Azuis Ultramarinos. imagens-clarão do colonialismo português no cinema

download Azuis Ultramarinos. imagens-clarão do colonialismo português no cinema

of 25

Transcript of Azuis Ultramarinos. imagens-clarão do colonialismo português no cinema

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    1/25

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    2/25

    Este um contributo para o estudo sobre como, durante o Estado Novo,

    o colonialismo portugus foi imaginado pelo cinema. Analiso sumaria-mente as representaes de actualidades de propaganda Jornal Porugus(1938-51) e Imagens de Porugal (1953-70) contrapondo-lhes filmes proibi-dos: Caembe (Manuel Faria de Almeida, 1965), Esplendor Selvagem (Antniode Sousa, 1972) e Deixem-me ao menos Subir s Palmeiras... (Joaquim LopesBarbosa, 1972).

    Procurei responder s questes: como que as actualidades de propa-ganda fixaram o proclamado modo portugus de estar no mundo? E como

    que esse olhar cinematogrfico se (con)formou em funo da ideologia doregime? Por outro lado, quando emerge o Novo Cinema, quais as evidnciasda (im)possibilidade de um olhar disruptivo quanto ao memorial lmicosedimentado pela propaganda?

    J durante a coordenao da trilogia Angola, o Nascimeno de uma Naoiniciei uma investigao das representaes deixadas fora de campopelo cinema de propaganda um fora de campo que, atravs do cinema

    censurado, foi emergindo. Trata-se daquela dos realizadores engajadosem movimentos de libertao, que comecei a analisar atravs dos filmesde Sarah Maldoror, Monangamb (1968) e Sambizanga (1972). A partir deum olhar sobre o homem imaginado em fora de campo colonial rete-nho algumas das imagens-claro disruptivas quanto quelas dispostasem campo/contracampo.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    3/25

    Entendo cinema colonial como o cinema de um pas colonizador feito

    nas e sobre as colnias. Os filmes coloniais idealizam a vida nas colniasenfatizando a modernizao empreendida atravs da colonizao e escamo-teando a realidade social nas mesmas. As representaes dos tipos locais,dos lugares e dos costumes so frequentemente escapistas, apologticas ouabertamente racistas.

    Alm de assumir a ideia de Jean-Michel Frodon, segundo a qual anao, para existir, partilha com o cinema a necessidade de projeco, ope-

    racionalizo o conceito de homem imaginado, de Joo Mrio Grilo1

    , queafirma que, com a inveno do cinema, surge uma nova humanidade em queos espectadores so parte das imagens que viram e constitui-se uma hist-ria que no memria sociolgica ou estatstica mas afectiva, sensorial esobretudo corporal.

    Se teoricamente recorro a conceitos como imagem-claro2(Benjamin)

    e homem imaginado (Grilo), quanto metodologia para abordar as evi-

    dncias empricas recorro anlise da imagem, anlise do discurso e a uma

    anlise da produo dos filmes, articuladas pelo que Didi-Huberman chama

    conhecimento de montagem, por via de uma aproximao entre imagens e

    as palavras produzidas volta destas, inspirada por Aby Warburg3.

    Operacionalizo, pois, um dispositivo em que, contrapondo s ima-gens colocadas em campo, pela propaganda, o no-mostrado atravs docontracampo que a censura transformou num imenso fora de campo, pro-curo imagens fulguranesdo homem imaginado pelo cinema colonial do

    Estado Novo e por um cinema militante, feito no contexto dos movimen-tos de libertao.

    1 Diz Grilo que, em cada projeco, os espectadores, que j esto dentro dos filmes, so 4,939mm 4,939 mm acordados. em nome desse espectador, da sua identidade documental ehistrica, que o conhecimento do cinema fundamental para fazer a biografia espiritual dosculo e compreend-lo. Joo Mrio Grilo, O Homem Imaginado: Cinema, Aco, Pensameno,Lisboa: Horizonte, 2006. Prope-se pensar o cinema a partir do homem imaginado pelodispositivo cinematogrfico, assumindo que o homem que viu os filmes j no era como os

    seus pais (p. 14).2 A expectativa a de gerar no um vislumbre da verdade mas imagens-claro que iluminemsentidos.

    3 Georges Didi-Huberman,Imagens Apesar de Tudo, Lisboa: KKYM, 2012.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    4/25

    . :

    A nao uma comunidade polica imaginria(Benedict Anderson)

    partilha com o cinema a necessidade de projeco de modo a poder existir(Frodon). Tal como o cinema, a nao existe em funo de um real revisto ecorrigido segundo uma dramaturgia.

    A instrumentalizao do cinema pelo Estado Novo fez-se atravs dofinanciamento e orientao ideolgica da produo cinematogrfica, forma-tada em funo da poltica do Esprito implementada por Antnio Ferro,aps a criao do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) em 19334.

    A projeco nacional no exterior iniciou-se precisamente com a produode filmes coloniais, encomendados em 1928 para potenciar a participaoportuguesa nas exposies europeias da poca.

    A vulgarizao da assero Do Minho a Timor somos todos portu-gueses assinala uma nova declinao na poltica colonial. At dcadade 1940, inclusivamente, esta poltica teve subjacente uma viso antropo-biolgica que definiu um padro de raa portuguesa e ops-se miscige-nao disseminada pelas figuras referenciais das escolas antropolgicas

    de Coimbra e do Porto, Eusbio Tamagnini e Mendes Correia. Se o regimereconhecera, com o Acto Colonial (1930), alguns direitos e garantias aospovos primitivos e promovia a sua nacionalizao, assumindo-os por-tugueses, o darwinismo social mantivera-se dominante e estava patentena concepo rcica do negro como um reservatrio de energia.

    Quando Gilberto Freyre publicou, em 1940, O Mundo que o PorugusCriou, lanou, porm, os fundamentos da concepo sociolgica de um

    espao identitrio que perduram na lusofonia.A criao da Organizao das Naes Unidas (ONU), no ps-guerra,

    e a Conferncia de Bandung, em 1955, contribuem para legitimar as reivindi-caes e a luta dos movimentos de libertao. No contexto da emergncia deuma nova ordem mundial, o Estado Novo abole o Acto Colonial e promovealteraes terminolgicas a pretexto da reviso constitucional: colniase imprio so substitudas por provncias ultramarinas e Ultramar,

    4 Transfigurado em Secretariado Nacional da Informao (SNI) em 1944.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    5/25

    passando a afirmar-se a unidade da nao pluricontinental portuguesapassando a repetir-se que Do Minho a Timor somos todos portugueses. neste quadro que se d a aproximao teoria gilbertiana.

    Apesar do lusotropicalismo ser um conceito desenvolvido por umsocilogo, uma vulgata simplificada do mesmo foi rapidamente incorporadano discurso poltico oficial mas tambm no discurso identitrio da propa-ganda do Estado. De que modo que esta declinao da poltica colonial temimpacto no agendamento das notcias, teor da narrao e locais filmadospelas actualidades de propaganda? A repetio de temas (viagens, tomadasde posse, manifestaes de apoio ao regime ou repdio ONU ou ndia,

    etc.) definiu um modo de fixar a actualidade que ganhou especificidades econstituiu uma representao imagtica que se foi sedimentando5.Com uma periodicidade mensal (irregular), o Jornal Porugus, revista

    filmada criada em 1938 por Ferro como instrumento do SPNe dirigida porAntnio Lopes Ribeiro at 1951, no mostrou com excepo de uma not-cia filmada em Angola territrios coloniais. Uma anlise revela que, emtermos de poltica interna, e no que se refere s colnias, so filmadas as(escassas) partidas e regressos de visitas pelo chefe de Estado; tomadas de

    posse de funcionrios coloniais; comemoraes de feitos histricos; home-nagens e funerais de figuras coloniais de relevo. Quanto poltica externa,registam-se contactos diplomticos privilegiados com a Unio Africana enotcias sobre a defesa de Timor durante a II Guerra Mundial.

    Com a primeira srie deImagens de Porugal, tambm dirigida por LopesRibeiro entre 1953 e 1958,pouco muda. As notcias coloniais so relativas questionao internacional posse de colnias por Portugal e uma quase

    obsesso com a retrica da manuteno da unidade territorial. Verifica-se,ainda, a predominncia noticiosa da questo de Goa (reclamado pelandia), no campo poltico e diplomtico, e notcia a administrao colonialfeita no Terreiro do Pao. As colnias filmadas exclusivamente nas triun-fais viagens presidenciais , as pessoas a nascidas que continuam a ser

    5 As actualidades nasceram com o cinema mas s na primeira dcada do sculo surgiu, emFrana, o primeiro semanrio filmado. Curtas-metragens de informao mostravam acon-tecimentos recentes e privilegiavam osfai-divers, as curiosidades, mas tambm as cerim-nias, polticas ou militares, etc.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    6/25

    trazidas metrpole para serem expostas nas comemoraes do regime ou colonos no so notcia.

    Na segunda srie de Imagens, cuja produo, entre 1958 e 1961, foi atri-

    buda por concurso Doperfilme, aumenta o enfoque noticioso nas colniaspois assim o implica a actualidade. Uma anlise detalhada do noticirio evi-dencia o artificialismo deste. Tudo o que mostrado premeditado visandoa opinio pblica. As manifestaes e comemoraes so encenadas ao por-menor e nada do que mostrado o por acaso. Goa mantm a centralidadenoticiosa mas, no final da srie, perde terreno para as notcias da escaladade conflitos em Angola. Verifica-se, porm, uma progressiva valorizao da

    actualidade nas colnias, medida que o risco de perd-las implica a neces-sidade de mostrar a vida local aproximando os metropolitanos de territriosque no so, em geral, capazes de imaginar.

    Na terceira srie de Imagens, produzida pela Tobis entre 1961 e 1970,mudana bvia que, alm das notcias sobre a guerra, as colnias e seushabitantes tornam-se notcia, havendo preocupao notria em que o luso-tropicalismo seja traduzido em imagens. Assume-se a posse de colniascomo factor de identidade nacional, transmitida pela narrao com uma

    retrica lusotropical simplificada, a qual traduz uma declinao da polticacolonial, com base na qual se afirma a multirracialidade, pluriculturalidadee pluricontinentalidade portuguesas.O retrato do quotidiano de colonos ecolonizados continuou, porm, por aprofundar.

    Como homem imaginado pelo cinema continuaram a ser as viagenspresidenciais, sobretudo, a conformar o memorial lmico colonial. Faria deAlmeida assumiu pretender mudar esta percepo.

    Na verdade eu sabia que a ideia que em Portugal se fazia de Moambique

    era a dos pretos com bandeiras na mo, em alas, deixando passar o

    Presidente da Repblica vestido de branco, brindado por papelinhos

    multicolores atirados das varandas. Ningum sabia como as pessoas

    ali viviam, que pessoas, como pensavam elas, como se divertiam e

    quais os seus problemas. Era isto que eu queria mostrar, e pensava que

    as entidades oficiais tinham percebido a inteno.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    7/25

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    8/25

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    9/25

    . :

    Com os seus filmes, Faria de Almeida (n. 1934) e Joaquim Lopes Barbosa

    (n. 1944) criaram uma resistncia ao homem imaginado pela propagandacolonial. Inconscientemente, tambm Antnio de Sousa, mais alinhado com o

    regime, realizou um filme disruptivo quanto ao imaginrio colonial.

    Caembedocumenta a vida em Loureno Marques (Maputo) em mea-dos da dcada de sessenta. Alm de sequncias documentais integrousequncias de fico. Aps o corte, imposto pelo Ministrio do Ultramar,de 19 dos 87 da obra original, uma segunda verso, documental, de ape-

    nas 45 e remontada a partir das sequncias deixadas sem sentido peloscortes efectuados, foi proibida pela Comisso da Censura da Inspeco dosEspectculos6. Caembe, portanto, nome de olhar disruptivo. Alm da qua-lidade tcnica e sensibilidade esttica, o maior mrito da obra propor umaprimeira interpretao crtica da realidade colonial. No obstante o patro-cnio pelo Fundo e presses prvias rodagem, aborda temas fracturantes:o trabalho (de brancos e negros), as bifas (a liberdade sexual), a cisoentre intelectuais e no-intelectuais, e se h cinema em Moambique.

    Deixem-me ao menos Subir s Palmeiras..., de Lopes Barbosa, foi proibidoantes do 25 de Abril de 1974, nunca teve estreia comercial tendo perma-necido quase desconhecido e pouco referenciado em termos de histria docinema. Falado em ronga, pela primeira vez no cinema portugus um filmefoi interpretado quase exclusivamente por negros para cuja participao foideterminante a colaborao de Malangatana Valente.

    Tal como a tentativa de, com Caembe, documentar a vida de Loureno

    Marques, a deDeixem-me ao menos Subir s Palmeiras...de, partindo de uma fic-o anticolonial, retratar as condies de vida dos contratados foi anu-lada pela censura.

    A interdio atingiu tambm Esplendor Selvagem, de Antnio de Sousa(1912-81), por mostrar imagens da frica tribal, que afrontavam o discursolusotropical e o portuguesismo apregoado. A proibio, em Portugal e em

    6 Criada menos de um ms aps a Revoluo de Maio de 1926. Em 1933 a Censura Prvia foilegalmente instituda quer atravs da Constituio quer atravs do Decreto-Lei n. 22469, de11 de Abril.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    10/25

    Angola, do filme, considerado antipoltico, , porm, um caso parte.Nada indiciaria que a exibio de uma obra de Sousa fosse proibida dadoque este no era um oposicionista ao regime.

    Esplendor Selvagem documentou um territrio, relativamente ao qualPortugal assumira responsabilidades colonizadoras, que escapava ao con-trolo do Estado Novo ao fixar uma existncia tribal em que no se reconheciao apregoado portuguesismo das colnias.

    Quais eram as regras pelas quais se regulava a Comisso de Censura?Estavam publicadas? Sim, desde 1927, numa verso condensada. Eramconhecidas publicamente? Teoricamente, e na verso condensada, sim. No

    eram, porm, publicitados aspectos especficos que a censura visava, comorevelam os casos dos filmes que abordo como estudos de caso.As directivas da censura contemplaram aspectos morais, aspectos

    sociais e polticos e aspectos criminais7.Quanto aos aspectos morais visaram controlar a excitao de bai-

    xos instintos, situaes licenciosas ou obscenas, desrespeito pelo casa-mento, e filmes passados quase integralmente em cabares, casas de jogo,etc., tortura, alm de filmes anti-religiosos. Em termos de aspectos sociais

    e polticos eram censurveis filmes com exagerada preocupao socialde tendncia comunizante, sobre injustias sociais, que explorassem a lutade classes, sobre o trfico de brancas, que atentassem contra o prestgiomilitar, de exaltao da guerra ou de perturbao da paz. Os filmes que pro-movessem a figura de criminosos, que retratassem positivamente o crimeou a prtica de injustias, ou descrevessem com detalhe tcnicas criminosaseram integrados na rubrica aspectos criminais a evitar.

    Estas directivas foram condensadas, em 1927, no Decreto n. 13564,art. 133..

    rigorosamene inerdia a exibio de fias perniciosas para a educao do

    povo, de inciameno ao crime, aenarias da moral e do regime polico e social

    vigoranes e designadamene as que apresenarem [...]maus raos a mulheres;

    7 Conheci estes aspectos a censurar atravs de um documento existente no centro de docu-mentao da Cinemateca Portuguesa. Este no era pblico e provavelmente, embora noesteja identificado como tal, seria um guia de normas para os censores.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    11/25

    oruras a homens e animais; personagens nuas; bailes lascivos; operaes cirr-

    gicas; execues capiais; casas de prosiuio; assassnios; roubo por arromba-

    meno ou violao de domiclio, em que, pelos pormenores apresenados, se possa

    avaliar dos meios empregados para comeer al delio; a glorificao do crime pormeio de lereiros ou efeios foogrficos.

    Em 1959, o decreto foi reformulado (Decreto n. 42660) mas, dado ooriginal ser mais descritivo, as evidncias apontam para a manutenodeste como referncia normativa.

    Atente-se, porm, que antes de chegarem Comisso da Censura,

    alguns filmes ambientados nas ex-colnias foram alvo de censura prelimi-nar por parte do Ministrio do Ultramar, como sucedeu com Caembe.O Novo Cinema no nasce num cenrio de abertura do regime. Cinema

    de autores, surge das cinzas do falhano da primeira lei de proteco docinema nacional a Lei n. 2027, de 18 de Fevereiro de 1948. O perodo entreos xitos cinematogrficos dos anos 1930 e 1940 e o incio da dcada de 1960 decepcionante. nessa altura que o Fundo do Cinema Nacional (FCN)implementa o apoio formao atravs da atribuio de bolsas. A afirma-

    o do cinema de autor entra pois em marcha com a renovao por via doscineastas formados longe do regime. Quando regressam regressar con-dio do apoio a realidade a mesma. A mudana deu-se na conscinciados autores, nas suas concepes de cinema que enformam um novo olharsobre o pas, fechado sobre si.

    :

    Nascido em Loureno Marques, Manuel Faria de Almeida ganhou,em 1962, um apoio do FCN para estudar cinema na London School o FilmTechnique onde teve a mais alta classificao obtida at ento. Estagiava noInstitut des Hautes tudes Cinmatographiques, quando Antnio da CunhaTelles com as Produes Cunha Telles (1962-67) no activo lhe enviouum telegrama: Mil parabns. Ganhamos Catembe.

    A declarao de intenes que consta no pedido de apoio descreve oprojecto em termos que o enquadram na desejada promoo cinematogr-fica do portuguesismo mas ressalvando uma perspectiva autoral:

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    12/25

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    13/25

    Filme essencialmente potico (na aco e na imagem), com pouco di-

    logo, onde sobressai a beleza de Loureno Marques (rica ou pobre, feliz

    ou triste), e a comunho de pretos e brancos no mesmo portuguesismo

    revelado em cada imagem, em cada pormenor, sem, no entanto, tocaras raias da propaganda. Garantimos que o portuguesismo aparecer,

    nitidamente, em todo o filme, mas no faremos dele (que potico e

    verdadeiro) um filme panfletrio e, consequentemente, intil e preju-

    dicial realidade nacional.

    Que factores se conjugaram para que o Conselho do Cinema apoiasse

    a obra?A credibilidade que Cunha Telles, ex-inspector de cinema da MocidadePortuguesa, tinha; a condio de Faria de Almeida de colono e bem-suce-dido bolseiro do FCN, e o desgnio de incrementar a produo cinematogr-fica sobre o Ultramar.

    Contornando vrias dificuldades, o filme faz-se e, em 19 de Marode 1965, visto pelo representante do Ministrio do Ultramar que aponta

    vrias objeces. O secretrio-geral da Informao, Moreira Baptista,

    recusou-se a pagar o subsdio sem que o Ministrio do Ultramar se pro-nunciasse definitivamente. Catembefoi sujeito censura do agente-geraldo Ultramar, Leonel Banha da Silva. Este produziu um ocio, datado de 19de Abril. Reproduzo excertos:

    A convivncia racial um tema francamente mal explorado. No se

    poder dizer que haja, a este respeito, imagens muito convenien-

    tes mas tambm se desaproveita a oportunidade de mostrar imagensconvenientes, alis, relativamente ceis de recolher (as escolas,

    liceus e actividades desportivas permitem, sempre, ptimas imagens

    quanto a este aspecto).

    Referem-se, porm, por parecerem de alguma inconvenincia os

    aspectos seguintes:

    a) est dado, com demasiada nitidez, o contraste entre o domingo (o filme

    repartido pelos sete dias da semana) em que se demonstram o descanso

    e prazeres de brancos e a segunda-feira que comea por mostrar o

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    14/25

    trabalho quase s de pretos. A demasiada nitidez deste contraste pode

    ser amaciada com uma simples alterao de montagem, que o produtor

    se declara plenamente disposto a fazer.

    b) Cenas finais, passadas, em cabarets embora mostrando brancos

    e pretos parecem igualmente inconvenientes pois no se afigura que

    reflictam o melhor tipo de relaes que podem estabelecer-se.

    c) O contraste entre a opulncia da cidade e a pobreza de Catembe

    tambm deveria ser atenuada pelo texto e no . Nas primeiras ima-

    gens de Loureno Marques, englobam-se, tambm, aspectos dos bair-ros onde habita a maior parte da populao negra o que, igualmente,

    se considera inconveniente []

    Foram feitos cortes em 103 planos. Um recorde mundial que o GuinnessBookfixou.

    Sobre o resultado, o cineasta disse-me, em entrevista:

    Entre outras coisas, era preciso cortar todos os bocados onde se dis-

    sesse Lisboa, em Portugal, voltei a Portugal, cheguei a Portugal,

    cortar as vistas dos bairros do canio, cortar os pretos descalos, cortar

    as inglesas, etc.

    Na sequncia do parecer foram feitos 103 cortes 19 do filme foramdestrudos (a parte ficcional foi inteiramente suprimida). Faria de Almeida

    remontou Caembe pois os cortes destruram o sentido de sequncias intei-ras. A primeira verso do filme, hoje impossvel de recuperar dada a destrui-o dos cortes que Faria de Almeida iludiu, parcialmente, guardando 11 dapelcula positivada , foi remontada, resultando uma segunda verso, de 45,que a Comisso da Censura proibiu posteriormente.

    Aps o 25 de Abril de 1974 e at ao incio desta investigao o filme foiexibido duas vezes na Cinemateca Portuguesa.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    15/25

    :

    A proibio, em Portugal e em Angola, deEsplendor Selvagem, de Antnio

    de Sousa, considerado antipoltico, um caso parte. O filmerevela pai-sagens e aspectos da vida selvagem antes de mostrar danas quiocas, pros-seguindo a documentao de rituais de iniciao e passagem para a idadeadulta em diversos grupos tnicos.

    O certo que a acta n. 47, de 19 de Dezembro de 1972, da Comisso deExame e Classificao dos Espectculos, assentou uma objeco do presi-dente, Antnio Caetano de Carvalho, exibio no circuito comercial:

    [...] em sua opinio, se trata [sic] de um filme de reportagem,

    de caractersticas fundamentalmente etnogrficas, que os produ-

    tores tero com certeza a inteno de levar at ao grande pblico.

    Assim, se fosse um filme para passar apenas em sociedades de

    investigao, no teria qualquer problema. Para o circuito comer-

    cial, porm, podem realmente suscitar-se dvidas, principalmente

    numa altura em que muita gente nos acusa do grande atrazo [sic]

    em que se encontram as nossas populaes de frica. Acrescentouo Senhor Presidente ser sua convico a de que o produtor no teve

    essa inteno, at porque toda a equipa constituda por pessoas

    de confiana. A nica pergunta que o filme parece suscitar ser,

    pois, se uma pelcula em que no aparecem quaisquer imagens

    de civilizao poder vir a ter algum aspecto negativo nas pessoas

    menos preparadas.

    Na sequncia do parecer, Sousa voluntariou-se para fazer os cortesindicados pela Comisso e inserir uma legenda explicativa. O Ministriodo Ultramar, atravs do delegado Jos Cabral, acompanhou o processo e foicom base na apreciao negativa deste que esta verso censurada foi proi-bida (acta n.28/73, de 31 de Julho de 1973).

    Aps o 25 de Abril de 1974 o filme foi apresentado no Teatro RosaDamasceno, no VIII Festival de Cinema de Santarm, em Novembro de1978. Alberto Seixas Santos usou imagens do filme emParaso Perdido(1992)e estreou na Cinemateca a 27 de Janeiro de 2011.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    16/25

    - :

    Nascido no Porto, Lopes Barbosa mudou-se, em 1969, para Luandaonde comeou a fazer cinema amador. Aps uma visita a Loureno Marques,instalou-se em Moambique, onde trabalhou na produtora Filmlab.

    Em Cinema Novo Porugus 1960/1974, Matos-Cruz escreve queDeixem-meao menos Subir s Palmeirassurgiu da vontade do cineasta de transpor parao cinema uma temtica e uma esttica africanas. Monangamba, do poetaangolano Antnio Jacinto, que descreve as duras condies de vida dos

    negros contratados, inspirou-o. Em Moambique, a esta influncia acres-centou-se a de Dina, conto integrado na obra Ns Mamos o Co Tinhoso,de Lus Bernardo Honwana.

    Por altura da realizao, Lopes Barbosa deu a sua definio de cinema revistaPlaeia, publicada em Lisboa a 8 de Fevereiro de 1972.

    A 7. Arte uma forma de expresso das realidades concretas, que

    sinto, e deviam chegar a todos, como uma espcie de murro no est-

    mago. Actualmente, a definio que dou ao cinema a de que deve

    ser uma frente de guerrilha, actuando o mais positivamente possvel,

    contra os tabus, as morais duvidosas e os lugares-comuns bafientos

    e anacrnicos.

    Algumas das sequncias do filme ilustram a inteno declarada do autor.

    No filme, como o livro, mostra-se como numa machamba um capataz

    submete os contratados a trabalhos de cultivo que culminam, frequente-mente, no colapso dos mais fracos. Um dia, o capataz violenta sexualmenteMaria, filha de Madala. Incitado revolta pelos companheiros, Madala nos no reage ofensa como aceita a garrafa de vinho que o capataz lhe ofe-rece. Sucumbe, porm, ao sofrimento sico e emocional, o que provoca arevolta dos outros trabalhadores. Na sequncia disso, o jovem Djimo aban-dona a machamba.

    As filmagens foram vigiadas pela Direco-Geral de Segurana (DGS)

    devido a quase todos os intervenientes serem negros, facto inslito no cinema

    portugus. O pintor Malangatana preso em 1966 por alegadas ligaes

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    17/25

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    18/25

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    19/25

    Frelimo foi chamado DGS e interrogado sobre o filme. A colaborao de

    Malangatana foi fundamental.

    [...] foi decisivo para angariar todas as vontades pela parte do elenconegro e para a sua adeso ao filme. Atravs do seu empenho, tive

    a participao de actores, msicos, poetas e gente annima [...],

    que deu o seu contributo desinteressado para que a sua realizao

    fosse possvel.8

    Lopes Barbosa assume que o filme destinava-se sobretudo ao pblico

    africano, ignorado pelos produtores. Facilidade de compreenso e auten-ticidade eram os dois propsitos visados quando escolheu o ronga comodialecto das personagens negras. S nas sequncias que retratam o podercolonial a linguagem o ingls o fazendeiro e a famlia falam ingls , umexpediente usado na montagem. Pretendia-se que a censura no visasse aobra como uma crtica ao colonialismo portugus sem que, com isso, se per-desse a ligao da mesma realidade africana.

    O realizador assume que, sem a revolta que introduziu no enredo, no

    fazia sentido a realizao do filme: era a actualizao do momento hist-rico que se vivia na poca e que Honwana deixara omisso.

    Quando o filme foi proibido (uma proibio informal, com o produ-tor Courinha Ramos a mostrar o filme aos responsveis locais pela cen-sura), foi despedido da Somar Filmes em Julho de 1973. Em Moambique,o filme estreou no cinema S. Miguel ainda antes da independncia mas noteve estreia comercial em Portugal. O ser falado em ronga, a opo por uma

    esttica africana tero sido um obstculo. O momento cinematogrfico [epoltico] que se viveu nos anos seguintes revoluo no ter favorecido ointeresse pelo filme, que s foi exibido na Cinemateca Portuguesa em 1985.

    Deixem-me ao menos Subir s Palmeiras...mostrou que o trabalho foradocontinuava, muito depois do fim do Estatuto do Indigenato ou das culturasobrigatrias e que a teoria de Freyre era pouco mais que um fado tropical.

    8 Entrevista autora, em Agosto de 2010.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    20/25

    .

    Impe-se uma evidncia: at independncia dos respectivos pases,

    os povos colonizados no usaram o cinema para contar a prpria histriaatravs de uma perspectiva individual, de autor. Quando tal aconteceu, foino mbito dos movimentos de libertao. Como que estes movimentosusaram o cinema para propor a sua viso?

    Aparentemente, em Angola, apenas o MPLA teve recursos, humanose financeiros, para usar o cinema como arma. , porm, notvel o papel queuma mulher, Sarah Maldoror, teve na utilizao do cinema como arma de

    denncia do colonialismo portugus.Sarah Maldoror nasceu em Guadalupe em 1938. Com uma bolsa decinema dada pela URSS, entre 1961 e 1962 estudou no Studio Gorki, emMoscovo. A se iniciou na luta pela independncia das colnias africanasatravs da influncia de Mrio Pinto de Andrade, de quem foi companheira.Foi com grande proximidade, pois, que acompanhou os primrdios doMPLA, de que o poeta foi um dos fundadores em 1952 e que presidiu entre1960-62, durante o incio da luta armada em Angola.

    Iniciando uma carreira que fez dela a matriarca do cinema africano, Mal-

    doror foi assistente de realizao de Gillo Pontecorvo no aclamado A Batalha

    de Argel. Pouco depois iniciou-se na realizao com a curta-metragem Monan-

    gamb (1968). DeA Batalha de Argeltrouxe o nico actor profissional, Mohamed

    Zinnet. De resto, o filme foi filmado em trs semanas, prximo de Argel, com

    no-actores e a adaptao, por Maldoror, Pinto de Andrade e Serge Michel,

    do conto O Fato Completo de Lucas Matesso (1962), de Luandino Vieira. Teve

    apoio financeiro 7 mil dlares e tcnico do Departamento de Orientao eInformao da Frente de Libertao Nacional e do Exrcito Nacional Popular.

    Monangambrepresenta o desconhecimento da cultura angolana pelosportugueses e o tratamento, brutal, a que os prisioneiros polticos eramsujeitos. Aps uma sequncia inicial em que vrios negros so transporta-dos at uma priso, mostra uma mulher (Elisa Pestana) que visita o com-panheiro. Enquanto se abraam, a mulher sussurra algo que faz o guarda(Zinnet) afast-los e levar Matesso [pelo conto sabemos que no h pro-vas contra ele; o sussurro da mulher afirmando que trouxe o fato com-pleto que tomado como indcio suspeito]. Na sala do director, dominada

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    21/25

    pelo retrato de Salazar, o guarda relata a ocorrncia e manda revistar o quefoi trazido pela mulher. Apenas roupa e uma panela com comida. A frus-trao do guarda dirigida para o prisioneiro. Ainda na solitria, Matesso

    mantm uma conversa com um lagarto que est de fora das grades, ao sol.A sequncia foi assumida por Maldoror como metfora da solido total.Posteriormente, interrogado, sob o olhar fotografado do ditador portu-gus. torturado antes de quebrar fisicamente.

    Durante o filme, e excepto quando se escutam escassos dilogos emfrancs, o jazzavan-gardedo Art Ensembe de Chicago dilacerante, poten-ciando a perturbao e as sensaes de claustrofobia e desespero criadas.

    De Luandino, retido o dilogo ntimo, do sujeito angolano silenciado,cuja histria contada numa perspectiva alternativa e contestatria do colo-nizador opressor. Maldoror traduz em imagens cinematogrficas o dilogoentre a militncia e a arte, imaginando atravs das palavras de Luandinoe usando ojazzcomo grito libertrio.

    Formatado pelo discurso ideolgico mas com uma sensibilidade visualinegvel em que se ensaia mostrar a vida real do povo angolano e umacerta comunho Sambizanga(1972) foi rodado em Brazzaville, no Congo.

    A equipa tcnica era predominantemente francesa e os no-actores forampredominantemente recrutados entre militantes do MPLA e do PartidoAfricano para a Independncia da Guin e Cabo Verde (PAIGC), os quaisse exprimiam em portugus ou nos vernculos africanos lingala e lari.A economista Elisa Andrade, radicada em Argel, repetiu a colaborao comMaldoror e interpretou o papel principal, como Maria.

    Tanit dOr do Festival de Cinema de Cartago e International Catholic

    Film Ofice Award no FESPACO em 1973, a adaptao de A Vida Verdadeirade Domingos Xavier, tendo o argumento sido trabalhado tambm por MrioPinto de Andrade e pelo escritor e jornalista Maurice Pons. O filme apro-funda os temas j abordados em Monangambe opta por adaptar para cinemaalguns acontecimentos que provocaram, em 1961, o despertar da conscin-cia anticolonial. Da decorre um registo mais intimista o mais conseguidono filme, a par da fotografia. No ter feito uma obra sobre a luta armadavaleu, alis, algumas crticas realizadora.

    Sambizanga o nome de um bairro de operrios em Luanda, no qual selocalizava uma priso cujo assalto, em 1961, foi o primeiro acto coordenado

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    22/25

    de sublevao contra o regime portugus. O filme pretende mostrar a par-ticipao das mulheres na luta pela libertao atravs do ponto de vista deMaria, que viaja do interior at Luanda procura do marido, Domingos, tra-

    balhador exemplar preso por razes polticas. Sambizangamostra a crueldadeda polcia, o sadismo dos seus elementos e no inclui referncias positivasaos colonos nem ao desenvolvimento do territrio. A sequncia familiar doincio representao belssima do amor, com a refeio e o repouso que selhe segue o corao do filme. Se sublinha a paz familiar para a contras-tar, a negro, com o processo de priso, sem culpa formada, de Domingos, e atortura a que sucumbe enquanto Maria dilacerada pelo desespero durante

    a sua demanda.Distribudo na Europa e nos EUA, Sambizanga distinguiu-se por trsmotivos: como prenncio de uma produo de cinema especificamente afri-cana, por inspirar-se nos movimentos de libertao africanos e por exporum ponto de vista feminino. Visualmente bem conseguido com gran-des planos notveis , bem montado, fragilizado pelo didactismo pol-tico embora a opo de Maldoror de filmar num registo ntimo o distingaclaramente de um cinema militante de vocao colectivista, dominante no

    perodo da sua realizao.

    Para procurar accionar o conhecimento de montagem proposto porDidi-Huberman revejo-me na postura, tica, de uma histria feita a con-trapelo (Benjamin) pondo em relao, dialctica, de natureza imaginativa

    e no temporal, um Outrora e um Agora.As imagens do meu arquivo permitem accionar, atravs da reme-

    morao e da (re)montagem, um conhecimento do colonialismo, do modocomo foi imaginado pelo discurso poltico e de como a ordem do dis-curso foi questionada a partir de imagens da prpria propaganda que, ape-sar de tudo, irromperam da realidade escapando conformao, por umamargem que emergiu no centro o Novo Cinema , mas tambm pelocinema militante, accionando o pensamento sobre a realidade colonial.

    Respondendo aos que, relativamente ao horror subjacente ao holo-causto, afirmam tratar-se de algo impensvel e inimaginvel, Didi-Hu-

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    23/25

    berman escreve que no possvel relegar o genocdio categoria doimpensvel. Apoia-se em Hannah Arendt para dizer que h que persistirno pensamento precisamente onde este ameaa fracassar. Arendt chegou a

    afirmar a necessidade de repensar a teoria poltica caso se comprovasse queaquela que existe no capaz de pensar todas as ocorrncias da realidade.

    Aim Csaire, emDiscurso sobre o Colonialismo, editado em 1955 um ano

    aps Gilberto Freyre ter publicado as obras que consagram o lusotropica-

    lismo , questionou o que o colonialismo. Escreveu que no (1978, p. 14):

    [...] nem evangelizao, nem empresa filantrpica, nem vontade de

    recuar as fronteiras da ignorncia, da doena, da tirania, nem propaga-o de Deus, nem extenso do Direito; admitamos, uma vez por todas,

    sem vontade de fugir s consequncias, que o gesto decisivo o do

    aventureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do pesquisador

    de ouro e do mercador, do apetite e da fora, tendo por detrs a fora

    projectada, malfica, de uma forma de civilizao que a dado momento

    da sua histria se v obrigada, internamente, a alargar escala mundial

    a concorrncia das suas economias antagnicas.

    Csaire critica o modo como a burguesia ocidental viu surgir o nazismoassentando que seria um fenmeno passageiro e calando a verdade: a bar-brie criada pelo nazismo no um fenmeno de passagem nem de excep-o. algo de que foi cmplice e tolerou enquanto foi aplicada a povosno europeus.

    Esta deriva do holocausto para o colonialismo, de Arendt e Didi-

    -Huberman para Csaire, fi-la para aproxim-los e integr-los numa lei-tura poltica. Se a industrializao da morte foi implementada pelos nazis,o uso de campos de concentrao iniciou-se antes, fora da Europa, e aexistncia de campos de trabalho, bem como a prtica da deslocao decomunidades, perdurou, para alm da II Guerra Mundial, mantida pelaspotncias coloniais.

    Assumo as imagens do meu arquivo como imagens apesar detudo. Mantenha-se a devida distncia quanto s quatro fotografias tiradasem situao-limite em Auschwitz. Porm, tambm estas imagens coloniaispermitem accionar um conhecimento do colonialismo portugus.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    24/25

    Reconhecendo que estas imagens so de uma natureza diversa dasque estiveram na origem da escrita de Imagens Apesar de Tudo que tem, nocerne, a discusso do problema de como olhar as imagens do holocausto ,

    encontrei na obra de Didi-Huberman um enquadramento epistemolgico etico para abordar o meu arquivo e os desafios que a sua composioe anlise me colocaram: nem a suspenso do pensamento sobre as imagense representaes coloniais, nem a sua estetizao. E a assumpo que estearquivo pessoal no o nico possvel mas o que escolhi abordar.

    A imagem no diz tudo. No tudo. Mas como diz Didi-Huberman apropsito das imagens da Shoah, as imagens do colonialismo so, todavia,

    dignas de serem vistas e interrogadas como factos caractersticos e comotestemunhas da sua histria (2012, p. 89).Importa-me por isso contribuir para uma genealogia da imagem colo-

    nial no cinema portugus. A investigao prosseguir tentando avaliarcomo, no modo como Portugal imaginou a poltica colonial atravs docinema, foi influenciado pela poltica colonial francesa e britnica e respec-tivos modos de projeco cinematogrfica. Proponho-me analisar como asrepresentaes dos territrios coloniais destes pases foram questionadas

    a partir de dentro e viso traar uma genealogia do gesto colonial fixadopelo cinema, contemplando as representaes impostas pelas propagandasmas avaliando tambm as hibridizaes. Pretendo contribuir para a defini-o de uma esttica lmica colonial, reflectir sobre modos de contamina-o e hibridizao e identificar tanto os gneros coloniais propostos pelaspotncias colonizadoras como os que tero emergido como reaco.

  • 7/23/2019 Azuis Ultramarinos. imagens-claro do colonialismo portugus no cinema

    25/25

    ANTT, SNI, IGAG, caixa 474

    ,Discurso sobre o Colonialismo, Lisboa: S da Costa, 1978

    , Comunidades imaginadas: Reflexiones sobre el origen y la difusin delnacionalismo, Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1983

    Cinema Novo Porugus 1960/1974, Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1985

    Entretien avec Sarah Maldoror,cran, n. 15, Maio 1973, pp. 70-71

    ,Eye o he Cenury: Film, Experience, Modernit, New York: ColumbiaUniversity Press, 2008

    , Sarah Maldoror,From Twent-five Black African Filmmakers: A Criical Sudy,wih Filmography and Bio-bibliography, Connecticut: Greenwood Press, 1988

    -,Imagens Apesar de Tudo, Lisboa: KKYM, 2012

    , O Mundo que o Porugus Criou: Aspecos das Relaes Sociais e de Culura doBrasil com Porugal e as Colnias Poruguesas, Lisboa: Livros do Brasil, s.d.

    - ,La projecion naionale: Cinma e naion, Paris: Odile Jacob, 1998

    , O Homem Imaginado: Cinema, Aco, Pensameno, Lisboa: Horizonte, 2006 ,Azuis Ulramarinos: Propaganda Colonial nas Acualidades do Esado

    Novo e Censura de Trs Filmes de Auor,Tese de doutoramento em Cincias da Comunicao,Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa, 2013

    , Caembe or Complain from he Young Censured Soul. Consultadoa 15-11-2013, em http://www.buala.org/en/afroscreen/catembe-or-complaint-from-the-

    young-censored-soul

    e ,Angola, o Nascimeno de uma Nao: Vol. 2 O Cinema da Liberao, Lisboa: Guerra & Paz, 2014

    , Sambizanga: un film de Sarah Maldoror sur les dbuts de la guerrede libration en Angola,LAfrique liraire e arisique, n. 28, April 1973, pp. 78-87.

    , Uma Margem no Cenro: A Are e o Poder do Novo Cinema. Consultadoa 26-12-2011, em http://www.bocc.ubi.pt/_esp/autor.php?codautor=108

    , Itinraires: le cinma et la photographie lpreuve de lhistoire,Cinmas: revue dudes cinmaographiques/Cinmas: Journal o Film Sudies, vol. 14, n. 2-3,2004, pp. 191-210.