noitada", admite Cazuza.

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 38

  • Airton Pgina 39 28/4/2004

    Novembro - Sai Cazuza, seu primeiro LP-solo, que, apesar de no ter ttulo,

    acaba conhecido pela faixa de maior sucesso, "Exagerado". E neste disco no

    faltam hits: "Codinome Beija-Flor", "Mal Nenhum" e uma das ltimas faixas

    vetadas para execuo pblica pela censura federal, "S As Mes So

    Felizes". Os parceiros nas composies, alm do sempre amigo Frejat (nico

    membro do Baro sinceramente amigo de Cazuza, segundo Lucinha Arajo) -

    "Foi s a gente se cruzar no primeiro Chacrinha que tudo voltou como antes" -

    incluem Lobo, Leoni (ex-Kid Abelha) e Z Luiz (saxofonista da banda de

    Caetano Veloso).

    Ainda em novembro, Cazuza, ao lado de Erasmo Carlos, Lobo, Renato

    Russo, Paula "Kid Abelha" Toller, vrios Tits e muitos outros, participa de

    "Uma S Voz", compacto distribudo aos ouvintes da Rdio Cidade FM de

    So Paulo.

    E ainda em 1985 participa de uma faixa de Fagner, LP sem ttulo do

    prprio.

    1986

    Janeiro - Primeiro show-solo, em Vitria, Esprito Santo.

    Ainda este ano, no por ser filho do dono que Cazuza escapa de

    desligamento da Som Livre, que decide parar de trabalhar com um elenco e se

    dedicar exclusivamente a trilhas de novelas e seriados. E Cazuza passa o ano

    procurando gravadora nova, ou melhor, sendo procurado por elas (uma oferta

    que recusa da Warner, que pretendia lan-lo como dolo gay) e

    desmentindo os j insistentes boatos de que estaria com Aids. "Ora, hoje em

    dia s algum ter febre e todo mundo j acha que ele est com Aids. Eu no

    vou ter Aids."

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 39

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    E a SOCINPRO (Sociedade Brasileira de Intrpretes e Produtores

    Fonogrficos) premia o Baro (ainda com Cazuza) como melhor conjunto de

    1985.

    Abril - Sai novo LP do guitarrista Celso Blues Boy, com participao de

    Cazuza numa faixa.

    Maio - Numa entrevista para a Bizz, Ezequiel Neves diz: "Tenho cinqenta

    anos e quero viver quinhentos para ver tudo." Cazuza: "No quero viver nem

    oitenta, se disso depender abdicar de todas as minhas loucuras."

    1987

    Incio - Cazuza volta ao Brasil e consegue abandonar as drogas, a boemia, a

    bebida e o cigarro. Alm de fazer anlise, preocupar-se mais com seu lado

    religioso e entrar na alimentao natural. Nada mais de ir dormir quase de

    manh e acordar no meio da tarde.

    Maro - Sai o segundo LP solo, S Se For A Dois, pela PolyGram, onde se

    destaca "O Nosso Amor A Gente Inventa".

    Abril - Continuam as sensaes estranhas, desta vez com mais fora e

    insistncia; ento Cazuza resolve tirar a cisma e fazer o teste anti-Aids.

    Infelizmente, d positivo. Aps ver o resultado no consultrio mdico, Cazuza

    vai a uma praia prxima. "Sentei num banco diante do mar e fiquei apavorado,

    pensando" eu vou morrer, eu vou morrer." Chegando em casa, Cazuza tem a

    primeira de vrias depresses (chegando, em duas destas crises, a jogar vasos,

    cristaleiras e garrafas pelo ar), mas os pais lhe do todo o apoio, internando-o

    em clnicas no Rio e depois em Boston. "Eles no saram do meu lado um

    minuto. Minha me foi uma leoa, ficava ao lado da minha cama e nem deixava

    que as enfermeiras me tocassem. Eu queria sair do hospital, queria acabar logo

    com tudo aquilo, mas ela me mandava ficar quieto, e eu ficava." Cazuza s CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 40

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    no fica quieto o suficiente para compor msicas que entraro em seu prximo

    LP: "Blues da Piedade", "Boas Novas", "Orelha De Eurdice".

    Agosto - A ABPD (Associao Brasileira de Produtores de Discos) divide

    entre Cazuza e Chico Buarque o prmio de melhor letrista de MPB de 1986.

    Outubro/novembro - Cazuza interna-se numa clnica em Boston, nos EUA.

    Dezembro - At agora, s os pais de Cazuza e os amigos mais ntimos,

    como Ezequiel e Frejat, sabem de sua doena. Ao voltar da internao, Cazuza

    rene em casa todos os amigos para lhes dar a notcia. "Disse a eles que era

    Aids mesmo, que a gente tinha de curtir porque eu no sabia quanto tempo

    mais iramos ficar juntos. Depois dessa reunio me senti melhor." S que o

    grande pblico e a imprensa ainda no tiveram a confirmao, embora

    desconfiem.

    Ainda em 1987, Cazuza compe dois temas de filmes: "Um Trem Para As

    Estrelas", em parceria com Gilberto Gil, para o filme homnimo de Cac

    Diegues, e "Brasil", para Rdio Pirata de Lael Rodrigues."Um Trem" acaba

    no entrando no filme, mas o prprio Cazuza sim.

    1988

    Abril - Sai o novo LP-solo, Ideologia.

    Junho - Cazuza tem uma conversa com a me: "Se algum dia eu morrer,

    vocvai ser uma daquelas mes chatas, vestidas de preto, sempre chorando, ou

    vai ser como a Regina Gordilho [vereadora do PDT do Rio, cujo filho foi

    morto por PMs]? Lucinha: "Voc quer que eu seja como?" Cazuza: "Eu quero

    que voc tenha a fora da Regina Gordilho."

    Agosto - Cazuza participa de Cartola - Bate Outra Vez, disco que

    homenageia o 80 aniversrio de nascimento de um de seus dolos, o

    compositor Cartola.

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 41

  • Airton Pgina 42 28/4/2004

    17 de agosto - Estria em So Paulo, no Aeroanta, o show Ideologia. O

    diretor nada menos que sua "fada-madrinha", Ney Matogrosso. "O Ney me

    ensinou coisas em Ideologia que eu vou levar por resto da vida. Agora eu fico

    com os braos mais quietos, no mexo tanto com as mos e, se mexo, mexo

    com as duas mos iguais." E todas as mos da crtica tambm se mexem

    iguais, para aplaudir: Ideologia considerado o melhor show de 1988.

    16 de outubro - Ao terminar a temporada do show Ideologia no Caneco,

    durante a msica "Brasil", algum lhe joga uma bandeira e Cazuza no

    titubeia em cuspir nela. "Fiz de propsito, o cara era um ufanista."

    18 de outubro - Cazuza escreve uma carta sobre o episdio da cusparada na

    bandeira, que s ser publicada aps sua morte, no Jornal O Globo.

    Uma semana depois, Ideologia vem a So Paulo, no Palace, e Cazuza

    apronta mais uma. "Eu cheguei l e aquele lugar, voc sabe... tinha uma

    passando batom, outro bebendo e conversando e a galera de trs, onde o

    ingresso mais barato, estava vibrando. Eu pensei: "Ah, no, esse povo vai

    me botar para baixo, no. Eu, sim, vou por eles baixo, e assim eu fico para

    cima." Disse para a galera de trs vir para a frente, disse para a burguesia que

    jogasse os diamantes verdadeiros ao palco e enfiasse os falsos no c(...)."

    Ainda em outubro, Cazuza cai em mais uma depresso ("Nunca entendi o

    suicdio, achava uma covardia, ai eu entendi "), e, para levantar-lhe o moral,

    Ney Matogrosso resolve lhe apresentar a seita Santo Daime, no Rio.

    Experimentando o ch alucingeno de "ayahuasca", Cazuza faz duas

    "viagens" e diz ter encontrado Deus, alm de perdoar o pai, "trinta anos

    depois, por ter me colocado no mundo". Cazuza gosta muito da experincia,

    mas resolve no se converter ao Santo Daime, "nunca suportei essa coisa de

    clube que tem nas religies" - embora leve para casa uma lembrancinha do

    Santo Daime: "um litrinho" de ch de "ayahuasca". CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 42

  • Airton Pgina 43 28/4/2004

    Enquanto isso, "Brasil", na interpretao de Gal Costa, empolga todas as

    noites na abertura da novela Vale Tudo.

    Dezembro - Marlia Gabriela, em seu programa Cara A Cara na TV

    Bandeirantes, faz um entrevista com ele, que nega estar com Aids, dizendo ter

    sido apenas "uma doena grave". Mais tarde, nos bastidores lhe diz que, como

    personalidade pblica, ele deveria assumir publicamente sua verdadeira

    condio fsica. "Foi a partir daquele papo com ela que percebi que deveria

    contar tudo."

    E Cazuza considera 1988 seu melhor ano at agora. "Foi um ano feliz. Acho

    que agora, mesmo nos meus momentos de tristeza vai ser diferente. Consegui

    dar um clique e descobri uma base de felicidade."

    1989

    Morre Lael Rodrigues, diretor de Bete Balano, aos 38 anos.

    1 de janeiro - A Rede Globo transmite um especial de incio de ano com

    Cazuza.

    Janeiro - Durante um show da turn Ideologia no Nordeste, Cazuza no se

    conforma com a reao da platia, chamando-a de "parabas" e mostrando-lhe

    o traseiro. "Eu precisava provoc-los de alguma forma, no suportava v-los

    olhando para mim daquele jeito." E ainda corta o p na praia de Macei.

    Aps um esforo to arretado, Cazuza volta a Boston para novos exames

    mdicos, inclusive o de Imagem por Ressonncia Magntica (IMR), para

    verificar se o vrus j lhe afetou o crebro; este d resultado negativo. Tanto

    que Cazuza aproveita para compor msicas que estaro em seu prximo LP.

    Enquanto isso, sai seu LP ao vivo, O Tempo No Pra.

    Fevereiro - Saindo da clnica, Cazuza resolve abrir o jogo. De Nova Iorque,

    d uma entrevista Folha de S. Paulo, pela qual o mundo fica sabendo no s CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 43

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    de sua doena, mas tambm de sua bissexualidade, seus excessos de drogas e

    bebidas e suas crises depressivas.

    Maro - De volta ao Brasil, Cazuza tem febre de 40 graus e passa por nova

    internao.

    Mas se o corpo fraqueja, o esprito continua firme: logo que sai do hospital,

    Cazuza compe "Quero Ele", para a montagem carioca da pea Querelle,

    baseada no romance homnimo de Jean Genet, e comea a gravar novo LP.

    4 de fevereiro - Cazuza costuma dizer, meio de brincadeira, meio por

    narcisismo: "Tenho dois sonhos na vida: um ser capa da Manchete, o outro,

    capa de Veja." Pois bem, nesta data a Manchete atende metade de seu desejo.

    Daqui a dois meses ser a vez da segunda metade - mas no exatamente como

    ele desejaria.

    26 de abril - A Veja desta data traz uma reportagem de capa com Cazuza,

    que causa revolta geral, devido capa, bem mais sensacionalista do que seria

    de se esperar, completa com a frase "Cazuza - uma vtima da Aids agoniza em

    praa pblica". As reaes no se fazem tardar:

    26 de abril - Cazuza anuncia que "sentiu vontade de vomitar" ao ler a

    revista, "Meu filho foi ficando triste, triste, triste, at que acabou com o pulso

    e a presso [quase] a zero", contou Lucinha Arajo. "Ns estvamos em

    Petrpolis no domingo (dia 23), quando ele leu a revista, e precisamos traz-lo

    s pressas para o Rio." Neste dia, Cazuza publica nos maiores jornais do pas

    um anncio pago intitulado "Veja, a agonia de uma revista".

    30 de abril - Cazuza participa do 2 Prmio Sharp e ganha prmios de

    Melhor Msica, "Brasil", e Melhor LP, Ideologia. Cazuza comparece

    cerimnia, no Golden Room do Copacabana Palace, em cadeira de rodas, e

    Marlia Pra aproveita para ler o manifesto "Brasil, mostra tua cara!", em

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 44

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    protesto contra a revista Veja, assinado por Caetano Veloso, Chico Buarque,

    Marieta Severo, Nelson Motta e mais de 500 outros artistas e intelectuais.

    13 de maio - Uma das defesas de Cazuza mais elegantes vem,

    surpreendentemente, da Manchete, notria como revista de sexo, cncer, sexo,

    Aids, sexo, Pantanal, sexo, drogas, sexo e rock and roll. At a partir da capa o

    tom da reportagem positivo: "Tenho fora para compor, cantar e amar". "Eu

    falo que estou com Aids porque quero mostrar pra essas pessoas que no

    devem se desesperar. Eu tenho Aids e continuo trabalhando, produzindo,

    compondo. (...) Qualquer pessoa pode morrer amanh. Basta estar vivo. E eu

    no tenho medo de morrer, porque acredito numa outra vida depois dessa. Sou

    uma pessoa muito mstica e acredito em reencarnao. Acho que ns vivemos

    muitas vidas, s que no nos lembramos. Se bem que s vezes eu me lembro,

    sim. Tenho a sensao de que j fui um feitor de escravos e um daqueles

    cantores negros de blues. Adoro blues, sabe? Acho que ainda vou aprontar

    muitas..."

    Joo Arajo aproveita a reportagem para contar um fato pitoresco: "Dia

    desses, estava vindo de So Paulo de carro e, na estrada, fui parado por trs

    guardas. Quando perguntaram o que eu fazia e saiu o nome Som Livre, um

    deles me perguntou se eu conhecia o Joo Arajo. Quando eu disse que era o

    prprio, os trs olharam admirados e contaram que tinham acabado de ouvir

    sobre a morte de Cazuza. Nem preciso dizer que a multa acabou sendo

    aliviada e eu sa dali emocionado: a vida de meu filho hoje desperta a ateno

    e a comoo at dos guardas rodovirios..."

    Junho - Breve internao no hospital Albert Einstein, em So Paulo. E a

    imprensa anuncia que Tavinho Paes est para lanar um livro, Cazuza - Duas

    ou Trs Coisas Que Sei Sobre Ele, coletnea de suas letras e poemas e com

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 45

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    ttulo inspirado num filme de Jean-Luc Godard (que dizia "ela" e no "ele). O

    livro acabar no saindo.

    Agosto - Sai Burguesia, seu nico LP duplo. A crtica se divide e as rdios

    no se entusiasmam tanto quanto com seus LPs anteriores, mas o disco vende

    bem, mesmo sendo duplo.

    24 de outubro - Nova viagem a Boston, para novo tratamento com outra

    droga, a DDI, pois Cazuza, muito debilitado, j no pode mais tomar o AZT.

    Novembro - E Alagoas no para de pegar no p de Cazuza: estamos em

    plena campanha eleitoral para Presidente da Repblica, a primeira desde 1961.

    Cazuza declara ser eleitor de Lula ou Brizola ("eu voto sempre no PV e no PT,

    de implicncia mesmo, acho que o nico caminho pro Brasil um socialismo

    centrado na educao e na alimentao do povo"); portanto, imagine sua

    surpresa ao ver sua msica "Brasil" usada na campanha do candidato do PRN:

    a cano toca quase na ntegra e no final aparece a frase "Obrigado, Cazuza.

    Fernando Collor de Mello", dando a entender que Cazuza o apia. natural

    que Collor goste de uma cano que fale de droga, malhada ou no, mas

    George Israel e Nilo Romero, parceiros de Cazuza na composio, no

    hesitam em entrar na justia (Cazuza s no entra tambm por j estar muito

    debilitado).

    12 de novembro - O Tribunal Superior Eleitoral proibe o PRN de utilizar

    "Brasil" na campanha de Collor.

    1990

    13 de janeiro - "Burguesia", vdeo-clip de Ana Arantes, premiado no 32

    New York Festival.

    CAZUZA 1 prova - 19.04.94 - pg. 46

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    Fevereiro - Devido sua debilidade fsica, e tendo parado com AZT, uma

    infeco impede que Cazuza se una aos 206 pacientes de Aids que vm se

    tratando com a DDI. E sua pele adquire tonalidade cada vez mais escura.

    9 de maro - Cazuza volta ao Brasil, de onde no mais pretende sair. Est

    um pouco melhor, alimentando-se bem e sem febres.

    23 de maio - Infelizmente, uma recada o leva a ser internado na UTI da

    Clnica So Vicente.

    Maio - Cazuza volta a passear pelas ruas do Rio,