AZAMBUJA, Elizete Beatriz - A Hipercorreção (Cap. Seminario Tese)

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  83 CAPÍTULO III O DISCURSO SOBRE A LÍNGUA: enunciados que remetem ao imaginário de língua una [...] forjar uma natureza humana pela linguagem, com a linguagem e na linguagem, será determinante na construção de uma posição de sujeito sempre-já-dividida e de sentidos, que vão se sedimentando e cristalizando, afetando a formação das elites brasileiras – escolarizadas - e a exclusão de sua contraparte - o povo não escolarizado. Uma posição que permitiu, inicialmente, determinar-marcar-dividir dois mundos distintos e, posteriormente, atravessar a sociedade, separando brasileiro de brasileiro. (SILVA, 2001, p. 145). Neste capítulo, discutimos de forma mais pontual o discurso sobre a língua constituído pelo imaginário que circula em nossa sociedade, um imaginário de língua una em oposição à real heterogeneidade da língua brasileira. O nosso objetivo de buscar compreender a constituição desse discurso sobre a língua que predomina nos diferentes espaços sociais justifica-se pelo fato de, a nosso ver, ele compor as condições de produção da “hipercorreção”, foco do nosso estudo. Para começar esta reflexão, consideramos essencial mobilizarmos as noções de língua imaginária e de língua fluida, propostas por E. Orlandi (1988; 1992). Conforme a autora, a primeira é efeito da construção de uma unidade em que são desconsiderados a história e o político. Em outros termos, a língua imaginária é a língua sistema, um objeto-ficção que funciona e tem efeitos no real. Por exemplo, o português oficial normatizado. (ORLANDI, 2009, p. 18). A língua fluida, por sua vez, “pode ser observada e reconhecida quando focalizamos os processos discursivos, através da história de constituição

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Hipercorreção

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    CAPTULO III

    O DISCURSO SOBRE A LNGUA: enunciados que remetem ao imaginrio de lngua una

    [...] forjar uma natureza humana pela linguagem, com a linguagem e na linguagem, ser determinante na construo de uma posio de sujeito sempre-j-dividida e de sentidos, que vo se sedimentando e cristalizando, afetando a formao das elites brasileiras escolarizadas - e a excluso de sua contraparte - o povo no escolarizado. Uma posio que permitiu, inicialmente, determinar-marcar-dividir dois mundos distintos e, posteriormente, atravessar a sociedade, separando brasileiro de brasileiro. (SILVA, 2001, p. 145).

    Neste captulo, discutimos de forma mais pontual o discurso sobre a lngua constitudo pelo imaginrio que circula em nossa sociedade, um imaginrio de lngua una em oposio real heterogeneidade da lngua brasileira.

    O nosso objetivo de buscar compreender a constituio desse discurso sobre a lngua que predomina nos diferentes espaos sociais justifica-se pelo fato de, a nosso ver, ele compor as condies de produo da hipercorreo, foco do nosso estudo.

    Para comear esta reflexo, consideramos essencial mobilizarmos as noes de lngua imaginria e de lngua fluida, propostas por E. Orlandi (1988; 1992). Conforme a autora, a primeira efeito da construo de uma unidade em que so desconsiderados a histria e o poltico. Em outros termos, a lngua imaginria a lngua sistema, um objeto-fico que funciona e tem efeitos no real. Por exemplo, o portugus oficial normatizado. (ORLANDI, 2009, p. 18).

    A lngua fluida, por sua vez, pode ser observada e reconhecida quando focalizamos os processos discursivos, atravs da histria de constituio

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    das formas e sentidos, nas condies de sua produo, na sociedade e na histria, afetada pela ideologia e pelo inconsciente. Ainda conforme Orlandi, a lngua fluida a que est em movimento, que sofre mudana contnua e que vai muito alm das normas impostas.

    A autora explica que, quando trabalhamos com a lngua em funcionamento, trabalhamos com a relao de tenso contnua entre a lngua fluida e a lngua imaginria, entre o mltiplo e o uno.

    Consideramos que a imagem de correo da lngua produzida pelo funcionamento ideolgico e, desse modo, os sentidos que constituem o imaginrio de lngua que circula em nossa sociedade produz efeitos de inquestionabilidade de tal modo que difcil nos depararmos com enunciados constitudos por sentidos que divergem da oposio certa/errada. Para compreendermos melhor esse processo, pensamos ser interessante retomar a noo de ideologia a partir de Pcheux:

    [...] a ideologia que, atravs do hbito e do uso, est designando, ao mesmo tempo, o que e o que deve ser [...] a ideologia que fornece evidncias pelas quais todo mundo sabe o que um soldado, um operrio, um patro, uma fbrica, uma greve, etc., evidncias que fazem com que uma palavra ou um enunciado queiram dizer o que realmente dizem e que mascaram, assim, sob a transparncia da linguagem aquilo que chamaremos o carter material do sentido das palavras e dos enunciados. (PCHEUX, 1995, p. 159-160).

    Neste ponto, vale lembrar que a filiao a uma teoria como a Anlise de Discurso possibilita um olhar de estranhamento quilo que tratado como natural, evidente. Dito de outro modo, possibilita compreender o funcionamento ideolgico e o efeito de evidncia que produz.

    Conforme explicitamos, no captulo de descrio do corpus, tomamos para esta anlise materiais produzidos em diferentes condies de produo,

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    selecionando recortes37 de entrevistas, orais e escritas, algumas feitas durante a construo deste trabalho, outras constituem pesquisas anteriores ao perodo desta tese.

    Tambm tomamos como material de anlise, comentrios presentes em um blog em que vrias pessoas se manifestaram em relao matria que gerou uma grande polmica: Livro usado pelo MEC ensina a falar errado.

    III.1 Pontos de anlise

    Ao longo da anlise de nosso material, buscamos algumas regularidades nos enunciados para observar os sentidos a que se filiam os sujeitos envolvidos na pesquisa, considerando que tais sentidos constituem os discursos sobre a lngua.

    Em relao escolha das sequncias discursivas para a nossa reflexo, levamos em conta o que nos explica Serrani:

    [...] em anlise de discurso a seleo de sequncias discursivas j reveladora do encaminhamento de resultados da anlise, pois essa seleo, concretizada em recortes da materialidade de um corpus determinado j resultado de um percurso de trabalho em espiral que passa pela considerao das condies de produo, da intertextualidade, da presena obstinada das marcas lingusticas. (SERRANI, 1993, p. 67).

    Nas anlises dos enunciados produzidos por diferentes pessoas, consideramos os dizeres enquanto efeitos de sentidos de lngua que se constituem em diferentes condies de produo.38 Efeitos que, de alguma forma, se apresentam no modo como eles enunciam, com regularidades enunciativas, como diria Payer (2011).

    Considerando que h um jogo de formaes imaginrias que fundamenta qualquer processo discursivo, possvel observar que os enunciados trazem em si elementos que indicam as imagens que os sujeitos envolvidos em 37

    Tratamos a noo de recorte de acordo com o que prope Eni Orlandi (1984). Assim, enquanto analistas, depreendemos unidades discursivas, levando em conta linguagem-e-situao.

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    nossa pesquisa tm em relao ao prprio falar, em relao ao falar de outras pessoas, em relao ao falar que posto como ideal, entre outras imagens que podem ser favorveis e/ou desfavorveis, em suma uma imagem da prpria lngua.

    Para compreender o processo de constituio de sentidos de lngua, consideramos fundamental levar em conta o fato de o discurso no ser fechado em si mesmo e nem ser do domnio exclusivo do locutor; aquilo que se diz significa em relao ao que no se diz, ao lugar social do qual se diz, para quem se diz, em relao a outros discursos. (ORLANDI,1996, p.83).

    III.1.1 O discurso sobre a lngua nos enunciados das entrevistas

    Neste espao, apresentamos recortes de entrevistas39 que fizemos em Gois, Mato Grosso e So Paulo, considerando que so respostas a algumas questes que nortearam a nossa proposta de reflexo: a) No seu ponto de vista, h algum lugar do pas em que as pessoas falam melhor do que em outros? b) Voc considera que h pessoas que falam melhor que outras ou no? Voc acha que fala melhor ou pior do que outras pessoas? c) Conhece algum que enfeita o jeito de falar? Se conhece, por que voc acha que acontece isso?

    Das respostas dadas, recortamos alguns enunciados para compreender o discurso sobre a lngua que circula e que se constitui por sentidos que remetem hierarquizao entre formas de falar.

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    H entrevistados que, atualmente, so moradores num dos trs Estados a que nos referimos, no entanto, so naturais de outros lugares do pas: Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Tocantins.

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    III.1.1.1 Discurso sobre a lngua: imaginrio de lugares com falantes mais proficientes

    Em relao questo sobre a existncia ou no de lugar(es) no pas em que as pessoas falem melhor do que em outros, as respostas dadas foram bastante interessantes. Enquanto poucos entrevistados afirmam que no h territrio brasileiro em que se fale melhor ou pior, vrios outros fazem-nos refletir sobre o imaginrio de que certas regies ou lugares abrigam falantes mais proficientes.

    a) Discurso sobre a lngua: imaginrio de lugares com falantes mais proficientes

    Natural.: Estado Idade Escolar. Enunciados

    MA 80 anos No-alfabetizada

    Melhor que os outro acho que no tem ningum melhor, no. s vez querem ser, mas no .

    MT 47 anos Graduao em jornalismo Acho que h pessoas que falam melhor e outras pior, mas no depende de regio

    RS 75 anos Ensino mdio Creio que em todas as regies do pas existem pessoas que falam muito bem e outras no.

    RS 27 anos

    Graduado em matemtica com ps- graduao em Educao

    No, pois cada regio possui um modo de falar que compreendido por pessoa que ali moram, se a forma de falar compreendida ela a melhor. (grifo do entrevistado).

    RS 24 anos Mestrado em lingustica No. No tem. -------- -----

    ------ ----------

    BA 76 anos No-alfabetizada

    Eu acho que So Paulo ... os paulistas falam bem melhor do que os nortista.

    GO 24 anos

    Graduada em Zootecnia

    Eu acredito que nos estados do sudeste e do sul, onde as pessoas tem mais nvel de instruo mais elevado e acesso informao, as pessoas aprendem a falar melhor.

    MG 32 anos

    Graduao e ps-graduao em Geografia

    Sim. Na minha opinio as regies sudeste e centro-oeste falam melhor.

    MT 64 anos Ensino mdio completo

    Em Belm do Par e nos pases desenvolvidos.

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    Natural.: Estado Idade Escolar. Enunciados

    MT 42 anos

    Ensino mdio completo

    Tem, sim, por exemplo, tem So Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, por causa dos imigrantes. Porque a imigrao atingiu mais essa rea. Ento, l tem essas lngua francesa, inglesa, so bem aperfeioada.

    MT 35 anos Ensino mdio completo No sul eu acho que o povo fala mais e melhor.

    MT 26 anos Graduao em direito Acredito que no Estado do Par falam melhor.

    MT 26 anos

    Graduao em Direito

    Depende! No centro oeste, misturam muito VOC e TU, o voc mais fcil pra se falar e correto o tu na hora de falar falamos sempre pela metade ex.:tu deixou e o correto seria tu deixaste por esse motivo acredito que no Estado do Par falam melhor.

    PA 24 anos

    Graduao em administrao de empresas e doutorado em engenharia qumica

    Se julgar pela concordncia correta exigida pela lngua portuguesa e a reduo no uso de grias considero que alguns lugares do pas utilizam melhor ou com mais facilidade a linguagem normativa. Cito o Maranho e o Par que costumam concordar bem por exemplo o pronome Tu.

    PE 28 anos

    Graduao em fsica e especializao em fsica mdica

    De forma geral, o nordestino fala melhor do que o povo do sudeste. [...] De uma forma geral, acho que o povo fala bem, com exceo do paulista e carioca. Eles usam a concordncia de forma incorreta, por exemplo, sempre falam ns vai em vez de ns vamos.

    Dentre os lugares que foram mais apontados como aqueles em que se fala melhor, est a regio sudeste, especificamente, o Estado de So Paulo. De acordo com Megid e Furlan, as pronncias consideradas corretas por grande parte da sociedade e tambm utilizadas por vrios telejornais so aquelas que predominam nas capitais paulista e carioca, sendo estas grandes centros econmicos do pas. (MEGID; FURLAN, 2009, p.17). Desse modo, que so configuradas as relaes de poder entre as diversas regies no pas no mbito no s econmico mas tambm poltico e, consequentemente, o poderio de algumas regies para estabilizar, por exemplo, a pronncia a ser reproduzida. (op.cit., p.17). Ainda de acordo com as autoras h uma estreita relao entre as

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    imagens que se tem das regies brasileiras e as imagens do modo como nelas se fala. Nessa perspectiva, salientamos que, alm do sudeste, todos os Estados da regio sul foram mencionados.

    O centro-oeste tambm foi citado, mas nenhum Estado especfico. O Par e o Maranho foram lembrados por alguns entrevistados como lugares em que se fala melhor com a justificativa, construda imaginariamente, de que l os falantes concordam bem o pronome tu: tu falastes e no tu falou. interessante que a metalinguagem presente neste enunciado aponta para o discurso da gramtica normativa que constitui o discurso sobre um modo superior de lngua.

    Em relao ao nordeste, somente um dos entrevistados levantou a possibilidade de ser uma regio em que se fale melhor e afirmou ser orgulhoso pelo modo que fala. Ao contrrio deste falante, esta regio foi lembrada por pessoas que ficaram constrangidas quando o seu falar foi confundido com o modo de falar nordestino. O curioso que ambas argumentaram que no era porque falassem errado:

    a) Sim. J aconteceu de pessoas perguntarem se eu sou nordestina, pela minha maneira de falar. No que eu falasse errado, mas eu entendi que todos os nordestinos, a fala do nordestino fosse errado. b) Me senti constrangida quando meus colegas me perguntaram se eu era nordestina. No porque eu falava errado, mas porque eles achavam engraado o meu modo de falar, que se assemelhava ao sotaque do nordeste.

    O imaginrio que est funcionando o de que no nordeste se fala errado, um lugar em que o povo no sabe falar e que ser visto como um falante daquela regio causa constrangimento.

    Para compreender melhor a hierarquia posta entre os falares das diferentes regies do pas, citamos a reflexo feita por Guimares:

    [...] a relao dos falantes com a lngua est regulada por uma relao com a lngua do Estado, enquanto uma lngua, a lngua

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    (una) do Estado: gramatizada40, normatizada. Est por outro lado regulada pelo fato de que h regies em que se fala, por exemplo, [mutjo] (como em Cuiab), e outras em que se fala [muito]. [...] No h igual direito a dizer [mutjo] ou [muito]. (GUIMARES, 2005, p. 21). (grifos nossos).

    Ainda conforme Guimares, h uma distribuio do direito palavra que acontece de uma maneira em que ele um para os que dizem a primeira forma e outro para os que pronunciam da forma segunda. Por essa razo, falar Portugus estar afetado por estas divises que caracterizam o espao de enunciao da Lngua Portuguesa no Brasil. (op.cit., p. 21). Lembramos que esta diviso construda imaginariamente tem efeitos sobre o real, levando em conta as inmeras situaes de excluso que constituem as prticas cotidianas dos brasileiros dividido entre os que sabem falar portugus e os que no sabem .

    III.1.1.2 O discurso sobre a lngua constitudo pela comparao: hierarquizao entre formas de falar

    Podemos dizer que a comparao entre os modos de falar produz uma separao visvel e cruel entre os sujeitos. A anlise dos enunciados nos possibilita observar a sobreposio entre modos de falar, em um imaginrio que funciona pela oposio entre os falantes: a) zona urbana X zona rural; b) jovens X velhos; c) escolarizados X no escolarizados.

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    Guimares salienta que trata de gramatizao no sentido trabalhado por Auroux, em A Revoluo Tecnolgica da Gramatizao (1992).

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    Sobreposio de modos de falar: a) zona urbana X zona rural; b) jovens X velhos; c) escolarizados X no escolarizados Natural.: Estado

    Idade Escolar. Enunciados

    BA 76 anos No-alfabet. Sim, sim, existe. Conheo. pessoas da roa. Pessoas amalfabticas como eu sou.

    MT 11 anos 5 ano Eu tenho muitos erros de portugus, mas acho que eu falo melhor do que os caipiras, que moram na roa, porque eles falam em vez de voc eles falam oc.

    MT 37 anos Ensino mdio

    completo

    No contexto do grau de escolaridade as pessoas falam bem, tem maior conhecimento. O vocabulrio enriquecedor, e aquele que tem um nvel baixo os que falam pior.

    MT 35 anos Ensino mdio

    completo

    Uma pessoa que tem um grau de estudo maior que a outra com certeza ela ter uma fala melhor.

    RS 28 anos Grad. em psicologia

    Devido minha experincia profissional e os diversos lugares onde morei tenho um vocabulrio mais abrangente do que algumas pessoas que convivem comigo. Tambm consigo me expressar de uma forma mais clara.

    Assim, a comparao que notamos nos enunciados remete-nos relao do sujeito com a escrita que acontece de modo mais intenso, noutras menos intenso. Sendo a nossa sociedade grafocntrica, quando o sujeito no escolarizado a sua relao com a lngua padro se d pela falta. Essa relao constitui o imaginrio de lngua que se organiza de forma hierarquizada. Da a imagem de quanto maior o acesso escrita melhor o modo de falar do sujeito.

    Nesta perspectiva, pensamos nas diferentes memrias que sustentam enunciados com regularidades enunciativas relacionadas escolarizao que constitui o sujeito enquanto um aspecto indissocivel do bem falar. Em relao a essa discusso, Mariza Silva lembra que

    Ser letrado sempre foi marca de diferena. E esta marca tem histria e faz histria. Uma histria que, no sculo XIX, configura um novo referente para o indivduo, estabelece parmetros para a sedimentao de um sentido unvoco. [...] um imenso trabalho de

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    formulaes teve que se dar e foi apagado no s pelas prticas poltico-sociais como tambm pelas prticas e teorias acadmico-cientficas sobre o indivduo e sobre a(s) lngua(s) existente(s) no Brasil, para separar e configurar o sujeito e o objeto da escolarizao de uma forma clara e objetivamente distinta, unificando a multiplicidade, materializando a estabilidade de forma a gerir o social. (SILVA, 1998, p. 144).

    Alm desta imagem de superioridade da forma de lngua dos escolarizados, a imagem de que o falar urbano se sobrepe ao falar rural tambm constitui alguns dos enunciados citados.

    Payer comenta sobre a distino existente entre as prticas lingusticas nesses dois espaos:

    [...] As prticas de linguagem no campo e na cidade se caracterizam por diferentes traos com modos distintos de relao do indivduo com a lngua, com diferentes universos e objetos simblicos, na constituio de si e do outro enquanto sujeitos. (PAYER, 1996, p. 84).

    A nosso ver, h uma relao entre os sentidos negativos produzidos ao falar desses dois grupos no imaginrio social: desescolarizados e moradores da zona rural. Isso porque h algum tempo, no muito distante, havia uma enorme dificuldade de acesso escola para quem morasse fora da zona urbana, reforando um distanciamento entre os modos de falar. Embora atualmente no ocorra da mesma forma, h sentidos que se mantm no imaginrio de lngua, ainda h uma ingerncia sobre o urbano que a ingerncia sobre os sujeitos, tal como eles so significados no imaginrio social. (ORLANDI, 2012, p. 201). Essa afirmao nos leva a pensar sobre o fato de que a ingerncia sobre a lngua a ingerncia sobre os sujeitos: ser da roa falar errado como na roa, como caipira.

    A relao direta entre o bem falar e o acesso escolarizao est presente nos enunciados de diferentes modos. Entre outros: (falar certo ou errado) depende da escolarizao, os mais estudados, so aqueles que falam mais correto; quem estuda fala correto quem no tem estudo no completa as palavras com todas as letras.

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    Assim, o discurso sobre a lngua a que se filiam os sujeitos que produzem os enunciados citados constitui-se por sentidos pejorativos atribudos forma de lngua dos desescolarizados: forma errada, inferior, feia, desconsiderada enquanto possibilidade de lngua. Em contraposio a esses sentidos, tem-se a ideia de um portugus correto que remete legitimao de uma forma de lngua, a imagem que o portugus aprendido na escola o ideal de lngua.

    Enfim, nesses enunciados, de um modo ou de outro, podemos notar a relao imaginria entre o bem falar e a escolarizao dos sujeitos. A comparao est posta em pre-construdos como quem tem estudo fala melhor, mais correto e mais claro; quanto maior o vocabulrio maior o conhecimento, entre outros.

    H uma forma de lngua gramaticalizada, dicionarizada que circula em diferentes espaos sociais, incluindo a mdia e que traz tona o funcionamento da escrita em nossa sociedade. Nessa perspectiva, enfatizamos o que diz Orlandi sobre o fato de a escrita marcar uma relao particular do sujeito com a histria e ser uma forma de inscrever o sujeito na ordem social. (ORLANDI, 2012, p. 169).

    Retomando as sequncias discursivas analisadas, quando os entrevistados foram questionados se consideravam ou no que existia uma fala correta em contraposio a uma errada muitos deles afirmaram que, realmente, existe: lgico, claro, uma coisa lgica.

    O imaginrio de lngua constitudo pela oposio entre lngua certa X errada, melhor X pior...

    Naturalidade: Estado Idade Escolaridade Enunciados

    MA 80 anos No-alfabetizada Tem pessoas que fala melhor do que outras. [...] Porque aqueles mais estudado fala melhor e os que no estudou pior.

    BA 76 anos No-alfabetizada

    Se eu considero? Bom, a vrias consideraes para mim igual, mas que tem pessoas que fala melhor do que a outra claro. Quem estuda fala correto quem no tem estudo no completa as palavra com todas as letras.

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    RS 70 anos Ensino mdio completo

    [...] lgico! Tem pessoas que falam o portugus praticamente sem erro, e outras que simplesmente no sabem o portugus, no aprenderam. Ento, isso uma coisa lgica.

    GO 24 anos Graduao em Zootecnia

    Considero. [Por que voc acha que acontece isso?] Devido ao grau de escolaridade e o acesso informao.

    GO 16 anos Ensino

    fundamental completo

    Eu imagino, sim, que seja dessa forma, que... os mais estudado, aqueles que fala mais correto e os menos estudado, claro n, num fala corretamente, mais... tipo assim... fala o bsico, n, ou menos que o bsico um pouco.

    MT 13 anos Cursando o 6 ano

    Sim. Depende da escolaridade, n? Depende de como ela , de como ela aprende a falar a linguagem.

    MT 11 anos 5 ano Sim. Tem umas pessoas que sabem falar as palavras corretamente e outras no.

    GO 14 anos Cursando o 7 ano Ah! Todo mundo fala errado, n. No tem nenhum que fala certo. (ensino fundamental completo/GO)

    RS 25 anos Graduao em

    letras e mestrado em lingustica

    No.

    Entre as sequncias discursivas acima, consideramos relevante tecer alguns comentrios a respeito de algumas respostas questo feita por ns:

    [...] os mais estudado, aqueles que fala mais correto e os menos estudado, claro n, num fala corretamente, mais... tipo assim... fala o bsico, n, ou menos que o bsico um pouco. (Ensino fundamental completo, 16 anos, goiana).

    O enunciado citado remete ao imaginrio de que quanto mais se estudar mais se falar corretamente e de forma completa. Remete relao entre a iluso de completude com o grau de escolaridade e tambm memria discursiva que sustentou/sustenta a possibilidade de produzir enunciados como fulano desconhece at o ABC, ou no conhece nem o ABC.

    Alm do enunciado citado, destacamos a sequncia produzida por uma senhora de 76 anos, no alfabetizada, filha de pais tambm no-alfabetizados:

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    Bom, as vrias consideraes para mim igual, mas que tem pessoas que fala melhor do que a outra claro. Quem estuda fala correto quem no tem estudo no completa as palavra com todas as letras. (grifos nossos). (No-alfabetizada, 76 anos, baiana).

    Tambm neste enunciado, notamos a remisso iluso de completude ligada ao estudo. As palavras desta senhora remete a uma das reflexes de Mariza V. da Silva, sobre a escrita e o funcionamento de nossa sociedade. A autora afirma que o mundo no foi feito em alfabeto...41, conforme disse o poeta mato-grossense Manoel de Barros. No entanto:

    A possibilidade desta formulao est em que para ns letrados e vivendo em uma sociedade letrada o mundo foi e feito em alfabeto, em escrita. A diferena j est inscrita em uma memria construda pela escrita, sendo que o principal em nossa memria coletiva e individual justamente aquilo de que no podemos lembrar. (SILVA, 1998, p. 192).

    Assim, a entrevistada traz em seu enunciado sentidos produzidos na posio-sujeito no-alfabetizado, posio esta que possibilita dizer que quem no tem estudo no completa as palavras com todas as letras. Para ns, esse modo de dizer indica-nos que a lngua fluida produzida por esse sujeito marcada pela falta: faltam letras, palavras... falta a lngua como ela deve ser.

    muito interessante observar que, na maioria das respostas dadas nossa questo, h uma srie de afirmaes de que h sim pessoas que falam melhor que outras e que isto depende muito do grau de escolaridade. Nessa perspectiva, no h simetria entre o modo de falar dos que estudaram e o dos que no tiveram oportunidade de estudar. O que se nota uma relao assimtrica, hierarquizada, que se coloca na comparao entre o modo de falar de um grupo e de outro. Em contrapartida h uma resposta dada por uma cursista de ps-graduao em lingustica, de que no h o certo e o errado, tampouco pessoas que falam melhor que outras.

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    Em Compndio para uso dos pssaros: poesia reunida 1937-2004 (1960), de Manoel de Barros.

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    Apontamos, tambm, a resposta de alguns entrevistados sobre o prprio modo de falar: como voc acha que fala: melhor do que algumas pessoas ou pior?

    a) Melhor do que meus pais e pior do que meus filhos. b) As pessoas que falam melhor so as mais estudadas, adquiriu conhecimentos, possui uma funo de conhecimento mais amplo. Pois sabemos diferenciar cada pessoa se tivermos um nvel mais avanado. Minha av falava errado, as palavras que no existiam, mas pra ela tinha um significado, porque ela no foi escola.

    A imagem de que o falar das geraes mais jovens se sobrepe ao das geraes mais velhas tambm est relacionada escolarizao que, por sua vez, diz respeito ao acesso forma escrita da lngua. Nesse sentido, h uma recorrncia imagem de lngua correta e de bem falar em contraposio a um no saber falar. H uma expanso do discurso da escrita, a forma de lngua considerada ideal, que circula em diferentes tipos de mdia: escrita, televisiva, eletrnica, radiofnica. Em consequncia deste acesso, o contraste nas relaes de poder fica maior, mais evidente. O interessante que esse mesmo imaginrio de lngua correta enquanto aquela que falada pelos mais jovens constitui espaos geogrficos distintos, assim como nos conta Galeano:

    Alguns antroplogos recorrem os campos colombianos na costa do Pacfico, em busca de histrias de vida. E um velho lhes pede: - No gravem o que eu digo, eu falo muito mal. melhor gravar com meus netos. Muito longe dali, outros antroplogos recorrem os campos da ilha Grande Canria. E outro velho lhes d boas-vindas, serve-lhes caf e lhes conta histrias alucinantes com as mais saborosas palavras e lhes diz: - Ns falamos muito mal. Eles sim que falam bem, os rapazes. Os netos, os rapazes, os que falam bonito, falam como na tev. (GALEANO, 2010, p. 303). (grifos nossos).

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    III.1.1.3 Discurso sobre a lngua: a tenso entre unidade e heterogeneidade emerge na oscilao de sentidos nos enunciados

    Aqui, trazemos alguns enunciados em que observamos diferentes sentidos que constituem discursos sobre a lngua.

    H sujeitos que se identificam com sentidos de lngua imaginria, em que se considera a existncia de uma lngua perfeita, certinha, correta, ideal, inalcanvel ou praticamente inalcanvel. Conforme alguns enunciados difcil achar quem fala assim: certinho, do jeito que tem que ser falado mesmo; todo mundo fala errado e no tem nenhum que fala certo.

    Sentidos outros tambm so produzidos e constituem um discurso sobre a lngua em que o sentido de lngua distinto da anterior. Sentido de lngua em sua fluidez, em movimento, heterognea, em funcionamento na sociedade.

    Conforme Orlandi, no h possibilidade de haver sentido que no resulte de um confronto do simblico com o poltico. Nessa direo, pensamos o poltico considerando o fato de que, em uma sociedade como a nossa, os sentidos so divididos (ORLANDI, 2012, p. 157), e chama-nos a ateno a oscilao que constitui os enunciados abaixo.

    Discurso sobre a lngua: a tenso entre unidade e heterogeneidade Naturalidade/

    Estado Idade Escolaridade Enunciados

    BA 76 anos No-alfabetizada

    Bom, a vrias consideraes para mim igual, mas que tem pessoas que fala melhor do que a outra claro.

    GO 38 anos Graduado em

    histria

    Considero que existem sim pessoas que se preocupam em falar o portugus corretamente, conforme os padres da nossa lngua. O que para mim descarta a ideia de que um fala melhor ou no do que outros.

    GO 23 anos Graduada em

    Letras

    Conheo vrias pessoas que falam errado, n? Porque a gente sabe que no existe portugus errado, existe a m colocao das palavras e esse falar errado, na verdade, ele conceituado porque existe a gramtica. (...)eu creio que hoje pra mim no existe o certo existe voc fazer as colocaes

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    corretas, na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas.

    RS 24 anos Graduada em Direito Eu acho que tem o certo, o correto, mas difcil achar quem fala assim: certinho, do jeito que tem que ser falado mesmo.

    MT 20 anos Ensino mdio completo

    Eu vejo a fala como um meio de comunicao no sendo melhor ou pior. Se todos eles chegam a um mesmo objetivo que a comunicao, independente da pessoa ser mais pobre, da linguagem menos gramatical, menos rebuscada, chique, como a gente v nos grandes centros.

    Em vrios dos enunciados, observamos a recorrncia atribuio de juizo de valor em relao aos diferentes falares. Assim, possvel notar a oposio entre sentidos de lngua: certo X errado, portugus correto X portugus incorreto, falar legtimo X ilegtimo, ideal X real, entre outras contraposies.

    A oscilao entre sentidos nos enunciados no se restringe opinio dos sujeitos sobre o funcionamento da lngua na sociedade. Ela se apresenta tambm nas marcas lingustico-discursivas que nos remetem a memrias distintas: a da lngua nacional e a da lngua materna. Distinguindo estas duas noes, Guimares define lngua nacional como aquela que caracteriza um povo, dando aos falantes uma relao de pertencimento a este povo. Enquanto a materna se representa (que se apresenta como sendo) primeira para seus falantes. (GUIMARES, 2006, p.14)

    Pensamos a presena da oscilao nos enunciados como interferncias que, de acordo com Payer, ocorrem nas situaes em que a relao do sujeito com discursos outros no indiferente ao prprio modo de dar sentido. Assim, tocado pela presena do outro, ele se desconcerta em seus parmetros de representao, at ento protegidos de maiores abalos.42 (PAYER, 1993, p. 67). Observamos esse funcionamento na formulao de uma egressa do curso de

    42

    Maria Onice Payer desenvolve um estudo bastante produtivo sobre a interferncia do discurso do outro (cf. em Educao Popular e Linguagem, 1993).

  • 99

    letras que ilustra a possibilidade do sujeito sofrer a interferncia do discurso cientfico que teve acesso nas aulas de lingustica ao longo dos seus estudos:

    Conheo vrias pessoas que falam errado, n? Porque a gente sabe que no existe portugus errado, existe a m colocao das palavras e esse falar errado, na verdade, ele conceituado porque existe a gramtica. [...] eu creio que hoje pra mim no existe o certo existe voc fazer as colocaes corretas, na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas.

    Nesta sequncia discursiva, vemos a oscilao de sentidos nas marcas lingusticas: eu creio/a gente sabe; conheo vrias pessoas que falam errado X no existe o errado; no existe o certo X existe voc fazer as colocaes corretas, na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas. O que poderia parecer contraditrio est relacionado ao interdiscurso, ao dizvel, aos sentidos que esto disponveis.

    Tambm interessante notar que os sentidos dados lngua independem da faixa etria, do nvel de escolaridade, de regio de origem, pois, como sabemos, toda formao social mltipla. Nessa direo, concordamos com o que Mariza da Silva afirma em relao lngua:

    [...] h toda uma srie de pr-construdos que circulam pelas diferentes classes sociais, formando um bloco aparentemente homogneo e coeso. [...] os locutores tm como uma capacidade natural para hierarquizar as produes do falante de uma sociedade, distribuindo-as, tambm naturalmente, entre as diferentes classes sociais e atribuindo como causa dos erros e faltas, o locutor. (SILVA, 2007, p. 157).

    Pensamos que seja produtivo relacionar a afirmao de Silva de Pagotto43 (2007, p. 36) que trata da universalizao do acesso escrita. Ele afirma que ao universalizar a lngua, submetem-se todos os falantes ao processo 43

    Emlio Pagotto um dos autores que se inscrevem na teoria Sociolingustica. No entanto, ao longo das discusses que prope, percebemos que o autor recorre a algumas noes da Anlise de Discurso que so produtivas sua reflexo. (2007)

  • 100

    normativo. Todos passam, ento, a ter que responder pela lngua que falam e pela lngua que escrevem. (PAGOTTO, 2007, p. 36). (grifos meus). E, como diz o autor, o preo da normatizao a excluso. (2007, p. 51).

    III.1.1.4 Discurso sobre a lngua: o desconforto do sujeito com a sua lngua materna e a possibilidade de enfeitar o modo de falar44

    Em relao pergunta sobre conhecer ou no algum que enfeita o jeito de falar e por qual motivo o fazem, temos uma quantidade de parfrases que nos remetem ao desejo do falante de ser superior em relao aos demais: por querer ser alguma coisa, para se exibir, para aparecer ou parecer melhor que os outros, para ser mais importante, para parecer que mais Inteligente, culto.

    Assim, pensamos que o desconforto com o prprio modo de falar e o desejo de ser ou ao menos parecer superior esto relacionados ao fato de no termos controle sobre os sentidos que (re)produzimos, sobre o modo como esses sentidos se constituem e produzem seus efeitos. Enfim, est ligado ao funcionamento ideolgico, numa sociedade capitalista como a nossa, em que os sentidos so divididos de forma a separar tambm os que falam melhor dos que falam pior, os que so mais importantes, mais cultos, mais inteligentes...

    Brasileiros que enfeitam o modo de falar

    Naturalidade/ Estado

    Idade Escolaridade Enunciados

    MA 80

    anos No-alfabet. Conheo. (risos) Ah, eu no sei no. Pra se

    exibir.

    TO 18

    anos Ensino mdio

    completo Sim. Na minha opinio, existem pessoas que gostam de aparecer.

    44

    A nosso ver, a discusso que trazemos nesse ponto est estreitamente ligada com a produo da hipercorreo, que abordamos no prximo captulo.

  • 101

    TO 77

    anos No-alfabet. Sim. Talvez por querer parecer melhor que os

    outros.

    MT 26

    anos Graduao em direito

    Sim. Existem pessoas porque tem muitas informaes, outras porque querem se exibir.

    Brasileiros que enfeitam o modo de falar (continuao) Naturalidade/

    Estado Idade Escolaridade Enunciados

    BA 76 anos

    No-alfabet.

    Sim, sim, existe. Conheo. pessoas da roa. Pessoas analfabetas como eu sou. Deve ser... eu, eu, no meu entendimento, acho que as pessoas, coitadas, que queria ser igual outras que estudou. Como no tive essas condies fica com vergonha de falar muito errado.

    MT 25 anos Ensino

    fundamental incompleto

    Conheo. uma mulher. Tem mais ou menos uns 45 anos. Quando t conversando na frente dos outros, porque ela quer ser alguma coisa, importante.

    GO 38 anos

    Graduao em histria

    Sim, conheo vrias. Talvez para mostrarem que assim sero tidos como Inteligentes, cultos que dominam a retrica, ou mesmo para ocultarem alguma deficincia. (grifos do entrevistado).

    MG 32

    anos

    Graduao e ps-

    graduao em geografia

    Sim. Geralmente as pessoas que no tem um bom vocabulrio e no conseguem se expressar na forma culta. Estas quando tentam falar difcil acaba falando feio. (grifos do entrevistado).

    MT 20 anos Ensino mdio completo

    Sim. So pessoas de classe social mais elevada, mais ricas, que estudam nas melhores escolas particulares quando falam com um garom, por exemplo, falam de qualquer forma, por se acharem alguma coisa.

    GO 24 anos Graduao em Zootecnia

    [...] Conheo, conheo. Depende do lugar e de quem t em volta. Procuro enfeitar, depende do lugar, das pessoas, eu procuro me policiar pra no puxar muito o caipirs. [...] Querer estar inserida no meio de pessoas que falam bem, ou ento para manter uma certa superioridade em relao a pessoas com menos formao, querer falar melhor para se sentir superior.

    MT

    12 anos Cursando o 5 ano

    [...] todo mundo enfeita. Todo mundo quando vai falar com o professor, a fica tentando falar melhor. [...] Porque s vezes tem vergonha, tem respeito por aquela pessoa.

    MT 13 Cursando o 7 Minha me. [risos] A minha me... Eu percebo. Quando a gente t s em casa, ela fala nis e

  • 102

    anos ano quando ela t com outras pessoa ela fala ns (risos). [...] Por formalidade. Pra mostrar que ... (risos) que fala bem a lngua.

    MT 11

    anos Cursando o 5

    ano

    Sim. Ela estuda na minha escola ela fala corretamente e eu vejo que ela fora o jeito de falar, ela fora a voz, ela pra pra pensar o jeito que ela vai por as palavra. [...] Eu acho que porque a me dela professora de portugus e puxa muito o p dela porque de vez em quando ela fala errado.

    Aqui, retomamos a noo de mecanismo de antecipao que, de acordo com Orlandi, a partir de Pcheux (1997), a capacidade que todo locutor tem de colocar-se na posio de seu interlocutor experimentando essa posio e antecipando-lhe a resposta (ORLANDI, 2006, p. 16). A nosso ver, a noo de antecipao possibilita um entendimento melhor a respeito da produo de efeitos de sentidos nas respostas s questes: voc enfeita o seu modo de falar? Conhece algum que faz isso?

    a) enfeito, sim! Quando estou dando aula, procuro as palavras certas pra fazer bonito. b) minha me. Quando a gente t s em casa, ela fala nis e quando ela t com outras pessoa ela fala ns. c) [...] depende do lugar e de quem t em volta, das pessoas, eu procuro me policiar pra no puxar muito o caipirs.

    Os enunciados citados apontam para a diviso entre o jeito de falar em pblico, e um outro de falar em casa, na privacidade. Ou seja, o imaginrio de lngua divide o mesmo sujeito entre o espao pblico e o privado. Lembrando que no o sujeito em si, mas uma posio sujeito constituda pelo imaginrio.

    O terceiro enunciado, alm de tambm remeter ao par pblico/privado, provoca o questionamento sobre o lugar do caipirs entre as lnguas faladas, e a decorrente censura que sofre o falante a ponto de ser necessrio um policiamento para no falar esse idioma.

    O motivo de as pessoas procurarem enfeitar o seu dizer est relacionado hierarquia entre os modos de falar. Considerando que h a

  • 103

    superioridade de algumas formas em relao a outras, no se deseja falar como a maioria. Ao contrrio, procura-se um destaque em relao s demais pessoas:

    a) Acho que as pessoas enfeitam o modo de falar apenas para destacar-se das outras. b) [...] manter uma certa superioridade em relao a pessoas com menos formao, querer falar melhor para se sentir superior. c) So pessoas de classe social mais elevada, mais ricas, que estudam nas melhores escolas particulares quando falam com um garom, por exemplo, falam de qualquer forma, por se acharem alguma coisa.

    Em uma sociedade em que a maioria das pessoas se constitui por uma memria de lngua que no legitimada como a lngua, a apropriao de determinadas marcas da lngua do Estado soa como pretenso de superioridade, como exibicionismo. Este efeito de sentidos de exibicionismo se produz quando as palavras de um outro so tomadas em contraposio lngua que o constitui. Dito de outro modo, esta recorrncia de sentidos nestes enunciados aponta para a hierarquizao posta na nossa sociedade que inclui o modo como as pessoas falam.

    Dentre os enunciados acima mencionados, chamamos a ateno tambm para uma afirmao da senhora de 76 anos, nascida na Bahia, quando se refere a outras pessoas que so analfabetas como ela. Esse modo de enunciar remete-nos reflexo de Silva:

    [...] o indivduo reconhecido e se reconhece como analfabeto atravs de uma identificao construda em uma exterioridade discursiva a memria do dizer da escrita que se projeta para dentro e para fora deste mesmo sujeito, configurando-o de forma a exclu-lo de uma sociedade que se organiza e legitima pela escrita. (SILVA, 2001, p.141).

    De acordo com essa senhora, h pessoas que procuram enfeitar o seu modo de falar, porque so umas coitadas, que queriam ser igual a outras que estudou. Como no tive essa condies fica com vergonha de falar muito errado. Interessante notar a falha que se instala no enunciado, a oscilao entre a

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    primeira pessoa do singular, no tive, no momento em que se refere a outros. possvel observar que h um movimento em que ela se distancia do grupo dos coitados que gostariam de ter estudado, na sequncia se inclui entre os que no tiveram condies de estudar, para depois se afastar novamente, referindo-se terceira pessoa.

    Chama-nos, tambm, a ateno o fato de a senhora ter mencionado o verbo ser: ser igual a outras que estudou. Ela no disse: falar como outras que estudou. Para ns, o verbo ser, neste enunciado, aponta para a indissociabilidade entre sujeito e linguagem.

    Outra questo que a leitura dos enunciados nos possibilitou foi notar o funcionamento da categoria genrica todo mundo utilizada por alguns entrevistados. Podemos dizer que, na perspectiva discursiva, esta uma regularidade enunciativa que indica o modo como funciona a ideologia com seus efeitos de inquestionabilidade. O efeito de evidncia de sentidos constitudos pela ideologia se materializa, em determinadas expresses. Em outros termos, o efeito de inquestionabilidade produzido pela ideologia se materializa na lngua, conforme possvel ser observado nos enunciados que mencionamos. No se tratam de expresses individuais, pois constituem prticas lingusticas de diferentes sujeitos. So regularidades enunciativas e esto relacionadas ao funcionamento do mecanismo ideolgico que apaga para o sujeito seu prprio gesto de interpretao. Lembrando que a interpretao um gesto do sujeito carregada de ideologia, que torna evidente o que na realidade se produz por complexas relaes entre sujeitos, lngua e histria, resultando em diferentes formaes discursivas. (ORLANDI, 2012, p. 153).

    Conforme Orlandi, ela [a ideologia] se define pelo fato de que o sentido tem uma direo historicamente determinada em um imaginrio social que poltico. (ibidem, p. 296). Ainda para enfatizar a respeito do funcionamento da ideologia, trazemos Paul Henry que explica:

    [...] Para a ideologia, a dimenso da histria que desaparece sob o sujeito falante constitudo em sujeito universal e, com ela, a

  • 105

    dimenso do discurso. O discurso do sujeito universal s pode ser um discurso fora da histria, um discurso sem histria, cuja verdade sempre j estabelecida e universal. No me parece necessrio redemonstrar que a prpria ideia de tal discurso s se sustenta com uma concepo profundamente idealista da verdade histrica. Lembrarei simplesmente que a projeo do sujeito universal sobre o sujeito falante implica essa concepo de verdade terica e oculta a dimenso do discurso na medida em que esta representa a dimenso da histria na linguagem. (HENRY, 1992, p. 198). (grifos nossos).

    Assim, apagando a historicidade que constitui os sujeitos e os sentidos, a ideologia que produz uma interpretao em uma dada direo, como se fosse a interpretao. No mesmo movimento em que ela produzida como a nica possvel, so anuladas outras possibilidades de dar sentido.

    Olhando para os enunciados, na busca de entender o modo como produzem sentido, podemos perceber a ideologia enquanto processo de instaurao de um imaginrio, no caso, o imaginrio de lngua. H marcas nos enunciados que nos permitem perceber a ideologia enquanto mecanismo que produz uma determinada interpretao que resulta em uma fixidez de sentidos s palavras, em um determinado contexto. Dizendo de outra forma, pelo funcionamento da ideologia que sentidos so eternizados, tidos como evidentes para todo mundo.

    III.1.2 O discurso sobre a lngua em comentrios num blog

    Para iniciar esta seo, ressaltamos que a publicao de um livro que aborda uma discusso sobre a no unidade da lngua e o respeito s pessoas que falam diferente da norma teve uma repercusso nacional.Trata-se do livro didtico de lngua portuguesa Por uma vida melhor, da coleo Viver, aprender, adotado pelo Ministrio da Educao (MEC) para a Educao de Jovens e Adultos (EJA).

    Este livro se fundamenta na concepo sociolingustica de linguagem e o acesso aos princpios desta teoria resultaram, em mais do que um incmodo, numa revolta de uma grande parcela da sociedade. Essa manifestao quase que

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    generalizada pode ser vista no espao dos comentrios em um dos blogs45 que traz a matria com o seguinte ttulo: Livro usado pelo MEC ensina aluno a falar errado.

    Recortamos alguns enunciados de uma srie de comentrios que consta no referido blog e chamamos a ateno para a enorme quantidade de postagens. Do dia 12/05/2011, quando a matria foi publicada, at o dia 11/08/2011 foram escritos 1176 comentrios.

    Para orientar a nossa reflexo sobre a produo de sentidos em relao publicao do livro, retomamos a afirmao de Orlandi: o jogo ideolgico est na dissimulao dos efeitos de sentido sob a forma de informao, de um sentido nico, e na iluso discursiva dos sujeitos de serem a origem de seus prprios discursos. (1996, p. 32).

    Assim, tomamos alguns destes enunciados com o intuito de chamar a ateno para o funcionamento da ideologia que, independentemente, do lugar em que vive o falante produz efeitos de sentidos com os quais ele se identifica ou no.

    III. 1.2.1 Discurso sobre a lngua: enunciados constitudos pela crtica aos sujeitos que (re)produzem sentidos que remetem multiplicidade lingustica

    Os enunciados abaixo ilustram a discursividade que se constitui por argumentos que sustentam um discurso em que os sentidos atribudos lngua de unicidade, homogeneidade, padronizao. Em outros termos, um discurso sobre a lngua com sentidos diferentes dos que fundamentam o livro piv da polmica.

    45Disponvel em http://colunistas.ig.com.br/poderonline/2011/05/12/livro-usado-pelo-mec-ensina-aluno-a-falar-errado/ (12/05/2011). Mantivemos a forma escrita dos comentrios.

  • 107

    Neste embate entre sujeitos e sentidos, entre comentaristas e pessoas envolvidas na produo e circulao do livro em pauta, prticas lingusticas diferentes so consideradas como uma inverso de valores, uma transformao de valores e referncias da nossa juventude, vai contra a lei natural das coisas. Nesse ponto, lembramos que observar a lngua produzindo sentidos possibilita-nos o acesso ao modo como a ideologia se apresenta na constituio dos sujeitos e dos sentidos. De acordo com Orlandi, a ideologia est em que o sujeito, na iluso de transparncia e sob o domnio da memria discursiva alguma coisa fala antes, em outro lugar e independentemente pensa que o sentido s pode ser aquele quando na verdade ele pode ser outro. (ORLANDI, 2012, p. 153).

    O efeito ideolgico produz a evidncia dos sentidos e o modo com que se configura a transparncia da linguagem, nos argumentos que sustentam a contraposio a uma forma outra de lngua: em qualquer lugar do mundo, desde que o mundo mundo; s tem uma norma que todos devem seguir. O sentido de lngua com o qual o sujeito se identifica s pode ser aquele, em todo o lugar, em todos os tempos, pois o sentido e no h outro possvel. Enfim, o efeito

    Discurso dogmtico da gramtica normativa Falar errado que em qualquer lugar do mundo, desde que o mundo mundo, sinnimo de falta de educao formal ou ignorncia, passa a ser incentivado pela entidade que deveria zelar pela nossa lngua! Onde vamos parar? A meu ver a lngua popular no passa de gria, a lngua portuguesa, s tem uma norma que todos devem seguir, escrever, falar, alternativas so uma deseducao. Esto derrubando todos os nveis de medidas e valores da cultura, comportamento, moral, respeito e tudo o mais, que deveriam reger a sociedade. Mas que barbaridade, agora por que as pessoas falam errado, as escolas no tem que ensinar o correto???? que inverso de valores esse??? Que pas esse???? Onde vamos parar? O que vamos deixar para as novas geraes? Pelo visto praticamente nada!!!! A inverso de valores inacreditvel. Como o MEC aprova uma literatura como essa? Pelo amor de Deus, o que isso????? Como bem comentado, o problema a qualidade do ensino no Brasil. Lngua viva? Daqui a pouco tempo estaremos numa torre de Babel, cada um falando e escrevendo como quer. No consigo me conformar com o que li nessa matria... Meu Deus, como esse Lula e sua herana ignorante transformaram os valores e referncias da nossa juventude! Lamentvel! Pena que no posso dizer outras palavras obsenas e que vo contra a lei. Bem ....................................... Esse livro j um ato obseno e vai contra a lei natural das coisas. Valha-me Deus!

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    ideolgico produz a naturalizao dos sentidos, des-historicizando-os. Para Orlandi, enunciados como estes tm

    [...] a fora do funcionamento da memria que, por no se mostrar como memria, se alarga, funcionando por um efeito de no atestao, efeito ideolgico que d ao dizer uma realidade irrecusvel, o dizer sempre l, que no se alinha na necessidade da prova, que no se mostra como interpretao, mas como verdade imemorial. (ORLANDI, 2012, p.175). (grifos nossos).

    Podemos dizer que nas prticas de linguagem que predominam em nossa sociedade (re)produz-se um sentido de lngua sedimentado ao longo da histria das ideias lingusticas. Ou melhor, nos enunciados que tomamos para anlise, observamos a trajetria de sentidos de lngua imaginria construda scio-historicamente.

    Desse modo, prticas lingusticas so constitudas pela censura, pela negao a quaisquer possibilidades de outras formas de lngua que no seja a nacional. Em outros termos, h uma luta ideolgica entre a manuteno do ponto de vista em relao lngua cristalizada e outra possibilidade de perspectiva.

    A nosso ver, a relao de oposio entre sentidos de lngua e sujeitos que neles se inscrevem pode ser melhor compreendida se mobilizarmos o funcionamento da inter-incompreenso. Noo esta que E. Orlandi, a partir de Maingueneau (1984), define como sendo necessria para a constituio dos discursos em suas distncias relativas s diferentes formaes discursivas. (ORLANDI, 1990, p. 237).

    A contraposio entre sentidos de lngua e de sujeitos que (re)produzem estes sentidos pode ser observada na argumentao construda de variados modos, inclusive, na acusao de assassinato da lngua. Trazemos alguns enunciados enquanto parfrases desse gesto de interpretao:

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    Imagem de lngua externa ao sujeito: assassinato da lngua Isso um duplo assassinato. Esto assassinando a Lngua Portuguesa e as crianas. Como esses jovens chegaro ao ensino mdio sem noo nenhuma da norma culta ??? Tudo para legitimar a conduta do nosso dignssimo ex presidente Lula, que sempre falou nis vai, nis vem e nis vorta e sempre assassinou a gramtica. Continuem votando no Lula (analfabeto) e sua turma de imbecis... um assassinato da lngua portuguesa. No faltava mais nada.

    Vale notar que h um discurso sobre a lngua que se constitui pelo imaginrio de lngua externa, apartada do sujeito. As formulaes que circulam em nossa sociedade e os sentidos inscritos nessa posio sujeito se constroem em uma argumentao sustentada no discurso autoritrio da moral que nega espao para outras discursividades.

    Conforme Orlandi (1990, p. 159) os discursos funcionam heterogeneamente, ou seja, um discurso traz em si a sua relao com vrios outros, que contribuem igualmente para os seus efeitos de sentido.. E esse funcionamento passvel de ser notado, a partir da anlise de nosso material. H um discurso social sobre a lngua que afetado por vrios outros discursos. Em outros termos, o discurso sobre a lngua que constitui os enunciados trabalhados atravessado por outros discursos, como o da violncia, o religioso, da economia capitalista, discurso homofbico, o da lingustica, o discurso irnico.

    a) Discurso sobre a lngua atravessado pelo discurso da violncia

    Como dissemos, h um discurso que se constitui pelo desrespeito e por propostas de prticas de violncia em relao a sujeitos que se inscrevem em outros sentidos de lngua que no os predominantes. Isso tambm podemos notar nos enunciados que trazemos a seguir, no sem antes nos referirmos contradio entre a advertncia46 que consta junto ao local destinado escrita dos comentrios e os comentrios em si:

    46

    http://inforum.insite.com.br/9134/3355146.html -- Ateno: A prtica, induo ou incitao de discriminao ou preconceito de raa, cor, etnia, religio ou procedncia nacional, por meio da Internet, constitui crime punido com recluso de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, conforme

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    ANTES DE ESCREVER SEU COMENTRIO, LEMBRE-SE: o iG no publica comentrios ofensivos, obscenos, que vo contra a lei, que no tenham o remetente identificado ou que no tenham relao com o contedo comentado. D sua opinio com responsabilidade! (grifos do autor do blog).

    Para ns, esta advertncia pro forma, medida que no levada a srio e o espao para opinar funciona como um lugar em que o desrespeito se textualiza abertamente como notamos em vrios comentrios. A nosso ver, no h censura em relao s formulaes, s vezes, bastante cruis com que se opem possibilidade de se (re)produzir outros discursos sobre a lngua, por exemplo o que traz tona a noo de lngua fluida.

    Nessa direo de sentidos, possvel afirmar que o responsvel pelo blog tambm se inscreve na mesma discursividade da maioria dos comentaristas.

    O antagonismo entre sujeitos e sentidos se estende aos falantes que no se enquadram na forma de lngua posta como nacional e isso se manifesta na materialidade lingustica, como observamos nos enunciados abaixo:

    a) Discurso sobre a lngua constituido pelo discurso da violncia Deixem o povo mais burro!!! isso que todos os governantes querem. Lngua popular e lngua culta... Ora vo plantar batatas seus cretinos. isso, o Brasil o pas da imbecilidade, eta povo bruto do caralho.

    xingamentos, ofensas

    Vai tudu tom no kuw, seu cambada de fio de pullllta. Por io que us gringu t tudo vindo aqui e virando ricu. Esse MEC fio de uma pullllta num pode faz iu com noas criana. Essas pessoas esto cometendo um crime mesmo, deveriam estar presas como bandidos comuns.

    desejo de punio

    Pessoalmente acho que esse ministro Haddad deveria ir para a priso, para sentir (literalmente) a norma popular (sexual) que prevalece por l...

    determina a Lei 7.716/89 em seu artigo 20, 2. Denuncie aqui sites e/ou mensagens de fruns hospedados na Insite contendo qualquer violao.

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    ISSO UM CRIME, E POR TRATAR-SE DE CRIME, A POLCIA O CAMINHO, COM A PRISO DOS RESPONSVEIS, INCLUSIVE. [...] Nem nos meus piores pesadelos poderia ver os meus pais nessa situao, nas mos de verdadeiros bandidos. Como no se trata de uma pegadinha, a nao precisa tomar conhecimento amplo sobre o fato, os responsveis chamados a dar explicaes, serem levados s barras dos tribunais e responsabilizados. A sociedade, como um todo tem o direito de saber e de se manifestar. ESSE CRIME NO PODE PROSPERAR E FICAR IMPUNE. SOCIEDADE, REAJA. Isso caso de Polcia! Masmorra para os AUTORES, irresponsveis.

    proposta de extermnio Onde est a Academia Brasileira de Letras que no pede o descredenciamento destes impostores e pretensos professores que querem enchovalhar nosso idioma; digo de minha parte que deveriam ser executados em praa pblica juntamente com quem autorizar tamanho disparate.[...] Fizeram isso com homens srios como Tiradentes, Castelo Branco, Juscelino Kubtscheck, e outros. Por que no fazer isso com esses desequilibrados mentais que vem das trevas tentando acabar com o que resta de bom na nossa cultura que a lngua bem falada e entendida?

    A inscrio desses sujeitos em um discurso sobre a lngua possibilita que proponham, inclusive, a eliminao de falantes como algo natural.

    Nessa perspectiva, preciso se levar em conta que o desejo de extermnio desses falantes de natureza ideolgica, histrico-socialmente constitudo. No nasce nesses sujeitos, eles nem ao menos tm conscincia de como esse desejo homicida vem constitu-los e, quando enunciam trazem tona sentidos que foram construdos ao longo da histria, na iluso de serem fonte e origem desses sentidos.

    b) Discurso sobre a lngua constitudo pelo discurso religioso

    Na posio sujeito em que se nega a possibilidade de uma simetria entre as diferentes formas de dizer, constri-se uma argumentao em que so bastante recorrentes as marcas que remetem ao discurso religioso.

    Como sabemos o discurso religioso produz um efeito de inquestionabilidade que tem sustentado, ao longo da histria, outras formas de discurso preconceituoso, no s o lingustico. Alguns enunciados que trazem o discurso sobre a lngua sustentados pelo discurso religioso constituem a

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    argumentao em que a figura de Deus mobilizada, assim como outras formas lingusticas que, de algum modo, remetem a essa discursividade:

    b) Discurso sobre a lngua constituido pelo discurso religioso Definitivamente, isto faz parte dos sinais dos tempos. como dizem os polticos: a voz do povo a voz de Deus?!?!?!? Bem que disseram que o mundo ia acabar em 2011. S pode ser sinal do final dos tempos. [... ] e os capeta vo gargaiar e infernizar as almas desses autor quando eles morr, pois ficaro sozinhos com o errado, mas defendem como se certo fosse. Que pena que a Academia Brasileira de Letras seja omissa e inerte neste tema. Que pena que todas as igrejas tambm o so, neste assunto. No incio veio o verbo. J pensou se Deus dissesse: Crii o universo? Os planetas seriam ovais, que nem a viso dos descrentes. A palavra bonita, quando bem falada divina. Mas quando desrespeitada, infernal. Tem alguma coisa errada nessa matria. Tem que ter... pelo amor de Deus. TENHA! MEU DEUS DO CU. E eu que me orgulhava disso, fazer o qu.

    A possibilidade de uma mudana nos sentidos de lngua j cristalizados, uma revoluo nos sentidos (im)postos historicamente vista como algo extremamente negativo, ameaador, ao mesmo tempo que remete a pecado:

    Neste momento j consabido que o MEC aprovou o livro Por uma Vida Melhor, da professora Helosa Ramos, que defende a ideia revolucionria de ser fisicamente possvel falar ns pega o peixe, sem punio divina imediata com um raio nos fundilhos.

    c) Discurso sobre a lngua constitudo pelo discurso da economia capitalista

    Continuando a nossa reflexo, trazemos alguns enunciados que nos auxiliam no processo de compreenso do discurso sobre a lngua numa sociedade capitalista como a nossa. O imaginrio de lngua correta como essencial para ingressar no mercado de trabalho.

    c) Discurso sobre a lngua constitudo pelo discurso da economia capitalista [...] Isso um achincalhe no s s pessoas que se esforam para falar e escrever corretamente, como tambm um tapa na cara dos pais que se matam de trabalhar para dar aos filhos uma chance de estudar e ser algum na vida. A gente vamos continuar jogando um bando de ignorantes no mercado do trabalho. Pobres dessas crianas, no tero nenhuma condio de concorrer com as outras crianas que estudam em escolas particulares; no mercado de trabalho sero sempre preteridos para os cargos

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    que exijam maior saber. Em relao a argumentos que constituem os enunciados acima e que

    nos remetem forma-sujeito capitalista, interessante pensar com Orlandi (2007) o modo de submisso do sujeito na forma mesma como o Estado o individualiza:

    [...] a questo da lngua nacional uma questo que faz parte de qualquer Estado. Ter um Estado soberano poder representar na variedade concreta da lngua, uma unidade imaginria que d identidade aos sujeitos desse Estado. E em se tratando de formas de controle da subjetividade, a normalizao da linguagem, com toda a violncia contra o imaginrio que ela implica, tem um papel crucial. (ORLANDI, 2007, p. 13-14). (grifos nossos).

    interessante notar tambm que, somada crtica ao Ministrio de Educao por haver publicado o livro didtico citado, h tambm a crtica relacionada entrega de material didtico que discute o respeito diversidade sexual.

    d) Discurso sobre a lngua constitudo pelo discurso homofbico

    Os enunciados citados, a seguir, apresentam um cruzamento com o discurso homofbico. Dito de outra forma, estas construes se constituem tanto pelo preconceito lingustico como pelo preconceito contra a homossexualidade. Este fato aponta para o desrespeito dignidade humana como um todo que, conforme Orlandi (2012, p. 165), constitui a estrutura e o funcionamento da sociedade burguesa. Enfatizamos que questo social questo tica e poltica.

    d) Discurso sobre a lngua constitudo pelo discurso homofbico [...] No se assustem! Se o Lula teve a pachorra de ligar para um casal de homossexuais para parabeniz-los, s falta agora a liberao da pedofilia no pas. o PT tornando o povo brasileiro mais burro. Depois do casamento gay, mais uma grande contribuio da presidente Dilma. Sinceramente. Estranho tamanha surpresa. E o kit gay, timo? A falta de merenda nas escolas normal? [...] Deus me livre!

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    Para ns, o modo recorrente como os comentrios/crticas ao livro do MEC so formulados remete ao que afirma Orlandi (2012, p. 67): estruturalmente, um mesmo texto falado por muitas vozes47. Notamos que h um discurso recorrente que podemos chamar de discurso social, o discurso do consenso, em que os mesmos sentidos ressoam em diferentes construes enunciativas. So vozes mltiplas que soam de forma unssona. No caso de nossa anlise, so sequncias discursivas que so produzidas por diferentes sujeitos em que possvel notar a insistncia em um sentido de lngua enquanto hierarquizao de uma forma lingustica outra.

    e) O discurso sobre a lngua atravessado pelo discurso da lingustica

    Do mesmo modo que citamos uma srie de comentrios/enunciados que apontam para o discurso sobre a lngua e o cruzamento com outros discursos: religioso, homofbico, da economia capitalista, irnico, trazemos tambm, neste espao, algumas sequncias discursivas atravessadas pelo discurso da lingustica. Ou seja, pensamos que h outra discursividade, sentidos outros que esto sendo atribudos para a notcia O livro do MEC ensina a falar errado. Refletimos, a partir de Herbert (1995, p.66), que o processo de constituio dos sentidos dos enunciados citados remete a uma srie de efeitos de conhecimento de tipo cientfico. (grifos do autor).

    e) Discurso sobre a lngua atravessado pelo discurso da lingustica No vejo nada grave nas orientaes do autor. Ele est falando do uso da lngua, que um direito de todos. claro que juntamente com essas orientaes, o aluno deve ser esclarecido quanto ao uso adequado ou inadequado das mesmas. Linguisticamente, est tudo correto. Calma, leitora Marim, tem coisa errada sim. O que est errado a maneira como a reportagem retratou o assunto, desvirtuando os estudos de linguagem, para criar polmica sobre um assunto muito discutido hoje em Lingustica. A reportagem deveria deixar claro o que so os estudos de variao lingustica. Galera eu estudo lingustica e entendo perfeitamente a proposta do livro. Existem vrios tipos de linguagem entre elas a formal e a informal. [...] negar a existncia de uma variao ridculo! Creio que toda essa polmica criada em torno do livro de Helosa Ramos, deixa clara a diviso

    47

    A autora se refere a esse processo como inverso polifonia, em que h diferentes vozes no mesmo texto (ORLANDI, 2012, p. 67).

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    social existente em nosso pas, e as diferenas gritantes entre o povo e a elite. No fundo, tudo gira em torno da poltica, do jogo de interesses, em que a linguagem popular falada pelos cidados e menosprezada agora torna-se lngua universal apenas em tempos de eleio.

    Embora dentre o universo dos enunciados produzidos, aqueles que apresentam um sentido diferente para lngua sejam bastante reduzidos, importante mostrar que nas diferentes prticas lingusticas os sentidos no se do em bloco, visto que so plurais os sentidos que constituem a nossa sociedade. Pois, como diz Orlandi, onde h interpretaes, entram distintas verses. (ORLANDI, 2012, p. 15). Da a possibilidade de haver interpretaes constitudas pela diferena de sentidos em relao ao livro publicado pelo MEC.

    Assim, o discurso da lingustica disponibiliza argumentos em torno do respeito diferena, mantendo categorias, a nosso ver, estanques, como as oposies entre adequado/inadequado, formal/informal, povo/elite, popular/universal, entre outras. Muitas vezes, pode haver um cruzamento destas noes no discurso produzido por um sujeito numa posio em que se inscreve em sentidos outros que circulam em nossa sociedade.

    Para fechar esta seo compreendendo melhor o processo que constitui os sentidos de lngua (e de sujeitos) postos nos enunciados analisados, tomamos a reflexo de Zoppi-Fontana:

    Embora a indeterminao dos processos histricos seja constitutiva, abrindo a histria para um campo no fechado nem previamente definido de possibilidades de ao, a prpria ao processo, prtica, e por isso afetada pelas relaes de poder, pelo funcionamento das instituies e pelas contradies que conformam toda formao social. Ou seja, no se nega as diversas ordens de determinao que surgem como efeito dos processos histricos, mas se subsume sua necessidade contingncia de sua origem. (ZOPPI-FONTANA, 2011, p.73).

    f) O discurso irnico como sustentao de um discurso sobre a lngua A nosso ver, convm chamar a ateno para enunciados marcados

    pela ironia, por duas razes: primeiro pelas inmeras vezes que aparecem entre

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    os demais comentrios e, segundo, porque h profunda semelhana nas marcas lingusticas que constituem a ironia.

    f) Discurso sobre a lngua constitudo pelo discurso irnico E assim nis vai a merda. Ou seria: assim ns vamos merda? Ostimu comemtariu!!! Num sabia qui quem iscreveu esse livru foi o seu Creisson? E si vc me permiti acrescentar, os brasileiros vaum at melhorar sua fomasso nas faculdade. Acho que escrevi essa palavra errado, mais no emporta. Sem probrema. Oje quem termina a quinta sria sai sem saber ler como mostrou a Grobo. Aki no nosso pas a chente faz as coisa pro povo se vir. que qui io? se meus presta o vestibula e na ora da redasso eles iscreve assim vai aprov eles? Pur favor me respondi a essa pergunta. Huauauauaua Expetacular! Agora ns no precisa mais se preocup cum essa chatura de norma culta. O prssimo pao a abolissaum das regra ortogrfica, afinal a lngua t viva e vc fala i iscreve u q kiser.[...] fico feliz de ver q o dinhero dos meus imposto ta sustentando tanta gente competenti.

    Vrios comentaristas do referido blog para criticarem o livro adotado pelo MEC recorrem a determinadas marcas lingusticas marginalizadas, indicando por meio de seus enunciados escritos aquilo que condenado no discurso da escrita e no discurso da oralidade, aquilo que tratado como erro.

    Nos enunciados acima mencionados, h traos de oralidade que no se restringem a expresses de pessoas desescolarizadas. Trazem tona a relao entre oralidade e escrita sem levar em conta que esto se referindo a um modo de falar que, atualmente, bastante comum entre os brasileiros, independentemente das condies de produo do enunciado. Por exemplo, palavras como dinheru, iscreve, qui, competenti, livru, so citadas,entre outras. Em meio a esses traos, acrescentam formas postas como incorretas: rotacismo (probrema), ditongao (nis), forma de concordncia verbal (ns vai), falhas de ortografia (expetacular, prssimo, io, formasso, etc).

    A nosso ver, para produzirem sentidos relacionados publicao do livro didtico, estendendo a crtica aos autores do mesmo, os sujeitos trazem em seus enunciados uma forma de lngua que os prprios sujeitos censuram, configurando um processo de significao que se constitui em um discurso irnico. Para ns, eles recorrem ironia como uma estratgia, um recurso para resistir a outros sentidos de lngua e de relao entre lngua/sujeitos. Dito isso,

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    fundamental acrescentar que no tratamos de um sujeito intencional e, por isso, como diz Orlandi, a ironia no depende da inteno do (sujeito) locutor ou da sagacidade do (sujeito) interlocutor. Mesmo enunciados no intencionalmente irnicos podem s-los na prtica discursiva. (ORLANDI, 2012, p. 40).

    Nessa perspectiva, tomamos outro ponto da reflexo de Orlandi para compreender melhor o funcionamento da ironia e o que acontece para o sujeito falante:

    [...] a ironia pode ter finalidades mais ou menos nobres. O sujeito falante pode usar a ironia para romper o estabelecido, ou para evitar que isso acontea; para dar a palavra a outrem ou para impedi-lo de falar etc. Mas qualquer que seja sua finalidade prtica, ele estar operando, no nvel do funcionamento da linguagem e de seus processos de significao, com a ruptura e a dissonncia. (ORLANDI, 2012, p. 37). (grifos nossos).

    Entre as possibilidades de produo de sentidos da ironia pensados pela autora, os comentrios irnicos que tratamos neste espao so produzidos para evitar que se rompa o estabelecido. Isto , esses enunciados produzem um efeito de sentido que fortalece o que ao longo da histria vem sendo dito: h uma forma de lngua que todos devem falar em contraposio outra que errada. Em relao a essa questo, Orlandi argumenta que:

    [...] na ironia, joga-se com a relao entre o estado de mundo tal como ele se apresenta j cristalizado os discursos institudos, o senso comum e outros estados de mundo. Essa uma caracterstica bsica da ironia. No se trata, pois, de um mero jogo de oposio, ou seja, de se dizer o contrrio do que se pensa. A diferena vai muito mais alm e significa multiplamente. Ao considerarmos a ironia como tipo de discurso, negamos que ela seja um desvio: ela o prprio lugar do estabelecimento de um processo de significao que chamamos irnico. Esse lugar [...] mostra, com sua forma prpria e especfica, a relao entre o mesmo e o diferente, o fixado e o possvel. (ORLANDI, 2012, p. 26).

    Ainda para entender o funcionamento do discurso irnico necessrio lembrar que a ironia se d pelo estabelecimento de uma regio significante, de

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    um espao de linguagem em que no s simulaes, mas tambm aluses e mesmo rupturas de significao podem ser desenvolvidas. (grifos nossos). Assim podemos dizer que o sujeito produz a sua crtica censurando as diferentes possibilidades de formas de lngua. Para isso, recorre a uma forma de escrita e de oralidade que ele mesmo critica, produzindo determinados efeitos de sentido.

    III.I.2.2 Oscilao entre sentidos de lngua emerge nos comentrios do blog

    Aqui trazemos comentrios do referido blog que tambm se constituem pela oscilao entre sentidos. Pensamos ser produtivo trazer alguns enunciados que em sua materialidade apontam diferentes sentidos quando o sujeito se posiciona em relao polmica sobre o livro didtico publicado pelo MEC.

    Se analisssemos de outra perspectiva que no a discursiva, poderamos considerar tal deslizamento como contraditrio. No entanto, podemos compreend-lo quando levamos em conta que h memrias distintas que sustentam os sentidos de lngua que circulam em nossa sociedade.

    Na superfcie das sequncias discursivas, h formas lingusticas que so recorrentes, entre elas alguns conectivos ou expresses articuladoras que indicam contraposio entre argumentos: mas, porm, por outro lado, em contrapartida. Outro recurso utilizado a prpria pontuao que demarcam a alternncia entre sentidos.

    Para esta reflexo, tomamos duas sequncias discursivas em que podemos observar como o sujeito lida com os discursos sobre a lngua cruzando o discurso da gramtica com o da lingustica.

    Enunciados oscilantes entre o discurso da lingustica e o da gramtica a) Engraado como as pessoas no questionam o que lem. Quem garante que, de fato, tal livro didtico est ensinando a falar errado? A norma culta existe e deve ser ensinada, sempre. Porm, do ponto de vista da lingustica no h certo e errado. E mais: a linguagem coloquial, que falamos no dia a dia, nossa lngua viva. A gramtica a lngua morta. Deve ser ensinada? Sim! Deve ser ensinada instrumentalmente, como uma ferramenta de acesso cultura ou mesmo de ascenso social. Mas, por favor, no pensem que a norma culta mais correta que a lngua que falamos despreocupados com as regras. Associar a gramtica correo um atestado de ignorncia.

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    Discurso da lingustica Discurso da Gramtica

    Engraado como as pessoas no questionam o que lem. Quem garante que, de fato, tal livro didtico est ensinando a falar errado?

    A norma culta existe e deve ser ensinada, sempre.

    Porm, do ponto de vista da lingustica no h certo e errado. E mais: a linguagem coloquial, que falamos no dia a dia, nossa lngua viva. A gramtica a lngua morta.

    Deve ser ensinada? Sim! Deve ser ensinada instrumentalmente, como uma ferramenta de acesso cultura ou mesmo de ascenso social.

    Mas, por favor, no pensem que a norma culta mais correta que a lngua que falamos despreocupados com as regras. Associar a gramtica correo um atestado de ignorncia.

    b) ACHO A NORMA CULTA DA LNGUA PORTUGUESA MUITO BONITA, PORQUE SOA MELHOR OUVI-LA. MAS ACHO TAMBM QUE, POR OUTRO LADO, MUITOS NO TM A OPORTUNIDADE DE APREND-LA. ENTO, A UTILIZAO DA LNGUA POPULAR PODE SIM SER CONSIDERADA, CLARO AT CERTO PONTO. EXISTEM PALAVRAS, OU AT MESMO FRASES, QUE SO ABSURDAS, DURAS DE SE OUVIR, MAS, EM CONTRAPARTIDA, EXISTEM AQUELAS QUE PODEM SER ACEITAS SEM PROBLEMAS48.

    Discurso da lingustica Discurso da Gramtica

    MAS ACHO TAMBM QUE, POR OUTRO LADO, MUITOS NO TM A OPORTUNIDADE DE APREND-LA. ENTO, A UTILIZAO DA LNGUA POPULAR PODE SIM SER CONSIDERADA

    ACHO A NORMA CULTA DA LNGUA PORTUGUESA MUITO BONITA, PORQUE SOA MELHOR OUVI-LA.

    MAS, EM CONTRAPARTIDA, EXISTEM AQUELAS QUE PODEM SER ACEITAS SEM PROBLEMAS

    CLARO AT CERTO PONTO. EXISTEM PALAVRAS, OU AT MESMO FRASES, QUE SO ABSURDAS, DURAS DE SE OUVIR

    A oscilao est marcada na lngua pela presena recorrente a operadores argumentativos como mas, porm, em contrapartida, por outro lado.

    No modo como o sujeito diz sobre a lngua, possvel se perceber que os sujeitos so afetados tanto pelo discurso da gramtica quanto pelo da lingustica e se movimentam entre diferentes sentidos. A disperso do sujeito nos enunciados uma disperso de discursos, de recortes do interdiscurso. Chamamos a ateno para a primeira sequncia discursiva em que aparece o verbo dever que aponta para o discurso autoritrio, como censura ou negao de um espao para outra possibilidade de interpretao. 48

    Reproduzimos o comentrio em letra caixa alta como consta no blog.

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    III. 4 Discurso sobre a lngua em verso e prosa

    O que me move a dimenso divina da palavra, que no apenas nomeia mas que inventa e produz encantamento. (COUTO, 2010, p. 14).

    Para continuar a nossa reflexo, no intuito de compreender os sentidos que se constituem no discurso sobre a lngua, optamos por trabalhar com enunciados que, direta ou indiretamente, remetem a esse discurso.

    Importa dizer que no tomamos, aqui, sequncias produzidas por gramticos, linguistas, fillogos, lexicgrafos ou quaisquer outros que tomam a lngua enquanto objeto de estudo. Neste espao, ocupamo-nos, sim, de observar o modo que alguns poetas, escritores, msicos compem textos em que colocam sentidos de lngua em circulao, seja em verso ou prosa.

    Nesse espao, lembramos que a produo desses textos remete-nos Orlandi quando afirma que a constituio que determina a formulao, pois s podemos dizer (formular) se nos colocamos na perspectiva do dizvel (interdiscurso, memria). Isso significa que todo dizer se encontra em confluncia dos dois eixos, o da memria (constituio) e o da atualidade (formulao). (ORLANDI, 2001, p. 33).

    Notamos que, nos sentidos produzidos pelos artistas da palavra que citamos, h, por um lado, textos constitudos por imagens de lngua que reforam o que j est bastante solidificado em nossa sociedade. Por outro lado, h textos que apontam para outros sentidos de lngua e, consequentemente, para uma possibilidade de outra discursividade sobre a lngua que no seja a que, atualmente, predominante.

    Assim, selecionamos enunciados que remetem s noes de lngua imaginria e de lngua fluida49, sendo que a primeira constitui-se por formulaes que atualizam sentidos inscritos numa memria de lngua una, homognea. A ltima traz sentidos de uma lngua corrente, em movimento. Melhor dizendo, para 49

    Essas noes so retomadas no IV Captulo, visto que, a nosso ver, esto intimamente ligadas produo da hipercorreo.

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    compreender melhor a constituio do discurso sobre a lngua preciso pensar a projeo da lngua imaginria (a que tem como ponto de referncia a sistematicidade, a escrita, a gramtica) sobre a lngua fluida (a que se faz no movimento, na prtica, na mudana contnua). (ORLANDI, 1990, p. 159).

    Para a nossa reflexo, tomamos alguns enunciados que tambm constituem o corpus de nossa pesquisa: sequncias discursivas de letras de msica, de poemas, de excertos de textos em prosa, entre outros exemplos que, direta ou indireta, remetem a um discurso sobre a lngua.

    III.4.1 Sentidos que remetem noo de lngua imaginria

    Aqui, tomamos enunciados de autores que remetem ao sentido de hierarquizao entre formas de lngua. Nesse discurso, prioriza-se um modo de falar que considerado como padro, em detrimento de outros. Enfim, nessa regionalizao de sentidos, legitima-se a atribuio de juzos de valor entre formas lingusticas com a ancoragem em aspectos morais, estticos, econmicos, entre outros, naturalizando-se expresses para qualificar diferentes formas de expresso lingustica: certas/erradas, boas/ruins, bonitas/feias, pobres/ ricas ou rebuscadas.

    Para ilustrar, trazemos algumas estrofes de msicas bastante conhecidas, que mencionam a noo de lngua que se constitui na relao do eu-potico com uma forma de portugus marginalizado, considerado ruim, repleto de erros, o que no considerado lngua. O poeta aponta para o imaginrio de lngua que sustenta do discurso da gramtica normativa:

    [...] Eu sei que um outro Deve estar falando Ao seu ouvido Palavras de amor Como eu falei Mas eu duvido! Duvido que ele tenha Tanto amor E at os erros Do meu portugus ruim

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    E nessa hora voc vai Lembrar de mim (Detalhes: Roberto Carlos)

    [...] escrevo-te estas mal traadas linhas, meu amor, Porque veio a saudade visitar meu corao Espero que desculpe os meus errinhos, por favor, Nas frases desta carta que uma prova de afeio [...]Escrevo-te Estas mal traadas linhas Espero que desculpe Os meus erros, por favor Oh! Oh! Meu amor, meu amor! Oh! Oh! Oh! Oh! (A carta: Erasmo Carlos).(grifos nossos).

    Ainda tomando para a nossa reflexo as formulaes poticas acima, possvel dizer que o sujeito-poeta aponta para uma possibilidade de pensar o funcionamento social da lngua, mas que no corresponde ao modo em que se inscreve na lngua. Ou seja, ele fala em seus erros de portugus ruim, no entanto recorre memria da lngua oficial, da lngua considerada correta.

    Levando em conta que o modo como se diz o que importa para o analista de discurso, observamos que h uma distino na forma de representar esteticamente a relao com a lngua. Nesse sentido, diferentemente dos poetas acima citados, Xangai e Patativa do Assar apontam para uma prtica da lngua de quem no sabe o portugueis recorrendo a esse uso. Assim, podemos observar o uso e a meno funcionando simultaneamente.

    A diviso entre lngua e falantes representada esteticamente pelos sujeitos-poeta na maneira como dizem sobre a lngua que lhes constitui, colocando em funcionamento, nesses poemas, a metalinguagem. Trazem tona um imaginrio de lngua que possibilita falar de um portugus que no portugus:

    [...] Andam falando que nis caipora Qui nis tem qui aprender ingrs Qui nis tem que faz xuxxu fora Deixe de bestage

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    Nis nem sabe o portugueis Nis somo caipira pop Nis entra na chuva e nem moia Meu ailovi Nis jeca mais joia (Nis Jeca mais joia: Xangai)

    Patativa do Assar assinala em seus versos a relao entre a escolarizao e o bem falar em contraposio falta de escolarizao e, nesse ponto de vista, a consequente falta de uma lngua, a lngua. O poeta tambm pede licena para se expressar e, ao fazer isso, remete o fato de, historicamente, ser negado o direito dos no letrados manifestao lingustica:

    Poetas niversitro Poetas de Cademia De rico vocabularo Cheio de mitologia; Se a gente canta o que pensa, Eu quero pedir licena, Pois mesmo sem portugus [...] Sou um caboco rocro, Sem letra e sem instruo [...] (ASSAR, 2001, p. 17 ) (grifos meus)

    Os sentidos inscritos nos versos de Patativa de Assar remetem-nos ao fato de aqueles que no tm uma tradio da escrita na posio social em que se encontram esto no lugar de quem no sabe falar, no tem portugus, ou tem um portugus ruim. A nosso ver, essa argumentao est relacionada ao funcionamento social da escrita e o que acontece a esse instrumento, em termos de valor social e poltico, e com o sujeito que dele se apropria ou no [...] (SILVA, 1999, p. 29). Ainda conforme Silva:

    [...] Ser letrado sempre foi uma marca de diferena, que se manifesta de distintas formas nas sociedades. E esta marca tem histria e faz histria. Em meados do sculo XVIII era a possibilidade de ascenso e de destaque social e poltico.[...] Afinal o acesso s letras ao estudo era privilgio de pouqussimos representantes da classe proletria e dos cidados livres. (SILVA, 1998, p. 99).

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    Da a possibilidade de se formular um pedido de desculpas por no ser letrado, conforme Patativa do Assar coloca em seu poema.

    III. 4. 2 Discurso sobre a lngua: outras possibilidades de sentidos

    A lngua minha Ptria e eu no tenho Ptria: tenho mtria

    eu quero frtria. (Caetano Veloso, 1984)

    Respeito as oralidades. Eu escrevo o rumor das palavras.

    No sou sandeu de gramticas. (Manoel de Barros, 2009)

    Neste espao, em que procuramos refletir sobre sentidos outros para a lngua, partimos dos versos do poeta Caetano Veloso em que chama a ateno para o sentido de uma relao em que estabelecida uma hierarquizao entre lngua e sujeito. Esse enunciado remete ao desejo (inconsciente) do poeta de uma relao lngua/sujeito em que no haja uma sobreposio da primeira em relao ao segundo.

    Alm de Caetano, citamos M. de Barros que menciona em seus versos a pluralidade de modos de dizer, sem determinao de qual seria a ideal. Ao fazer isso, remete noo de lngua fluida, contrapondo-se lngua imaginria que constitui as gramticas.

    Na mesma direo de sentidos, trazemos a seguir um excerto de Guimares Rosa50, em que, alm de se referir ao preconceito lingustico, enfatiza o modo como trata da relao com a lngua: no como a me severa, mas com a bela amante e companheira:

    Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia j tiveram existido septos, limitaes, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendncias, escolas

    50

    Guimares Rosa consagrou-se enquanto escritor brasileiro, justamente, por se inscrever em uma posio diferente de outros autores. Rosa trabalhava com a lngua de um modo diferenciado, compondo a fala de seus personagens com marcas de um portugus vivo, livre das amarras da academia e rico em neologismos.

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    literrias, doutrinas, conceitos, atitudes e tradies no tempo e no espao . [...] De certo que eu amava a lngua. Apenas, no a amo como me severa, mas como bela amante e companheira. (ROSA, 2001, p. 4).

    Chamamos a ateno para a existncia de dois sentidos de lngua nas sequncias produzidas por Caetano Veloso e Guimares Rosa. Sentido de uma relao hierarquizada e sentido de uma relao horizontal. Enquanto na sequncia produzida pelo primeiro est subentendida a oposio, na sequncia produzida por Guimares Rosa existe um mas para dividir os dois sentidos.

    Pensando a lngua na sua unidade imaginria e na sua diversidade real, recorremos ao poema Portugus amigo,51 de Thiago Puccinelli Nogueira, em que aponta para a contradio que constitui o imaginrio de lngua imposta como a correta. importante lembrar que a data de produo deste poema (12/05/2011) a mesma da notcia que foi lanada em outro blog e que inspirou uma srie de comentrios que analisamos na terceira parte deste captulo: Livro usado pelo MEC ensina aluno falar errado. Supomos que no se trata de uma coincidncia entre as datas de publicao, mas do fato de haver um incmodo em relao aos sentidos de lngua divulgados na mdia naquela oportunidade.

    Eu falo Tu falas Ele fala... E todos ns o falamos! Todavia temos de aprend-lo Ah! Portugus amigo Por que impes tantas regras a nossa gostosa [amizade? Tu s to saboroso Quando sais das Bocas midas dos [poetas e poetisas Doce como as nuvens [de mel E loucamente melodioso

    51

    Esse poema est disponvel em http://beijosvgrocknroll.blogspot.com.br/2011/05/portugues-amigo.html, blog de Thiago Puccinelli. (12/05/2011).

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    P'ra ouvidos apaixonados Entretanto, meu caro Tu trais minha confiana Com tais injustas regras Querendo eliminar meus Sonhos de poeta... (NOGUEIRA, 2011)

    No poema, tambm encontramos um modo diferenciado de trazer ao fio discursivo a forma de uma lngua fixada pelos gramticos que deve ser apre(e)ndida e outra falada por todos: Eu falo, tu falas, ele fala... E todos ns o falamos!. O autor remete ao modo como a escola trabalha com essa imposio e, na sequncia, contrape-se a esse portugus falado que temos de aprender a um portugus que constitui alguns poetas. Para isso, articula a diviso entre duas formas de falar com operadores que marcam uma oposio entre duas posies diante da lngua: todavia e entretanto, sendo que o primeiro utilizado com maior frequncia em textos escritos e mais citado no espao escolar: todavia.

    Nos questionamentos feitos ao portugus, Nogueira traz tona um movimento em que se contra-identifica com o discurso impositivo da norma e traz um lxico em que trata de uma lngua viva, em que h a possibilidade do poeta sonhar:

    Contra-identificao com o discurso normativo/prescritivo

    Tratamento dado ao portugus vivo, fluido

    [...] Por que impes tantas regras a nossa gostosa amizade?

    [...]Tu s to saboroso quando sais das bocas midas dos poetas e poetisas/

    [...]Tu trais minha confiana com tais injustas regras querendo eliminar meus sonhos de poeta...

    Doce como as nuvens de mel e loucamente melodioso [...]

    Assim, em seu poema, Nogueira instaura uma crtica em que contrape um portugus amigo ao portugus que trai a sua confiana. Enquanto poeta depara-se com a imposio de injustas regras de uma lngua imaginada por gramticos.

    O curioso que, ao fazer isso, o sujeito-poeta instaura um espao de polmica, de contradio nas sequncias discursivas que produz. Ao mesmo

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    tempo em que critica o portugus estandartizado, ele o utiliza para fazer a sua crtica. Assim, o modo como diz sobre a lngua normatizada indica que independe do seu desejo, visto que a ideologia est funcionando. Da ser um espao de contradio, pois ao mesmo tempo em que o poeta questiona a norma no consegue escapar dela. Podemos dizer que efeito do discurso sobre a lngua que circula na escola.

    Nessa perspectiva, tambm recorremos posio do poeta e msico Chico Buarque. Para isso, citamos alguns enunciados de um texto disponvel na internet52 e que tem como ttulo Chico Buarque fala sobre erros de portugus em suas canes. O autor dessa matria comenta que Chico Buarque:

    [...] falou sobre a liberdade que se permite em relao ao uso da lngua portuguesa. [...] o msico citou o escritor portugus Camilo Castelo Branco ao dizer que, durante o momento de criao de suas letras, se d o direito de cometer certos erros gramaticais, que, no entanto, so conscientes, mantidos por opo estilstica. Ele explica que [...] numa das canes do novo disco manteve um verso que diz: No se atreve num pas distante como o meu, embora saiba que a regncia adequada no seria esta. Eu sei que quem se atreve no se atreve numa coisa. Mas o meu atrever-se a intransitivo. Eu no me atrevo e ponto. uma liberdade que eu estou tomando que algum gramtico pode me contestar, mas eu vou discutir com ele [...].. Se um gramtico vier falar comigo eu vou discutir com ele. (publ