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ENSAIO Os mistérios de Agatha Christie • 24 INQUÉRITO 26 perguntas a Noemi Jaffe • 17 POESIA A hora zero, de Prisca Agustoni • 42 ENSAIO A voz de Ferreira Gullar • 6 CURITIBA, JANEIRO DE 2015 | www.rascunho.com.br desde abril de 2000 o jornal de literatura do Brasil 177 ARTE DA CAPA: DÊ ALMEIDA

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EnsaioOs mistérios de Agatha Christie • 24

inquérito26 perguntas a Noemi Jaffe • 17

PoEsiaA hora zero, de Prisca Agustoni • 42

EnsaioA voz de Ferreira Gullar • 6

curitiba, janeiro de 2015 | www.rascunho.com.br

desde abril de 2000

o jornal de literatura do Brasil

177

Arte dA cApA: dê AlmeidA

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Buscar e encontrar a cadência exata do original, plasmada agora em tradução. Ritmos certos, pa-

ra aplicar o mesmo frescor da es-critura primeira. O original, de novo, como texto que apenas se alonga na tradução. Continua-ção, basicamente; eterna persis-tência das ideias. O original como o texto que não secou, mas ainda extravasa em outras línguas.

Ao tradutor, a tarefa de re-cupera algumas marcas do texto, aquelas que deveriam ser inextirpá-veis — a essência do que lhe faz lite-rário. Não apagar essas marcas, não falsear o original. Reescrever a cria-ção que ainda impregna a página.

Mergulhar no abismo do passado, debelar toda a espessu-ra da noite, clarear a sombra que naturalmente vai cobrindo todo o texto. A sombra do distancia-mento, que vai lentamente rou-bando a vivacidade das palavras. Sombra que começa frágil e fugi-dia, mas que — havendo tempo suficiente — enterra os sentidos no breu mais indevassável. Tare-fa normal de todo tradutor.

Evitar o estiolamento que provoca a falta de arejo. O tex-to também precisa de ar novo, de quando em quando. Não só o papel o exige, mas principal-

Na tradução, a cadêNcia do origiNal

translato | eduardo Ferreira

mente seu conteúdo.Recuperar, se preciso, o vi-

ço de um texto agora quebradi-ço. Adicionar água e ar.

Adicionar, também, gotas de espírito ao texto. O dedo e a alma do tradutor. Aliar a tarefa de recuperação àquela da inven-ção. Sacudir os sinais de abando-no, às vezes tão evidentes. Uma pitada de ousadia, sempre. O au-tor não a dispensou, nem a deve dispensar o tradutor.

Apurar o ouvido, sempre, para captar aquele tênue suspiro de indignação que expele o texto ao ser traduzido. Blasfêmias vá-rias, pela dor da transposição. A perda do sentido, a desdita de es-quecer a língua-mãe.

Dar sentido ao texto, dire-ção ao movimento da leitura. De novo, a necessidade da cadência. Controlar a pulsação, posicioná--la na tensão precisa. Se preciso, amainá-la, até achar o tom cor-reto do discurso. É por essas e outras que a tradução constitui tarefa tão intricadamente com-plexa. Fugidia, inapreensível e praticamente inensinável.

Apreender aquilo que pul-sa na superfície do texto. Captu-rar o halo esquivo que circunda palavras e lhes dá algo mais que sentido. Não reescrever como quem engrola uma reza repeti-

tiva, mas encontrar esse pulso e trabalhá-lo, traduzi-lo.

Manducar o texto, dele ex-trair o sumo e o sumo. Açoitar o silêncio de todo texto com o chi-cote da obstinação — pesquisa e pesquisa.

A tradução parece rom-per um equilíbrio tão duramen-te conquistado no original. Daí a necessidade de um esforço de restauração. Posicionar o tex-to em novo patamar de estabi-lidade, mesmo que transitória. Arrimá-lo para que, ao final, se ponha de pé sozinho. Sustentá--lo nessa dura transição de tra-dução a novo original.

Não definir nem parafrase-ar o sentido, mas senti-lo brotar do contexto e exprimi-lo como tal na tradução. Como ocorre na leitura, quando se apreende o significado da palavra desconhe-cida sem recorrer ao dicionário. Como num passe de mágica que se só se alcança depois de esforço intenso, extenuante.

Explorar mesmo aquilo que não se alcança do sentido do original. Experimentar. Sondar os fundos vãos do olvido, desca-mar, uma por uma, as densas ca-madas de sentido.

Ver o que está atrás das pa-lavras. É o que eu — como leitor e tradutor — quero atingir.

2 | | janeiro de 2015

O s dias roubados (2013), primeiro romance do cea-rense Carlos Va-zconcelos, obteve

em 2011 o Prêmio de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. O romance traz um tema pouco frequente em nossa ficção — o da conde-nação injusta. E põe em cena as falcatruas que envolvem Justiça e Poder Político. É o próprio per-sonagem-narrador quem anun-cia o seu infortúnio, como que fustigando o leitor, incomodan-do-o, chamando-o para se posi-cionar: “Você não sabe o que é

aNotações soBre romaNces (17)

rodapé | rinaldo de Fernandes

ser condenado sem culpa, você não avalia o que é passar quinze anos emaranhado nas próprias teias, confinado nas próprias in-quietações”. E incomoda-o ain-da mais ao rememorar: “Cruzei o portão da penitenciária aos vinte e cinco, quando a estrada da vida se estendia à minha frente desa-fiando meus passos. Fui roubado gravemente, o grito ainda ecoa, me acompanha feito um zumbi-do eterno”. O protagonista tem um relacionamento com Águi-da, filha de um deputado sór-dido. Águida, quando sabe que é traída, se suicida, atirando-se por uma janela. Começa aqui a

‘via crucis’ do protagonista: “Vol-tei para casa e tentei um diálogo ameno com Águida, que nada sa-bia de racionalidade. Seu coração era ainda mais escravo da paixão do que o meu. Chorou de forma contida, como quem não acredi-tara mesmo na reversão do des-tino, como se já estivesse pronta para o pior desfecho, e não me deu chance. Pulou. Aquele sal-to foi definitivo em nossas vidas. Encontraram-me prostrado, gol-peado, tantos dedos me aponta-ram, tantos olhos me cravaram a lança. Fui algemado e conduzido ao tribunal. De lá para o inferno do cárcere foi um passo”.

Rascunho é uma publicação mensal da Editora Letras & Livros Ltda.

Al. Carlos de Carvalho, 655.Cj. 1205. CEP: 80430-180

Curitiba - PR

[email protected]

EditorRogério Pereira

Editor-assistenteSamarone Dias

EstagiárioJoão Lucas Dusi

ColunistasAffonso Romano de Sant’Anna

Alberto MussaEduardo Ferreira

Fernando MonteiroJoão Cezar de Castro Rocha

José CastelloLuiz Bras

Raimundo CarreroRinaldo de Fernandes

Rogério Pereira

Projeto gráfico e programação visualRogério Pereira / Alexandre de Mari

Colaboradores desta ediçãoAndré Argolo

André Caramuru AubertAntonio Carlos Secchin

Breno KümmelCarolina Vigna

Clayton de SouzaGustavo Czekster

Haron GamalHenrique Marques SamynLuiz Guilherme Barbosa

Luiz Paulo FaccioliLuiz Ruffato

Marco Polo GuimarãesMarcos Alvito

Maurício Melo JúniorPatricia PeterlePaula CajatyPeron Rios

Pierre ReverdyPrisca AgustoniRodrigo Casarin

Vilma CostaVivian Schlesinger

iLustraDorEsDê Almeida

Fabiano ViannaFábio Abreu

Felipe RodriguesHallina Beltrão

OsvalterRamon MunizRobson Vilalba

Theo Szczepanski

o jornal de literatura do Brasil

fundado em 8 de abril de 2000

Realização

Lei 8.313/91 (Lei rouanet)Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac)

EditoraLetras & Livros

Patrocínio

Apoio

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vidraça | joão lucas dusi

12Garcia-Roza

Um lugar perigoso

15Adriana Lisboa

Parte da paisagem

46Pierre Reverdy

Poemas traduzidos

34David Foster Wallace

Graça infinita

Ziraldo no Flipoços

Ziraldo será o patrono do Festival Literário de Poços de Caldas (Flipoços) deste ano, que deve acontecer entre 25 de abril e 3 de maio, baseado no tema A literatura como resgate da velha infância. Para a diretora do festival, Gisele Ferreira, a escolha do autor se deu por sua habilidade ao se comunicar com os adultos que cresceram lendo suas histórias, e também pela atenção especial que os pequenos leitores receberão nesta edição do evento.

Ruffato na MantiqueiRaCom curadoria de Luiz Ruffato, o oitavo Festival da Mantiqueira será realizado de 10 a 12 de abril, em São Francisco Xavier, distrito de São José dos Campos (SP). Norteado pelo tema Todos os cantos, o evento deste ano vem com o objetivo de balancear as tendências da literatura brasileira contemporânea, passeando por seus diversos gêneros, reunindo autores de várias regiões do país. Para saber mais, acesse festivaldamantiqueira.com.br.

Revista HoblicuaA Hoblicua chegou ao mercado literário com o conceito de ser uma “revista para leitores” — de todos os gêneros —, com periodicidade semestral. Tanto autores conhecidos quanto desconhecidos podem passar pelas páginas da revista. Esta primeira edição conta, entre outros assuntos, com uma entrevista com Luiz Antonio de Assis Brasil e um ensaio sobre Euclides da Cunha. É possível enviar textos para [email protected]. E já fica o alerta dos editores: “Publicamos somente o que gostamos, unicamente. Simples assim”.

eM edição juvenilO livro autobiográfico Eu sou Malala, da paquistanesa vencedora do Nobel da Paz Malala Yousafzai, ganha em fevereiro uma edição juvenil pela Seguinte (selo jovem da Companhia das Letras), com ilustrações de Patricia McCormick.

contos coMpletos de WilliaM tRevoREm 2015, o selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, lança os Contos completos do multipremiado escritor irlandês William Trevor. Em 2014, o selo já publicou os romances A história de Lucy Gault e A jornada de Felícia — no site do Rascunho (rascunho.com.br), você pode ler a resenha sobre essas duas obras.

elisabetH Roudinesco na ZaHaRA historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco faturou 30 mil euros ao vencer o prêmio francês Prix de Decémbre 2014 pela biografia Freud dans son temps et dans le nôtre. O livro será publicado este ano no Brasil pela Zahar.

RubeM fonseca coMpletoCom a reedição dos títulos A confraria dos espadas, O buraco na parede e O romance morreu, a editora Nova Fronteira finalizou o trabalho de reedição da obra completa de Rubem Fonseca. Desde que chegou à editora, Fonseca publicou três inéditos: José, Axilas e outras histórias indecorosas e Amálgama, vencedor do Jabuti 2014 na categoria Contos e Crônicas.

paRa MulHeResCom o objetivo de estimular a produção de literária de jovens autoras, entre 18 e 35 anos, a Unibrasil promove o Concurso de Contos Dirce Doroti Merlin Cliève. A inscrição é gratuita e poderá ser feita de 26 de janeiro a 20 de fevereiro. A lista das dez classificadas será divulgada até 6 de março, com premiação em dinheiro para as três primeiras. Regulamento completo no site unibrasil.com.br.

pRêMio apca

A Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) divulgou os vencedores da 59ª edição do prêmio. Mais de 50 críticos se reuniram no Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e elegeram as melhores produções do ano. O recém-lançado O irmão alemão, de Chico Buarque, faturou na categoria Romance; Caetano Galindo voltou a faturar, desta vez pela tradução do calhamaço Graça Infinita, de David Foster Wallace; o Grande Prêmio da Crítica foi para João Adolfo Hansen e Marcello Moreira pelos cinco volumes Gregório de Matos; com Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo, Paulo Scott venceu na categoria Poesia; Contos e Crônicas foi para Sérgio Sant’Anna, por O homem-mulher; e Paulo Tatit ganhou na categoria Infantojuvenil com A incrível história do Dr. Augusto Ruschi.

novo RascunHoO novo Rascunho está demais. Visualmente lindo. Parabéns!Edson Cruz • São Paulo – SP

Ficou lindo demais e bom de ler o Rascunho em novo formato. Maravilha gutenberguiana.Xico Sá • São Paulo – SP

O novo formato do Rascunho está muito melhor, mais acessível e pratico à leitura!Célio Borba • Curitiba – PR

Parabéns pelo novo formato. Ficou inovador! Gostei. E o conteúdo... Sempre marcante.rodolfo Morbiolo • Sorocaba – SP

Folgo em saber que a polpuda quantia dispendida para assinar o Rascunho está sendo bem aproveitada. O novo formato está uma beleza! Parabéns.Sergio Napp • Porto Alegre – RS

A leitura do jornal ficou muito mais prazerosa com o novo formato. Aumentando a mobilidade, aumenta o alcance. Agora, consigo abrir e ler no metrô e ônibus sem grandes malabarismos. Sei que não é nada demais, mas gostaria de deixar registrado. Está aprovadíssimo.Yan Braz • Rio de Janeiro – RJ

O Rascunho mudou para melhor! Com a inovação, está marcando mais um grande feito. É a vitória da perseverança, determinação, credibilidade dos leitores e da garra do pessoal que faz literatura com inteligência. Luís Santos • Curitiba – PR

Parabéns pelo novo Rascunho. Tanto eu quanto os demais leitores estamos certos de que Deus acertou em ajudar você e os outros rascunheiros na mudança para melhor. Helena Ferreira • Rio de Janeiro – RJ

Gostei demais do formato adotado pelo Rascunho na edição 175. Ficou excelente! Sempre gostei muito do jornal, mas tamanho (o comprimento, para ser exato) até a edição 174 tornava mais difícil a leitura. Agora, está ótimo.Valdinar Monteiro de Souza • Marabá – PA

joRnalisMo cultuRalQuero parabenizar o Rascunho #174 [outubro de 2014], pelas excelentes matérias sobre (todas englobando) o jornalismo cultural brasileiro [refere-se ao Especial Dossiê Rumos Jornalismo Cultural, que discorreu sobre o jornalismo cultural contemporâneo].Cunha de Leiradella Póvoa de Lanhoso (Portugal)

[email protected]

janeiro de 2015 | | 3

divulgAção

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divulgAção

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4 | | janeiro de 2015

H á quem acredite (e defenda essa te-se com veemência) que só se conhece um lugar quando

se está nele, quando se viaja até ele. E é mesmo comum empre-gar o verbo “conhecer” nesses ca-sos: “conheci Pequim”, “conheci Istambul”. Discordo tragica-mente dessa opinião: uma expe-riência turística de três ou quatro dias não pode, para mim, mere-cer o nome de “conhecimento”.

Por isso, considero um desperdício gastar dinheiro com passagens e hotéis quando há li-vros muito mais baratos, quando há romances que nos fazem co-nhecer — agora no sentido mais rigoroso do termo — um lugar.

01.11.1987Visita à casa de Drum-

mond para conversar com Pedro — o neto — a respeito do livro iconográfico sobre CDA, com texto e organização meus, a ser editado em São Paulo. Emoção já de andar naquelas proximida-des onde morava o poeta... De-pois, a portaria e o elevador. O elevador subindo e eu pensando: por dezenas de anos Drummond subiu aqui — com que pensa-mentos? Quais necessidades? So-lidão? Eu na “caixa” dele, com ele. A porta do andar: o espelho dourado onde ele se mirava ao chegar. Batia para abrir a porta?

Lá, encontro o neto Pe-dro e a viúva Dolores, que vem apoiada numa bengala mas for-te e bem falante. E Octávio Al-varenga. Eu sem querer invadir, passar dos limites. Não profanar.

Ali, o sofá. Nos sentamos a tagarelar. Dolores contando que viveu com o poeta durante 62 anos — cinco de namoro; que ela era de Mar de Espanha e viveu na Rua Direita, em Juiz de Fora. Ex-pliquei-lhe o sentido do nome Mar de Espanha: lá, a rua central é pavi-

os tamBores de são luís

drummoNd, adélia, guilHerme

Penso, por exemplo, em Os tambores de São Luís, de Josué Montello. Talvez não ha-ja, talvez não seja possível escre-ver outro texto que descreva São Luís, que explique São Luís, que funde São Luís como esse ro-mance. Nem toda a vasta obra romanesca do próprio Josué, que tem a mesma cidade como cena básica, alcança tal façanha. E es-tou falando de um corpo de 26 romances, publicados entre 1941 e 2001. Quando estive lá, não vi nada que já não tivesse lido.

A ação principal se passa em 1915, e dura apenas algumas horas, enquanto o velho Damião caminha pelas ruas da cidade. É madrugada, mas ele vai testemu-nhar o nascimento do seu trine-

mentada de mármore de Espanha.Dolores se levanta com ajuda

da bengala, mostrando orgulhosa o quadro O negro, de Portinari, que, diz, precisa ser restaurado. Passeia entre os móveis e por tapetes anti-gos (sem ostentação), diria que de classe média decadente.

Pedro conta do tombo do poeta quando foi homenageado na Biblioteca Nacional. Teria ti-do um pequeno desmaio? Sen-tiu-se humilhado? Depois, outro tombo, na noite de 31 de dezem-bro, ali perto da rua Gomes Car-neiro, Arpoador — e o susto de toda a família que com ele estava.

Em seguida me levaram ao seu escritório. Ficamos os quatro ali, conversando: abrem livros, arquivos, pastas, o fichário, etc. Eu estive ali há vinte anos. Fa-zia minha tese, Drummond me recebeu, emprestou-me todas as críticas literárias sobre ele. Eu es-tava morando na rua Montene-gro (hoje Vinicius de Moraes) por um semestre, e Drummond me emprestou todo o seu arqui-vo para estudo e consulta. Eu pensava em terminar a tese ra-pidamente, mas acabei indo tra-

to. Nesse percurso, entra num botequim para comprar fósfo-ros e constata ter havido ali um duplo homicídio: o dono do es-tabelecimento está caído atrás do balcão com uma pancada na cabeça; e um homem desconhe-cido, vestido com roupas estran-geiras, está de bruços sobre uma poça de sangue, com uma facada nas costas. Com medo de se en-volver no crime, Damião segue seu caminho, ouvindo ao lon-ge o som dos tambores da Casa das Minas — mais tradicional e importante templo de culto aos Voduns jejes (equivalentes aos Orixás nagôs) existente no Brasil.

E são esses tambores ances-trais (pois Damião tinha nascido escravo) que o transportam ao

balhar com o Fernando Gabeira na pesquisa do Jornal do Brasil, e só terminei o estudo nos Estados Unidos, um ano depois. Na oca-sião, Drummond me ofereceu um suco qualquer. Só o incomo-dei outra vez, para devolver, daí a meses, o material.

Pedro diz que as cartas de Maria Julieta, sua mãe, para Drummond e Dolores formam pilhas e pilhas. Diz de coisas iné-ditas (os poemas eróticos).

O poeta tinha poucos li-vros. O quarto-escritório é pe-queno. Ele dava/jogava fora quase tudo que recebia.

Vi alguns santos de Alfredo Duval. Devo voltar noutra ocasião por causa do livro em andamento.

02.12.2010Ontem, na Faculdade Pi-

tágoras, em Divinópolis (MG), ocorreu algo raro e lindo. Adé-lia Prado, com quem, ainda na estrada, tinha falado por celular de manhã, apareceu na minha conferência. Chegou atrasada porque estava recebendo uma medalha da prefeitura de Divi-nópolis, e aí se sentou lá atrás.

passado e fazem a narrativa retroceder a cerca de 1830. O leitor passa a acompanhar a vida de Da-mião, que é a própria síntese da história de São Lu-ís, desde o seu nascimento numa fazenda; a fuga com o pai (que funda um quilombo); a destruição do quilombo e o retorno à fazenda; seu ingresso no seminário; sua alforria; seu casamento; e sua luta abolicionista — até o fatídico encontro com o des-conhecido morto no botequim, que irá proporcio-nar o grande impacto final.

Além da profunda exegese que Montello rea-liza em relação à cidade, Os tambores de São Luís talvez seja o grande romance brasileiro sobre a es-cravidão. Damião é uma personagem única: nasce escravo, se revolta, sofre horrores inconcebíveis (pa-ra nós, contemporâneos) quando volta à fazenda; torna-se o maior latinista do Maranhão, mas ainda assim é impedido de tomar ordens, por conta da sua origem; e passa por vários percalços, perde empre-gos e amigos, porque não se cala diante dos abusos e das ilegalidades que vitimam escravos e seus descen-dentes. Não tenho dúvida de que Damião é um dos maiores e mais humanos heróis da ficção brasileira.

O romance nos dá ainda uma galeria ines-timável de exuberantes e complexas personagens negras (coisa rara na literatura do Brasil), além de traçar um dos quadros mais perfeitos da mentalida-de escravocrata, consonante com sua abjeção. Te-mo que o leitor reconheça ainda seus vestígios, nos dias que correm.

A obra-prima de Josué Montello foi publicada em 1975, pela José Olímpio, tendo algumas reim-pressões. Depois, foi a vez da Nova Fronteira, sendo a última, de 2005, integrante da coleção comemora-tiva dos quarenta anos da editora. São edições fáceis de achar, em bom estado, por até R$ 20.

Interrompi minha fala, saudei sua entrada, todos a aplaudiram. Ela continuou lá no fundo.

A palestra ia de vento em popa quando Adélia não resistiu e resolveu fazer intervenções. Aí foi lindo, porque virou um con-certo a duas vozes, e o público, que já estava ligadíssimo, entrou em júbilo total.

Depois, saímos com Mar-celo Andrade, Débora Coghi e o motorista José Geraldo para um restaurante português que a po-eta indicou. Estava vazio e nos botaram lá em cima, sozinhos. Adélia recomendou um “baca-lhau ao Zé do Pipo”. A noite foi descontraída e a poeta estava co-municativa, falante.

Coisas interessantes a anotar:Adélia disse, de novo, que

acredita na ressurreição da carne. Perguntei-lhe como, com que corpo? Velho? Antigo? Ela acha que é com esse mesmo, mas bo-nito. Acredita mesmo.

No dia seguinte passa-mos por sua casa. Zé nos espe-rava na varanda. Entramos: tudo informal, mineiro, caseiro. Na parede, fotos de família; uma preciosa: do casamento de Adé-lia (vinte e poucos anos, bonita) com Zé (um partidão; era fun-cionário do Banco do Brasil), eles saindo da igreja, uma porção de gente em torno, com aquelas roupas dos anos 50/60. E os dois andando na frente, felizes. Tipo boda campestre nos trópicos.

Conversamos sobre as-suntos vários: família, filhos. Ela contou que está estudando física quântica com Zé, com um pro-fessor particular. Na saída, seu marido me diz que o professor é

manual de garimpo | alberto Mussa

quase diário | aFFonso roMano de sant’anna que paga para dar aula — ou se-ja, vai lá porque gosta — e que há outras pessoas que participam.

04.02.1996Visita a Guilherme Figuei-

redo, que me mostrou seu acervo e prometeu doá-lo à Bibliote-ca Nacional. Vejo seus arquivos: caixas que está usando para ter-minar sua autobiografia. Fala--me da morte com naturalidade: “Quando botar o ponto final no livro, posso morrer”.

Alba, sua mulher, estava na sala ao lado lendo jornal e ven-do TV, com roupa doméstica. Fazia um calor danado. Contou--me coisas que já esqueci. Pena. Sinto-me um agente funerário escrevendo crônicas.

06.12.2014Encontrei hoje, no shop-

ping Rio Sul, o filho de Guilherme Figueiredo, Marcelo, que se apre-sentou a mim e a Marina quando comprávamos umas camisas.

“Que prazer!”, lhe disse. “Estou me lembrando de quando fui à casa de seu pai negociar a ida dos arquivos dele para a Funda-ção Biblioteca Nacional. Mas isso não foi possível, porque meu su-cessor era inimigo de seu pai.”

Diz-me agora Marce-lo que finalmente (quase vinte anos depois) o arquivo vai para a UNIRIO, universidade que Gui-lherme dirigiu. Marcelo viveu em Paris e conta que o pai se arrepen-deu muito de não ter aceitado a função de diplomata na Unesco.

Alguém poderia reencenar as peças de Guilherme. Ele teve uma vida intelectual intensa. Era um grande contador de histórias.

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janeiro de 2015 | | 5

/itaucultural avenida paulista 149 são paulo fone 11 2168 1777 [email protected]

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DEIXE-SE INSPIRAR NO ITAÚ CULTURAL

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6 | | janeiro de 2015

Essa voz somos nós

Em discurso de recepção a Ferreira Gullar

na ABL, Antonio Carlos Secchin revisita a obra do autor de

Poema sujo

antonio carlos secchin

| rio de janeiro – rj

outono de 1945. Na cidade de São Luís, um adoles-cente, nascido na Rua dos Prazeres,

matriculado na Escola Técnica, obtém nota 9,5 numa redação so-bre o Dia do Trabalho, desenvol-vendo a ideia de que exatamente nessa data ninguém trabalha. Pa-ra a nota máxima, faltou apenas meio ponto, retirado pela mestra devido a dois erros de português. Não obstante, a partir daquele momento, estimulado pelo entu-siasmo que a professora manifes-tou pelo texto, José de Ribamar Ferreira começou a trilhar o ca-minho que o transformaria, poucos anos depois, em Ferreira Gullar. Se José nasceu em 10 de setembro de 1930, Gullar surgiu 17 anos mais tarde, com um so-neto — será coincidência? — in-titulado O trabalho, do qual cito o verso “Deixo um rastro de luz por onde passo”.

Toda vossa trajetória con-sistiu em perseguir e projetar esse rastro de luz por onde quer que passastes. A luz da esperança con-tra a sombria face de um mundo hostil. A luz da alegria contra o sofrimento. A luz da lucidez con-tra a treva do obscurantismo. Não por acaso, destes o título Uma luz do chão (2006) ao livro em que refletis sobre vossa pró-pria poesia, assim entendida:

Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e hu-milhada, dessa vida obscura e in-justiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consi-go as pessoas e as coisas que não têm voz. (....) quis fazer [do canto] a ex-pressão desse drama, o ponto de ig-nição onde, se possível, alguma luz esplenderá: uma luz da terra, uma luz do chão — nossa. (....) Noutras palavras: uma poesia que revelasse a universalidade latente no nosso dia, no nosso dia a dia, na nossa vida de marginais da história.

Ao lado do poeta que sois, convivem o dramaturgo, o fic-cionista, o biógrafo, o cronista, o tradutor, o teórico e crítico de arte, o ensaísta, o artista plástico, o memorialista. Vossa vasta obra representa o cabal desmentido contra o que, há muito tempo,

Ferreira Gullar por Fábio Abreu

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janeiro de 2015 | | 7

alguém declarou sobre a índole dos maranhenses: “Não há ter-ra no mundo que mais incline ao ócio, ou à preguiça”. O autor dessa frase foi o Padre Antônio Vieira, no ano de 1654.

Há muitos Gullares num só José. Pelas limitações de tem-po inerentes a esta cerimônia, circunscrevo-me a percorrer vossa produção poética, que se iniciou, sob forma de livro, em 1949, com Um pouco acima do chão, e que, por enquanto, estende-se até Em alguma parte alguma, de 2010.

Recusa a padrõesDo primeiro livro ao se-

guinte — A luta corporal, de 1954 — verificou-se um ex-traordinário salto qualitativo, a ponto de considerardes, com justiça, que somente na segun-da obra surge, de fato, o poeta. Quando, em 2008, organizei com vossa assistência a Poesia completa, teatro e prosa de Fer-reira Gullar, optamos por alo-car Um pouco acima do chão em “Apêndice”, considerando tal obra a manifestação de um escritor ainda incipiente. Aliás, outros importantes autores bra-sileiros da primeira metade do século 20 expressaram idêntica reserva frente a suas produções iniciais. Mário de Andrade ex-cluiu Há uma gota de sangue em cada poema (1917) das Po-esias completas, para inseri-lo no volume Obra imatura. Ce-cília Meireles chegou ao ponto de suprimir em sua bibliografia qualquer referência ao inaugu-ral Espectros (1919). Portanto, parece conveniente, para poupar futuras e severas autoavaliações, que um poeta trate logo de estre-ar pelo segundo livro.

A luta corporal ocupa uma posição destacada na poesia brasi-leira do século passado, tanto no que comporta de adeus à heran-ça de nossa tradição lírica, quanto no que sinaliza como perspectiva da literatura a vir. Não nos esque-çamos de que, à época, vigorava o ideário da Geração de 45, pro-pugnando o retorno às formas fi-xas e à reclassicização do discurso literário contra tudo aquilo que se acusava de ser os “excessos modernistas”. Poesia formal-mente bem elaborada, de temas universais, avessa ao humor e apoiada num léxico de extração nobre, impermeável, portanto, à fala cotidiana e refratária a um leque de referências mais próxi-mas do homem comum.

Os Sete poemas portugue-ses, na primeira parte de A luta corporal, constituem ao mesmo tempo a celebração e o epitáfio do “poema limpo” em sua pu-reza lexical, excluído das seções subsequentes do volume, como afirmação de recusa aos padrões poéticos já cristalizados. Sinto-maticamente, todos os sete po-emas portugueses se constroem com formas fixas — tercetos, quadras, quintilhas. Vossa insa-tisfação com o exercício de uma

poesia com parâmetros prévios aflora no verso “eu colho a au-sência que me queima as mãos”. Aí se verbaliza a consciência de que o artista se alimenta daqui-lo que não há, do invisível que se oculta num real sempre pouco e pequeno para nossa fome ines-tancável de compreendê-lo. Um real em perpétua fuga, inacessí-vel, a deixar apenas as feridas de uma ausência, que cintila no es-plendor de seu vazio. No mesmo poema, dizeis à amada-poesia: “Mas sempre que me acerco vai--se embora.// Assim persigo-a, lúcido e demente”. Os poetas são, a rigor, Ulisses às avessas: aventureiros que perseguem se-reias inalcançáveis e ensurdeci-das. Intuem que elas jamais se deixarão conquistar, mas sabem também que, apesar disso, com-pete-lhes cantar até a absolu-ta exaustão do derradeiro fio da voz, conforme se lê no magnífico Galo galo: “Eis que bate as asas, vai/ morrer, encurva o vertigino-so pescoço/ donde o canto rubro escoa.// Vê-se: o canto é inútil”.

Os demais segmentos de A luta corporal testemunham vosso embate contra tudo que representasse estabilidade poé-tica, num crescendo que culmi-na, em Roçzeiral, com a própria desintegração da linguagem, tentativa extremada de fazer o discurso nascer simultâneo ao po-ema, com o risco, aí implícito, de se criar um idioma artificial, na fronteira da incomunicabilidade. Cito: “MU gargântu/ FU bur-ge/ MU guelu, Mu”. Portanto, o poema que inventa a linguagem também decreta no mesmo passo a sua morte, pela intransitividade de uma fala que é puro fulgor do significante num processo de imi-nente autocombustão.

Essa vertente experimen-tal, no entanto, associada, em muitos poemas da obra, a um criativo aproveitamento do espa-ço gráfico, propicia que em A lu-ta corporal se percebam técnicas e procedimentos que, pouco de-pois, viriam a ser incorporados e desenvolvidos pelo Concre-tismo. Vossa aproximação com esse movimento de vanguarda, do qual vos separastes ao julgá--lo excessivamente tributário da mecanização/desumanização da escrita, legou a nossas letras, em 1958, um volume de textos concretos/neoconcretos, dentre os quais o antológico mar azul, em que, à maneira de uma onda, o verso inicial se repete — pois uma onda nasce da outra — pa-ra logo se reelaborar, pois uma onda é diferente da outra. Do “mar azul”, atravessamos o “mar-co azul”, o “barco azul”, o “arco azul”, até chegarmos à claridade do “ar azul”.

O epílogo do livro deixava em aberto um problema: como ir além da desintegração da lin-guagem? Impossível prosseguir nessa via, que, radicalizada, con-duziria ao impasse total de um discurso na beira da não lingua-gem ou do silêncio absoluto.

Poesia socialDialeticamente, desinte-

grastes a desintegração, rein-tegrando o signo à esfera da comunicabilidade. Surge daí o O vil metal, coletânea de pe-ças escritas entre 1954 e 1960. Alguns vestígios da dicção de A luta corporal, a exemplo da atomização linguística, ainda transparecem em Fogos da flora e Definições, mas, no conjunto, despontam novas formas e te-mas, que encontrarão guarida em toda vossa obra futura. As-sim a preferência ostensiva pelo verso e estrofação livres (contra-balançada, aqui e acolá, pela pre-sença de quadras em redondilha ou decassílabos); assim a extrema sensorialização — tátil, visual e olfativa — da realidade; a pul-sação lírico-amorosa; e o tempe-ro do humor, conforme se lê no texto de despedida a um aparta-mento partilhado com dois ami-gos, no Poema de adeus ao falado 56: “Meu anjo da guarda não/ levo; livro-me enfim/ desse que como um cão/ me protege de mim.// Deixo-o para a casa/ var-rer e defender,/ e sumir sob a asa/ o que quer se perder”). Inventá-rio de perdas, não só a do anjo da guarda, mas a do demônio do Modernismo, Oswald de Andra-de, à época um nome de pouco valor no mercado de ações lite-rário, mas que mereceu de vos-sa parte o comovente Oswald morto. Curiosamente, o livro se encerra por outro necrológio: Réquiem para Gullar.

De algum modo, fostes fiel a esse título, “matando” nas produções subsequentes o poe-ta refinado em prol dos sonhos da construção de uma socieda-de mais justa. Refiro-me, é cla-ro, ao período dos “romances de cordel” (1962-1967), onde o imperativo da imediata e maior comunicabilidade cobrava o pre-ço da menor elaboração estética. No exercício da “poesia social”, voluntariamente sacrificastes o substantivo em prol do adjeti-vo. Tempo de crença nas utopias coletivistas que iriam redimir a população sofrida do país, tem-pos que se encerraram no anti-clímax de uma ditadura que vos escolheu como uma de suas ví-timas preferenciais. O viajante Ulisses-Gullar teve então de tor-nar clandestino o seu canto. Em breve o forçariam a se evadir não das sereias, mas das sirenes e ho-lofotes que o perseguiam e ten-tavam acuá-lo Dentro da noite veloz, título publicado em 1975.

Toda trajetória de Ferreira Gullar consistiu em perseguir e projetar esse rastro de luz por onde quer que passastes. A luz da esperança contra a sombria face de um mundo hostil. A luz da alegria contra o sofrimento. A luz da lucidez

contra a treva do obscurantismo.

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8 | | janeiro de 2015

Livro com muitos poemas que escrevestes no exí-lio, abriga igualmente algumas obras-primas de vossa vertente lírica.

Talvez em decorrência das perseguições que sofrestes, difundiu-se o lugar-comum de que Ferreira Gullar é poeta político, quando, a rigor, só o fostes inteira e programaticamente na expe-riência do cordel. O contingente lírico-reflexivo de vossa obra suplanta sob qualquer critério, in-clusive quantitativo, o quinhão especificamente político. Mesmo naquele período sob o jugo da injustiça, vosso canto encontrou frestas para a celebração amorosa, fazendo às vezes confluírem no mesmo e esperançado texto a experiência so-cial e a experiência sensual:

Como dois e dois são quatrosei que a vida vale a penaembora o pão seja caroe a liberdade pequena

Como teus olhos são clarose a tua pele, morenacomo é azul o oceanoe a lagoa serena

como um tempo de alegriapor trás do terror me acena

e a noite carrega o diacom seu colo de açucena

– sei que dois e dois são quatrosei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caroe a liberdade pequena

Há outras peças de intensa celebração sen-sorial, a exemplo do originalíssimo Verão, em que a voluptuosa atmosfera dos trópicos vos propicia a leitura do estio comparado a um bicho que não aceita a extinção, e que, mesmo em seus estertores, ainda vibra como uma conclamação à vida:

A carne de fevereirotem o sabor suicidade coisa que está vivendovivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vivenão desiste de viver,fevereiro não desiste:vai morrer, não quer morrer.

O vento que empurra a tardearrasta a fera ferida,rasga-lhe o corpo de nuvensdessangra-a sobre a Avenida

E nesse esquartejamentoa que outros chamam verão,fevereiro ainda em agoniaresiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resistecomo uma fera ferida.É essa esperança doidaque é o próprio nome da vida

O veio memorialístico, aqui presente em A casa e Fotografia aérea, passa a ocupar toda a cena no livro seguinte, o Poema sujo, editado em 1976, e de pronto reconhecido como obra ímpar na poe-sia brasileira do século 20. Num fluxo ininterrupto ao longo de dezenas de páginas, em vez de retra-tar a nostálgica e pitoresca São Luís da infância, resguardadas ambas, cidade e infância, na redoma protetora e distanciada de um “lá”, esse livro-poe-ma expressa a eclosão avassaladora de um espaço e de um tempo longínquos, mas que se tornam pró-ximos e contemporâneos de vosso gesto de escrita: um ontem vivenciado como se estivesse renascen-do com transbordante intensidade no próprio mo-mento da enunciação do texto. Daí a flutuação dos

tempos verbais, num contínuo trânsito entre pre-sente e pretérito. Não apenas as temporalidades se justapõem (“Muitos/ muitos dias há num dia só”); também os espaços se interpenetram (“O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade”).

O gosto da frutaA densa e escura carga de sofrimento encap-

sulada Dentro da noite veloz aparentemente cede passo à esperança de luz contida Na vertigem do dia, livro de 1980, sobretudo se acreditarmos rápi-do demais no título do poema de abertura do vo-lume: A alegria — na verdade, um de vossos mais duros e doídos textos:

O sofrimento não temnenhum valor.Não acende um haloem volta da tua cabeça, nãoilumina trecho algumde tua carne escura

A dorte iguala a ratos e baratasque também de dentro dos esgotosespiam o sole no seu corpo nojentode entre fezesquerem estar contentes

Na vertigem do dia estampa, ainda, o cele-brado Traduzir-se. Após desenvolver uma série de antinomias entre um eu íntimo, excêntrico, e um eu público, sociável, o poema se encerra com a su-gestão de que a arte residiria não em um ou outro polo, mas na coabitação, tensa embora, dessas me-tades aparentemente inconciliáveis: “Traduzir uma parte/ na outra parte/ – que é uma questão/ de vida ou morte —/ será arte?”. Sim, inclusive porque “ar-te” é um signo já contido no bojo da palavra “par-te”. Quando se desconstrói a “parte”, eliminando-se o “p” inicial, ela deixa emergir, de dentro de seu cor-po fragmentado, a inteireza da palavra “arte”.

Barulhos, de 1987, dialoga acusticamente com Muitas vozes, de 1999. No primeiro, avulta o repertório de perdas — Oduvaldo Viana Filho, Cla-rice Lispector, Armando Costa, Mário Pedrosa — e intensifica-se vossa vertente metalinguística, como em Nasce o poema, relato da gênese de um texto, cujo estímulo, deflagrado em 1955, só materiali-zou-se em 1987, num testemunho de que dados imponderáveis interferem no ato criador. Também metalinguístico é O cheiro da tangerina, no questio-namento da relação, nunca resolvida, entre os obje-tos e as palavras que supostamente os representam. Na mesma direção se insere, no livro de 1999, o po-ema Não coisa: “O que o poeta quer dizer/ no dis-curso não cabe/ e se o diz é pra saber/ o que ainda não sabe.// A linguagem dispõe/ de conceitos, de nomes/ mas o gosto da fruta/ só o sabes se a comes”.

No prefácio a Em alguma parte alguma, de 2010, pude observar:

Poesia meditativa, sim, mas cuja alta reflexão não elide, antes convoca, a ostensividade da matéria, em todas as suas dimensões. Versos banhados em luz (em especial, a das manhãs maranhenses), versos atra-vessados pelos ruídos de risos e gorjeios, abastecidos no sabor de peras e bananas, aconchegados na epiderme feminina, embriagados pelo odor dos jasmins — em nossa poesia, Gullar é quem mais se destaca numa li-nhagem que erotiza o corpo do mundo. (...) Subjaz nessa poesia uma nota renitente de que o homem é condenado à sua arbitrária individualidade e só lhe resta inventar — por exemplo, na arte — outras orde-nações ou desordenações do real, em que a morte seja vencida, os encontros sejam possíveis, e as coisas enfim, ganhem algum sentido.

Gostaria, por fim, de endereçar essas conside-rações para um terreno mais pessoal, destacando os laços de amizade que nos unem. Importa destacar, em vossa biografia, os vigorosos princípios éticos que a norteiam, e a correlata manifestação de tais valo-

o autor

FERREiRA GuLLAR

José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, nasceu em São Luís do Maranhão (MA), em 1930. Nos anos 1950, mudou-se para o Rio de Janeiro (RJ). Publicou diversos livros de poemas, como o clássico Poema sujo (1976), e ensaios sobre arte e cultura, entre eles Experiência neoconcreta. Resmungos (2006) foi premiado com o Jabuti de Melhor Livro de Contos e Crônicas.

prateleira

Ferreira Gullar

Poema sujoJosé Olympio112 págs.

BaruLhosJosé Olympio108 págs.

Dentro Da noite velozJosé Olympio120 págs.

a luta corPoralJosé Olympio156 págs.

muitas vozesJosé Olympio128 págs.

na vertiGem Do DiaJosé Olympio96 págs.

Bananas PoDresCasa da Palavra64 págs.

res no decurso de vossa produção literária, a ponto de eu haver de-nominado Gullar: obravida um estudo que lhe dediquei, com os dois substantivos comuns reu-nidos nesse neologismo. Não vou deter-me nos percalços que enfrentastes, tampouco no de-sassombro e na altivez de vossa re-sistência frente ao arbítrio. Prefiro concentrar-me nos anos mais re-centes, marcados por episódios fe-lizes, como o recebimento da mais alta láurea desta instituição, o Prê-mio Machado de Assis, em 2005; a obtenção do título de Doutor Honoris Causa, conferido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2010; no mesmo ano, vossa vitória no Prêmio Camões; no dia 9 de outubro de 2014, vos-sa eleição para a Casa de Gonçal-ves Dias, chamemo-la assim, em homenagem ao patrono da cadei-ra 15 e vosso conterrâneo.

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janeiro de 2015 | | 9

Agora, simbolicamente, 69 anos depois, a Academia Brasileira de Letras vos restitui aquele meio ponto que a pro-fessora subtraiu na redação de 1945: aqui, sem dúvida, fostes acolhido com a nota máxima. Neste 5 de dezembro de 2014, respaldado por votação con-sagradora, assumis a cadeira 37, honrando a representação de um estado nordestino que já contribuíra com o expres-sivo montante de dez escrito-res para o quadro de membros efetivos da Casa. Como fostes jogador de futebol na equipe juvenil do Sampaio Correia, podemos afirmar que, com a entrada na Academia do dé-cimo primeiro maranhense, a escalação do time estadual fi-nalmente se completa.

Sinto-me particularmen-te sensibilizado pelo fato de su-cederdes Ivan Junqueira, de quem fui amigo muito próxi-mo antes mesmo de nossos dez anos de convívio acadêmico, e a quem homenageastes num belo discurso. Vários elos co-nectam nossas três vidas. Ivan e eu dirigíamos a Revista Poesia Sempre quando, em 1998, nos concedestes aquela que talvez seja a mais extensa e relevan-te entrevista sobre vossa obra, espraiando-se por 42 páginas. Ivan foi editor da Revista Pira-cema, quando estivestes à frente da Funarte. No ano 2000, vosso antecessor assumiu a cadeira 37, na vaga de João Cabral de Me-lo Neto, outro escritor de mi-nha particular consideração. Por fim, expresso a alegria de nesta noite receber o poeta que suce-de ao poeta que me recebeu em 2004. O destino atou com per-feição as pontas desse triângulo delicadamente tramado na con-fluência do afeto e da poesia.

Em Y-juca-pirama, de Gonçalves Dias, declara um personagem: “Em tudo o rito se cumpra”. Nos primórdios da ABL, todos os discursos de recepção, ditos “de resposta”, utilizavam a segunda pessoa do plural, o “vós”; tal tradição es-tá longe de se extinguir, pois, já no século 21, das quinze mais recentes saudações, oito se va-leram dessa forma de tratamen-to. Neste instante, porém, peço licença para transformar “Vossa Mercê” em “você” e para come-ter uma pequena transgressão ortográfica: mantenho o “vós”, mas retiro o acento agudo e troco o “s” pelo “z”.

Quero louvar a voz de um poeta maior que ingressa na Academia Brasileira de Le-tras. Com a tácita concordância de tantos confrades que lhe su-fragaram o nome, despeço-me com a citação de um verso em que você proclama a vocação agregadora da palavra poética, convidando a que todos nela se reconheçam. Assim, comparti-lhando a alegria de sua chegada a esta Casa, ouso dizer que hoje “Essa voz somos nós”.

a luta corporal ocupa uma posição destacada na poesia brasileira do século passado, tanto no que comporta de adeus à herança de nossa tradição lírica,

quanto no que sinaliza como perspectiva da literatura a vir.

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10 | | janeiro de 2015

A falência do glamour

Protagonista do novo romance de Edney Silvestre é o próprio retrato do fim de uma época

Maurício Melo júnior | brasília – dF

o novo romance de Edney Silves-tre, Boa noite a todos, não é, de sorte, um roman-

ce, mas a junção de três gêneros num único volume: uma nove-la, um monodrama, um ensaio. Não que o autor se entregue ao experimentalismo de unir de ma-neira híbrida todos os gêneros. Aqui, o processo é outro. Edney escreveu de fato uma novela que, já neste processo, descobriu ter certo potencial para o teatro, daí nasceu o monólogo. Finalmente, se dedicou a redigir um breve en-saio onde mapeia o curso de sua criação. O resultado é um livro em que, além dos temas caros ao enredo, também se discute as vá-rias possibilidades de narrar uma história. Isso pode até parecer pouco, mas num instante em que cada vez mais o escritor é desmi-tificado e abandona sua famige-rada torre de vidro, a opção de Edney é muito bem-vinda.

Todo o enredo parte da dis-posição de Maggie, a protagonis-ta, de se jogar do andar mais alto de um hotel de luxo construído exatamente no lugar da antiga ca-sa de seu avô, e onde ela nasceu. É, a rigor, o fechamento de um cír-culo, que vai da opulência à falên-cia. Para tanto, gasta seus últimos centavos: “Chegou ao hotel em um táxi. Trazia duas malas. Em uma levava os três livros favoritos. Na outra, a roupa para o salto”. É tudo o que lhe resta, além de uma memória esparsa e falha sobre to-das as etapas de sua vida glamoro-sa. Ao rapaz que levou sua pouca bagagem até o quarto dá o último dinheiro de que dispunha.

Maggie se preocupa com o que será feito desses restos. Quer seu corpo cremado, mas aquela parca e pobre herança talvez não interesse nem mesmo sua úni-ca parente viva, a sobrinha An-tonia, com quem não mantém qualquer relação. Tudo enfim se perdeu. E ela teve uma vida rica e instigante. O pai vinha de uma família de posses e sobrevivia co-mo servidor do Instituto Brasilei-ro do Café em Londres. Isso dava a Maggie, que se acha parecida

(In)VerossímilA grande diferença de Boa

noite a todos está na estrutura narrativa. Na novela ainda surge um narrador onisciente que rea-parece sempre que se faz neces-sário inserir a protagonista num determinado contexto.

Maggie dá três passos, pa-ra, olha em volta. A suíte Marcel Proust é o arremedo de um peque-no salão parisiense do início do sécu-lo 20, buscando um requinte mais imaginado do que real, atulhado de móveis demasiadamente dourados, poltronas e cadeiras forradas com tecidos inadequadamente mornos, uma grande cama coberta por uma colcha excessivamente cintilante.

Como se vê, este narrador comunga das mesmas sauda-des de Maggie, saudades de to-do um universo do passado que se desfez nas novas leis ditadas pelos novos ricos — segundo a personagem, “chefões de jogo do bicho, pastores evangélicos de igrejas recém-inventadas, delega-dos enriquecidos com propinas e chantagem, misses viúvas de ve-lhos ricos, escroques internacio-nais, políticos corruptos”.

Mas Maggie, narradora de toda a peça e da maior parte da novela, é uma depoente in-fiel. Além de suas idiossincrasias, frustrações, mágoas e rancores, está revestida por imensas falhas de memória. Ou seja, ela mesma não dá certeza de nada.

Ainda vi o corpo de minha mãe sendo levado na maca. O ros-to dela, tão pálido. Mais pálido ainda do que sempre era. Acho que vi. Mas não me levaram para o ve-lório nem vi o enterro. Não consi-go lembrar o nome de minha mãe. Nunca se falava nela. Nunca se to-cava no nome dela.

O recurso usado por Ed-ney Silvestre, de certa forma, es-tabelece determinado senso de perdão para Maggie. Como não perdoar uma pessoa em plena fa-lência pessoal? E esta falhou em tudo. Não conviveu com a mãe, não teve o carinho do pai, desfez três casamentos, traiu a meia-ir-mã, foi esquecida pela sobrinha. Só lhe resta o suicídio. Seu mun-do é irreal e também fútil, além de insustentável.

Com uma linguagem qua-se rasteira, extremamente oral, a personagem se oferece como o fim de uma época. E por tudo isso nasce como uma persona-lidade complexa, capaz mesmo de encantar o público de teatro. Como ser literário, falta-lhe uma porção mais generosa de profun-didade psicológica. Ela passa por tudo e por todos sem qualquer remorso ou culpa. A decisão pe-lo suicídio se dá como uma espé-cie de tributo ao mundo que se diluiu de maneira definitiva.

No entanto, a opção por retratar Maggie como alguém tão superficial talvez tenha sido uma decisão acertada do autor. Ele confessa no ensaio que co-nheceu bem este ambiente:

trecho

Boa noite a toDos

Pense numa música, Maggie. Qualquer música. Você gostava tanto de música. Como era aquela canção alemã que você ouviu numa noite de gala, no Metropolitan de Nova York, aquela canção de Richard Strauss que a encantou tanto, na voz da majestosa mezzosoprano negra? Ouça, Maggie.

o autor

EdnEy SiLvEStRE

É jornalista e escritor. Repórter especial da Rede Globo, foi correspondente da emissora em Nova York e atualmente apresenta o programa GloboNews Literatura. Autor de dias de cachorro louco, outros tempos e Contestadores, estreou na ficção com Se eu fechar os olhos agora — vencedor dos prêmios Jabuti de Melhor Romance e São Paulo de Literatura, e lançado em outros sete países. Publicou ainda A felicidade é fácil e Vidas provisórias.

Boa noite a toDosEdney SilvestreRecord204 págs.

Quando a personagem sur-giu, há cinco anos, seu fim já estava traçado. Tal como se passa na peça e na novela. Tal como se deu na vida real. Porque Maggie, como tantos personagens de textos meus, é ins-pirada em gente que existiu e com quem convivi. O que alterei, e alte-rei muito, foram traços íntimos, ca-pazes de tornar Maggie mais uma criatura de ficção do que um arre-medo de alguém que existiu.

Assim, fica a lição: a um fic-cionista nem sempre é dada a pos-sibilidade de reverter aquilo que Umberto Eco classificou como irrealidade do cotidiano. A vida de Maggie é verossímil, sim, mas bem que poderia tê-la afetado de maneira mais contundente.

com Jacqueline Kennedy Onas-sis, um passaporte diplomático e a possibilidade de transitar entre Londres, Nova York, Paris e o Rio de Janeiro, de onde leva objetos tropicais e exóticos para vender naquilo que chama de “my beau-tiful muamba”. Fez três casamen-tos, mas saiu do último, com um certo PR, sem nada. Ele a trocou pela filha de um construtor, “uma tolinha vinte anos mais jovem, paulistana como ele, vulgar e exi-bicionista como ele, sem um pin-go do meu refinamento e do meu trânsito internacional”.

Em outras palavras, Mag-gie é uma típica mulher do res-quício de glamour que ainda sobrevivia na rota internacio-nal das décadas de 1960 e 1970. Todo aquele universo parecia um reflexo meio baço da pom-pa projetada por clássicos de Hollywood como Bonequinha de luxo, de Blake Edwards, e Quan-do o coração floresce, de David Le-an, onde Veneza, Paris e Nova York são cidades mais sonhadas que vividas. Os cenários de Ed-ney Silvestre, embora mais reais, trilham as mesmas ruas.

divulgAção

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janeiro de 2015 | | 11

Nem tão bonecas

Eliana Cardoso expõe o íntimo de mulheres que protagonizam seus próprios destinos

haron GaMal | rio de janeiro – rj

o ser humano é um ser cultural, vive criando transcen-dências, sentidos e significados que

vão além do caráter utilitário de cada objeto — os próprios ob-jetos em si têm seu fundamento metafísico. E a literatura é a me-dida desse mundo da cultura, da transcendência. Mesmo que não se queira mergulhar fundo, a ati-vidade de escrita acaba por revelar conceitos que estão muito além daquilo que pensamos quando escrevemos. Apenas por isso, já se pode perceber a necessidade da imaginação. O consequente ato de contar histórias não está disso-ciado deste universo.

Outro fato interessante é que acabam sendo nomeadas co-mo arte e, no nosso caso, como literatura, as obras que tocam o caráter trágico da existência hu-mana. Os personagens tempe-ramentais, soturnos, que pouco sorriem, normalmente são os que permanecem. Corroboram os livros de Dante, Shakespeare e Dostoiévski, entre outros. O próprio personagem que visita as três esferas na Divina comédia, Hamlet ou mesmo Otelo, Ivan ou Dimitri Karamázov são pun-gentes e trágicos.

E como situar a literatura da sutileza nessa marcha contur-bada de personagens que habi-tam a literatura universal? Pois na sutileza também é possível encontrar o nível trágico da exis-tência. Sua representação, por-tanto, não se tornará menor. É o que acontece no romance Bone-cas russas, de Eliana Cardoso.

DesnudamentoA narrativa, que aborda a

vida de várias mulheres, come-ça com duas primas, Leda e Lo-la, num diálogo em que, como revela o título do capítulo, Leda aparece nua. Mas ambas já não são jovens. Leda pergunta a Lo-la: “Quero saber o que você vê”, ao que a prima prontamente res-ponde: “Uma velha pelada”.

Este início imprime à nar-rativa certa desmistificação a res-peito do corpo feminino e, ao

mesmo tempo, insere a sutileza como componente catalizador do que se poderia nomear de trágico. Adotando tal artifício, a autora não apenas se contra-põe ao conceito contemporâneo de beleza e a como as mulheres são vistas na sociedade, mas aca-ba conduzindo o leitor a um pa-tamar acima, fazendo-o flertar com o trágico, pois o envelhe-cimento e o perecimento estão à vista. No âmbito da história, esse desnudamento — podemos entender assim a alegoria — ar-rasta consigo importantes conse-quências. As mulheres não serão somente microcosmos da huma-nidade, mas se mostrarão nuas também em relação aos seus sen-timentos e angústias.

Apesar de o romance come-çar com uma quase brincadeira, pouco a pouco ele vai se reve-lando de uma intensa seriedade. O retorno à infância de Leda e a descrição do mundo dos adultos sob a perspectiva de uma criança alimentam buscas a tempo e ati-tudes perdidos. Estes, logicamen-te, não podem ser recuperados.

Sua mãe, Francisca, foi uma artista plástica, uma ceramista, e Leda vivia em meio às obras de arte produzidas por ela. Mas a mulher não lhe dava atenção, acabou trocando marido e filha pelo amante e partindo para o ex-terior. Morando na França, on-de permaneceu até o fim da vida, Francisca veria a filha apenas uma única vez. Leda a visitou quan-do já adulta, no mesmo ano em que Francisca vem a falecer. É um momento pungente da narrativa.

uma das histórias, os anjos aglo-meram-se sobre a cabeça de um alfinete e se põem a formar uma incrível escada; o desafio maior é que mantenham a formação, uns sobre os outros. Aqui, por incrí-vel que pareça, a autora procura desenvolver uma sedutora tese sobre o tempo e o espaço:

O espaço não só pode ser multiplicado como também dividi-do infinitamente, sem que se chegue ao nada. Bastava lembrar que era possível dividir o tempo sem se che-gar ao tempo zero e dividir o movi-mento sem se chegar ao repouso.

No final, 308.428 anjos posicionam-se sobre a cabeça de um alfinete.

A alegoria pode ser inter-pretada de várias maneiras, so-bretudo num momento delicado para a instituição religiosa conhe-cida como Igreja Católica Apos-tólica Romana. Mas o padre mantém a fantasia de Leda, con-versa com os seres invisíveis e tra-duz o diálogo para ela. Ao fim, a ainda menina chega à conclusão de que ele acabaria expulso da igreja por promover heresias.

ExcessosA metalinguagem tem sido

trazida à tona em muitas obras de arte, sobretudo quando se trata de literatura. Grande parte dos autores da atualidade tende a abandonar o recurso da metalin-guagem por acreditar que seu uso tornou-se desgastado nos últimos anos, pois inúmeras obras perde-ram o sentido porque passaram a ter como foco elas mesmas. Por outro lado, um exemplo de perti-nência é a novela Max Ferber, de W. G. Sebald, em Os emigran-tes. Nesse livro, no entanto, a presença do pintor alemão com sua arte fuliginosa é o retrato da tragédia que se abateu sobre sua família e sobre grande parte da Europa em meados do século 20.

Por outro lado, há autores em que este artifício passa desper-cebido, privilegiando os aconteci-mentos e conflitos com o intuito de manter o leitor preso ao enre-do. Mas neste romance, tal como a exposição do corpo feminino apresentado no início da narrati-va, a metalinguagem está a marte-lar sua presença, exibindo-se cada vez de modo mais intenso. Isso ocorre quando a história é centra-da na imagem de Leda, que está a escrever um diário, ou, de mo-do mais amplo, quando a autora usa a narrativa para falar sobre ar-te. Há também muitas menções a escritores e artistas plásticos.

Tal atitude gera duas con-sequências. A primeira é que a narrativa pode ser permeada pela beleza das obras descritas, criando uma atmosfera de requinte. A se-gunda consequência é temerária, porque pode denotar certa insufi-ciência narrativa compensada com referências a tais obras. No livro de Eliana Cardoso, elas são excessivas e frequentemente desviam o foco do que está acontecendo. Portan-to, cabe ao leitor julgar a pertinên-cia ou não da estratégia.

FantasiaDentre as possíveis leituras

que Bonecas russas oferece, há a trajetória das mulheres, suas esco-lhas e tentativas de serem donas do próprio destino. Uma velha questão é abordada: como amar sem que o casamento ou a mater-nidade as escravize? Muitas vezes, no afã de optar pela realização do desejo, elas são tomadas pela cul-pa, da qual jamais conseguirão se livrar. É o caso de Francisca em relação a Leda. Outro fator é que a juventude acaba, e todos pre-cisam se defrontar com os danos causados pelo passar dos anos, sobretudo quando se começa a envelhecer e é necessária a convi-vência com a juventude e o vigor presentes na nova geração.

Quanto à forma, o roman-ce é dividido em vinte capítulos (todos com títulos) e construído por várias vozes. Quase todos os personagens principais — e são muitos — têm o seu momento de narrador. Há também capítu-los compostos por cartas e men-sagens de e-mail. Essa estratégia torna a narrativa difusa, acentu-ando as características de cada personagem e ressaltando a frag-mentação, já discutida e sempre retomada na literatura desde o início do século 20.

O fantástico também se apresenta num dos capítulos, narrado a partir da perspectiva de Leda, que sempre gostou de inventar histórias. Eis o resumo do trecho. Leda visita um excên-trico padre chamado Mateus, que teima em afirmar que con-versa com anjos e arcanjos. Em

trecho

Bonecas russas

Fui visitá-la em 2007 numa viagem a Paris. Ela continuava elegante e se perfumou para caminhar comigo nos jardins de Luxemburgo. Parecia mais jovem do que eu. Ainda gostava de ostras e champanha. Tinha abandonado a cerâmica a pedido de “cher”, que perdera o “mon” e o “e” prolongado. Perguntei sobre o vaso violeta e ela se mostrou surpresa.

a autora

ELiAnA CARdoSo

Nasceu em Belo Horizonte (MG). Formou-se em economia na PUC-RJ, concluiu o mestrado na Universidade de Brasília e o doutorado em economia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Trabalhou para o Banco Mundial na China, na Índia, no Paquistão, entre outros países da Ásia, e foi professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV). É autora de outros nove livros e tem mais de quarenta trabalhos publicados em revistas acadêmicas. Atualmente, é colunista do Valor Econômico e mora em São Paulo (SP). Bonecas russas é seu primeiro livro de ficção.

Bonecas russasEliana CardosoCompanhia das Letras97 págs.

Apesar de o romance começar com uma quase brincadeira, pouco a

pouco ele se vai revelando de uma intensa seriedade.

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12 | | janeiro de 2015

O crime perdidoEm Um lugar perigoso, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, a

memória e o esquecimento são personagens centrais

luiz GuilherMe barbosa | rio de janeiro – rj

l uiz Alfredo Garcia-Ro-za faz de sua atividade como escritor de nar-rativas policiais uma pesquisa. A cada livro,

o autor parece testar algum limi-te do gênero, desde a porosidade na demarcação da cena do crime, até as marcas do testemunho do homem velho que constrói perso-nagens que, como quem envelhe-ce, esquecem os crimes (esquecer será um crime? e lembrar?) ou cujos depoimentos, por desim-portantes, seriam esquecidos pelo investigador. É também esse o ca-so de Um lugar perigoso, o dé-cimo primeiro romance policial do escritor que, desde O silêncio da chuva, com que estreou em 1996, vem construindo uma obra com regularidade e força na lite-ratura contemporânea.

No novo livro, acompa-nhamos a história de Vicente Fernandes, um professor de lite-ratura aposentado após ser diag-nosticado com uma síndrome que afeta a sua memória e o faz suprir os esquecimentos com fa-bulações sobre a própria vida. Para lidar com a doença, faz ano-tações em cadernetas registrando eventos de que possa se lembrar posteriormente. A trama se ini-cia após Vicente ler, numa dessas cadernetas, uma lista com nomes de mulheres e, ao fixar-se no no-me Fabiana, associá-lo à imagem de um corpo nu de mulher, sem rosto, com os membros separa-dos do tronco, “como os de um manequim de vitrine”. Sem po-der decidir o que é fato ou ilu-são, angustia-se:

Mas ele havia lido também que na memória nada se perde, que o passado se conserva integral-mente, e que o esquecimento é uma defesa contra a emergência des-se passado armazenado cada vez que precisamos recorrer a ele. Isso queria dizer que a função maior e mais importante da memória não é lembrar, mas esquecer. Esquece-mos para não nos afogarmos num interminável tsunami de lembran-ças. No caso do nome Fabiana, ele tinha apagado a lembrança, mas não tinha apagado a lista da caderneta. Essa lista ficara como signo externo de algo que fora es-quecido ou como fragmento de algo que se perdera.

No território da memó-ria, delineado nas reflexões do professor de literatura, disputa--se a sobrevivência. Saber sobre Fabiana torna-se tão decisivo para Vicente porque sabe que o esquecimento não é um apa-gamento, mas uma rasura: o ra-bisco, a ilegibilidade convidam à leitura do que se esconde, do que se considerou um erro. E por is-so esquecer não significa uma destruição da linguagem, mas antes, na medida em que o ra-bisco, o risco ilegível já são uma forma de escrita, esquecer é tam-bém uma maneira de falar. É por isso também que Vicente, an-gustiado com o nome intrigan-te que lhe aparece na caderneta, mergulhando em lembranças

Luiz Alfredo Garcia-Roza por Robson Vilalba

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janeiro de 2015 | | 13

o autor

Luiz ALFREdo GARCiA-RozA

Nasceu em 1936, no Rio de Janeiro (RJ). Após trilhar carreira como professor de filosofia e psicologia na UFRJ, estreou na literatura em 1996, com O silêncio da chuva, e desde então publicou onze narrativas policiais.

um luGar PeriGosoLuiz Alfredo Garcia-RozaCompanhia das Letras264 págs.

A consistência da obra de Garcia-Roza reside nessa densidade reflexiva de fundo, que é tanto bebida na tradição do romance policial quanto no recurso que possibilita a pesquisa livro a livro do narrador — a psicanálise.

das quais não pode saber a ve-racidade, conclui: “A memória é um lugar perigoso”.

Suspense inusitadoÀ expectativa de um ro-

mance policial, o título do livro, Um lugar perigoso, conduz a imaginação do leitor à cena do crime. E, de fato, ao longo do livro, a dificuldade em estabele-cer tal cena produz um suspen-se inusitado (e ao mesmo tempo caro à obra de Garcia-Roza): há crime? Pois o há em sentido la-to: se é a memória o lugar peri-goso, então é a memória a cena do crime. Mas de que crime se trata então, e qual a necessidade de investigá-lo? Parece que o en-godo em que cai o leitor com o título é uma pista forte. Por um lado, a confiar na linguagem, a cena do crime é, de fato, a me-mória. Por outro, a desconfiar da linguagem, o leitor tende a esquecer que a palavra “lugar” pode localizar um espaço simbó-lico. Se o crime é a cena em que a lei não foi cumprida e a verdade não foi estabelecida, então terá sido algo como um crime a am-biguidade desse título, que sus-pende a verdade do sentido das palavras à espera da leitura in-vestigativa que restitua a unici-dade semântica. Em se tratando de literatura, se a unicidade do sentido não puder ser restituída, pode-se considerá-la um crime de lesa-linguagem.

A consistência da obra de Garcia-Roza reside nessa densi-dade reflexiva de fundo, que é tanto bebida na tradição do ro-mance policial quanto no recurso que possibilita a pesquisa livro a livro do narrador — a psicanálise. Ao longo do romance, o profes-sor Vicente ocupa-se em traduzir para o português, por encomen-da de uma editora, os contos de Poe. E é o próprio narrador que, ao descrever Vicente buscando recordar-se de traços de memória que o conduzam ao nome de Fa-biana, o situa “numa impossível sessão psicanalítica em que fos-se ao mesmo tempo psicanalista, paciente e arqueólogo”.

Ricardo Piglia, num de seus brilhantes ensaios chama-do Os sujeitos trágicos (literatura e psicanálise), dedica-se a elabo-rar a relação entre psicanálise e gênero policial, defendendo que o detetive (invenção de Poe), que procura interpretar (é um lei-tor) os sinais do que aconteceu, cuja existência é o indício de que a polícia funciona mal (pois os crimes pululam), “é o derradei-ro intelectual, mostrando que a verdade já não está nas mãos dos sujeitos puros do pensar (como o filósofo clássico ou o cientista), mas deve ser construída em situ-ação de perigo, função que passa a encarnar”. A impureza do pen-samento detetivesco, diferen-temente da tragédia, na qual o personagem investiga a verdade da própria vida, consiste em um (o detetive) interpretar a vida do outro (o criminoso) na qual se acha estranhamente implicado. No herói trágico, o analisando;

no detetive, o analista: segundo Piglia, “a psicanálise tem algum parentesco com essas formas”.

Sem cadáverA estranha implicação do

detetive no caso se dá por ini-ciativa do professor Vicente, que procura a polícia para rela-tar a insistente imagem da mu-lher desmembrada, associada ao nome de Fabiana na caderneta, associada à síndrome de que é portador, sugerindo-se como sus-peito de ter cometido um crime que não se sabe se ocorreu. O de-legado Espinosa, o personagem central da obra de Garcia-Roza, considera a história curiosa mas a princípio sem interesse policial pois não há cadáver. Ao que Vi-cente, intrigado, pensa:

Então era um cadáver o que estava faltando. Sem cadáver não há crime. Um corpo atirado num alto-forno dissolve-se por comple-to, é transformado em fumaça. Isso elimina o crime? O fogo intenso, ao eliminar o corpo, elimina o crime e consequentemente o criminoso?

Vicente dá-se conta das implicações éticas de a cena do crime ser o sujeito. É possí-vel que o paradigma de tal cena seja o nazismo. E, no Brasil, a ditadura civil-militar e seus de-saparecidos (ou seja, sequestra-dos, torturados, assassinados). É como se reconhecer o sujeito como cena do crime fosse o tur-ning point para a construção de uma ética que não se restringe à aplicação da lei, de uma ética na qual o lugar de fala do sujeito é, ao mesmo tempo, o lugar de fala do outro. Como se, ao fazer jus à proposição de Lacan “o incons-ciente é o discurso do Outro”, o consciente que fala com base na cidadania reconheça que esta fa-la, tracejada pelo inconsciente, é também a fala do Outro.

O crítico Karl Erik Schol-lhammer estudou as transfor-mações da cena do crime na literatura moderna no ensaio de abertura de seu livro Cena do crime: Violência e realismo no Brasil contemporâneo, publi-cado em 2013. Ao flagrar, to-mando como paradigma a obra de Rubem Fonseca, uma trans-formação na compreensão da função do detetive como “agen-te da racionalidade”, típica das narrativas policiais do século 19, Karl Erik propõe o crime — e sua cena — como cena de des-conhecimento progressivo para o investigador, que quanto mais sabe sobre o que aconteceu me-nos sabe sobre por que, como, quando, onde aconteceu.

Assim, a crise do detetive como agente da racionalidade do século XIX torna-se emblema de uma narrativa cética que ques-tiona tanto a integridade do su-jeito da ação quanto o alcance de sua razão. Surge daí uma cegueira por parte do sujeito em busca da verdade, e o crime passa a ocupar na narrativa policial o ponto focal dessa limitação de conhecimento,

interrompendo a ilusão de uma coerência causal entre o acontecimento e suas condições. Como consequência, a própria temporalidade narrativa é colocada em questão na cesura entre a causa e o efeito que não será mais sutu-rada por uma explicação final.

Para uma narrativa cujo cadáver é a memória — pois é ela que morre para o professor Vicente — a ce-gueira de que fala o crítico começa por ser enunciada pelo próprio criminoso, de modo que para o detetive a cena do crime é o outro. Assim o detetive encon-tra o analista, com a função de ajudar o criminoso a construir a cena do crime, trabalhando em prol da enunciação do crime silenciado. Já que, como afirma o narrador durante uma reflexão do professor Vicen-te, é “mais fácil enterrar um cadáver real do que uma ideia de cadáver”, então a função do detetive é preser-var a ideia de cadáver, procurando restituí-la ao crime, localizá-la na cena confessional.

O delegado Espinosa precisa localizar-se diante do suposto criminoso de modo que torne viável ver, em algum momento da investigação, a cena do cri-me. Trata-se de posicionar a sua escuta diante da fala do outro. A narrativa acompanha a construção des-se posicionamento. E, em dado contexto, o instru-mento de conhecimento de que dispõe o delegado é a metáfora:

— Então, continuo acreditando que a memória do professor Vicente é como uma estrada malconservada, com grande quantidade de buracos, alguns capazes de engolir um carro, o que a torna perigosa e, em certos tre-chos, intransitável; o professor Vicente é o operário que, solitariamente e com uma máquina de asfalto já danifi-cada pela própria estrada, preenche os buracos refazendo sua suposta continuidade. Não o vejo como um indiví-duo perigoso, o que vejo como perigosa é a sua memória.

A disponibilidade para o trânsito nessa estrada, ainda que malconservada, chama a atenção. É como uma estrada pública, essa memória, onde não se paga pedágio para transitar, onde não há engarrafamentos pois poucos se interessam por percorrer essa memó-ria. Sobretudo interessa tal estrada pois ela pode con-duzir à cena do crime. Não é culpa do operário se o seu recurso de manutenção da estrada já não funcio-na tão bem.

Qualquer estrada da memória pode conduzir à cena do crime? Em sentido lato, sim. Como juntar os membros da mulher lembrada? Terá sido um cri-me deixar de fazer parte dela, ao nascer? Mas quem disse que se trata da mãe? E quem disse que não? Co-mo sobreviver a uma memória que sabe que esqueceu mas pode ter inventado? E não parece, ao final dessa leitura, que a literatura é uma maneira de inventar as lembranças daquilo que foi esquecido? Que a literatu-ra confere o testemunho de quem escreve, só que pelo avesso? Um escritor aos 78 anos, que viveu como pro-fessor de teoria da psicanálise até cerca de 60 anos de idade, quando se tornou escritor policial, não estará ele experimentando, junto com o professor de litera-tura Vicente, esquecer-se do crime de lesa-linguagem que é a literatura?

A literatura policial flerta, por definição de gê-nero, com a subliteratura, com a literatura que esque-ce a linguagem com que se constrói. Seu parentesco com a linguagem jornalística, com o submundo do crime e da polícia, com a semioficialidade do dete-tive, a sua estrutura narrativa mais ou menos codifi-cada, tudo isso contribui para essa proximidade do gênero com a literatura popular, o que é ironizado pe-lo narrador ao focalizar Vicente em sua síndrome de esquecimento: “Claro que não temia ter se transfor-mado numa grande barata, mas temia não reconhe-cer a imagem refletida no espelho”. Entre Kafka (e a metamorfose em inseto de Gregor Samsa), Machado de Assis e Guimarães Rosa (e os personagens de seus contos que não se reconhecem diante do espelho), a cena de Garcia-Roza desenha — não sem ironia — a obviedade da verossimilhança: “Claro que...”. Pois, ao contrário dos personagens de Machado e Rosa, Vi-cente sabe que sofre de uma síndrome que pode fazê--lo, durante uma crise, não se reconhecer diante do espelho. Esse substrato narrativo lógico é o que torna a leitura de uma narrativa policial tão fluida, em geral, com a sensação de que, relevando-se as ironias atra-vessadas, parece verdade.

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14 | | janeiro de 2015

Solidão e esquecimento

As fantasias eletivas é um breve e múltiplo romance, cuja principal força está na poesia

Paula cajaty | rio de janeiro – rj

N a voz de Fernando Pessoa, um roman-ce é uma história do que nunca foi, e assim toda a litera-

tura é tecida, sendo capaz de se transformar nessa agradável for-ma de ignorarmos a vida.

Na história de Carlos Hen-rique Schroeder, dois persona-gens desconcertantes ganham vida: um recepcionista de hotel em Balneário Camboriú, desti-no comumente escolhido para as festas e badalações próprias de uma cidade à beira-mar. Renê, na busca pelo esquecimento de si próprio e de seus sucessivos fra-cassos, já quase fora assassinado e tentara o suicídio jogando-se ao mar, em uma tentativa que tam-bém terminou frustrada.

Machista e revoltado com sua situação emocional e fami-liar, Renê hostiliza a segunda per-sonagem principal, Copi, um travesti argentino, de personali-dade intensa e profunda, que se debruça perigosamente sobre as margens desse rio que é a solidão. Nos primeiros contatos, Copi en-trega-lhe o “seu book”, mas Renê prefere recomendar aos hóspedes os serviços sexuais de prostitutas e nega qualquer contato com Co-pi. No entanto, ela habilmente se aproxima oferecendo-lhe algo ra-ro, que poderia brevemente se as-semelhar a amizade, com toques de delicadeza, sutileza, compa-nhia e sensibilidade.

Até o desfecho da história de Renê e Copi, nada demais. Uma história simples, factível, por vezes divertida e em outras melancólica, com diálogos bem estruturados e escrita de forma bastante hábil. Renê recusa ve-ementemente as digressões filo-sóficas da então já amiga sobre as questões mais sérias da vida, naquele delicioso embate entre o cego que não quer ver e o lú-cido que insiste em lhe exibir e fustigar sentidos. As fantasias eletivas somente se torna um li-vro complexo e notável quando, após a história de Renê e Copi, o autor junta o pequeno caderno de fotos e pensamentos dela, que se considerava artista, boa escri-

tora e fotógrafa e dedicava seu tempo livre a investigar a solidão e o esquecimento.

Através da literatura, tam-bém Copi buscava escrever para esquecer de si mesma (novamen-te Pessoa) e para lembrá-la da so-lidão de todos — até mesmo dos objetos que a cercavam. Em que medida os seres humanos são si-milares a produtos descartados, a bens descartáveis e que já não apresentam seus dons de sedução? Renê segue descortinando os se-gredos de Copi junto com o lei-tor, a cada foto, a cada poema, a cada texto, a cada continuação da história de ambos, depois de tudo.

As vigasObsessões, essas vigas que

estruturam a ars poetica, ingre-dientes que alimentam prosas e poesias por todo o mundo. Foto-grafia, essa arte que se assemelha à poesia, capturando os detalhes de mínimos instantes de vida. So-lidão, o sentimento que pode ser igualmente veneno e remédio, in-ferno e salvação. Esquecimento, a “limpeza do HD” natural, esse re-curso de sobrevivência que permite ao homem recriar o passado, eleger o que e como se lembra do passa-do, e que o preserva da loucura en-quanto apaga o registro de bilhões de segundos em sua memória.

Como a própria Copi afir-ma no diálogo com Renê:

A fotografia quer capturar um instante, quer aprisionar o tempo, cada clique quer imorta-lizar um segundo. Mas para quê? Para servir ao ego, claro. Para que possamos ver este instante a hora que quisermos e mostrarmos para quem quisermos. Para dizer: “olha, veja como eu vi este momento”. Pa-ra repetir o momento fotografado quantas vezes quiser, é para compe-tir com a vida, ultrapassar a vida. E isso torna a fotografia mais hu-mana ainda, pois ela nasce de um desejo humano de se reproduzir en-quanto imagem, de permanecer. (…) E hoje a fotografia é uma es-pécie de sentido, talvez o sexto ou sétimo sentido, e não é à toa que todos os celulares e os notebooks e qualquer porra vêm com câmeras

para os outros o que via também dentro de si mesma: um item abandonado e triste, solto, des-locado, efêmero.

Faceta múltiplaÉ nesse momento que Car-

los Henrique Schroeder exibe sua faceta múltipla, prodigiosa e também mais talentosa: um au-tor de romance que é capaz de criar sua personagem e depois textos em prosa e poesias que ela escreve, distanciando-se do poe-ta de voz única que sabe cantar apenas suas próprias dores e seus próprios amores.

Nesse ponto, volto a lem-brar de Pessoa, pois Schroeder consegue ser um fingidor de mão cheia. Ele não cria um alter--ego ou ficcionaliza a si próprio para redigir seus poemas, sua atividade criadora é dupla e so-bressai uma terceira personagem principal, pode-se assim dizer, a própria solidão. Schroeder não esconde a voz lírica do poema: justamente cria a personagem e depois exibe sua criação, e uma terceira que exsurge dela.

Ainda aqui, é bom que se diga, um romancista não pode-ria ter feito melhor. À parte de Shakespeare e uns outros poucos na história da literatura ficcional, na regra geral é difícil que ro-mancistas de vocação arvorem-se em criar poesias dentro de seus textos. Até porque poesia não é ficção, e aqui temos uma poesia ficcional, pois o que lemos não é o produto lírico do Carlos Hen-rique Schroeder, e sim de Copi, sua personagem. Talvez por isso o estranhamento de críticos, que buscam analisar As fantasias eletivas mais como romance do que como poesia.

O livro é um monólito: a história de Copi, vista por Renê, e seu interior, também visto por Renê, mas revelado intacto atra-vés das imagens e palavras em sua agenda pessoal.

É bom que se diga que o livro também exibe a obsessão do autor de forma extremamen-te parcial. Nem sempre a solidão pode ser ruim: às vezes a solidão é o tempo de lucidez que nos res-

fotográficas, pois elas tornaram-se indispensáveis: num mundo satu-rado de informação como o nosso, as fotografias são uma espécie de se-gunda memória, é para lá que você corre quando quer lembrar os me-lhores momentos de uma viagem, de seu casamento, de sua família, do fim de semana.

Copi procurava a solidão das coisas como se quisesse jus-tificar que todos sentiam o mes-mo abandono, que todos — até o mais prosaico objeto — era ca-paz de sofrer o mesmo que ela. Fotografava o abandono, de mo-do que pudesse registrá-lo, fixá--lo, eternizá-lo. E depois escrevia sobre a solidão que podia ver, so-bre o abandono que podia sentir no objeto retratado, apontando

trecho

as Fantasias eletivas

Não devemos mais olhar para os pássaros, para as árvores, para as pessoas, mas sim para a tela. É uma troca, do real pelo virtual. Onde vai parar essa porra? E essa troca é também ausência. Não preciso nem dizer que alguém está lucrando com isso, a todo momento.

o autor

CARLoS HEnRiquE SCHRoEdERNasceu em Trombudo Central, em 1975, e radicou-se em Jaraguá do Sul (SC). É romancista, roteirista, crítico literário e editor. Estreou na literatura em 1998 com a novela O publicitário do diabo, tendo lançado desde então: As sepulcrais, Ensaio do vazio, As certezas e as palavras, entre outros. É o idealizador da Feira do Livro de Jaraguá do Sul e do Festival Nacional do Conto. Ganhou diversos prêmios como o Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional (2010), Bolsas Funarte e Petrobrás.

as Fantasias eletivasCarlos Henrique SchroederRecord112 pags.

gata da repetição incessante dos dias. Nem sempre o esqueci-mento pode ser ruim: é vital para o homem que se esqueça e que ficcionalize seu próprio passado, elegendo e fantasiando sobre si próprio e sobre o que o rodeia. Também o abandono é necessá-rio. Sendo o sentimento inverso ao pertencimento, resulta que o prazer do segundo não existiria sem a miséria do primeiro.

De acordo com Fernando Pessoa, escrevemos para esque-cer, e escritores múltiplos como Carlos Henrique Schroeder de-dicam-se com empenho a esta maneira (hoje não tão fácil como outrora, considerando a internet e a praga das redes) de ignorar, suplantar, substituir, e assim per-petuar a vida.

divulgAção

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janeiro de 2015 | | 15

Nem tudo são floresNos poemas de Parte da paisagem,

Adriana Lisboa evoca um eu lírico despretensioso e atento ao seu tempo

VilMa costa | rio de janeiro – rj

Parte da paisagem, de Adriana Lisboa, reúne poemas sob diversos enfoques, nos quais um eu lí-

rico, carregado de lembranças e projeções futuras num tempo pre-sente, movimenta-se. Por vezes, surpreende-nos, e por outras, é movido por uma serenidade ina-balável. Esta parece comprome-tida em Nirvana, por exemplo: “— Quebraram meu Buda japo-nês/ e um árduo desejo de vingan-ça... Crença e descrença, ruídos e silêncios, luzes e sombras, amor e desamor, paz e inquietações nego-ciam espaços e sentidos”.

Apesar da advertência: “Esqueça a palavra —”, ela é o veículo de uma busca, “use da palavra apenas/ seu grau de su-gestão de vida/ (mesmo sendo o índice/ da sua morte). Entre a palavra e o silêncio transita o ensaio de vozes que dialogam entre si, aproximando tempos e espaços, aparentemente, dis-tanciados. É quando a poesia flui “testando a voz” de um su-jeito lírico despretensioso, mas atento ao seu tempo e a outras vozes que alimentam sonhos e sentidos precários, mas indis-pensáveis para se seguir adiante. Como sinaliza o poema Promes-sa: “O prato da casa/ é a sobre-vivência, então/ (...) continuo de pé. Um joão-bobo,/ um náu-frago de pança inchada/ subsis-tindo de sol a sol.”

A lírica aqui retoma sua forte marca musical, dentre ou-tras referências. A linguagem verbal da palavra escorregadia, na sua flagrante insuficiência, apela para outras, como a mu-sical, cinematográfica, teatral e corporal nas quais a pausa, o silêncio e o nonsense potencia-lizam a construção de sentidos. Em Para voz e piano, o que mais dizer se “quando não se espe-ra que ele venha,/ (...)/ ele sur-ge à porta/ no meio da festa...” Um Ele que não só adentra pela porta, é o objeto de um amor desmistificado das promessas românticas, mas como fato in-

questionável se faz presente. No mais, tudo são “cantares” que estabelecem seus fios e desafios de leitura.

Em Anjos, as imagens cinematográficas de Wim Wenders passam por uma releitura, ou melhor, socorrem as palavras na busca de uma “beleza em câmara lenta” que expressem o de-sejo de nossa humanidade, invejada pelos anjos que com suas asas sobrevoavam o céu de Ber-lim, mas que se ausentam nesse nosso presente de século 21. “Onde estão os anjos bonitos,/ os anjos de Wim Wenders?”

Aspectos afetivosA mutilação das meninas da Somália, de-

nunciada e dramatizada no filme Flor do deserto, encontra nas palavras a expressão de indignação frente a uma realidade cruel, inacreditavelmen-te, presente Neste mesmo mundo em que vivemos. Os títulos, como este, conduzem a leitura para além da moldura da folha do poema, para aquém e além da paisagem descrita em seus detalhes concretos e físicos, mas infinitamente amplos em seus aspectos afetivos e estéticos.

Em notas fica explicitado o diálogo com Drummond, Bandeira, João Cabral, Tom Jo-bim, Hilda Hilst. Da mesma forma, dedicató-rias, epígrafes e outras referências ampliam esse leque. W. S. Merwin, Leonardo Cohen, Thom Yorke participam com epígrafes, sutilmente, da estrutura do livro, dividindo-o em três partes. Assim, o “eu” lírico estabelece o diálogo com vozes de tempos e espaços diversos. Destacam--se tantos os interlocutores presentes na vida cotidiana, quanto outros que já se foram e pare-cem se cristalizar na memória ou na paisagem, como aquele “Enterrado no ventre/ de uma montanha, desgarrado num meteorito/ daqui a alguns milênios...”

Toda essa polifonia e carnavalização exigem que o sujeito retome o seu eixo em uma espécie de “carnaval ao contrário”. Que seria isso? “Lavar o rosto, desaprender o samba/enredo. Cuidar pa-ra que os pés/toquem, apenas, esta avenida.” E, provavelmente, recriar a própria voz, naquela fo-lia íntima da solidão necessária ao ofício poético.

A memória passeia pela cidade, trazendo fragmentos e imagens de velhos tempos: Em Papelaria União, por exemplo, “Era onde eu comprava os meus cadernos/ O centro da ci-dade era o nosso quintal”. As fotografias e os fotogramas de lembranças de uma Cinelândia, que há muito deixou de ser a praça de cinemas, compõem o poema e as reminiscências. Os ca-dernos da infância ligam o passado da menina ao presente da escritora, cadernos feitos para anotar “ali nosso futuro em versos/ verdes, du-ma confiança irrefletida”, incapazes, contudo, de prever os anúncios de um outono por vir.

O teatro de luzes e som-bras com suas máscaras e dis-farces permeia as palavras em Nada consta e Parque dos cer-vos, entre outros. “As coisas vão bem, de modo geral,/ dis-farçadamente bem. Perucas, bigodes postiços.” As másca-ras e os disfarcem servem pa-ra fazer suportar a verdade nua e crua: “Essa luz medonha que se esfrega/ na sua cara, o quan-to você não daria/por um ins-tante de penumbra?”.

A linguagem corporal estabelece sua fala nas necessi-dades mais urgentes, alia-se às imagens, aos gestos, e a todos os sentidos: olhos, pele, ouvi-dos, bocas, e suas relações com o mundo e com a natureza. “Seu corpo encolhido no pró-prio excesso,/ brotando inábil dos seus pés/ como um pinhei-ro num penhasco.” Ou como as mãos que afundam na terra: revirando com verbos táteis ele-mentos mortos e vivos do jar-dim. A natureza viva, plantas, bichos-coisa e bichos-homem se misturam à paisagem de na-tureza morta, terra e pedra. O corpo de carne, sangue e ossos carrega o sentimento do mun-do, como se fosse bicho delica-do em busca de abrigo.

Em Lugar, “a ermida cor-po, sim, caiada/ e rústica. Mas também ferida aberta/ da men-te, esta nação sem chefe,” sem perder a perspectiva temporal, fixa o sujeito na espacialida-de instável de um lugar (ermo sem fundo). Dialogando com Bifurcados, de João Cabral de Melo Neto, surge um ques-tionamento: “este lugar que habito (me habita?)”. Corpo e mente, tempo e espaço atra-vessam suas porosas fronteiras e vazios. Como, em Passagem, vive-se esse nosso tempo con-temporâneo de permanente transitoriedade. “Vamos em-bora/ para um lugar onde se vi-ve de passagem...” já que hoje Pasárgada é inabitável, ou se-ja, não é mais possível. Um lu-gar ou um não-lugar onde se é sempre estrangeira, como a Ire-ne boa e latina, sempre de bom humor e clandestina, sob o céu das Américas. Como a poeta gauche que precisa “exercitar a inadequação, sabendo-nos/ ri-dículas como missa em latim”.

É assim que a poesia pe-netra com sutileza no cotidiano e na complexidade da vida, pai-sagem na qual “há muito mais para ver aquém e além da co-lina”, como diria Hilda Hilst. Memória, corpo, amor e mor-te, mais que temas, são proble-matizados, abrindo a discussão sobre a própria linguagem do fazer poético, enquanto eixo principal em pauta. “Pense na poesia/ como o dedo cavando a fresta onde/ há ainda uma pequena chance.” É por essa fresta que “a vaga ideia de li-berdade” pode tomar corpo como possibilidade de fuga de um prisioneiro, como possibi-lidade se sobrevivência e exer-cício da palavra.

trecho

Parte Da PaisaGem

As mãos afundam na terra:nação de bichos úmidos,cortejo cego de nomes. desfeitos,decompostos, recompostos —entreposto escuro de verbostáteis, onde os mortos sufocamno júbilo dos novos vivos:

tudo são flores.

a autora

AdRiAnA LiSboA

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É graduada em música e pós-graduada em literatura. É autora de Sinfonia em branco, Azul Corvo, Hanói, entre outros. Seus livros foram publicados em treze países. Vive atualmente nos Estados Unidos.

Parte Da PaisaGemAdriana LisboaIluminuras120 págs.

divulgAção

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16 | | janeiro de 2015

Ao nível do chão

Histórias absurdas de Rafael Sperling desnudam comportamentos cotidianos

andré arGolo | santos – sP

o cirurgião é exibi-do. Montou no meio da avenida Paulista a mesa de cirurgia e mandou

cercar com vidro. Iluminou tu-do adequadamente, para ver e ser visto. Mandou deitar o sujeito. O sujeito é todo mundo. E quando o público se aproxima — o públi-co é cada pessoa —, tem a surpre-sa, o asco, a raiva, o medo e o que mais se pode sentir ao enxergar a si mesmo ali deitado, aberto, san-grando muito, exposto, os órgãos sendo retirados um a um, jogados em cantos branquinhos, às vezes esbarrando e criando o rastro cor de vinho no vidro transparente do devassado centro cirúrgico.

Rafael Sperling se apresen-ta como escritor, ele é o cirurgião maluco. Ou não é maluco, é o ex-tirpador da verdade, bisturis nas mãos, do que mora atrás de cor-tinas, debaixo dos panos, dentro dos aposentos mais fechados, dos desejos e pensamentos mais ínti-mos. Um homem burro morreu é a sala pública de cirurgia. A so-ciedade de entranhas remexidas está em cada um dos 28 textos que compõem a obra (27 contos mais um texto final sem título).

Mas como se o cirurgião exibido fizesse umas mímicas en-graçadas antes de cortar as veias do coração, o livro é capaz de ar-rancar riso. Um riso nervoso é o que tende a escapar. Porque do-ído. É violento. Esse contenta-mento provável do leitor vem de esbarrar em situações absurdas que depois desnudam compor-tamentos muito comuns, cari-caturados. Aí o sorriso logo se desfaz, pela identificação inevitá-vel com a realidade.

Bombas e metralhadorasTudo indica que seja uma

obra bem distante da unanimi-dade. A violência, que é ao mes-mo tempo explícita e metafórica (bem mais metafórica, com certe-za, apesar de tão explícita), vai es-pantar fígados mais sensíveis. Foi escrito pela necessidade de existir, não para agradar — é o que suge-rem sua temática e sua forma, co-mo motivações principais.

Os contos são construídos com base no exagero. Esse exa-gero às vezes trabalhado com a repetição, como no primeiro texto, Caetano Veloso se prepara para atravessar a rua, e também no muito significativo Jesus Cris-to espancando Hitler. Outras ve-zes o exagero é do tamanho ou quantidade das coisas, como Uma xícara de chá revela: “Der-ramei a água numa xícara de chá e dentro dela pus 250.000 qui-los de chá preto, pois gosto do meu chá bem forte”. Assim, vai minando o equilíbrio do leitor, para que desabe no texto como num golpe de judô e enxergue as coisas ao nível do chão, onde são jogadas pelo autor as questões da humanidade.

O conto da xícara de chá trata dos casamentos. Caetano Veloso é acompanhado por uma espécie de repórter de celebri-dades, que narra tudo o que ele faz, repete perguntas tolas, ironi-za a sociedade do espetáculo. Um homem briga violentamente nu-ma fila de pão — a impaciência com o outro, o descaso. Há estu-pros de mulheres e homens, ba-nalização do sexo, inclusive com personagens crianças. E muita es-catologia. Come-se merda e joga--se cocô nas cabeças das pessoas como se trocam cartões de visitas. Sempre com profunda ironia.

O tom dos contos lembra meninos conversando sobre vi-deogames: “Hahaha! Arranquei a cabeça daquele homem! Olha, olha, atropelei a velhinha atraves-sando a rua!”. Ou os pensamen-tos rudes que invadem cabeças atrás de volantes no trânsito ca-da vez mais hostil das cidades, na escuta das intermináveis ligações para reclamar de serviços, a cada sapo engolido nos ambientes cor-porativos de trabalho.

Os personagens fazem o que vaza desses pensamentos ter-ríveis, vingativos: dão socos que explodem o cérebro dos oponen-tes, ou jogam bombas, usam me-tralhadoras, bastões de ferro, tudo do pior; armas surgem do nada, como em desenhos animados.

Provocação à literaturaPode-se falar das piores

coisas com lirismo. Mas não há lirismo nesses contos. E não con-têm palavras além do uso mui-to comum. Aliás, os textos são descomplicados, mimetizan-do construções infantis de pen-samento, o que se contrapõe à violência das cenas, criando ex-tremos verdadeiramente incô-modos — é justamente aí que mora o grande valor desse livro. Eis o gancho para voltar a citar Jesus Cristo espancando Hitler.

No décimo-quarto conto, Jesus Cristo tortura Hitler das formas mais vis, como talvez fi-zesse um soldado de Hitler com Jesus Cristo num campo de con-centração nazista — como, com certeza, de diversas maneiras, fi-zeram soldados de Hitler contra milhões de judeus. O Jesus de Sperling chama milhares de pes-soas a ajudá-lo nessa missão. Até que Hitler é pregado na cruz,

trecho

um homem Burro morreu

Eu a conheci em uma festa. Estava muito nervoso, mas andei até ela e disse que a achava muito bonita e que queria ficar com ela. Ela me disse que eu era muito feio e fedia, e que não ia ficar comigo, nem em um milhão de anos. Eu comecei a chorar desesperadamente e saí correndo, esbarrando nas pessoas, até que escorreguei e caí no chão, batendo forte com a cabeça.

o autor

RAFAEL SPERLinG

Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Seu livro de estreia foi Festa na usina nuclear (editora Oito e meio, 2011). Publicou textos em revistas e jornais literários do Brasil e do exterior, incluindo o Rascunho.

um homem Burro morreuRafael SperlingOito e meio130 págs.

“para que possamos, sempre que precisarmos, pen-sar em Hitler e em seu sofrimento, e possamos, as-sim, ficar um pouco mais felizes e reconfortados”. O texto é carregado de sentidos, cada leitor pode tirar seu punhado.

Famosos emprestam-se às prosas como me-táforas: Dante, Kafka, além de Caetano Veloso. Até Branca de Neve entra na roda. Ela e o prín-cipe vivem um inferno que faria tremer os irmãos Grimm. Mas, no fim, depois de matarem a rainha má, vivem felizes para sempre.

Existe uma provocação (velada?) à própria lite-ratura: a escolha pelas narrativas absurdas, com lin-guagem simples e muita repetição de palavras. Mas é óbvia a habilidade do autor em construir complexi-dade justamente a partir desses elementos crus. Gos-tar ou não é outra coisa.

O texto final, sem título, é também um conto, e é nele que está mais clara a provocação à literatura. “Ok. Eu vou fazer um texto bem bonito. Eu aprendi que as pessoas gostam de coisas bem bonitas, então farei um texto bem bonito.” Não fez, e de propósito. Como será castigado por isso?

Em vãoO título do livro vem de um dos contos, o

vigésimo-sétimo. O homem burro tenta ligar uma torradeira e não consegue. Fica tão frustrado, tão triste, que morre. A esposa o encontra no chão da cozinha. “A torradeira estava desligada da tomada”, ela diz. “Mas que burro.”

A obra, diferentemente do que costuma acontecer, chegou ao resenhista com dedicatória do autor: “André, espero que a morte deste homem burro não tenha sido em vão”. Gostando-se ou não de como essas histórias estão contadas, com certeza não foram publicadas em vão. O personagem mor-reu para que possamos, assim, viver bem menos fe-lizes e reconfortados. Por isso já valeu.

juliA stAneck

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janeiro de 2015 | | 17

inquéritonoemi jaffe

N oemi Jaffe nasceu em São Paulo (SP), em 1962. Desde cedo inventava línguas, sotaques e desenhos, daí foram surgindo anotações, redações escolares e tudo foi se encaminhando para o mundo literário. Foi só aos 43 anos, porém, que publicou seu primeiro livro de poesia. Doutorou-se em literatura brasileira pela

USP. Atualmente, é professora da PUC-SP e faz crítica literária para a Folha de S. Paulo. É autora dos livros Todas as coisas pequenas, Quando nada está acontece e A verdadeira história do alfabeto, livro de contos que lhe rendeu o Prêmio Brasília de Literatura de 2014. É também organizadora da antologia de poemas de Arnaldo Antunes e mantém o blog nadaestaacontecendo.blogspot.com.br.

Sem vaidade

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?

Não tenho certeza, mas foi um processo que teve início bem cedo. Sempre adorei ler de tudo e imaginava as histórias que eu mesma poderia escrever. Inven-tava línguas, sotaques, desenhos. Aos poucos, fui transformando is-so em anotações, redações escola-res e o projeto foi tomando corpo. Mas só fui publicar meu primeiro livro de poesia aos 43 anos.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?

Tenho muito poucas. Na-da de muito original. Escrevo em qualquer lugar, de qualquer jeito, em qualquer hora. Mas prefiro a manhã e lugares novos a cada vez. Só que sem fixação por nada.

• Que leitura é impres-cindível no seu dia-a-dia?

Adoro ler jornais. Além disso, estou sempre fuçando coi-sas na internet e tenho obsessão por ouvir conversas alheias, no ônibus, na rua, para usá-las em exercícios e nos meus próprios textos, como fiz no meu livro re-cente comum de dois.

• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?

A introdução do livro Jo-sé e seus irmãos, de Thomas Mann, em que ele fala sobre a relatividade do tempo. Essa in-trodução ajuda, de forma con-creta, a fazer sentir na pele o que significa a passagem do tempo e como somos insignificantes.

• Quais são as circunstân-cias ideais para escrever?

Gosto da manhã, de silên-cio e de lugares desconhecidos. Outra cidade, outra casa, outra biblioteca. Mas não faço questão de nada disso. A circunstância ideal para escrever, sem demago-gia, é sentar e escrever, sem espe-rar pela circunstância ideal.

• Quais são as circunstân-cias ideais de leitura?

Gosto do silêncio, para po-der me concentrar. Mas consigo ler muito bem no ônibus e em lugares de espera. Me concentro bastante fora do meu ambiente.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?

Um dia em que fiz leitu-ras criativas, de teoria e/ou de ficção. Não necessariamente um dia em que consegui escre-ver. Prefiro, de longe, ler. Gosto muito também de revisar. Revi-sar o que escrevi e encontrar vá-rias soluções para falhas.

• O que lhe dá mais pra-zer no processo de escrita?

Encontrar formas de solu-cionar problemas: na frase, no enredo, na construção da perso-nagem, no diálogo. Estar diante de algo que eu considero ruim e ficar lá, matutando, quase desis-tindo, quando surge uma saída. É muito gostoso.

• Qual o maior inimigo de um escritor?

Achar que existe perfei-ção e, talvez, a própria existência dessa perfeição, sob a forma dos grandes escritores.

• O que mais lhe incomo-da no meio literário?

Vaidade, vaidade, vaidade e ficar reclamando de ter sido injus-tiçado.

• Um autor em quem se de-veria prestar mais atenção.

Adorei um poeta, que co-nheci muito recentemente, in-felizmente já falecido, chamado Alberto da Cunha Melo. Outra poeta incrível, que o país vai des-cobrir, é a Sarah Rebecca Kerskey, uma inglesa mais baiana que mui-tos baianos, e que atualmente mo-ra em Salvador.

• Um livro imprescindível e um descartável.

Imprescindível: Dicionário analógico. Descartável: Livros de autoajuda, incluindo aí Paulo Coelho.

• Que defeito é capaz de des-truir ou comprometer um livro?

Muita afetação. Quando o estilo supera tudo, daí acho ir-remediável. Devemos fazer co-mo Lina Bo Bardi falou sobre o Masp: fazer uma coisa feia. Prefi-ro o feio ao belo. Literatura muito bela é horrível!

• Que assunto nunca entra-ria em sua literatura?

Todos podem entrar. Sem discriminação. Desde palito de dentes até a guerra.

• Qual foi o canto mais inu-sitado de onde tirou inspiração?

Ah, numa viagem de ônibus, em pé, espremida, às 6 da tarde.

• Quando a inspiração não vem...

Dicionário analógico na cabeça.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?

Primo Levi.

• O que é um bom leitor?Quem aceita ler várias vezes o mesmo

texto e aquele que não desiste.

• O que te dá medo?Na vida, que meus filhos sofram. Na li-

teratura, tenho medo de escritores que man-dam no mercado.

• O que te faz feliz?Na vida e na literatura, o que me faz fe-

liz é ter amigos.

• Qual dúvida ou certeza guia seu tra-balho?

Sem frase de efeito, “a certeza da dúvi-da”. Quase nunca tenho certezas e não acre-dito nelas.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?

Precisão, originalidade, densidade e ris-co.

• A literatura tem alguma obriga-ção?

Em princípio, a literatura é livre. Essa é sua obrigação, entretanto.

• Qual o limite da ficção?Quase jogar-se no fundo do abismo,

mas não se suicidar.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?

O meu líder, meu modelo de literatura inatingível, é Rumo ao farol, de Virginia Wo-olf. Eu o levaria para aquelas frases. Elas são o meu líder.

• O que você espera da eternidade?Espero virar vegetal. Não quero virar

mineral nem animal. Quero virar planta.

divulgAção

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18 | | janeiro de 2015

Espelho negro

t odo texto começa em algum local, e es-te inicia no oceano. Para ser mais exato, na costa da Cochinchina, hoje conheci-da como o Vietnã. A tempestade acabou de passar, levando a sua fúria para assus-

tar outras ondas. As águas, antes raivosas e agora plácidas, ainda recordam os gritos dos homens en-quanto o barco desmoronava diante das rajadas de vento. Alheio a tudo isso, o único sobrevivente do naufrágio nada. Seu olho único mantém o foco na direção da terra, que parece tão próxima, mas nun-ca chega. Talvez ele esteja pensando nos eventos de alguns minutos atrás. Não foi uma decisão fácil: de um lado, estava Dinamene, a mulher que amava, afogando-se e necessitando de ajuda; do outro, um pacote silencioso oscilava no meio das águas agi-tadas, prestes a um mergulho definitivo. Só havia espaço para uma escolha, e o caolho fez a sua. En-quanto prossegue na direção da terra, ele tenta se-gurar o pacote o mais longe possível da água, pois sabe que o livro não pode ser perturbado. Esque-cendo o cansaço e o remorso, mesmo sem saber se vai conseguir chegar à costa, Luís de Camões pensa que esta é uma história forte demais para ser des-perdiçada. Por isso, memoriza as suas sensações e, para passar o tempo, escreve mentalmente aquele que se tornará o canto X de Os Lusíadas.

Afinal, qual é a função da literatura?

GustaVo czekster | Porto aleGre – rs

ilustração: Hallina Beltrão

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janeiro de 2015 | | 19

Evitar discutir para o que serve a literatura está

no cerne das parcas políticas de incentivo à

leitura no Brasil, da produção

literária periclitante, dos prêmios

literários concedidos sem critério algum, da constante queixa de que não existem

leitores.

Literatura não é jogo estético, não é estratégia para disseminar ideologias, não

tem objetivo educativo ou desejos

de retratar a sociedade.

Em um mundo repleto de livros e de histórias, em que alguns acreditam que

inclusive todas as histórias já foram

contadas, qual é o objetivo da

literatura em si?

Alvo certeiroNos tempos atuais, é fácil di-

zer que Camões tomou a decisão correta. Os Lusíadas é um dos mais importantes livros já escritos, um patrimônio da Humanidade. O que é uma vida diante de tamanha obra? Contudo, no momento em que o escritor lusitano tomou a decisão no meio de um naufrágio, ele não sabia que o livro teria tamanha enverga-dura. Não sabia sequer se consegui-ria publicá-lo. Ainda assim, Camões acreditou que a história a ser conta-da era maior do que o amor da mais linda mulher e do que a sua própria vida. Ao invés de pensar somente na sua salvação, sabia que ela não teria sentido sem O Livro.

Ao contrário do que se po-de pensar, a relação de Camões com a obra ainda inacabada não era uma simples escritura, e sim algo visceral. O autor era capaz de lembrar verso a verso que tinha colocado no papel; havia feito a divisão em sílabas poéti-cas de cada estrofe, buscando a rima perfeita. O livro se tornara uma ex-tensão inevitável da sua personalida-de. Ao salvar Os Lusíadas, Camões tratou o livro como um objeto vivo, pensando nas dezenas de vidas que poderiam ser influenciadas pela sua obra. Ele não conseguiria viver sem a sua criação. É possível inclusive que tenha nadado ainda com mais afinco, sabendo que carregava consigo não um aglomerado de versos ou um pa-cote, mas a própria alma.

Eis uma discussão por muito tempo ativa e que acabou se perden-do em meio aos livros de teoria lite-rária: qual é a função da literatura? A julgar pelos depoimentos de escrito-res contemporâneos, eles consideram a literatura como uma necessidade de comunicação, um desejo de au-toconhecimento ou uma maneira de suprir uma espécie de vazio que nem mesmo os próprios autores enten-dem. Todas facetas de um certo ego-centrismo: “A função da literatura é permitir que eu mostre a todos co-mo o mundo funciona”. No entanto, nenhum se debruça sobre a questão maior, que é perguntar sobre a pró-pria utilidade da literatura. Sem sa-ber para o que serve, como podem ter noção de que estão fazendo lite-ratura ao invés de escrever frases ou páginas vazias?

Apesar de parecer uma questão óbvia (ninguém em sã consciência diria que a literatura não possui fun-ção alguma), a resposta é mais difícil do que se imagina. Qualquer função que se escolha representa uma possi-bilidade de ver a literatura, mas não esgota as suas características múlti-plas. Podemos considerar a literatura como tendo uma função educativa capaz de mostrar a forma com que viveram e pensaram outras pessoas, ideia defendida por Antonio Can-dido, mas não é só isso, pois livros didáticos também realizam esta ta-refa. Podemos ver a literatura como uma experiência estética, da forma que pretendia Horácio ao dizer que ela tem a capacidade de nos deleitar e nos ensinar a sermos pessoas me-lhores, mas a definição é ainda in-suficiente, pois a literatura vai além da mera arte pela arte. Há quem di-ga que a literatura tem uma função

catártica, servindo para que autores e leitores extravasem suas emoções mais ocultas, ainda que imaginar a literatura como um meio de expia-ção do inconsciente seja diminuir a sua importância. Não são poucos os que dizem que a literatura teria uma função ideológica, representando o pensamento dominante de um de-terminado período histórico. Con-tudo, existem obras que enfrentam a ideologia majoritária e são contrá-rias à ideia de disciplina. Nos últimos anos, cresceu o pensamento de que a literatura possui uma função so-cial, representando o caráter de uma sociedade e a forma com que esta se comporta. No entanto, é uma visão limitada de literatura, pois ela tam-bém pode representar uma utopia e o contrário da sociedade nela des-crita, além de ser o desejo de algo a mais, uma visão do futuro.

O fato de não realizarmos as perguntas não quer dizer que já existam respostas pacíficas. Evitar discutir para o que serve a literatu-ra está no cerne das parcas políticas de incentivo à leitura no Brasil, da produção literária periclitante, dos prêmios literários concedidos sem critério algum, da constante queixa de que não existem leitores. Quando um escritor não pensa sobre a mo-tivação real da sua literatura, é difí-cil fazer com que qualquer leitor o acompanhe. Literatura não é jogo estético, não é estratégia para dis-seminar ideologias, não tem objeti-vo educativo ou desejos de retratar a sociedade. No momento em que a literatura não possui um objetivo específico do seu autor, algo elabo-rado inclusive em nível inconscien-te e que seja fruto de uma reflexão detalhada e obsessiva da vida, o li-vro passa a ser um barco desgover-nado no meio do oceano, incapaz de procurar o porto seguro da bibliote-ca ideal, vagando sem sentido entre prateleiras anônimas.

É importante que exista um grande autoconhecimento do au-tor a seu respeito antes de escrever, não depois. É costume atual anali-sar a psiquê do autor por meio da sua produção, mas o livro deveria servir não como fonte de decodi-ficação psicológica de quem foi o autor, e sim como veículo que ele encontrou para expor a sua visão de mundo. Grandes são as obras em que o autor tinha uma noção bási-ca de qual era a função da literatu-ra, não para os outros, mas para si próprio. Quando Dante Alighieri resolveu se vingar de todos os ini-migos e louvar os amigos através de uma obra literária, poderia ter escrito um panfleto irônico ou um livro cuja influência duraria alguns anos e depois mergulharia no abis-mo fundo onde moram os livros mortos. Ao invés disso, fez a Divi-na comédia e deu forma literária para as suas vontades; colocou-se na obra como narrador e personagem, esculpiu os versos e fez com que os seus pensamentos se misturassem para servir à trama, não o contrário. A ideia da função da sua literatura era clara para o escritor florentino: um meio de expor a inconformida-de e defender a sua ideologia, ser-vindo como uma forma de catarse,

além de associar a sua visão da sociedade da época com um grande apuro estético. Quando o autor sabe o que deseja, pode combinar todas as funções ao mesmo tempo e extrair diversos tipos de leitu-ras, renováveis para cada leitor.

Vencer a mortePara um escritor conseguir tocar outras pes-

soas, ele precisa conhecer a si próprio. É um adágio simples, mas que revela uma verdade invencível: os autores não perguntam qual a utilidade da sua obra. Acreditam que ela é fruto da inspiração ou do trabalho exaustivo da forma, mas não mergulham na questão intrínseca — por que escrever? Em um mundo repleto de livros e de histórias, em que al-guns acreditam que inclusive todas as histórias já foram contadas, qual é o objetivo da literatura em si? Nos tempos recentes, muitos escritores respon-dem que seu desejo é conseguir sucesso, fama e di-nheiro. Alguns autores se perdem em explicações metafísicas sobre o que seja a literatura e como é importante escrever, mas evitam falar o que pre-tendem com as suas obras. Não são poucos os ma-nuais de estilo prometendo que uma pessoa pode escrever livros em curto espaço de tempo e ganhar muito dinheiro vendendo a obra para a indústria do cinema, por exemplo.

Prova maior da relevância desta discussão é que, em 1964, em uma França conflagrada por uma greve geral e por sucessivas manifestações es-tudantis, Yves Buin resolveu chamar os maiores escritores e filósofos franceses de então para que respondessem uma questão: “O que pode a litera-tura?”. A maioria dos filósofos convidados (Berger, Beauvoir, Ricardou, entre outros) disse que a litera-tura não tem função alguma, é uma tarefa com que somente os leitores se preocupam. Dessa forma, eximem o autor de pensar na função da própria obra, transferindo todos os ônus e possibilidades para o eventual leitor, uma explicação muito seme-lhante àquela dada pela indústria de armamentos dos Estados Unidos: ela constrói as armas, mas são os usuários que irão determinar seu uso.

Sartre acabou se tornando a voz dissonante no debate, mas o seu pensamento é de extrema re-levância. Sim, a literatura não tem nenhuma fun-ção, mas o problema é que os leitores também não têm função alguma. A vida é um longo esperar pela morte, tudo depende do que se faz no decorrer de-la. Os leitores são seres procurando um sentido que talvez não esteja na própria vida e, por serem pesso-as que necessitam achar o motivo pelo qual vieram ao mundo no meio de uma corrida insana de esper-matozoides, imaginam — talvez tolamente — que ele possa estar dentro de um livro.

O livro, como expressão artística, não pode ser dissociado de um objetivo, pois está ligado ao destino de um leitor. A literatura não é algo irres-ponsável e, conforme lembrado por Alberto Man-guel, existe um grande erro em considerarmos a literatura como entretenimento, pois a deixamos com um caráter acessório na vida, na prateleira dos gastos supérfluos, quando ela existe para nos dar sentido. Falta para os escritores de hoje uma noção melhor de finalidade do ato de escrever, o que deixa as suas obras impregnadas de uma esté-tica rarefeita na qual os leitores pensam ver as pró-prias sombras. A grande diferença em relação aos autores do passado era que eles pensavam sobre o que estavam fazendo, ao contrário de escrever e depois parar para ser explicado. Toda pessoa é um labirinto, mas o mínimo que se espera é que ela saiba qual é a última porta.

Olhando por este aspecto, quando Camões precisou escolher entre a sobrevivência do amor e a da obra, ele sabia que os sentimentos passam, as-sim como as pessoas, mas a obra deve continuar. Sem saber, o maior escritor português estava reali-zando uma das mais importantes funções da litera-tura: sobrevivência. Vencer a morte. Não almejar a imortalidade do autor, e sim a permanência da his-tória. Algo somente possível de entender quando uma pessoa consegue encarar o espelho negro que mora no fundo da sua alma sem desviar os olhos, sem sentir medo.

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20 | | janeiro de 2015

prateleira | nacional

romance Do BorDaDo e Da Pantera neGraRaimundo Carrero e Ariano SuassunaIluminuras64 págs.

A história deste livro começa nos idos de 1970, quando Raimundo Carrero escreveu o conto O bordado, a pantera negra a fim de participar do Movimento Armonial, criado um ano antes por Ariano Suassuna. O conto foi aprovado e logo a prosa se transformou num folheto de cordel nas mãos de Suassuna. Hoje, quase 50 anos depois, o típico conto passado no sertão de Salgueiro ganha nova edição e conta com ilustrações de Marcelo Soares.

o GuarDaDor De aBismosAntonio VenturaTopbooks224 págs.

Dividido em três partes, as narrativas poéticas são focadas nos encontros e desencontros de um homem com sua própria infância. Na paisagem do passado, Ventura convida o leitor à fruição auditiva dos pingos de chuva nos telhados, à contemplação das nuvens, ao êxtase frente ao fluxo interminável do pequeno rio, mas sem esquecer de captar o presente através de celebrações da amada, ou ainda lamentando o futuro devido às coisas que escapam aos nossos desejos.

mate-me quanDo quiserAnita DeakGutenberg245 págs.

Apesar de a ensolarada Barcelona ser pano de fundo para o desenrolar da trama, este romance noir obedece às premissas do gênero ao se desenrolar lentamente, com o drama focado na trama. A própria morte encomendada pela protagonista acaba não sendo a maior surpresa. Feito um quebra-cabeça, o mistério é descobrir como os personagens se encaixam, como suas ações afetam a vida (e a morte) das outras.

DesnaturalizarAcompanhar a literatura

brasileira contemporânea com olhos livres permite identificar o surgimento de projetos inovado-res e de grande interesse.

É o caso de Evando Nasci-mento, que terminou de publicar seu terceiro livro como ficcionista.

Neste artigo, por isso mes-mo, proponho uma leitura de sua obra em progresso, destacando a importância de Cantos profa-nos, cujos contos e textos levam adiante experiências e exercícios dos dois primeiros livros.

Ensaísta reconhecido, um dos mais criativos intérpretes da obra de Jacques Derrida, Evando lançou em 2008 Retrato desna-tural (diários — 2004 a 2007). Ficção.

O título, em si mesmo, suge-re o princípio motor de sua escrita.

Vejamos.A simples ideia de Retrato

desnatural promete um curto--circuito.

Ora, num sentido prosai-co, o retrato deveria manter com o retratado uma relação, por assim dizer, própria — muito embora tal propriedade possa re-correr à desproporção e à defor-mação metódicas, como ocorre nas telas de Francis Bacon. Aliás, o diálogo com as artes plásticas é um elemento-chave na literatura de Evando. No fundo, ele radi-caliza o procedimento de Bacon, pois, em boa medida, a escrita de Retrato desnatural estrategica-mente descola o gênero retrato do compromisso com qualquer forma de verossimilhança. Pelo avesso, o retrato mais fiel seria antes um mosaico de máscaras, compondo:

poéticas do quasecacos de idiomaspútridos quasaresna cripta angelical

pedaços da vidaretratos da arte 1

A arte, portanto, é o terri-tório de uma desnaturalização em série: da linguagem, do mundo, do sujeito. Tal concepção subjaz à literatura de Evando, cujo eixo articulador desenvolve uma “esté-tica da emulação”, como ele defi-niu em entrevista recente à revista Fórum de Literatura.

Explico.Melhor: transcrevo frag-

mentos do livro:

a ficção de evaNdo NascimeNto

promissória: em seus pri-meiros exercícios de emulação, pi-casso copiava no caderno-estúdio escolar a assinatura dos caricatu-ristas que admirava; outros acusa-riam falsificação. assim, contam, fez fortuna.

(...)

o óbvio (o ovo): sem ex-ceção, todos os livros verdadeira-mente lidos foram reescritos — do centro às margens.

partida: na literatura, vi-da, ficção ou ensaio, só conta o reescritor. escrever é reescrever des-mesuradamente. ou ainda, noutro plano, transcrever, escrita sobre es-crita, o reescritor é também trans-critor. (146)

É isso.Tudo dito.Assim como o retrato não

implica aderência ao rosto porém adesão ao traço, o autor se en-contra ao se descobrir outros na apropriação sistemática da tradi-ção. Desse modo, Evando anun-cia o que provavelmente será a marca-d’água de sua escrita. Isto é, mais do que o desenho preci-so de uma prosa que pensa ou a retomada decidida da prosa po-ética — embora ambas as pul-sões estejam presentes no projeto de Evando —, o autor de Can-tos do mundo parece propor um perspectivismo antropológico ra-dical, cujo sujeito se afirma preci-samente por meio de um esforço bem refletido de dessubjetivação.

(Afinal, para um autor-lei-tor, o eu é sempre muito pouco — claro, é um outro. Ou: muitos outros.)

Cantar o mundoO segundo livro do ficcio-

nista, Cantos do mundo, saiu em 2012. Nele, Evando abraçou o exercício narrativo inerente ao conto. O escritor ampliou as co-res de sua paleta, acrescentando à frase epigramática e à dicção en-saística de Retrato desnatural — forças presentes também nos poemas da primeira seção do li-vro — o domínio do relato curto.

Contudo, sem abdicar da vocação pensante de sua prosa.

Um conto em particular permite vislumbrar o elo entre os dois primeiros títulos — O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP.

Como se sabe, no início da

década de 1930, criou-se uma co-missão responsável por convidar sábios e especialistas europeus para formar o corpo docente da Universidade de São Paulo, cria-da em 1934. A história é mui-to bem conhecida e somente a menciono porque o pesquisador alemão Karlheinz Barck desco-briu uma surpreendente corres-pondência entre Erich Auerbach e Walter Benjamin, na qual o au-tor de Mimesis revelava que ha-via pensado em Benjamin para uma possível temporada brasi-leira como professor de literatura alemã na USP.

Evando imagina uma en-genhosa alternativa contrafactu-al e reescreve o episódio. A oferta bem poderia ter sido irrecusável. Afinal, o cargo de professor na Universidade de São Paulo tor-naria irrelevante o insucesso aca-dêmico de A origem do drama barroco alemão — texto repro-vado na austera academia alemã. No êxodo provocado pelas per-seguições nazistas, professores de grande prestígio viajavam invaria-velmente para os Estados Unidos; por exemplo, foi o caso de Theo-dor W. Adorno e Max Horkhei-mer, amigos de Benjamin. No entanto, intelectuais que não pos-suíam credenciais similares aven-turavam-se na América do Sul.

Pelo menos é o que, na fic-ção do brasileiro, Benjamin con-fidenciou a Auerbach:

Caríssimo Erich,

Eis-me de malas pron-tas para viajar ao Brasil. Aquela possibilidade de lecionar na Uni-versidade de São Paulo, aventada em 1935, finalmente se concreti-zou num convite oficial.

(...)O fato de ser uma Univer-

sidade muito jovem traz grande alento, assim não implicarão por não ter a Tese de Livre-Docência — quem sabe não refaço um pou-co o trabalho, encomendo uma tra-dução e obtenho o título lá mesmo? Sei que a ansiedade está me deixan-do um tanto afobado. Vamos dei-xar as coisas se desenrolarem, sem inútil antecipação. Contudo, se um dia dominar o idioma, não sei se se-rá possível filosofar em português, nunca ouvi falar em filósofo brasi-leiro. Decerto haverá. Talvez. 2

Por que não?Vilém Flusser soube

apreciar a força da filosofia de

nossa américa, nosso tempo | joão cezar de castro rocha

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janeiro de 2015 | | 21

Vicente Ferreira da Silva e a ori-ginalidade da literatura de Gui-marães Rosa.

Roger Bastide descobriu a paisagem na prosa machadiana e, como poucos, entendeu a arte e o cotidiano brasileiros.

Possibilidade fascinante: cruzando a Ipiranga e a Avenida São João, Walter Benjamin in-tuiria a tradução mais completa de sua nova circunstância devo-rando Macunaíma e o Manifesto antropófago.

Os cantos de Evando sus-citam tais imagens — autênticas experiências de pensamento.

Um tríptico?Venho, agora, ao título re-

cém-lançado.Cantos profanos confirma

a importância e a singularidade da dicção de Evando. No fundo, a expressão usada por ele para de-finir a obra de Clarice Lispector — literatura pensante — caracte-riza muito bem seu projeto.

Porém, aqui, todo cuidado é pouco.

Não se trata de supor um discurso filosofante, às voltas com um conteúdo pretensamen-te elevado ou hermético.

Muito pelo contrário, Evando torna a literatura pen-sante um exercício específico de imaginação, desdobrado num

convite para que o leitor crie seus mundos. Ressalto, então, a plu-ralidade do gesto, que inclui en-genhosas provocações à filosofia, o prazer de narrar situações sur-preendentes do dia a dia, além de uma apropriação constante e ir-reverente de elementos tanto da tradição quanto da cultura pop.

(Isso mesmo que você ima-ginou: os três títulos recordam um tríptico, cujo painel central estamparia Cantos profanos: forma plástica de cruzamento dos exercícios e experiências de Retrato desnatural e Cantos do mundo.)

A epígrafe do livro cifra es-sa potência:

Decerto caberia sempre aos leitores inventarem seu próprio li-vro (...).

Em contrapartida, caberia ao livro, com alguma sorte, inven-tar seus leitores (...).

A ficção se encontraria entre os dois movimentos de invenção.

De fato, a estrutura do livro arma um jogo de xadrez. Sobre-tudo, as peças brancas pertencem ao leitor, pois, numa inversão de-liberada, a ele cabe o lance inicial nesse tríptico de palavras.

A primeira parte se deno-

mina Cantos e alinhava uma sé-rie de situações-limite, nas quais uma história canônica ou um evento cotidiano são transfor-mados por uma escrita que arti-cula perguntas sem resposta.

Babel revisitada é uma obra--prima. Eis sua premissa: a inusi-tada tarefa — “Inventaram então de edificar a Torre infinita” 3 — dispensa o desejo de rivalizar com “Deus”, evocando antes uma es-trutura puramente humana, co-mo, por exemplo, a malograda torre espiralada de Vladimir Ta-tlin. Babel volta a ruir, não por punição divina, mas por erro de cálculo de origem malthusiana: dada a multiplicação da espécie, “a parte da torre-mastro já cons-truída não suportou o peso e tan-to povo” (22).

Altamente confidencial é uma pequena joia. Um carteiro com nome de anjo, Gabriel Ar-canjo, afinal, trata-se literalmen-te de um mensageiro, redige um e-mail, descrevendo o paradoxo de sua vocação constrangida:

Leio o que me cai nas mãos, livros, revistas, jornais, panfletos. Tudo menos o conteúdo dos enve-lopes que entrego, só o sobrescrito. Por isso sou leitor frustrado (45).

(E, como recorre ao cor-reio eletrônico, muito em breve

um carteiro desempregado.)

A segunda parte, Profa-nações, reúne um conjunto de transgressões que vira lugares--comuns pelo avesso.

Demo é um monólo-go extraordinário — atenção, encenadores: trata-se de tex-to pronto para o palco! —, no qual o “Obscuro” esclarece, e o faz com impecável lógica, que “o Mal é, portanto, o verdadei-ro Bem” (66). O leitor termina o conto devidamente convencido. Ainda mais: desejoso de habitar essa casa intertextual muito en-graçada, cuja boa nova encerra o texto: “Proclamo o Novo Evan-gelho, capítulo nulo, versículo zero” (67). Demo ombreia, em inventividade e linguagem, com seu precursor, A igreja do diabo, de Machado de Assis.

Noturno (pequena fantasia musical) ata as pontas da ficção e da ensaística de Evando. O con-to tematiza um encontro único: “Faz meia hora que nos mira-mos, quase indiferentes. Que sa-berá de mim, que saberei jamais dela?” (81). No longo interva-lo, dois olhares se cruzam: em posição de igualdade, ave e ho-mem se medem. Melhor: iguais porque intuem que a diferença presente remete a circunstância originária comum. Evando re-escreve Protágoras: o vivente é a medida de todas as coisas; logo, também dos homens. A ficção de Evando inaugura uma ponte com o perspectivismo antropo-lógico, tal como teorizado por Eduardo Viveiros de Castro.

O autor de Retrato des-natural propôs uma hipótese capaz de renovar a antropofagia oswaldiana: em lugar de devo-rar o outro, por que não comer junto com ele? Ou, pelo menos, adotar a dieta prescrita em Muito prazer; autêntica passagem ao in-finito precisamente porque o cír-culo se fecha enquanto as bocas se abrem: “tal é a lei do universo, engolir e ser engolido, em prol da comilança absoluta” (80).

A última seção, Os vestí-gios, apresenta uma série de “es-tudos” — entenda-se o termo no sentido empregado nas artes plásticas; além disso, tal seção ecoa e refina a noção de Restos, última parte de Retrato desna-tural. O terceiro vestígio, Reflexo (reverso), sintetiza com engenho o perspectivismo de sua ficção — o desejo de escrever para dei-xar de ser Evando, inventando-se outros tantos: “Cansei de dizer Espelho meu, agora serei para to-do o sempre espelho seu” (110).

Cantos profanos é um convite: espero que o leitor siga a dica, descobrindo-se inumera-velmente trezentos-e-cinquenta.

Evando Nascimento afir-ma sua força através de uma prosa que se desdobra em ins-tigantes experiências de pen-samento e desconcertantes exercícios de dessubjetivação, formulados numa linguagem ci-rúrgica, cuja fatura distingue seu autor no universo da literatura brasileira contemporânea.

NOtas1. Evando Nascimento. Retrato desnatural (diários – 2004 a 2007). Ficção. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 55, grifos do autor. Nas próximas citações, mencionarei apenas o número da página.2. Evando Nascimento. “O dia em que Walter Benjamin daria aulas na USP”. Cantos do mundo. (Contos). Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 155 e 162.3. Evando Nascimento. “Babel revisitada”. Cantos profanos. São Paulo: Editora Globo, 2014, p. 21. Nas próximas citações, mencionarei apenas o número da página.

ilustração: Carolina Vigna

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22 | | janeiro de 2015

Keret no país das

maravilhasContos do escritor israelense se baseiam

na lógica da introspecção e do sonho

ViVian schlesinGer | são Paulo – sP

de repente, uma ba-tida na porta. Você abre, mas em vez de alguém entrar, é vo-cê que atravessa uma

fresta e se depara com o mundo bizarro e íntimo de Etgar Keret.

Apontado como o mestre da ficção curta produzida em Is-rael, Keret escreve no idioma in-formal da rua e cria personagens estranhos, ainda assim familia-res. Cada conto seu é uma casa estreita, cheia de portas e passa-gens, na qual o leitor pode subir as paredes, mas de onde só sairá pela mão segura do autor.

O mundo de dilemas éti-cos impossíveis da ficção de Ke-ret gera muito mais perguntas do que respostas. Lógica, só a do sonho. Para o autor, observa Ste-ve Almond, do New York Times, o impulso criativo não reside na devoção consciente à arma-dura clássica da ficção (perso-nagem, enredo, tema), e sim na lealdade à instigante anarquia do subconsciente. Em um dos me-lhores contos, Abrindo o zíper, uma mulher chamada Ella en-contra um zíper debaixo da lín-gua de seu namorado quando ele está dormindo. Ao descer o zíper, a personagem vê o moço abrir-se, revelando, dentro, Jur-gen, seu antigo namorado. Ao perceber um zíper debaixo de sua própria língua, Ella é toma-da por um terror íntimo: como será, por dentro? Se isso desper-ta o Gregor Samsa em nós, o lei-tor que se prepare: há peixes que viram homens e esquecem que são peixes, há até uma hemorroi-da que dá conselhos diabólicos a um homem bom, ganhando tanto poder que acaba se tornan-do maior do que ele. Kafka vive.

No conto que dá nome à coletânea, mergulha-se no dilema de um escritor de nome Keret, forçado a contar uma história — mas “uma história de verdade”,

não a realidade. Qualquer um teria dificuldade pa-ra escapar da realidade, mesmo ameaçado de morte. A história que o personagem conta para salvar sua vida começa, enfim, com a frase “De repente, uma batida na porta”. Não por acaso, também no conto, e no livro em si, “sem uma batida na porta, não há história”. É a primeira porta que se abre na viagem para um outro mundo, e uma imagem recorrente na obra de Keret, que pode ter origem em Lewis Car-roll ou no sofrimento de seu pai, que para sobreviver ao Holocausto passou 400 dias escondido em um buraco estreito. A necessidade de uma rota de fuga sopra fortes ventos em seus enredos.

Gavetas interioresÉ frequente, quando se fala de Etgar Keret, is-

raelense nascido em 1967, apontar os conflitos no Oriente Médio como tema central e o pensamento mágico como porta de escape a uma dura realida-de, o que o planta firmemente na tradição literária judaica de Isaac Bashevis Singer ou Moacyr Scliar. Nancy Rozenchan, que enfrentou o desafio de tra-dução dessa obra — complexa justamente por sua coloquialidade em um idioma que ficou dormente por dois mil anos —, considera que “textos atuais da literatura israelense [...] tentam reformular os limites borrados e imprecisos da identidade israelense”. Mas há um perigo nessa generalização, apontado por Mia Couto: a obra do autor que vive em uma zona de conflito é sempre interpretada à luz do conflito.

Nestes 35 contos, o Keret não se limita a temas que o rodeiam. Escreve próximo à própria experiên-cia, que é a marca da literatura contemporânea. No Brasil, as obras de Michel Laub, Cristovão Tezza, Luiz Ruffato, entre muitos outros, demonstram uma preo-cupação em iluminar nossas sombras internas, sejam elas o preconceito, a arrogância ou a indiferença, exa-tamente como a “sensação de voltar-se para dentro” apontada por Rozenchan na obra dos escritores jovens israelenses. Ao contrário da Alice de Carroll, que é uma criança que teme crescer, os personagens em De repente, uma batida na porta são adultos (ou crian-ças) que temem sua própria pequenez. Em Keret, a sátira pode ser local, mas a ironia é global e atempo-ral. Onde outros grandes autores enxergam violência, identidade e território como questões nacionais, este as enxerga como questões existenciais.

Na linguagem direta, com muita gíria e de sim-plicidade construída, o esforço é por manter o fluxo narrativo, não por adornar o caminho. O humor nos tropeços dos personagens, uma de suas marcas, per-mite ao leitor encarar o que se esconde em suas ga-vetas interiores. Não há linguagem figurada, mas há voos líricos para bem longe do humor. Em Trabalho

de equipe, um menino de quatro anos pede ao pai que bata na avó materna, porque ela o tortura. O pai quer muito prometer que o fa-rá, mas sabe que não pode. E sofre em dobro. Assim como em uma crônica da revista Tablet, onde o autor relata um comovente diá-logo que teve, pouco tempo após perder seu pai, com seu filho de sete anos, para explicar-lhe por que os pais devem proteger os fi-lhos. Ao final, o menino o leva às lágrimas, perguntando quem irá cuidar de Keret, agora que seu pai faleceu. A ficção deste autor é pro-duto de uma oficina onde a dor é matéria-prima.

AmbiguidadeE ele conhece o poder da

ficção. Em Terra da mentira, um mentiroso sem escrúpulos in-venta um cachorro paraplégico para justificar seu atraso no tra-balho. Mais tarde, um sonho o leva a outro mundo, onde come-ça a encontrar os personagens de suas mentiras: lá está o cachorro paraplégico. Um pesadelo labi-ríntico, digno de uma conversa entre Kafka e Borges. Trata-se da responsabilidade sobre as menti-ras que contamos, da dificuldade de viver sem contá-las ou o dile-ma do ficcionista: escrever para sentir-se vivo, sim, mas aquilo que se cria toma vida própria. Keret afirma: “O fato de que vo-cê inventa algo não o isenta da responsabilidade [...] Em uma história, você é Deus. Se seu pro-tagonista fracassou é porque vo-cê o fez fracassar”. A mentira, uma fratura na realidade, loca-lizada pelo radar milimétrico de Keret, conduz a essa sequência de gavetas interiores, sucessiva-mente mais escuras e claustrofó-bicas. Apesar da vida curta, seus personagens têm alma densa.

“A única maneira de viver com o otimismo no dia a dia sa-bendo que o futuro é pessimista, é preservar a ambiguidade”, confes-sa. Nela surge a política em cons-tante estado de ebulição, a questão da identidade israelense, discutida dos pontos de ônibus ao Parlamen-to. Seus personagens são separados por pequenas alterações de percur-so, mais do que por sua essência. Em Manhã saudável, um homem abandonado pela namorada é con-fundido com várias outras pessoas; em Mystique, dois desconhecidos, com histórias iguais, sentam-se lado a lado em um avião. Nesses contos, pessoas vivem vidas parale-las e um tanto idênticas.

A ambiguidade também é temporal. Em Pudim, Avishai é obrigado a correr para a casa dos pais e reviver uma tarde da infân-cia. Estranha, mas imagina que esteja sonhando. Só que o sonho não acaba. O personagem caiu pa-ra dentro de si pela fresta da reali-dade, e não saiu mais. Talvez esteja a traduzir-se para si próprio, assim como Keret considera a tradução um diálogo, e se dispõe a reescre-ver ou eliminar trechos que não façam sentido em outro idioma. Resta saber se o leitor estará dis-posto a fazer isso consigo mesmo após viajar para dentro de si.

trecho

De rePente, uma BatiDa na Porta

No trabalho, certa vez ele justificou um atraso de duas horas com uma mentira a respeito de um pastor-alemão que encontrara atropelado junto à calçada e que ele levara ao veterinário. Na mentira, o cachorro ficara paralítico e nunca mais recuperaria o movimento das patas traseiras. Funcionou. Robi Algarbali teve oportunidade de mentir muitas vezes durante a vida.

o autor

EtGAR KEREt

Nasceu em Israel, em 1967. É autor de livros de contos e romances traduzidos para 35 idiomas. Seus textos aparecem em publicações como The New Yorker, The Paris Review e The New York Times. Em 2007, recebeu o prêmio Caméra d’Or, em Cannes, pelo filme Jellyfish. O governo francês o nomeou em 2010 Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras. Vive em Israel com a esposa e filho.

De rePente, uma BatiDa na PortaEtgar KeretTrad.: Nancy RozenchanRocco255 págs.

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janeiro de 2015 | | 23

Um Cândido contemporâneo

Com leveza e ironia, Leonardo Sciascia remonta o poder corrompido na Sicília da Segunda Guerra

Patricia Peterle | Pescara – itália

a fumaça do cigarro esconde traços de um rosto que, num primeiro momento, aparece embaçado.

O fio da fumaça é um elemen-to constante que acompanha Leonardo Sciascia em suas in-vestigações literárias e jornalísti-cas, caracterizadas por um estilo inconfundível: uma escritura se-ca, essencial, eficaz e, ao mesmo tempo, irônica e culta, que atrai e provoca curiosidade no leitor.

Um olhar atento e pene-trante que procura indagar o que acontece a seu redor. Olhos densos e famélicos por questio-namentos que possam levar a in-dícios dos entremeados fios das relações, visíveis e invisíveis, na sociedade, e que podem influen-ciar a vida e o percurso de um habitante qualquer. O olhar clí-nico de Sciascia penetra a fundo a sociedade siciliana e, por con-seguinte, a italiana.

O autor foi um dos primei-ros a tratar da complexa organiza-ção da máfia siciliana como um fenômeno não folclorístico. Má-fia cujos tentáculos se estendem para além da organização em si, para além das fronteiras da Sicí-lia: uma imbricada relação de po-der que envolve ainda cidadãos comuns, políticos e membros da própria igreja católica. Mais do que um tema, a máfia é um meio que permite a Sciascia refletir a partir e sobre a sociedade italiana, como um microcosmo que passa a operar em dimensões maiores.

Logo após as primeiras pu-blicações com foco na máfia, na década de 1960, foi-lhe atribuí-do o título de mafiólogo — títu-lo, contudo, recusado inúmeras vezes, pois o autor não se con-siderava e não era um estudioso do fenômeno. Mais do que estu-do de campo, o que é chamado de máfia, o imbricado conjunto de relações de poder, foi algo que pertenceu ao vivido do prosador italiano. Nas suas palavras: “Sou simplesmente alguém que nas-ceu e viveu em uma cidadezinha da Sicília ocidental e que tentou sempre entender a realidade que estava ao meu redor, os aconteci-mentos e as pessoas”.

Crime sem clímaxLeonardo Sciascia é, sem

dúvida, um dos maiores nar-radores da segunda metade do século 20 na Itália, com vários volumes publicados no Brasil, conforme constatado na segun-da fase da pesquisa Literatura italiana traduzida no Brasil. Na década de 1980, a Rocco foi a primeira editora a divulgar seus romances policiais por aqui — O dia coruja e A cada um o seu, ambos recentemente repu-blicados pela Alfaguara.

Sem dúvida o tempero da-do pela pitada do policial atrai um leque variado de leitores. Todavia, é bom lembrar que se trata de um pretexto. De fato, a estrutura clássica do gênero — a relação de Sciascia será intensa com Poe, por exemplo — será colocada à prova, desestrutura-

da, remontada pelo autor sicilia-no, mesmo quando mantendo os clássicos papéis de vítima, deteti-ve e culpado. A grande diferença está no fato de que não importa mais chegar ao culpado, e talvez essa informação já se tenha — ela ronda a atmosfera da trama, mes-mo que não seja de forma decla-rada, explícita. O clímax não é, portanto, a descoberta, mas todo o processo da investigação em si. Todas as pistas, indícios e “assina-turas”, que podem receber leitu-ras diferentes, são considerados na mesa de operação ou labora-tório da investigação.

Dentro da tradição literá-ria italiana é importante lembrar os nomes de Alessandro Manzo-ni, Luigi Pirandello, Vitaliano Brancati e Alberto Savinio. Se vamos além das fronteiras ita-lianas — e, como sabemos, uma literatura se faz por meio de con-tato e contágio —, os nomes de Montaigne, Stendhal (“o adorá-vel Stendhal”), Voltaire e Borges não podem ser esquecidos.

Agora, bem no finalzinho desse conturbado 2014, a Berlen-dis & Vertecchia, na prestigiosa Coleção Letras Italianas, acaba de lançar mais um título de Sciascia, até então inédito no Brasil: Can-dido, ou uma história sonhada na Sicília, publicado original-mente em 1979, dez anos an-tes da morte do autor. Um texto intimamente relacionado à sua época, mas que pode ter muito a dizer ainda hoje para os dois paí-ses em questão: a Itália, língua do texto de partida, e o Brasil, língua do texto de chegada.

IndagaçõesA década de 1970 é conhe-

cida na Itália como anni di piom-bo, um período em que a tensão política beira o caos, com uma série de ataques terroristas, com a luta armada e tantas manifes-tações que invadem as milhares de praças na península. Um mo-mento delicado, de crise, que de-ve ser lembrado, mesmo a grosso modo, para tentar entender me-lhor a complexa rede na qual Candido se insere.

Em 1974, já tinha sido

publicado o famoso texto de Pasolini conhecido como articolo delle luccio-le — que recentemente foi retomado pelo historiador da arte Georges Didi--Huberman —, no qual o poeta e ci-neasta tratava de um novo fascismo silencioso, dado pela nova ordem po-lítica e econômica. Do ano seguinte, assinalo alguns acontecimentos impor-tantes: em junho, a entrada de Sciascia na política — é eleito nas municipais de Palermo (Sicília); no início de no-vembro, morre Pasolini, em circuns-tâncias ainda hoje não totalmente esclarecidas. Três anos mais tarde, em março de 1978, Aldo Moro, secretário da Democrazia Cristiana, um dos po-líticos mais influentes da Itália, relido por Sciascia nas páginas de L’affaire Moro (1978), foi sequestrado e morto.

A história de Candido Munafò inicia em um momento bem específi-co. Ele nasce na noite do desembarque americano na Sicília, ou seja, noite que marca a divisão entre o período fascis-ta e o momento pós-fascismo. Candi-do, nas páginas do escritor siciliano, vai sendo delineado como um “mos-tro” por não compartilhar alguns há-bitos — o compromisso hipócrita, as relações falsas (inclusive as familiares). O personagem tem como “fiel compa-nheiro” um preceptor um tanto pecu-liar, Antonio Lepanto, que foi padre e deixou a igreja para fazer parte de uma outra: o partido comunista. Candido e Antonio apresentam duas formas de se relacionar e lidar com a sociedade na qual estão inseridos. Se para Antonio a possível “salvação” está dentro da es-trutura do partido, para Candido essa mesma estrutura passa a ser indagada com todas as suas incongruências, más-caras e contradições.

Antenado às lições do século 20, a leveza é um traço dessa obra. Com sua sagaz ironia, Sciascia percorre nes-sas páginas as decepções, as mentiras, as aparências e múltiplas faces do poder constituído. Sem dúvida, há muito do célebre Candide (1759), de Voltaire, mas esse é só um ponto de partida, pois o alvo de Sciascia não muda: continua sendo o clientelismo, os compromissos entre quatro paredes, os compromissos ideológicos e, enfim, a máfia. Candido é, portanto, uma leitura desconfortan-te, incômoda, em que a todo momen-to vibra um tom destoante, que pode estar em consonância com os nossos tempos atuais.

trecho

canDiDo, ou uma história sonhaDa na sicília

Como dissemos, Candido não percebia o ódio dos camponeses, mas sentia um certo constrangimento de ser dono daquelas terras. Por que razão haviam de ser suas todas aquelas terras? Como é que um homem — seu avô ou bisavô —, não tendo trabalhado ou trabalhando só um pouco nelas, podia ser seu dono?

o autor

LEonARdo SCiASCiA

Nasceu em Racalmuto, em 1921. Foi um intelectual poliédrico: escritor, ensaísta, poeta, jornalista, professor de escola e político italiano. É uma das grandes figuras da segunda metade do século 20 italiano e europeu. Algumas de suas principais obras traduzidas em português são: O mar cor do vinho, Portas abertas, 1912 +1, O dia da coruja, A cada um o seu, Todo modo. Faleceu em Palermo, em 1989.

canDiDo, ou uma história sonhaDa na sicíliaLeonardo SciasciaTrad.: Maria Gloria Cusumano MazziBerlendis & Vertecchia125 págs.

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24 | | janeiro de 2015

Os belos crimes de

Agatha

Autora de sessenta e seis romances, Agatha Christie é um dos maiores expoentes da literatura policial

luiz Paulo Faccioli | Porto aleGre – rs

ilustrações: Osvalter

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c axias do Sul, Ser-ra Gaúcha, um fim de tarde gela-do no inverno de 1973. As corti-

nas abertas da janela do quarto mostram a cerração se espessan-do mais e mais à medida que a noite se aproxima. No toca-fitas portátil, a melancolia da flauta de The fool on the hill, o psico-delismo de Strawberry fields fo-rever (e seu enigmático “I buried Paul”, que tanta especulação ha-via rendido anos antes), a sono-lência lisérgica de Blue Jay Way, todas as canções parecem rever-berar a mesma tensão de medo e mistério. Quinze anos bem en-trouxados num cobertor de lã, o jovem não consegue desgrudar os olhos da história a um tem-po horripilante e bizarra que lê, a do fantasma de um gato per-sa cinzento: o fascínio adoles-cente pelas narrativas de terror vem de muito antes que o termo gótico ganhasse a dimensão que hoje tem. A cerração é autênti-co produto sul-rio-grandense, mas pode fazer as vezes de fog na composição de um apropriado cenário. Já o Magical mystery tour e o conto O estranho caso de Sir Andrew Carmichael são dois pro-dutos genuinamente britânicos. E o álbum dos Beatles parece ter sido composto para servir de tri-lha musical a alguns dos contos do livro A mina de ouro (1971), de Agatha Christie.

Porto Alegre, novembro passado, encerramento do ciclo Fronteiras do Pensamento 2014. Ao final da conferência A biblio-teca imaginária, do argentino Al-berto Manguel, o mesmo leitor, agora na meia-idade, assiste ao palestrante ser indagado sobre sua relação com a literatura policial, gênero que sempre teve grandes mestres entre seus apreciadores — um deles, Jorge Luis Borges, seu conterrâneo mais ilustre —, ao mesmo tempo em que boa parte do público e da crítica lhe

torce o nariz com o desdém de-vido a algo tão menor que chega por vezes a ser chamado de su-bliteratura. Manguel tem uma resposta pronta e certeira: desme-recer o gênero policial é renegar Crime e castigo, Macbeth, Ha-mlet e várias outras obras capi-tais da literatura universal. E vai além: há quem sustente que to-do romance é, no fundo, um ro-mance policial. O leitor lê porque quer desvendar a história, quer saber o que vai acontecer; a úni-ca diferença, como aliás bem assi-nalou Luis Fernando Verissimo, é que no romance policial há crime e corpo assassinado.

Durante os quarenta e um anos que separam os dois episó-dios acima, alguma coisa certa-mente mudou, pelo menos na percepção deste leitor de toda uma vida de histórias policiais, em geral, e de Agatha Christie, em particular. Em 1973, a Rai-nha do Crime estava viva, pro-duzindo e, octogenária, ainda não havia publicado seus derra-deiros trabalhos. Cai o pano, a última aventura de sua criação mais célebre, o detetive Hercu-le Poirot, viria a ser lançado dois anos mais tarde com uma tira-gem inicial recorde de 200 mil exemplares, cem vezes maior que a de seu livro de estreia. Dois anos antes, havia recebi-do das mãos de sua mais nobre admiradora, a Rainha Elizabeth II, o título de Dama da Ordem do Império Britânico. Sua obra era editada no Brasil pela No-va Fronteira e as edições esgota-vam-se rapidamente, repetindo um padrão mundial de desem-penho. Naquele tempo, se ha-via preconceito contra o gênero ou contra a autora, ele não era tão flagrante como passou a ser nas décadas seguintes. Seus li-vros perfilavam-se com dignida-de na seção de literatura inglesa da bem abastecida biblioteca do colégio, ao lado de Jane Austen, Emily Brontë, Charles Dickens,

Oscar Wilde e outros clás-sicos. À medida que capi-talizava o sucesso editorial

para chegar ao Guiness book como a autora mais vendida de todos os tempos, ultrapassando hoje a espantosa cifra de quatro bilhões de exemplares em todo o mundo, traduzida para 103 idio-mas e perdendo os dois primei-ros postos apenas para a Bíblia e para Shakespeare, pelo menos no Brasil ela paradoxalmente acaba-va alimentando o preconceito contra a própria obra e arrastan-do consigo toda a literatura da qual é a mais legítima represen-tante. Foi outro inglês, Graham Greene, quem anos antes havia começado o imbróglio ao de-clarar que dividia sua produção literária em obras “sérias” e “de entretenimento”. Daí a se ima-ginar que seriedade não combi-nava com vendas e que best-seller era sinônimo de entretenimento e, por conseguinte, de coisa me-nor, foi um tapa. E se Manguel, em 2014, acha oportuno fazer um desagravo público à literatu-

ra policial, isso indica que ele é ainda pertinente e também que o preconceito não é um fenôme-no restrito ao cenário brasileiro.

A perícia do ficcionistaNascida em Torquay, De-

von, em 1890, Agatha Christie descende da linhagem mais cas-tiça da literatura policial, a Who-dunnit? ou Who done it? (Quem fez isso?) do jargão do gênero, criada por Edgar Allan Poe e seguida por Sir Arthur Conan Doyle. Poe, antes de ser lem-brado como o pioneiro das his-tórias policiais, é reverenciado hoje como um dos fundadores da literatura norte-americana e do conto moderno, do qual foi o primeiro teórico, e também por ter inaugurado outros segmentos importantes além da trama de mistério, como a ficção científica e as narrativas de terror. Já o es-cocês Doyle, que sucedeu a Poe e experimentou grande sucesso à sua época, ressentia-se do fato de ser reconhecido “apenas” como o criador de Sherlock Holmes, o mais famoso detetive da ficção de todos os tempos e que serviu de paradigma a todos os que lhe sucederam. Doyle bem que ten-tou matar o personagem ao final do quarto livro, mas foi obriga-do a ressuscitá-lo por pressão do público; tentou mais tarde tirá--lo de cena na obra que batizou com o sugestivo nome de His last bow (no Brasil, O último adeus de Sherlock Holmes) e que termina com Seu último ca-so; resistiu dez anos até lançar o nono e derradeiro volume com novos casos do detetive; entre uma tentativa e outra de acabar com a fonte de seu sucesso, de-dicou-se a vários outros proje-tos literários, mas nenhum deles conquistou uma ínfima parte do êxito obtido com os nove livros protagonizados pelo excêntrico inquilino da 221-B Baker Street.

Agatha Christie publicou seu primeiro livro, O misterio-so caso de Styles (1920), três anos após Conan Doyle ter pu-blicado O último adeus..., e com ele nasce Hercule Poirot, um personagem que guarda al-gumas semelhanças com Sher-lock Holmes — que é inclusive referido no romance —, mas também (e principalmente) grandes diferenças. Poirot, que protagoniza nada menos do que quatro dezenas de livros, contra os nove de Holmes, é assim des-crito em sua primeira aparição:

Poirot era um homenzinho de aparência extraordinária. De-via ter pouco mais de 1,60 metro de altura, mas exibia uma imensa dignidade. A cabeça tinha exata-mente o formato de um ovo e ele sempre a inclinava ligeiramente para o lado. O bigode estava sem-pre bem aparado, com uma rigi-dez militar. A impecabilidade de suas roupas chegava a ser quase inacreditável. Tenho a impressão de que um pouco de poeira o teria feito sofrer mais que um ferimen-to à bala. Contudo, aquele dândi

exótico, que agora coxeava visivel-mente — algo que me entristeceu —, tinha sido um dos mais desta-cados elementos da polícia belga.

Nessa brevíssima des-crição podem ser encontradas as características essenciais do personagem que serão depois aprofundadas no decorrer da narrativa e nas histórias seguin-tes. Poirot foi viver na Inglaterra junto com um grupo de refugia-dos belgas, que deixaram a pá-tria ao final da Primeira Grande Guerra, e faz um belo contra-ponto à figura de Sherlock Hol-mes. Enquanto o detetive de Doyle é um tipo essencialmen-te britânico e nunca atuou como policial, Poirot é o estrangeiro de aspecto e modos um tanto ri-dículos que cruzou o Canal da Mancha já aposentado de suas funções na polícia; além disso, desde o primeiro caso, a despei-to de sua fama, quase sempre en-tra em cena desacreditado por seus pares, que o tomam por ve-lho e ultrapassado antes de vê-lo em ação. Holmes é alto e magro; Poirot, baixo e roliço. Holmes é descuidado com a aparência; Poirot, extremamente vaidoso. Holmes se assemelha a um cão farejador, sempre à cata de ves-tígios mínimos, mas concretos, que possam elucidar seus casos, e a lupa é um dos objetos associa-dos à sua imagem, assim como o chapéu, a capa e o indefectível cachimbo. Já Poirot se interessa pela psicologia do crime e do cri-minoso; ele trata um caso como se fosse um quebra-cabeça onde todas as peças soltas devem se encaixar perfeitamente para for-mar o conjunto; usa para isso su-as “pequenas células cinzentas” e diz que não precisa deixar o con-forto de sua poltrona para solu-cionar um caso, basta que lhe tragam os fatos e ele os organi-zará, com ordem e método, que são suas palavras mais caras, pa-ra chegar à solução; seu símbo-lo por excelência é um bigode de absurda simetria. Holmes tem seu narrador oficial, o Dr. Wat-son, fiel escudeiro que partici-pa de todas as aventuras (exceto uma, narrada pelo próprio Hol-mes), mas fica aquém das habi-

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lidades intelectuais do detetive a quem serve; Poirot também con-ta com seu Watson na figura do Capitão Arthur Hastings, que narra algumas das histórias e gos-ta eventualmente de se vangloriar de suas virtudes como investi-gador, embora seja tão limitado quanto o assistente de Holmes.

O misterioso caso de Sty-les foi recusado por seis casas editoriais antes de finalmente merecer uma edição de dois mil exemplares. Curiosamente, o fa-to de pertencer a um segmento que fazia sucesso na época em que a principal atração amea-çava sair de cena não lhe garan-tiu automaticamente o interesse das editoras, que desde sempre trabalham com o olho voltado para o mercado. Talvez por ser uma mulher a reivindicar espaço num território ainda dominado pelos homens possa ter inibido sua aceitação. Bastou, contu-do, publicar uma vez para nun-ca mais encontrar dificuldades quanto a isso, ao contrário. De 1916, quando começou a escre-ver o primeiro livro, até sua mor-te, sessenta anos depois, Agatha Christie produziu e publicou cerca de uma centena de obras: sessenta e seis romances e quin-ze coletâneas de contos consi-derados do gênero policial, seis romances não policiais escri-tos sob o pseudônimo de Mary Westmacott, nove peças de tea-tro, duas coletâneas de poesia, duas autobiografias e um livro infantil, além de participações em outros livros. Apesar de não ter a sofisticação estilística de Poe, nem mesmo a de Doyle, a Rainha do Crime avançou mui-to no caminho que seus ilustres antecessores haviam antes des-bravado para se tornar o maior expoente da literatura policial de todos os tempos, lugar que ocu-pa soberana e sem rival à vista.

Depois de O misterioso caso de Styles, Agatha Christie passou a lançar a média de um livro por ano, mas o sucesso só viria de fato com o sétimo, O assassinato de Roger Ackroyd (1926), uma trama cuja solu-ção foi absolutamente inovadora para os padrões da época e que muitos ainda consideram sua

obra-prima. Protagonizada por Poirot, essa novela é emblemá-tica do estilo da autora e sinte-tiza também as duas principais características de um bem suce-dido entrecho policial: 1) o de-senvolvimento tem de seguir um padrão que o leitor já sabe qual é no momento em que se dispõe a ler uma nova história, e 2) esta tem de ser original e verossímil, sob pena de frustrar esse mesmo leitor. É um jogo de equilíbrio dos mais delicados e requer mui-ta perícia do ficcionista. Quan-to mais fantasiosa for a história, mais bem estruturada e convin-cente ela tem de ser para susten-tar os movimentos que abalam sua verossimilhança. Dito nou-tras palavras, a trama detetivesca típica lida o tempo todo com o clichê; ao escritor cabe assumi--lo e fazer com que soe a novi-dade. O humor é sempre uma alternativa nesses casos e ajuda na hora de atenuar os inevitá-veis estereótipos que sobrevêm na composição dos personagens, em especial os detetives.

Galeria de detetivesAo mesmo tempo em que

Agatha Christie inovava em O assassinato de Roger Ackroyd, menos pelo assassino se valer de uma artimanha tecnológica na arquitetura do crime e mais pe-la forma como o mistério é so-lucionado, o que foi motivo de polêmica à época, ela também ambientou suas primeiras his-tórias num cenário que lhe era muito familiar, a sociedade cam-pestre inglesa do pós-guerra, com sua aristocracia decadente, seus militares reformados, suas velhotas fofoqueiras, sua moral e hábitos provincianos. A per-sonagem Caroline Sheepard de Roger Ackroyd foi um primeiro esboço para Miss Jane Marple, a solteirona mexeriqueira que es-treia em Assassinato na casa do

pastor (1930) para protagoni-zar doze romances e vinte con-tos. Miss Marple vive sozinha no fictício vilarejo de St. Mary Me-ad, cuidando do jardim e trico-tando. Profunda conhecedora da natureza humana, ela perscruta a maldade, que sabe andar sol-ta no mundo, com a limpidez de seus olhos azuis de vovó ca-rola. Sua habilidade detetivesca está em relacionar fatos e perso-nagens que acaba de conhecer com situações já vividas e tipos que habitam seu microuniverso interiorano. Miss Marple conse-gue deslindar os mais intrigantes mistérios na base da bisbilhoti-ce mais descarada. Ao contrário de Poirot, que já nasce pronto e acabado no primeiro livro, Miss Marple, que não era muito ben-quista em St. Mary Mead por ser extremamente metida e estar sempre pensando o pior das pes-soas, torna-se mais simpática a partir de seu segundo caso.

Poirot e Miss Marple são personagens magistrais, desses que qualquer escritor gostaria de ter concebido. Embora sejam os mais carismáticos, eles não são os únicos na galeria de deteti-ves de Agatha Christie. Já no se-gundo livro, O inimigo secreto (1922), aparece o casal Tommy e Tuppence Beresford. Amigos de infância, eles se apaixonam, ca-sam, têm filhos e envelhecem en-tre um e outro dos cinco livros (quatro novelas e uma reunião de contos) que protagonizam em cinco décadas. Trabalham para o serviço secreto durante a Primei-ra Guerra e, quando o conflito acaba, criam a Jovens Aventurei-ros Ltda., pois não conseguem viver longe da ação com a qual estão acostumados. Tommy é lento e sensato, Tuppence, ágil e impetuosa, e a esse contraste a dupla deve o sucesso na solu-ção de seus casos. Em O segre-do de Chimneys (1925), surge

o Superintendente Battle, da Scotland Yard, um homem tos-co que não demonstra suas emo-ções e cuja especialidade são os casos de política e de intriga in-ternacional. Battle vai reapare-cer em outros quatro livros, um deles ao lado de Poirot. Há tam-bém o que dá título à coletânea O detetive Parker Pine (1934) e que vai retornar mais tarde em alguns contos esparsos. Parker Pine é funcionário público apo-sentado e se autodefine como “um detetive do coração”. Assim ele anuncia seus serviços profis-sionais no Times: Você é feliz? Se não for, procure o Sr. Parker Pine, 17 Richmond Street. Para trazer a felicidade de volta a seus clientes, ele tanto pode se envolver em complexas investigações quanto construir algumas soluções nada ortodoxas, mas nunca deixa de cumprir com o que promete.

Em O detetive Parker Pi-ne, surge Ariadne Oliver, uma mal-humorada escritora de ro-mances policiais que vai depois reaparecer como amiga de Her-cule Poirot em várias outras his-tórias. Ariadne Oliver é outro tipo impagável. Dona de uma cabeleira que não consegue do-mar e de uma intuição que con-sidera aguçada, mas que sempre falha, é louca por maçãs e criou um detetive finlandês, Sven Hjerson, pelo qual nutre um no-tável desprezo. Está sempre dis-posta a colaborar com Poirot na solução de seus casos, mas sua ajuda nunca é de grande valia. Ariadne Oliver é, em alguns as-pectos, o alter ego de sua cria-dora, que inclusive demonstrou sentir certa antipatia por Poirot em algumas situações.

Personagens que vivem no entorno das estrelas princi-pais estão sempre reaparecendo, como Raymond West, o sobri-nho escritor de Miss Marple, o Inspetor Japp da Scotland Yard, amigo de Poirot, dentre outros tantos. Exímia criadora de tipos, Agatha Christie não se descuida-va de nenhum detalhe que dis-sesse respeito a suas criações, o que incluía uma rede de relacio-namentos que as acompanhava de livro para livro.

Engenhosa avóEspecialista em urdir e es-

clarecer mistérios, a Rainha do Crime viveu ela própria um epi-sódio nunca esclarecido: no final de 1926, então casada com o pi-loto da RAF Archibald Chris-tie, recebe dele a notícia de que está apaixonado por outra mu-lher e quer o divórcio. Na mes-ma noite, ela sai de casa levando uma pequena mala e desaparece misteriosamente para ser reco-nhecida onze dias depois num hotel onde havia se hospedado com nome falso. Amnésia, vin-gança, golpe publicitário para estimular a venda de livros? Ape-sar de muita especulação, nin-guém nunca soube o que de fato aconteceu. O casamento duraria ainda dois anos, findos os quais Agatha manteria o sobrenome

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do marido apenas para assinar suas obras, pois des-sa forma já era bastante conhecida. Casou-se nova-mente em 1930 com o arqueólogo Max Mallowan, quatorze anos mais jovem, com quem viajou pelo mundo em expedições que depois serviram de ce-nário para suas histórias. O fato curioso é que em família e nos círculos íntimos, a escritora era trata-da por Mrs. Mallowan.

Em 1934 é publicado Assassinato no ex-presso do Oriente, outra obra estupenda e até ho-je seu maior sucesso comercial. Preso nos Bálcãs por uma tempestade de neve, o luxuoso Expres-so do Oriente é palco de um violento homi-cídio, um intrincadíssimo mistério que Poirot irá decifrar nas poucas horas em que o trem permanece parado. A so-lução subverte mais de um dos câno-nes até então vigentes para apresentar uma história que jamais poderá ser reprisada, tão original e poderoso é seu argumento e tão dramático o seu desfecho.

Quem contempla uma co-nhecida fotografia de Agatha Chris-tie trabalhando em sua máquina de escrever não consegue imaginar que aquela senhora roliça, de cabelos cla-ros encaracolados, vestida com aus-teridade vitoriana e lembrando uma simpática e recatada avó, tinha uma engenho-sidade para criar tramas que não foi até agora ba-tida, sequer igualada. Uma história nunca lembra outra, todas são absolutamente únicas e envolvem sempre o pior da natureza humana. A Dama do Império Britânico nunca teve pudores para lidar com a sordidez: assassinatos, sequestros, espiona-gem, roubo, suspense, casos do mais puro terror, tudo se transforma em matéria-prima genial para suas histórias. Um inocente poeminha infantil in-glês é o ponto de partida para um de seus livros mais célebres, O caso dos dez negrinhos (1939). Dez pessoas são convidadas a passar um fim de se-mana na ilha de um anfitrião desconhecido. Um a um começam a morrer e, aterrorizados, chegam à conclusão de que um deles é o assassino. Essa mes-cla de thriller de suspense e história de detetive tem uma urdidura das mais complexas e foi também uma novidade em sua época. Para evitar acusações de racismo, teve o título original alterado quando foi publicado nos Estados Unidos, de Ten little ni-ggers para And then there were none (E não so-brou nenhum). Outro livro importante também tem por mote uma cantiga infantil: em Os cinco porquinhos (1942), Poirot é contratado para in-vestigar um crime ocorrido há quatorze anos e cuja pretensa autora morreu na prisão, deixando à filha uma carta onde alegava inocência. Para solucionar o difícil caso, o detetive só conta com a memória dos que testemunharam os fatos, dentre eles o ver-dadeiro assassino, e com seu incrível talento para juntar peças aparentemente irrelevantes e desco-nectadas, formando o quadro completo com a so-lução do problema.

A casa torta (1949) traz o caso da mor-te por uma injeção letal de um rico comerciante grego casado com uma mulher cinquenta anos mais jovem e cujo desfecho, nada ortodoxo, cho-cou muitos de seus leitores. Em Convite para um homicídio (1950), considerado o mais brilhante caso de Miss Marple, os moradores de uma vila inglesa leem no periódico local o estranho anún-cio de um crime que será cometido às 18h30min de uma sexta-feira, 29 de outubro, na residência de Miss Blacklock, convidando para o evento os amigos da família. Todos pensam tratar-se de uma brincadeira ou de um jogo, enquanto um crime de verdade está em andamento.

Em 1972, respondendo à pergunta de um tradutor japonês, Agatha Christie preparou uma

lista com seus dez livros favoritos. Por ter sido elaborada quatro anos antes

de sua morte, a advertência de que se tratava da escolha daque-le momento, sujeita a alterações circunstanciais, talvez possa ser

agora ignorada e a tomemos por

definitiva, pois não se tem co-nhecimento de que exista uma outra posterior. Para os futuros e curiosos leitores que se sintam intimidados pela quantidade de títulos, uma seleção feita pela própria autora é preciosa. Ei-la: O caso dos dez negrinhos, O assassinato de Roger Ackroyd, Convite para um homicídio, Assassinato no expresso do Oriente, Os treze problemas para Miss Marple (1933), Ho-ra zero (1944), Noite sem fim (1967), A casa torta, Punição para a inocência (1958) e A mão misteriosa (1942).

Em sua atuação como dramaturga, a Rainha do Cri-me também tem um recorde: A ratoeira, peça que estreou em Londres em 1952 e desde então, de forma ininterrupta, segue em cartaz. O conto que lhe serviu de argumento permanece até hoje inédito na Inglaterra, seguindo o desejo da autora de que só fos-se publicado quando a peça dei-xasse de ser levada, mas faz parte, nos Estados Unidos e também no Brasil, da coletânea Os três ratos cegos e outras histórias (1950). Outra peça fundamen-tal é Testemunha de acusação (1953), baseada no conto de mesmo nome inédito no Brasil, que foi levado às telas por Billy Wilder em 1957 com um elen-co estelar que incluiu Marlene Dietrich, Tyrone Power e Char-les Laughton e que recebeu seis indicações ao Oscar.

As histórias de Agatha Christie foram e continuam sendo adaptadas para o cinema e para a televisão. O maior des-taque é o filme Assassinato no

a autora

AGAtHA CHRiStiE

Conhecida pelo mundo como a Rainha do Crime, seus livros venderam mais de um bilhão de cópias em inglês, com outro bilhão em línguas estrangeiras. É autora mais publicada de todos os tempos em qualquer idioma, somente ultrapassada pela Bíblia e por Shakespeare.

prateleira

aGatha christie

assassinato no camPo De GolFeBiblioteca azul296 págs.

e não soBrou nenhumBiblioteca azul400 págs.

o aDversário secretoBiblioteca azul384 págs.

o assassinato De roGer ackroyDBiblioteca azul296 págs.

Por que não PeDiram a evans?L&PM288 págs.

um Passe De máGicaL&PM240 págs.

Poirot: quatro casos clássicosL&PM744 págs.

testemunha De acusação e outras históriasL&PM744 págs.

expresso do Oriente, dirigi-do por Sidney Lumet em 1974, que reuniu outro elenco sober-bo: Albert Finney como Poirot, Lauren Bacall, Jacqueline Bisset, John Gielgud, Sean Connery, Vanessa Redgrave, Richard Wi-dmark e Ingrid Bergman, que mereceu o Oscar de Atriz Coad-juvante por seu papel.

* * *Porto Alegre, dezembro

de 2014. Uma tarde chuvosa de domingo é sempre um convite às lembranças. Uma delas, a de uma folha pautada de cor amare-la onde iam sendo listados todos os títulos lidos e ainda por ler da Rainha do Crime. Na última vez em que foi vista, do número to-tal, algo em torno de setenta e cinco, faltavam quinze ou dezes-seis para que fossem todos lidos. Cadê a lista? Acabou perdida em alguma mudança de endereço. Não importa, a Wikipédia é bem mais eficiente, embora não tão valiosa, porque não tem dono nem autoria conhecida. Magical mystery tour virou agora um CD, o aparelho de som é mais sofisti-cado, mas a ordem das canções parece não ser a mesma daque-la gravação caseira da década de 1970. Cadê aquela fita casse-te? Os livros de Agatha Christie continuam na estante, as capas se esfarelando, a ortografia ul-trapassada; muitos, porém, já foram renovados e fazem agora parte de uma moderníssima bi-blioteca digital. A mina de ouro foi relido em papel, exatamente como há quarenta e um anos, e serviu de inspiração. Strawberry fields forever recomeça a tocar.

ilustrações: Osvalter

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Da Sibéria ao sertão

Ensaios discutem a oralidade e a escrita nas histórias que viajam da Rússia ao nordeste brasileiro

Marcos alVito | rio de janeiro – rj

e ra uma vez um cam-ponês siberiano que conta uma história a um professor que a transforma em um

poema sobre um czar mau e um homem bom que consegue se casar com a princesa depois de cumprir tarefas aparentemente impossíveis com a ajuda de um cavalinho corcunda. Censura-da, a história continua a circular e acaba se tornando um clássico já em período soviético, pelo seu conteúdo de justiça social. Vira filme, recebe várias adaptações em prosa e é traduzida em outras línguas europeias. A tradução da tradução aparece em uma coletâ-nea brasileira, é utilizada por um poeta popular pernambucano e transformada em um folheto de cordel intitulado A princesa Ma-ricruz e o cavaleiro do ar, na dé-cada de 1960, mais de cem anos depois da publicação do poema russo. Aí passou a ser cantada em feiras para sertanejos que tam-bém experimentavam um con-texto de desigualdade e injustiça e, na caatinga, puderam se emo-cionar com uma história nascida nas neves da Sibéria. Como resu-me bem a autora:

O que é do povo volta a ele, o que era prosa se faz verso, o que era verso se faz prosa, assim sucessi-vamente, um fenômeno muito for-te e emocionante de acompanhar.

Esta trajetória tão mira-bolante e fantástica quanto o “conto de encantamento” que vai sendo transmitido e reapro-priado até chegar no Nordeste, é objeto do primeiro dos quatro ensaios que compõem Matrizes impressas do oral: Conto rus-so no sertão. Jerusa Pires Ferrei-ra estuda a literatura de cordel há mais de três décadas e já publi-cou vários livros sobre este tema e sobre as relações entre a memó-ria, a oralidade e a escrita. Nos três ensaios restantes, a autora continua um tour de force em que dialogam psicanálise, filo-sofia, teoria literária, linguística, sociologia e antropologia (a lis-ta não é exaustiva). Este arsenal

teórico é utilizado em prol de uma boa causa, um avanço conceitual que permite:

ultrapassar dicotomias empedradas como a fa-mosa popular versus erudito, passando a entender tudo isto como um processo contínuo de transmissão e uma espécie de tradução cultural permanente.

O processo que vai do poema de Ierchóv ao cordel de Severino Borges, todavia, seria ain-da mais complexo. A recriação se faria em dois níveis. Em um, chamado de “sistema secundá-rio”, “vão se inserindo detalhes das práticas so-ciais”, isto é, o poema vai ganhar uma cor local, vai articular-se a um outro espaço/tempo. Des-nudando esta articulação, Jerusa Pires Ferreira re-lativiza o peso da tradição oral nordestina, à qual se costuma atribuir “um poder de originalidade e de criação que não é somente a sua”, já que além do “sistema de oralidades” há que levar em con-ta também a “matriz impressa” que se relaciona diretamente com o “universo da tradição popu-lar”, inspirando-a, como no caso já mencionado. Isto é reafirmado no segundo ensaio, em que a autora demonstra como Czar Saltan um conto de Puschkin, escrito em 1831, também a partir de uma história que lhe fora contada de viva voz, irá transformar-se no folheto O romance do prínci-pe Guidon e o cisne branco, publicado em 1974 por Severino Milanês da Silva. Aqui o leitor pode contar com um verdadeiro presente: uma tradu-ção inédita do conto russo feita por Boris Sch-naiderman e o fac-símile do cordel que recriou a história, permitindo confrontar as duas “versões” de uma deliciosa história de três irmãos, dois in-vejosos e maus e outro, ao mesmo tempo ingê-nuo e engenhoso, que acaba também por se casar com uma princesa que, como entrega o título, havia sido transformada em um cisne.

Significados centraisPara além da recriação da história em ou-

tro contexto, o que sem dúvida leva a mudanças e adaptações, a autora afirma ainda que há a manu-tenção de “significados centrais”, que se apoiariam “na força semântica e estruturada da matriz univer-sal dos contos de encantamento”. Esta expressão, “matriz universal”, reaparece sob várias formas ao longo do livro: “texto universal”, “arquimatriz”, “grande matriz oral” e em termos semelhantes, co-mo “grande lastro de memória ancestral” e “me-gatexto”, que apontariam para a existência de um “pensamento mitológico enraizado e em perma-nente recriação”. A história do Cavalinho corcun-da, por exemplo, teria sua origem, para além de um antigo conto popular siberiano, em um “pos-sível repertório indo-europeu”, isto é, o nascimen-to da história se perderia na bruma dos tempos, ou, como diz Jerusa Pires Ferreira, remeteria “a um tempo que não nos permite acompanhar concreta-mente quando tudo começa”.

Onde estaria a explicação para a existência do que ela cha-ma de “bases míticas imemo-riais”? Seria uma manifestação do chamado “inconsciente cole-tivo”? Esta hipótese é rechaçada:

Aí não se está pensando em inconsciente coletivo, mas em coletividades concretas que vão interpretando e realizando lin-guagens imemoriais e já prototi-padas através da transformação pela voz de seus poetas. É o ances-tral em novos corpos.

A autora esboça uma ex-plicação histórico-sociológica ao salientar que “nas sociedades tra-dicionais o elenco de situações é relativamente pouco numeroso”, mas não parece atribuir a isso um peso suficiente para explicar as recorrências e a permanência dessas “bases míticas”. Ela tam-pouco chega a dar uma resposta clara a esta questão. Aqui o leitor tem que navegar em um mar de erudição ao mesmo tempo en-cantador e perigoso, em que a todo tempo esbarra com concei-tos especializados que são citados mas não totalmente esclarecidos, como “circulação intersemióti-ca”, “significante icônico”, “po-der figural”, “presentidade do corpo e do olho”, “interimagici-dade” e outros.

A este respeito, o que fica patente é a relação muito forte en-tre o ouvir e o ver, em que a fala e o gesto (pensemos em um corde-lista apresentando sua história ao público) suscitam uma verdadeira visualização imaginada. Inversa-mente, o conto é contado a partir de uma espécie de matriz visual, como a autora chega a afirmar:

Tem-se a impressão de que o figural preexiste e que é ele que per-mite toda uma reconstituição de visualidade que se materializa nas várias linguagens da narrativa oral.

De fato, este aspecto qua-se “cinematográfico” da nar-rativa oral está claramente presente desde os primórdios da literatura ocidental. Pode-se ler a Ilíada, originária de canções entoadas durante séculos pelos aedos, como se fosse o roteiro de um filme de ação.

Os quatro artigos de Ma-trizes impressas do oral fazem a cabeça dar voltas, no bom sen-tido. A escrita é ao mesmo tem-po elegante e caleidoscópica, apontando na direção de várias possibilidades. Creio que uma das vias de leitura mais proveito-sas reside no entrelaçamento do oral e do escrito em um proces-so contínuo e sem fim. No caso da literatura brasileira, o exem-plo de Guimarães Rosa demons-tra esse vínculo, que o próprio autor fez questão de “docu-mentar” em vários contos co-mo em Corpo fechado, presente em Sagarana. O produto mais bem acabado desta dinâmica é a obra-prima Grande sertão: ve-redas, exemplo maior das possi-bilidades infinitas desta dialética entre a oralidade e a escrita.

trecho

matrizes imPressas Do oral: conto russo no sertão

Quando nos encontramos diante de contos populares e dos folhetos de cordel, temos a tendência de atribuir à tradição oral um peso excessivo, um poder de originalidade e de criação que não é somente a sua. Para entender o que se passa, temos de levar em conta categorias de expressão, situações narrativas que se mantêm, sempre prontas a aparecer e que formam uma espécie de virtualidade que chamamos “a grande matriz oral”.

a autora

JERuSA PiRES FERREiRA

Nasceu em Feira de Santana (BA), em 1938. É doutora em sociologia da literatura pela USP, onde coordena o Centro de Estudos de Oralidade e o Núcleo de Estudos do Livro e da Edição. É ensaísta, tradutora e professora de literatura e de comunicação social da USP e da PUC-SP. É autora de inúmeros artigos e mais de vinte livros, dentre os quais Armadilhas da memória (2004), Cavalaria em cordel (1979) e O livro de São Cipriano, obra com a qual ganhou o prêmio Jabuti para Estudos Literários em 1993.

matrizes imPressas Do oral: conto russo no sertãoJerusa Pires FerreiraTraduções: Boris SchnaidermanAteliê114 págs.

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janeiro de 2015 | | 29

prateleira | nacional

aDeus a alexanDriaMyriam Campello7Letras148 págs.

Enquanto seus próprios livros não se sustentam, Silvia é obrigada a fazer o papel de ghost writer. Um dia, recebe uma grande soma para escrever o romance que será assinado por João, um banqueiro brasileiro que está em Boston fechando um grande negócio. Surpresa, ela aceita. A construção do livro vai revelando os bastidores da escrita, compartilhando com o leitor as dúvidas e as euforias que envolvem a criação artística.

artE&ManhasVilma Costa FuturArte Poesia116 págs.

Seleção de poemas escritos durante toda uma vida. Dividido em seis partes — Lambari, E agora?, Temperança, À flor da pele, Tudo que é sólido, A ruaça —, os versos falam da rua, do tempo, do cotidiano e do amor. Dores, alegrias e sensualidade são expressas através duma visão poética do cotidiano. Irregularidades, paradoxos e desafios de superação da própria condição humana de amante apaixonado pelo próximo e pelas artes.

seGunDa PeDraSylvia MelloEdith136 págs.

Precisa haver sentido em tudo? Há uma mania de ver intenção em tudo. Talvez um charuto seja apenas um charuto. Quando os e-mails começaram a se desencontrar, porém, a máxima do pai da psicanálise foi por água abaixo. Se a relação permanecesse virtual, acabaria se desgastando — além do mais, ele foi tão seco naquela mensagem pela manhã e já houve tantos desencontros. A continuidade, enfim, depende do encontro improvável, mas fatídico, da sexta-feira.

o tempo dos poe-tas menores está chegando, anun-ciou o poeta sérvio Charles Simic no

fim dos anos 1980. “Adeus Whit-man, Dickinson, Frost. Bem--vindos vocês cuja fama nunca crescerá além da família próxima, e talvez um ou dois bons amigos reunidos depois do jantar para beber um jarro de vinho tinto.”

Encontro as encorajado-ras propostas de Simic em um dos ensaios de Arte da pequena reflexão (Iluminuras), livro do poeta Fernando Paixão dedica-do ao estudo do poema em pro-sa contemporâneo.

Nascido em Belgrado mas radicado nos Estados Unidos, Simic é um poeta do movimento e da expansão. Nascido em Por-tugal e radicado em São Paulo, Paixão parte de outra de suas fir-mes declarações: “Minha aspira-ção é a de criar uma espécie de não gênero composto de ficção, autobiografia, ensaio, poesia e, claro, de anedota”. O desafio de Simic me leva a pensar em tantos poetas que conheço que se sen-tem asfixiados por escrever ape-nas para meia dúzia de leitores, como se não escrevessem para ninguém. E a pensar, mais ainda, nos que não conheço. Sentem-se esquecidos, desprezados, ludi-briados. São poetas que não se li-vram do sentimento de que não encontram um lugar para si — de que sua poesia não é acolhi-da pela própria poesia. Pois eles deveriam ler Simic. A respeito de seu desafio, comenta Fernan-do Paixão: “Longe da ideia habi-tual que se tem do poeta, como alguém iluminado e altivo, en-contra-se o elogio do escritor encarnado em homem comum, envolvido no cotidiano e acome-tido por receios”. Não há nada de novo, a rigor, na descoberta de Charles Simic. Todo poeta — todo escritor — é, antes de tudo, um homem comum. O difícil, muitas vezes, é aceitar isso.

São poetas corajosos que, mesmo oprimidos pelo despre-zo dos editores, do mercado e da crítica, continuam a escrever e escrever, sem permitir que a in-diferença alheia os perturbe e os cale. O lugar-comum seria dizer que são “operários da poesia”, mas prefiro não vê-los assim. A

tempo dos poetas meNores

noção de “operário” (com todo o respeito que ela merece pela coragem que a define) conduz, muitas vezes, à imagem de um trabalho automático e impesso-al — e eu bem sei o quanto es-ses poetas se desviam, o quanto tremem e sofrem para escrever. Nenhum automatismo: pura en-trega, ainda que sem resposta, sem interlocutores, sem os bene-fícios da consagração. Nenhuma máquina ou linha de montagem trabalhando em seu lugar. Ne-nhuma repetição: ao contrário, a insistência absoluta no novo, ainda que ele seja incompreendi-do e confundido com a miséria.

Distingue Fernando Pai-xão: “De um lado, as figuras da alta literatura que fazem parte do passado; de outro, o prosaísmo dos poetas do presente”. Simic se despede, assim, dos grandes poe-tas da tradição. Dizendo melhor: toma distância, colocando-os em seu lugar. Eles, com sua “grande-za”, não combinam (não cabem) na era contemporânea. Sim, nós os lemos, eles nos satisfazem e entusiasmam. Mas quando olha-mos para os lados, vemos apenas poetas infernizados, que se deba-tem e sofrem com o manejo de suas próprias palavras. No lugar da reverência, o senso crítico. No lugar da pompa, a entrega. Que péssimas ideias costumamos cultivar a respeito dos grandes poetas. Eles nos parecem sobre--humanos. Temos a sensação de que se erguem e levitam acima de nós. Acima, sobretudo, dos poetas do presente. No entanto, o quanto sofreram para escrever seus versos. O quanto tiveram que lidar com o menor, com o ín-fimo, para chegar a ser quem são.

Afirma Simic uma nova atitude diante da poesia, que vá além daqueles elementos que, habitualmente, consideramos “poéticos”. Uma poesia além da poesia. Uma poesia para os po-etas simples, que se contentam apenas com o que têm e que aceitam ser quem são. (E todo poeta, mesmo o “grande”, não necessita disso?) Um elemento importante para o poeta sérvio é o humor — que, muitas ve-zes, confina a poesia no mun-do do “menor”. Disse, em uma entrevista publicada em Michi-gan no ano de 2001: “Eu não sei como definir o humor, mas me

parece que uma definição próxi-ma pode ser encontrada na poe-sia moderna; sobretudo quando mobiliza elementos de irraciona-lidade mais atitude”.

Muitos poetas menores se sentem prisioneiros do “irra-cional”, isto é, de impulsos que, em vez de enobrecê-los, os dimi-nuem. A relação que Simic pro-põe entre a irracionalidade e a atitude é, aqui, inspiradora. Não se deixar amordaçar pelos gran-de cânones. Não se intimidar diante dos protocolos da consa-gração. Simplesmente escrever, enfrentando corajosamente as palavras. Importante sua ênfa-se na “anedota” — ou seja, em tudo aquilo que acontece à mar-gem dos eventos importantes. Tudo o que parece menor. Es-ses poetas sofredores — que não publicam, que quase não são li-dos, que se sentem tão sozinhos — sofrem, na verdade, desse sentimento de insignificância.

Há neles, porém, uma grande força. Em sua arte, de modo secreto mas insistente, a poesia resiste. São poetas que es-crevem, diz Simic, “enquanto as crianças estão caindo de sono e reclamando do barulho que você faz enquanto procura nos armá-rios seus velhos poemas, receoso de que sua mulher os tenha jo-gado fora”. Tudo lhes é adverso. Nada os favorece. Só têm meia dúzia de amigos para ler seus poemas e ampará-los. Mas, ape-sar disso, continuam a escrever. Chegou mesmo a hora de obser-vá-los melhor. Levá-los em con-ta. Considerar seu esforço. Ver sua poesia — sem brilhos, sem holofotes, sem pompa — como um saudável alimento.

NOtaO texto Tempo dos poetas menores foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.

a literatura na poltrona | josé castello

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30 | | janeiro de 2015

prateleira | internacional

o laDrão De criançasGerald BromTrad.: Santiago NazarianBenvirá432 págs.

Fadas, bruxas, ogros e elfos compõem esta visão totalmente nova e perversa da história de Peter Pan. Aos 14, Nick teria sido morto na violenta Nova York se não fosse por Peter, um aparentemente simpático garoto de orelhas pontudas que o convida a segui-lo para uma ilha encantada, onde as crianças são livres e a magia e juventude, eternas. Nick não demora a perceber, porém, que o cruel Peter tem segundas inteções e a ilha pode ser, na verdade, um antro de pesadelos.

a 25ª horaVirgil GheorghiuTrad.: André TellesIntrínseca352 págs.

Iohann Moritz é um camponês romeno que, em meio à guerra, vê-se reduzido à sua dimensão social, pois os homens se tornaram apenas membros de categorias. Denunciado como judeu, embora não fosse, Moritz cai nas mãos dos nazistas e começa um tour macabro pelos diversos campos de concetração da Europa. Ao fugir com outros detentos, rumo à Húngria, sua trágica história promete tomar outro rumo totalmente inesperado.

a mão esquerDa Da escuriDãoUrsula K. Le GuinTrad.: Susana L. de AlexandriaAleph292 págs.

O experiente emissário Genly Ai foi enviado para Genthen com a missão de convencer seus governantes a se unirem a uma grande comunidade universal, numa sociedade onde homens e mulheres são um só e nenhum ao mesmo tempo. Como os indivíduos não têm sexo definido, não há nenhum tipo de discriminação. Mas Genly, demasiado humano, precisará enfrentar seus preconceitos enraizados para tentar conviver pacificamente com essa nova realidade.

v enho me perguntan-do — assim como muita gente interes-sada — no que dia-bo haverá de se

tornar a literatura, com e sem aspas, mais adiante.

Mais adiante? Talvez te-nha (já) se tornado na coisa que mais receamos: na anódina dis-puta por narrar, tão só narrar etc., todo mundo muito sabido sobre truques, por exemplo, de algum espanhol ou chileno mais cerca de matas e embolañodores de racontos da ficção up-to-da-temente “descoberta” para tra-balhos acadêmicos e/ou ensaios em jornais especializados que ainda sobrevivem [como este].

Fecha parêntese?O poeta Auden recordava

que pertencera a um mundo em que saía, geralmente às tardes, entre outras coisas para tentar acertar com o livro que prova-velmente estava à sua espera na estante de alguma livraria em-poeirada e mal iluminada, na qual teria que até roubar aquela obra que lhe estava “destinada” — caso não dispusesse da quan-tia para honestamente levá-la ao caixa (ainda que na incerteza sobre ser mesmo aquele o livro do Mistério audeniano daquela específica tarde etc.).

Hoje, não sobreviveram os mistérios e, talvez, não haja mais livros excetos de submistérios de mosteiros, manuscritos antigos e violoncelos y seitas saídas da imaginação dos Ecos & imita-dores, pra se vulgarizar em “ro-mances” ensinados nas oficinas de monotonia inesgotável...

Para nossa surpresa, livra-rias se tornaram muito grandes e muito chatas, além de cheirando a café-e-doces, com gente dia-beticamente “apaixonada” pela literatura sem insulina (ou com insulina demais?), não sei, lite-ratura, enfim, que não está à es-pera de bárbaros nem de Auden nenhum — barões e cavalheiros longe de San Francisco e que não mais existem para os Kaváfis e os Pasolinis de um tempo que ma-turava as coisas, a hora da chuva e os fragmentos de morte con-tidos na lua sobre os limões das colinas de homens e mulheres preferindo a solidão ao rebanho.

dias de feBre de literatura Na caBeça (1)

Bem, Literatura é danação.Por que, então, ela está atraindo burocratas,

abstêmios e monótonos? Acabei de publicar aqui, nas três últimas edições de 2014, parte de um en-saio sobre um autor americano menor — John Steinbeck — que se torna um gigante, se compa-rado com quaisquer dos seus compatriotas hoje em atividade marqueteira (antes de tudo), junto com suas editoras preferindo-os parecidos com, ãnh... Richard Gere? Ou pelo menos com um Gere em roupas baratas, sob a réstia de luz de algum aba-jur ordinário, olhando para o leitor com o sorriso cúmplice do ato de enganar e ser enganado.

Sim, porque autores(as), agora, precisam ter “cara de autores(as)”. Suas feições, atividades e trajetórias são itens da composição de preço do produto. E você compra esse produto — e, pe-lo menos eu, largo o dito cujo, no máximo cinco páginas depois daquele início lido na livraria-ca-feteria-imensa, começo que, de pé, parecia até in-teressante... até encontrarmos, em casa, sentados na poltrona, a súbita mão do macaco que nos mostra um fazedor de narrativas a cometer o de-ver de casa do leite das crianças.

Isso vale tanto para a literatura internacional quanto para aqueles tupiniquins que telecomiza-ram a prosa local — uma vez que a poesia parece bem mais saudável, neste momento (desde quan-do abandonada por editores que não se importam com versos e contos).

Os contos, aliás, estão bem melhores dos que o nosso Romance — essa doença que nos leva a es-crever, detidamente, sobre coisa alguma (ou qua-se). Isso não seria problema se, ao menos restasse, sob as fórmulas, a receita de conteúdo humano de um Dias de febre na cabeça (Confraria do Vento, 2014), livro de contos de Nivaldo Tenório.

Foi um dos raros títulos da literatura brasi-leira que me satisfizeram plenamente, como leitor, nos últimos cinco anos. É tão surpreendentemen-te bom que eu não sei se este livro, já em segunda edição, teria sido premiado em alguma dessas atu-ais pistas de corrida de cavalos que pululam como moscas, entre prêmios e “prêmios” que surgiram do dia para a noite. Pois se trata da obra de um autor — e com isso eu quero dizer de alguém interessado no drama (velha palavra!) interior mais fundo sob a camada de rotina dos dias de seres dissolvendo vi-vências e recordações das quais não podem se desa-tar pela banalidade da cabeça fresca robotizada pelo agora do mundo lavável no qual também podemos — já — comprar os nossos passados pasteurizados nos supermercados.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO

fora de sequência | Fernando Monteiro

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janeiro de 2015 | | 31

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32 | | janeiro de 2015

ONDE?Messias, onde estão os sábios?Vejo mestres & doutores — bons especialis-

tas em detalhes, pormenores & particularidades —, mas não vejo sábios.

Vejo bons escritores disputando comendas & convites pra festas & feiras, mas… Messias, os sá-bios? Onde estão?

Vejo políticos. Uma infinidade de políticos. Uns bons, outros ruins.

Vejo engenheiros & cirurgiões bastante com-petentes.

Messias, vejo gente inteligente. Refinada. Erudita.

Mas não vejo sábios. Onde estão?Mestres & doutores são importantes, cama-

rada, mas não são o suficiente.Bons escritores, políticos, engenheiros & ci-

rurgiões, gente refinada & erudita, as avenidas es-tão cheias deles. Isso é ótimo.

Mas não é o bastante.Messias, talvez os sábios não existam. Talvez

não passem de uma antiga lenda mil vezes refor-mulada.

Pense bem, meu amigo: somente os livros e os filmes falam dos sábios.

Na vida real, você & eu nunca encontramos um, encontramos?

Talvez os sábios — esses seres sem vaidade nem títulos de nobreza, sossegados & carismáticos — sejam só uma idealização infantil.

Sócrates teria sido mesmo um sábio?Lao Tsé? Confúcio?Ou teriam sido apenas uns tipinhos refina-

dos-eruditos, mas orgulhosos-irritantes, que esse monstro brincalhão, a posteridade, logo usou pra moldar novos mitos?

Talvez você esteja certo, Messias.Talvez não existam sábios, mas apenas mo-

mentos-lampejos de sabedoria.Pontos inesperados numa previsível espiral.Momentos-fagulhas que surpreendem, fazen-

do cessar o mal-estar e o conflito. Por um instante.

PROCURAM-SEPanAmérica e Lugar público, de José Agri-

ppino de Paula.Km 63 e Doramundo, de Geraldo Ferraz.Piscina livre, Amorquia e Quânticos da in-

certeza, de André Carneiro.

LITERATURA MARGINALNum sarau organizado pelo mestre Ferréz, no

Capão Redondo, sugeri que no Brasil há pelo me-nos duas marginalidades literárias.

Lembra, Messias? Você chegou nessa hora e sentou bem na frente.

A primeira marginalidade, mais conhecida, é a dos escritores da periferia social & econômica, que escrevem sobre sua vivência dramática.

A segunda, menos prestigiada pela grande imprensa e pela academia, é a dos escritores de fic-ção científica, fantasia & terror.

É por esse motivo, meu amigo, que eu me considero um ficcionista marginal: escrevo ficção científica e meus livros saem por atrevidas editoras alternativas.

Você sabe, essa segunda marginalidade pode até ser invisível para o leitor menos atento, mas não é, de maneira alguma, pequena.

seis disparos

Ela é formada por milhares de guerrilheiros (autores, editores & fãs) agindo clandestinamente nos subterrâneos da cultura botocuda.

Se você quiser conhecer os detalhes mais sig-nificativos dessa guerra secreta, o Anuário bra-sileiro de literatura fantástica, dos incansáveis Marcello Simão Branco & Cesar Silva, é um óti-mo começo.

A edição recém-lançada é uma das mais inte-ressantes. Suas quatrocentas páginas analisam não apenas a cena de 2013, mas os últimos dez anos.

Foi uma década de grandes mudanças, Mes-sias. A queda do custo industrial do livro e o forta-lecimento da web agitaram o mercado editorial, a produção e o consumo de nossa ficção fantástica.

Essas mudanças, meu amigo, são esmiuçadas num artigo crítico, em dezenas de resenhas e num debate com autores & editores.

Os guerrilheiros renovaram as armas. Nunca os subterrâneos fervilharam tanto.

O anuário de Marcello & Cesar, publica-do pela Devir, é um estudo exemplar sobre ficção científica, fantasia & terror. Seu empenho cativará principalmente os pesquisadores e os apaixonados pelos três subgêneros abordados.

PROCURAM-SEOutra inquisição, Nonadas e A implosão

do confessionário, de Uilcon Pereira.O agressor, Carta à noiva e a.s.a.: associa-

ção dos solitários anônimos, de Rosário Fusco.Panteros, de Décio Pignatari.

RETRATO IMAGINÁRIO DA GERA-ÇÃO 90

Inédito, possivelmente de 2003, encontrado no fundo falso de um baú de Nelson de Oliveira

A luz, sempre incansável, é a silhueta da ale-gria. Somos jovens, somos luminosos. (Não, meus irmãos, o que vocês estão vendo não é uma foto do céu estrelado. É um retrato da geração 90. Um re-trato imaginário. Está no título.) Manuscritos atra-vessam a tela do computador, transa trans.

Essa mancha mais saliente à esquerda? É o Fran’s Café da rua Fradique Coutinho, 1.139. Mas não adianta procurar, esqueçam o guia turístico das crateras da lua. (Um mapa não é um mapa, é uma capitulação da mente. Não existe mais Fran’s Café na rua Fradique Coutinho, 1.139. Esse retrato é de 2001.)

Também não adianta procurar 2001 nos re-gistros. Esse ano nunca existiu. (No centro do re-trato, Marcelino Freire traduz as ásperas sutilezas do furacão.) A ventania também é a fala de Evan-dro Affonso Ferreira, de braços abertos, ao lado de Marcelino. A luz, sempre incansável, é a silhueta da alegria.

Manuel da Costa Pinto atravessa paredes, de-sarma bombas-relógio. Somos jovens, somos lumi-nosos. (O riso enche os túneis. Fugitivos, cavamos em bando até a Casa das Rosas.) Éramos jovens, éra-mos luminosos, na época em que o mundo existia.

(Fogo, fogo!) As calçadas, meus irmãos, eram melhores quando tudo era inflamável. Ivana Jinkin-gs e Plínio Martins, em chamas, cultivam o papel e a tinta. (O papel que conduz a eletricidade, a tinta que intoxica os amáveis zumbis da Livraria da Vila.)

Marçal Aquino e Luiz Ruffato, de perfil, ob-servam a fila de ciclistas. A fila descendo a ladeira. Dizem que a lucidez abre todas as portas, até mes-

mo as do inferno. (Essa explosão no alto do retrato? É a geração 90: o vasto conjunto de ficcio-nistas brasileiros que estrearam na década de 90.)

O pisca-pisca das crianças destrói nossos desejos. João Anza-nello Carrascoza sobrevoa o bair-ro, cartografa o movimento dos cílios. (Essas estrelas vermelhas e verdes? Formam a constelação 90: o pequeno grupo de ficcionis-tas da G90 presentes nas antolo-gias publicadas pela Boitempo.)

Cada pontinho nesse re-trato representa um afeto, um momento congelado de ternu-ra. Essa mancha mais saliente à direita? É Ivana Arruda Leite, indiferente ao terremoto. Ivana segura o mapa e a chave da Vila Madalena. (Dizem que a lucidez abre todas as portas, até mesmo a das metáforas.)

Chove no centro do sol. (Qualquer retrato é metade ilu-são, metade ficção.) O rapaz em-baixo à direita, folheando um catálogo, é Claudio Galperin. Entortar escadas é sua habilida-de mais notável. (Nessa época, meus irmãos, a atmosfera sussur-rava os conselhos mais insanos.)

Não há nada mais real do que a realidade virtual. Ademir Assunção joga xadrez com Ro-naldo Bressane. Partida relativis-ta. O tabuleiro e as peças estão no século 19. Os jogadores es-tão no século 21. (Ademir em Tóquio, Ronaldo em Londres.) Manuscritos atravessam a tela do computador, a wop bop a loo bop a wop web boom.

A poucos metros de Mar-celino e Evandro, no subsolo da rua Fradique Coutinho, 1.139, está a sala da Hedra. É sábado. O inverno não matou a cloro-fila. João Alexandre Barbosa é o convidado de hoje. (Essa peque-na região do retrato é uma singu-laridade. Não pertence a 2001, mas a 2000. Ou a 1950, não sei.)

A conversa ramifica-se. Galhos e folhas atingem o teto, atravessam a laje. Marcelo Miri-sola parece encantado com as ra-ízes que reverberam Heidegger em russo. (JR Duran registra a conversa, sobrepõe datas e ros-tos.) Não há nada mais real do que a realidade virtual.

Se as ruas e os edifícios não mudassem tanto de endereço, o passado seria algo fácil de liber-tar. Freada brusca, buzinada. (Um mapa não é um mapa, é uma capi-tulação da mente). Congelado ao abrir a porta do táxi, Joca Reiners Terron parece enxergar apenas o avesso dos pedestres. (Pulmões, intestinos, rins, fígado.)

PROCURAM-SEO sofredor do ver e Hos-

pício é deus, de Maura Lopes Cançado.

Os eleitos para o sacri-fício e A coleira de Peggy, de Holdemar Meneses.

O dragão, de José Alcides Pinto.

ruído branco | luiz bras

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janeiro de 2015 | | 33

O ouro de Quipa-pá, romance do francês Hubert Tézenas, apre-senta pelo menos

três grandes qualidades narrati-vas, não muito comuns na ficção tradicional — rapidez, investiga-ção exemplar dos personagens e construção correta dos diálogos —, de forma que o leitor mer-gulha com todos os sentidos no drama da condição humana, mesmo que o autor nunca se de-more na imersão da psicologia dos personagens. Assim, pode-se ler este livro com muito agrado sem cair na armadilha de monó-logos ou solilóquios demorados que, muitas vezes, tornam a lei-tura enfadonha, embora aparen-temente sofisticada.

Em certo sentido, pode--se classificá-lo como um ro-mance de personagens, mesmo que a história seja muito forte e atrativa. Desde o início, Albe-rico Cruz mostra sua decisiva presença narrativa. Mas ele não é apresentado por dúvidas ou questionamentos. Basta observar o que o personagem tem de mais característico — o olhar atento e apaixonado, que desenvolve, muitas vezes, as cenas paralelas; e que por isso mesmo nunca colo-ca o leitor na ação central.

A rapidez é uma das pro-postas de Italo Calvino para o próximo milênio. Mas o que é, enfim, esta rapidez? Contar, contar, contar e deixar o leitor a ver navios? É preciso ter calma, é

drama da alma em coNflito

preciso ter cautela. Em O ouro de Quipapá, Hubert deixa bem clara esta questão.

O texto sem dúvida é rá-pido, mas usa uma técnica bem contemporânea que seduz o lei-tor: o olhar do personagem. Isto significa que o narrador privile-gia as cenas — mais exatamen-te, as cenas sobre cenas, numa sequência vertiginosa que vem muito do chamado romance noir —, sem a imersão vertical na psicologia dos personagens, evitando que a narrativa se per-ca em reflexões. Para alcançar es-se efeito, Hubert centralizou as ações muito em Alberico Cruz, que se transforma, nesta histó-ria de crime na zona da mata de Pernambuco, num protagonista curioso. É uma história de cri-me, de buscas, de procuras, de obstinação humana.

Aí entra a habilidade téc-nica do autor, permitindo que o olhar do personagem exer-cite sua capacidade crítica, sobretudo a crítica social ao re-latar — mesmo de soslaio — as condições sociais do homem nordestino e pernambucano, pressionado pelas inacreditáveis injustiças, povoando áreas inós-pitas e situações lamentáveis de existência. Por isso mesmo, cha-maria a atenção aqui para mais um dos destaques deste roman-ce escrito por um francês e tal-vez devido a isso preocupado com as condições às vezes su-bumanas da existência tão árida e tão difícil nesta região do pa-

ís. Hubert viveu durante anos nesta área, quando teve ocasião de experimentar a amargura e a força, o destino de cidadãos e de camponeses regionais.

Mesmo assim, do pon-to de vista técnico, pode-se des-tacar que o narrador evita, de forma bem clara, os monólogos que comumente impregnam a crítica política ou social, sobre-tudo de estrangeiros. Verdadei-ras ladainhas sofríveis, com ares de sociologia e de ciência políti-ca amadora. O olhar crítico que observa uma mulher é o mesmo que examina um conflito social. Sem paixões políticas inúteis. E sem teorias políticas levianas próximas do manual escolar.

É também devido a esta técnica que o narrador constrói Alberico Cruz, este personagem inquietante desde o momento em que sai de casa para trabalhar até se envolver nos acontecimen-tos que resultarão na história do O ouro de Quipapá. A princí-pio, apenas um cidadão comum, um funcionário que deseja tão somente cumprir suas obriga-ções naturais, embora também desde o início esteja movido por suas curiosidades e aptidões. A cena em que ele constrói com o olhar, a seu modo, outra perso-nagem, ainda no começo do ro-mance, é muito bem elaborada, verdadeiramente. Contida e ela-borada, sem palavras inúteis e sem destaques desnecessários.

Em seguida, e não somente em terceiro lugar, mas com igual importância, vem a construção dos diálogos. Rápidos, incisivos, curtos. Às vezes sem travessão, às vezes com travessão, mas dota-dos de uma técnica capaz de se-duzir o leitor.

Por tudo isso O ouro de Quipapá é, com certeza, um grande livro.

NOtaO texto Drama da alma em conflito foi publicado originalmente no suplemente Pernambuco.

palavra por palavra | raiMundo carrero

o ouro De quiPaPáHubert TézenasTrad.: Fernando ScheibeVestígio169 págs.

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34 | | janeiro de 2015

O inferno que nos espera

caso tudo dê certo

No ambicioso Graça infinita, David Foster Wallace

mimetiza uma sociedade hipersaturada e egocêntrica

breno küMMel | brasília – dF

David Foster Wallace por Ramon Muniz

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janeiro de 2015 | | 35

trecho

Graça inFinita

Jim não assim Jim. Isso não é jeito de tratar uma porta de garagem, dobrando a cintura assim todo duro e dando esse tranco na maçaneta de um jeito que a porta sai toda sacudida e sobe sacudindo e toda dura e você arrebenta as canelas e os meus joelhos estragados, filho. Vamos ver você sobrar esses joelhos saudáveis.

o autor

dAvid FoStER WALLACE

Nasceu em 1962 e foi criado no Midwest americano. Formou-se em Filosofia (lógica modal) e Letras (seu trabalho final sendo seu romance de estreia, Broom of the system). Escreveu contos, romances e ensaios. Do autor, a Companhia das Letras publicou o livro de ensaios Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo e o livro de contos Breves entrevistas com homens hediondos. Wallace suicidou-se em 2008.

Graça inFinitaDavid Foster WallaceTrad.: Caetano GalindoCompanhia das Letras1.144 págs.

N um mundo em que só parece ser realmente garan-tido aquilo que se situa no domínio

do indivíduo, e em que o sen-tido da vida parece satisfatoria-mente descrito como sendo a busca do prazer, ainda se insiste em noticiar mortes por overdose como terríveis e suicídios como tragédias. Se a vida realmente se resume a isso, como conde-nar ou até mesmo se entristecer com alguém que morre fazen-do o que gosta ou lamentar que o outro tenha decidido (com seus critérios individuais e, as-sim sendo, jamais impugnáveis) simplesmente abandonar esta existência? O que, afinal, fulano tem a ver comigo?

E se na própria busca pe-la excelência existe um compo-nente significativo e na verdade patético de vontade de se distrair de aspectos da própria vida que acabam sendo apenas fracamen-te esmaecidos pela obsessão de autoaperfeiçoamento?

A formação intelectual brasileira mais comum (ou mais consagrada) geralmente passa por um desenvolvimento que não encara questões assim co-mo sendo tão importantes. Não se trata propriamente de uma fa-lha ou de inferioridade: o tercei-ro mundo (sim, ainda) que nos circunda faz urgir outros pro-blemas, como a miséria, a cor-rupção, a violência urbana fora de controle (diferente da ameri-cana, também imensa mas bem mais previsível) e certa incom-petência aparentemente genera-lizada (em que uma instituição ou empresa ou profissional que simplesmente cumpre aquilo que se coloca para fazer é tido como altamente recomendável). A própria questão do indivíduo versus coletivo é frequentemen-te ilustrada primeiramente co-mo o indivíduo que se beneficia em detrimento do coletivo, em esquemas maniqueístas que po-dem ser facilmente resumidos na moldura da tentação cristã. Não é comum pensar no indivíduo que age pelo indivíduo em de-trimento do próprio indivíduo, e ainda quando se adentra em algo assemelhado a isso a ques-tão é com frequência tida como secundária a todas as outras do plano comumente tipificado co-mo “social”. Temos — pensa-se, talvez com razão — problemas mais importantes.

Assim sendo, Graça infi-nita pode parecer ao leitor brasi-leiro ainda mais estranho do que o livro nasceu sendo, e podemos dizer que numa imaginária lista-gem de estranheza literária, este romance originalmente já sairia entre os primeiros. Afinal, trata--se de um livro em que os anos não são números, e sim marcas (Ano do Whopper, por exemplo, que vem antes do Ano do Tucks Medicated Pad), em que uma das principais ameaças diretas aos Es-tados Unidos (na verdade tem outro nome, mas não vamos en-

trar nisso) é um grupo terrorista chamado Assassinos de Cadeiras de Rodas, em que mais ou menos metade dos acontecimentos se passa em uma mistura de mundo acadêmico com escola avançada de tênis (cujo slogan é Te Occide-re Possunt Sed Te Edere Non Pos-sunt Nefas Est ou “eles até podem te matar, mas te comer é juridi-camente meio complicadinho”).

Como poderíamos dei-xar de ler uma distopia tecno-crática hiperdesenvolvida como a de Graça infinita, quase toda construída a partir do desespero de não conseguir tão facilmente apontar o que há de errado com o mundo ao nosso redor, um ro-mance sobre saturação e abun-dância, como algo que caberia perfeitamente no meme (assidu-amente mesquinho) do Classe Média Sofre? Como se preocu-par com um mundo em que os inúmeros percursos disponíveis a nós parecem de uma forma ou de outra falsificados ou inau-tênticos quando no mundo em que estamos tantas outras pes-soas sequer dispõem de percur-sos disponíveis para questionar a autenticidade, uma maioria cuja luta diária é pela sobrevivência e um mínimo de dignidade, e não coisas como realização pes-soal ou sentido-para-a-vida? Não parece que reclamar de certa des-graça hipersofisticada seja um lu-xo diante da desgraça estúpida e tosca que vemos como moeda corrente em nosso país?

Ao leitor que talvez des-qualificasse o livro por ser ex-cessivamente individualista (motivado talvez por uma von-tade de parecer anti-hype, “críti-co demais para este mainstream literário excessivamente merca-dológico”), é interessante per-ceber que dentre o emaranhado de neuroses exaustivamente des-trinchado, o painel que acaba sendo montado (pelo leitor que avança com menos pressa) não é apenas o de pessoas ensimesma-das, e sim o de uma sociedade que fomenta a todo instante esse egocentrismo como único cami-nho possível (fala-se hoje, quase vinte anos depois da publicação do livro, com categorias “huma-nitários dos selfies”, por exem-plo). Após todos os movimentos antiestablishment dos anos 1960 e 1970, em que a sociedade opressora foi exposta como pai de todos os males da humani-dade (machismo, racismo, in-justiça social, guerras, etc.), na concepção de muitos restou ape-nas o indivíduo como bastião do valor humano, soberano máxi-mo sobre sua existência.

Trata-se de uma publica-ção de dois séculos antes, mas o finzinho de Cândido, de Voltai-re — em que se decide finalmen-te, após vários tumultos de um nível Looney-Tunes-demoníaco, que é preciso na verdade cultivar o próprio jardim —, está perfei-tamente afinado com a consci-ência predominante nos Estados Unidos de Graça infinita, dos anos 1990 de “exuberância ir-

racional”. O mundo é mesmo um lixo (e até os que radical-mente discordam entre si con-cordam neste ponto); o que me resta é apenas eu mesmo. E em uma sociedade na qual cada vez mais pessoas chegam a esta con-clusão (ou até mesmo parecem já começar nela), a tendência é uma espiral enlouquecedora em que milhões de solipsistas acre-ditam estarem acima do mundo circundante quando, na verda-de, a soma de todas as suas ações é o que constitui o mundo. Um mundo de míopes, jardins apo-drecidos sequer desconfiando que a praga está sendo carregada pela ventania que atravessa até o muro mais alto, consciente de que há algo de errado sem saber apontar exatamente o erro.

Se o mundo de satu-ração e abundância e trans-bordamento convulsivo do romance (composto em traços paradoxalmente microscópicos e caricaturais, mistura de bisturi e marretada) soa longe do nosso (em que candidatos à presidên-cia trocam pedradas a respeito de milhões recém-retirados da mi-séria e taxas de crescimento eco-nômico abaixo do populacional), podemos imaginar que esta rea-lidade de egocentrismo insano e perfeitamente normal é o que nos espera caso finalmente con-sigamos superar todos (ou pelo menos um tanto mais) os percal-ços de nossa sociedade claudican-te, caso continuemos a adotar o modelo americano de entendi-mento de mundo. Afinal, quan-tos brasileiros visitam os States e retornam maravilhados e amar-gurados por ter de voltar, com a certeza de que deveriam ter nas-cido por lá? Trata-se, afinal, de um país onde é lugar-comum dizer que se conhece uma pessoa pelos livros que ela tem em sua estante e pelos comprimidos em sua caixa de remédios (subenten-dendo-se aqui ansiolíticos, an-tidepressivos e toda a família de pílulas para a alegria). Ou, como o The Onion já disse em uma de suas manchetes mais brilhantes e brutais, sobre o que era o mais recente caso americano de doido--sai-atirando-em-todo-mundo--na-rua: “Não existe maneira de prevenir isso, diz única nação em que isso regularmente acontece”.

Sucesso editorialTudo isso, claro, venho ex-

pondo aqui como argumenta-ção de que o livro não é apenas a obra literária mais estilistica-mente impressionante lançada nas últimas décadas, cheia de momentos divertidíssimos e de uma esperteza que pode ser des-crita por este jovem escritor co-mo completamente devastadora. A escritora Zadie Smith descre-ve David Foster Wallace como estando “em um nível acima de todos os outros”: já é facilmente visível nos próprios contempo-râneos (que dizer dos que ainda estão para ascender) a influência que seus textos e pensamentos exerceram; seus papéis pessoais

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36 | | janeiro de 2015

prateleira | internacional

três macacosStephan Mendel-EnkTrad.: Dina LundRecord160 págs.

O aniversário de 13º ano de Jacob se aproxima, assim como a comemoração de seu bar mitzvah. O maior evento de sua vida, no entanto, ainda está por vir: seus pais se separam e sua mãe decide viver com o chefe, um não-judeu, fato chocante na pequena comunidade judaica em Gotemburgo, na Suécia. A partir daí, Jacob precisará amadurecer muito para lidar com sua nova realidade, cercado de burburinhos e invejosos.

uma história De silêncioLloyd JonesTrad.: Léa Viveiros de CastroRocco272 págs.

O terretomo que causou destruição na Nova Zelândia em 2011 é o ponto de partida deste regresso sentimental. Remexendo em objetos, lembranças e sentimentos vêm à tona numa viagem emotiva, quando o autor decide regressar a Christchurch, sua cidade natal, agora destruída pelo abalo. Nessa viagem, Jones busca refazer sua infância e adolescência, voltando a lugares onde viveu para montar o quebra-cabeça de sua própria origem.

eleGiasSexto PropércioOrg., trad.: Guilherme Contijo FloresAutêntica512 págs.

Reunião dos quatro livros de elegias de Sexto Propércio, que ocupam uma posição de relevo no conjunto da poesia clássica romana. Segundo o tradutor, trata-se duma poesia complexa, obscura, difícil e excessivamente mística. A produção de Propécio sempre foi permeada por extremos, no que ele já foi considerado romântico, político engajado (pró e contra o império augustano), sincero em suas paixões, artificial na escrita, entre outros.

estão sob a guarda da mesma ins-tituição responsável pelos ma-nuscritos de James Joyce e pela biblioteca de Ezra Pound, entre outros. Mas um grande livro não é feito só de estilo e esperteza, e um monstro de mil páginas que fosse só superfície, seria uma das catástrofes literárias mais tristes que se pode imaginar.

Foi assim que Graça in-finita acabou sendo lido por parte significativa da crítica, pos-sivelmente ressentida de ter sido obrigada pelos seus jornais-pa-trão a ler um romance grande e difícil dentro do prazo de fecha-mento. O romance acabou se-guindo a trajetória curiosa de ser recipiente de nenhum prêmio literário e receber uma edição comemorativa de dez anos de lançamento (dez anos em tempo literário é, em tempo humano, como comemorar aniversário de novo três meses depois do para-béns anterior), sendo mencio-nado como obra incontornável para o entendimento de sua épo-ca com frequência bem maior do que qualquer livro estampado com os brasões ou stickers de Pu-litzer, National Book Award ou assemelhados.

Entre as críticas mais re-correntes ao livro está a de que o todo do texto, para além da pirotecnia verbal inegável, for-ma uma bagunça desorganizada e prolixa — sem desconfiar que esta foi a forma como o autor mimetizou um mundo de exces-so de informação, hipersaturado e cansativo em sua abundância; uma estética que se pautasse na fina elegância da concisão (como um Coetzee), do haicai de síla-bas encaixadas ou da novelinha com nenhuma frase sobressa-lente, seria ainda mais artificio-so para lidar com este assunto do que o caminho tomado por Wallace. O leitor que avança perdido no texto (é até um pou-co demorado descobrir quais são exatamente seus protagonistas), sem saber ao certo o que é real-mente central e o que é detalhe, é o equivalente formal da pessoa que avança perdida no mundo também sem conseguir se en-contrar: cada pedaço do roman-ce tem em si a vivacidade de uma obra literária por si só, como se o livro enfileirasse vários começos e vários meios.

Se o autor, porém, foi ca-paz de conquistar meu interesse com esse pedaço, por que ago-ra eu tenho que ler sobre outra pessoa e outra situação, e o que aconteceu com aquela situação anterior? Será que o autor está meramente exibindo seu pode-rio literário? Seria este livro ape-nas um exercício para mostrar a própria inteligência?

A crueldade da obra é ta-manha que muitos chegam ao fim das mil e tantas páginas pen-sando que a história não tem qualquer conclusão, quando na verdade o desfecho do “enredo” existe e foi até explicitamente es-crito — o leitor passou por cima dele várias páginas atrás (e, claro, o livro não traz seus eventos em ordem cronológica), sem perce-ber. Dica difícil, porém sincera: leia de novo. O próprio David Foster Wallace expressou alguma desconfiança diante do rebuliço feito em torno da obra durante a turnê de autógrafos: um entre-vistador perguntou a ele o que achava do sucesso, e Wallace res-pondeu que aquele auê todo era um sucesso editorial, e não literá-rio; o livro tinha saído há poucos dias, tinha mil páginas e precisa-va ser lido com atenção: os au-ditórios cheios eram mérito da campanha de publicidade feita pela editora, e não de seu traba-lho literário propriamente dito.

SombrasComo toda obra de arte,

não se trata de criatura isolada, e sim de um produto que surgiu de um contexto artístico já exis-tente. No caso, Graça infinita se insere na tradição de romanção pós-moderno americano, livros--desafio cheios de virtuosismos (sejam de estilística, de arquite-tura formal do romance, de con-cepção incomum de mundo). É uma tradição que teve início com The recognitions (1955), de William Gaddis, tendo por sequência The sot-weed factor (1960), de John Barth (e outros livros do Barth), O arco-íris da gravidade (1973), de Thomas Pynchon, The public burning (1977), de Robert Coover, e, discutivelmente, Women and men (1987), de Joseph McEl-roy, e The tunnel (1995), de William H. Gass. De todos esses listados, apenas o de Pynchon

está disponível na língua tupini-quim, e talvez só ele se aproxime do impacto cultural maior (para fora dos muros universitários) de Graça infinita. Encontramos a influência de Foster Wallace em um número imenso de escritores anglófonos, como Zadie Smi-th, Jeffrey Eugenides, Jonathan Franzen e Richard Powers, e até mesmo em quadrinistas como Chris Ware. Aliás, os que não se afinam com o tipo de literatura feita por DFW acabam na posi-ção de ter de defender a própria opinião, semelhante a um leitor brasileiro que por acaso não gos-te de Machado de Assis.

Até mesmo o simples servi-ço de apresentar este livro é bem difícil; pelo menos, posso me re-fugiar nesta desculpa: a resposta a “sobre o que é” só pode ser da-da de forma brutalmente redu-cionista (“é meio que sobre um vídeo tão divertido que quem assiste inevitavelmente bota em loop e morre assistindo, geral-mente de desidratação”; e ainda assim as páginas falando direta-mente do vídeo não devem so-mar 25% do total) ou de forma a fazer quem te perguntou isso se arrepender (“tem uma acade-mia de tênis que...”). Até mesmo na hora de escolher um trecho representativo a coisa é compli-cada: qualquer parte que seja selecionada dentre o zoológico estilístico da obra acaba mos-trando apenas uma faceta do que o livro faz. Tem traficante, tem discurso de alcoólatras anôni-mos, ensaio, teatro, melodrama, desgraça, tem pastiche (incrível) de discurso acadêmico, além das famosas notas de fim de livro que às vezes têm suas próprias notas menores, uma-dentro-da--outra. É como uma comédia pastelão extremamente depres-siva e inteligentíssima, com tru-ques de frente e movimentações de fundo e uma questão irres-pondível em seu cerne (seríamos mesmo apenas isto, macacos buscando endorfina? Ou terá si-do isto o que nos restou?), sen-do iluminada por centenas de direções diferentes, nenhuma produzindo mais certeza do que mais sombras, sombras estranhas que continuam ali, escuras, mes-mo com toda a luz do mundo em cima delas. Um outro túnel no fim do nosso.

divulgAção

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janeiro de 2015 | | 37

Viciosos amoresContos de Guy de Maupassant extraem material

literário de motivos aparentemente banais

henrique Marques saMyn | rio de janeiro – rj

A aproximação com a esté-tica naturalista se enfraqueceria conforme Maupassant desenvol-vesse a sua obra na direção que o tornaria mais conhecido: a ex-ploração cada vez mais intensa de temas fantásticos e sobrenatu-rais. Aí está, a propósito, o que ensejaria a já referida aproxima-ção entre vida e obra: não pou-cos enxergariam a convergência entre um homem cada vez mais solitário, mesmo misantropo, sob os efeitos da sífilis à qual su-cumbiria, e o autor cujas obras assumiam um aspecto macabro e alucinatório. Todavia, nada é assim tão simples; já no prefá-cio a Pierre et Jean, afinal, en-contramos a intenção autoral de superar a esfera dos aconte-cimentos triviais e desvendar um sentido profundo subjacen-te ao cotidiano.

Caprichos e obsessõesVolume publicado pela

Companhia das Letras no se-lo Penguin, como parte da Co-leção Grandes Amores, Uma aventura parisiense e outros contos de amor traz uma sele-ção de contos de Maupassant, em tradução do escritor Amilcar Bettega. Não obstante, qualquer um que percorrer as páginas do livro em busca de grandio-sas narrativas amorosas ou de episódios como aqueles que ao senso comum apraz alcunhar “românticos” terá certamente uma decepção. Não é esse, afi-nal, o universo de Guy de Mau-passant, autor cujo estro melhor se presta ao manejo de assuntos mais comezinhos; e precisamen-te em sua capacidade de extrair material literário de motivos aparentemente banais está o que viria a consagrá-lo como um dos grandes autores do Oitocentos.

As mulheres e os homens cujas vidas se cruzam nas nar-rativas de Maupassant são ti-picamente arrastados por seus próprios caprichos e obsessões, e é desses fortuitos encontros que emergem os episódios amoro-sos de que tratam seus contos. Uma aventura parisiense trata de uma mulher provinciana que, em meio a uma vida dedicada ao marido e aos filhos, resolve um dia satisfazer o desejo de conhe-cer Paris; uma vez na metrópo-le, não perderá a oportunidade de utilizar o menor pretexto pa-ra passar uma noite com Jean

Varin, celebridade do mundo literário, entregan-do-se ao “vício” — apenas para voltar à casa, reco-lher-se ao seu quarto e irromper em soluços. Em A cabeleira, lemos sobre um homem que, percor-rendo antiquários, compra um móvel que oculta uma cabeleira de mulher em uma gaveta secreta; encontrando-a, descobre-se tomado por uma pai-xão obsessiva — que o levará a tornar-se amante de uma mulher morta e, convertido em um “louco obsceno”, a ser encarcerado. Um ardil, conto que abre o volume, começa descrevendo o diálogo en-tre um velho médico e uma jovem paciente, para quem é inaceitável que uma mulher traia o seu ma-rido — o que serve de pretexto para que o médi-co conte o episódio de Berthe Lelièvre, que certa vez o evocara para ajudá-la a lidar com o corpo do amante que falecera em seu leito, enquanto o ma-rido estava no grêmio; quando a moça pergunta ao doutor porque lhe contara a história, ele lhe garan-te que ela algum dia precisaria de seus préstimos.

Como se poderia esperar, as mulheres figura-das por Maupassant se revelam especialmente vo-lúveis e propensas ao vício; eis algo que as vozes de personagens masculinos, quando não a voz autoral, sempre estão prontas a ressaltar. Este é o questio-namento que abre Uma aventura parisiense: “Exis-te sentimento mais agudo do que a curiosidade na mulher?”. O texto prossegue:

Falo de mulheres verdadeiramente mulheres, dotadas desse espírito de fundo triplo que à superfície parece racional e frio, mas cujos três compartimentos secretos são cheios: um de inquietude feminina sem-pre agitada; outro de uma astúcia travestida de boa--fé, dessa astúcia dos devotos, sofística e perigosa; e o último, enfim, de canalhice encantadora, de delicada falcatrua, de deliciosa perfídia, de todos esses perversos atributos que levam ao suicídio os amantes imbecil-mente crédulos, mas que exultam os outros.

Mulheres “são ao mesmo tempo sinceras e falsas, porque está em sua natureza ser os dois ao extremo e não ser nenhum nem outro”, diz um dos personagens de O modelo. Muitos decerto con-siderarão irrelevante esse reparo, assegurando que Maupassant se compraz em explorar igualmente os mais sórdidos aspectos de homens e mulheres — como se, no que tange às últimas, tudo isso não en-volvesse topoi misóginos cuja dimensão política era constitutiva da sociedade patriarcal na qual viveu o escritor; e que permanecem em estereótipos que ainda nos são familiares.

trecho

uma aventura Parisiense e outros contos De amor

Não, doutor, não vou aceitar jamais que uma mulher traia seu marido. Admito até que ela não o ame, que não tenha nenhuma consideração por suas promessas, suas juras! Mas como ousar entregar-se a outro homem? Como esconder isso aos olhos de todo mundo? Como conseguir amar na mentira e na traição?

o autor

Guy dE MAuPASSAnt

Nasceu na França em 1850. Na década de 1870, conviveu em Paris com Gustave Flaubert, Émile Zola e com os grandes escritores realistas e naturalistas da época. Notabilizou-se como autor de romances e de mais de 300 narrativas curtas, sendo considerado um mestre desse gênero. Morreu em um manicômio, aos 42 anos, vitimado pela sífilis.

uma aventura Parisiense e outros contos De amorGuy de MaupassantTrad.: Amilcar BettegaPenguin / Companhia das Letras128 págs.

Precisamente em sua capacidade de extrair material literário de motivos aparentemente banais está o que viria a consagrá-lo como um dos grandes autores do Oitocentos.

a morte de Guy de Maupassant em 1893, cerca de um mês antes de seu aniversário de 43

anos, ensejou para a história da literatura a construção de uma efígie singular — tanto pela notória excentricidade de seu comportamento quanto (o que inevitavelmente não deixaria de ser ressaltado por muitos dos que se debruçaram sobre a sua obra) pelo modo como a estra-nheza de seus hábitos e sua pecu-liar trajetória biográfica parecem refletir aspectos particulares de sua produção literária.

Nascido em 5 de agosto de 1850, o autor de Uma aventura parisiense tinha por pais Gusta-ve de Maupassant, homem cuja volubilidade não o fazia mui-to diferente de muitos de seus contemporâneos, e Laure Le Poittevin, mulher singular em diversos aspectos — tanto por sua personalidade, independen-te o bastante para separar-se le-galmente do marido em meados do século 19, quanto por sua cultura literária: para além de ter um apreço especial por Shakes-peare e pelos clássicos, era irmã de Alfred Le Poittevin, amigo de Gustave Flaubert, algo relevan-te para a carreira do filho e futu-ro escritor. No mais, o destino entre as letras logo se transfor-maria em vaticínio, tanto pe-lo pendor a arrancar da vida a literatura — como o estudante que versejara sobre o ambiente claustrofóbico que encontrou no seminário de Yvetot, como o militar que levaria para os con-tos a guerra franco-prussiana — quanto por seus peculiares contatos com já reconhecidos escritores contemporâneos.

Um dos episódios mais notáveis seria o encontro de Maupassant com Algernon Charles Swinburne, poeta cujo excêntrico aspecto não deixa-ria de fasciná-lo: chegaria a es-crever um artigo, publicado em 1882, em que relembraria suas impressões diante daquele ho-mem cujo corpo, segundo lhe parecera, não apresentava torso ou ombros, e que parecia sem-pre trêmulo por espasmos ner-vosos. Por ocasião do incidente em Étretat que se tornaria len-dário — enquanto nadava, o poeta inglês fora arrastado pe-las ondas, precisando da aju-da de pescadores para salvar-se —, Swinburne encontraria, ao lado de seu amigo George Po-well, o jovem Maupassant, que ajudaria a resgatá-lo e jamais es-queceria o acontecimento. Já o encontro com Flaubert ocorre-ria graças à mediação materna, e forneceria ao então aspirante a escritor um valioso mentor lite-rário. No autor de Salammbô, Maupassant encontraria não apenas o leitor crítico de seus primeiros escritos, mas alguém capaz de favorecer contatos com figuras como Alphonse Daudet, Joris-Karl Huysmans e Émile Zola, que o acompanhariam em seu processo de formação.

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38 | | janeiro de 2015

Uma crônica. Uma ilUstração.

todo dia.

DOMINGO

Ivana Arruda Leite

Dê Almeida

SEGUNDA-FEIRA

Rogério Pereira

Theo Szczepanski

TERÇA-FEIRA

José Castello

Tiago Silva

www.vidabreve.com.br

QUARTA-FEIRA

Fabrício Carpinejar

Eduardo Nasi

QUINTA-FEIRA

Mário Araújo

Fábio Abreu

SEXTA-FEIRA

Humberto Werneck

Carolina Vigna

SÁBADO

Marcelo Moutinho

Hallina Beltrão

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janeiro de 2015 | | 39

No coração da boemia

Em A gangue escarlate de Asakusa, Kawabata desvela o submundo japonês

clayton de souza | são Paulo - sP

Q ue imagem o oci-dental comum constrói a res-peito de uma das nações mais tra-

dicionais, míticas e exóticas do mundo — a nação japonesa? Sob o efeito permanente de es-tranhamento, causado pelo dis-tanciamento cultural, por certo lhe virão à mente o recato, a mo-ral conservadora zelosa dos ritos tradicionais, o senso de dever de seus estudantes de honra etc.

Não é uma imagem im-procedente, mas tende a ser in-consistente se tida como algo a mais que uma perspectiva, uma simples perspectiva que enfoca apenas uma parte do todo, di-versa dos demais tons do prisma.

Ao ocidental razoavelmen-te informado por certo esses “demais tons” não são desconhe-cidos. O erotismo (em suas mais variadas formas) é um deles, pre-sente mesmo no rígido código de conduta dos samurais da era Edo. A miséria moral e econômica é outro matiz que colore de modo diferente e não habitual o país do milagre econômico, tecnologica-mente avançado, que soube co-mo nenhum outro adaptar-se à era moderna (entenda-se: aos va-lores socioculturais do ocidente).

Tais tons colorem essen-cialmente as ruas, as pontes, os rios e edifícios do distrito boê-mio de Asakusa. E é esse cenário/personagem o foco do romance A gangue escarlate de Asakusa, obra de início de carreira do re-nomado escritor Yasunari Kawa-bata, prêmio Nobel de 1968.

A obra e seu contextoComo dito, o livro se passa

nesse reduto boêmio do Japão, num interstício entre duas eras, a Taisho (1912-1926) e a era Sho-wa (1926-1988). É importante levar esse dado em conta porque a Asakusa do livro resulta direta-mente das convulsões socioeco-nômico-culturais desse contexto.

A era Taisho se caracteri-zou sobretudo pela instabilidade política e econômica, mas levou adiante o processo de “ocidenta-lização” do Japão, iniciado na era

precedente, a era Meiji. O período que se seguiu (era Showa) buscou dar resposta a tais questões, tendo em seu início o advento do sufrágio univer-sal masculino, o que indica que o país ia de encon-tro a uma política democrática estável, mas a Lei de Preservação da Paz veio na esteira, restringindo direitos: uma medida que não ignorava os ecos da revolução russa que já ressoavam pelo país.

No entanto, a sombra de um outro elemento externo haveria de pairar por sobre a nação nipôni-ca, produzindo seus efeitos na população proletá-ria: a recessão de 1929.

O fechamento das fábricas do setor [de fiação de seda] está se propagando por todo o Shinshu e tende a se alastrar para as províncias de Shizuoka, Yama-nashi, e o país inteiro.

Mais de cem mil operárias estão desempregadas.

O infeliz estado dessas mulheres tornará pro-pício aos “obscuros aliciadores” o recrutamento a fim de “trazê-las para Asakusa.

Firmemente atenta a todo esse contexto, a obra imergirá profundamente em datas e fatos his-tóricos (como o grande terremoto da era Taisho, em 1923), bem como a reminiscências do narrador (que não se dissocia do autor), delineando as rela-ções de influência ou, quando não, para simples-mente estudar suas implicações nos personagens.

Disso resulta que tudo o que se encontra no livro tem como função precípua caracterizar a ci-dade, que (semelhante aos romances naturalistas do século 19) é a verdadeira protagonista da nar-rativa. A gangue escarlate do título é mais um dos aspectos que compõem o mosaico, não obstante o tratamento individual que o autor dispensa, em ca-pítulos, a cada um de seus membros.

Forma e conteúdoA princípio, o leitor pode ter a ideia de que

a gangue escarlate é uma versão oriental dos Ca-pitães da areia, de Jorge Amado. Mas Kawaba-ta não dispensa aos seus jovens contraventores a mesma “condescendência” que justifica seus atos por conta das anomalias sociais próprias das so-ciedades neoliberais. Em sua maioria, esses jovens são produtos de um meio no qual são assimilados (como a jovem Oharu de quinze anos que, “sem sair do lugar e sem saber como e quando”, é ven-dida); esse processo de assimilação ou se dá de for-ma inconsciente (Oharu) ou quando esses jovens aprendem as regras do jogo, passando então a ludi-briar os próprios ludibriadores (Yumiko, a jovem de “cabelos tosados”). Mas, em geral, as relações sociais não são tão estratificadas.

A estrutura peculiar do livro pode ser assim resumida: o autor/narrador trafega pelo submun-do dessas ruas, parques e casas de shows sempre acompanhado de um dos membros da gangue, atento a tudo, sendo que o produto de tais regis-tros é a obra que o leitor tem em mãos. Seu escopo

e estrutura dão assim à narrativa um teor de uma crônica de cos-tumes desse lugar que “derrete constantemente os moldes ve-lhos” e “os transforma em novos moldes”; Asakusa, um local cin-dido entre a tradição oriental e a modernidade ocidental, onde puxadores de riquixá dividem espaço com táxis e outros veí-culos, em noites movimentadas que não parecem ter fim.

Esse ritmo urbano pode dar a impressão de ser o principal fundamento do estilo do livro: uma narrativa digressiva, frag-mentária, que não investe numa profunda introspecção dos per-sonagens e constantemente se volta ao passado de valor docu-mental para contrapô-lo ao pre-sente. Mas em poucas páginas o leitor poderá supor que a posição singular que o narrador assume na história — como um turis-ta ávido por informações diante de um reduto cultural inédito — explicaria melhor essas oscilações na narração, bem como o trata-mento dado aos personagens.

Esse ritmo narrativo e a concepção da obra, bem como os aspectos culturais nipônicos, desafiam o leitor que, na expec-tativa de aprofundar-se no in-terior de tipos como Aki-ko, Umekichi, Hiko e mesmo Yu-miko (a presença mais constante da obra), haverá de se frustrar... Curiosa ainda é a forma com que o narrador dialoga com o leitor: ele expressa uma familiaridade mútua dos acontecimentos co-tidianos, como quem está dialo-gando com um conterrâneo bem informado dos fatos:

Os caros leitores devem ter lido no jornal de 13 ou 14 de ju-lho uma reportagem com esta manchete em tipos gigantescos [Os fios de seda de Shinshu estão ame-açados de extinção?]

Certamente isso deriva do fato de que o romance foi publica-do episodicamente num jornal de Tóquio entre 1929 e 1930, fator este que contribui para sua con-temporaneidade (mas que aliena um pouco o leitor ocidental).

Por fim, A gangue escar-late de Asakusa é obra menor de Kawabata, embora não seja, de maneira nenhuma, prescin-dível. A crônica do momento, o registro de um tempo e es-paço tão capital de um país em processo de mudança espiritual — um Japão pré-segunda guer-ra mundial, aberto ao mundo, com seus párias sociais e mar-ginalizados ouvindo Jazz e dan-çando Charleston em cabarés decaídos, ou mendigando e ex-torquindo passantes, em ruas e becos imundos... Esse registro humano e sensível responde pe-lo valor da obra.

E ao leitor já familiarizado com a prosa de Kawabata, um atrativo adicional: a oportuni-dade de conhecer uma varian-te de sua arte (impressionista e introspectiva em grande parte), num ponto de virada expressivo de sua carreira.

trecho

a GanGue escarlate De asakusa

Asakusa é Asakusa de milhões de pessoas. Em Asakusa, tudo está jogado de forma crua. Diversos desejos humanos dançam desnudos. Todas as classes, todas as raças, numa mistura, formam o fluxo de um grande rio. Um fluxo profundo e desconhecido, que escoa sem fim, de manhã à noite. Asakusa vive.

o autor

yASunARi KAWAbAtA

Nasceu em 1899, em Osaka. Ainda na juventude inicia seus primeiros experimentos literários através de contos. É autor de O país das neves, A casa das belas adormecidas, Beleza e tristeza e Meijin. Em 1968, recebe o prêmio Nobel de literatura (o primeiro conferido a um autor japonês). Quatro anos depois, comete suicídio.

a GanGue escarlate De asakusaYasunari KawabataTrad.: Meiko ShimonEstação Liberdade223 págs.

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40 | | janeiro de 2015

Fascinante ruína

Ambientado no México, novo romance de Juan Villoro explora a banalização da violência

rodriGo casarin | são Paulo – sP

P orque não vendemos tranquilidade — continuou. — Em todos os jornais do mundo há notícias

ruins sobre o México: corpos mu-tilados, rostos borrifados com áci-do, cabeças cortadas, uma mulher nua pendurada num poste, pilhas de cadáveres. Isso provoca pânico. O estranho é que em lugares tran-quilos tem gente que quer sentir is-so. Estão cansados de uma vida sem surpresas. Se preferir, são uns per-vertidos de merda ou são os mesmo animais de sempre. O importante é que precisam da excitação da caça-da, da perseguição. Se eles sentem medo, isso significa que estão vivos: querem descansar sentindo medo. O que para nós é horrível para eles é um luxo. O terceiro mundo exis-te para salvar os europeus do tédio. Foi isso que seu melhor amigo en-tendeu. E cá estou eu, dedicado à paranoia recreativa.

Desde já peço desculpas ao leitor. Irei falar sobre violência — a banalização da violência —, al-go que talvez venha fazendo com alguma modorrenta frequência. Também irei evocar, já no pró-ximo parágrafo, David Foster Wallace (DFW, para simplificar), autor que parece estar vivendo momentos de onipresença no nosso meio literário. Desculpe mesmo, mas não conseguiria es-crever de outra forma sobre Ar-recife, do mexicano Juan Villoro.

No texto Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo — que também dá título ao livro no qual está presente —, DFW, cobrindo a Feira Estadual de Illinois para a Harper’s, obser-va, dentre diversas outras coisas, o fascínio que muitos têm de se expôr a “Experiências de quase--morte”. No “Parque de Diver-sões Vale da Alegria”, agonia-se ao ver sua companheira de em-preitada entrar em um brinque-do onde é submetida a giros e mais giros, que se intensificaram quando os operadores notam que aquela era uma oportunida-de para observarem por debaixo do vestido da garota. Ao descer do brinquedo, a moça diz: “Isso foi do caralho. Cê viu isso? O fia-daputa fez a cabine girar dezesseis vezes, cê viu? (…) Seus filhos de uma puta isso foi do cacete. Seus cornos”. “Não me chamam de Rei do Zíper [o nome do brin-quedo] a troco de nada, boneca”, retruca o operador da máquina.

No hotel La Pirámide, onde se passa boa parte de Ar-recife, essas “Experiências de qua-se-morte” são levadas a um nível extremo, muito menos inocente do que brinquedos que ficam jo-gando as pessoas de um lado para o outro. Como definem em de-terminado momento do livro, o local é “uma Sodoma com piña colada, uma Disneylândia com herpes, um Vietnã com room service”. As situações de perigo controlado envolvem atividades como sequestros-relâmpago e en-contros com guerrilheiros, partes do programa “Cruci/Ficção” — um sacrifício de mentirinha.

Pirámide diz: “O narcotráfico é perfeito para tornar o medo ve-rossímil. As notícias de decapita-dos dão a volta ao mundo. Isso ajuda a ir atrás de perigo. Peri-gos controlados, é claro”. É isso, a violência sendo essencial para movimentar os negócios.

Outros planosAcontece que falei pra ca-

ramba da questão da violência. Não tem jeito, é o que mais me salta aos olhos, mas também é o aspecto mais superficial do livro narrado por Tony Góngora, ex--baixista de uma banda de heavy metal, a Los Extraditables, que tocava apenas para “jovens pe-dreiros com fantasias autodestru-tivas” e rendia pouco dinheiro a seus integrantes. Imerso em dro-gas, Góngora passara a vida intei-ra à beira da morte até que, para fugir de uma das poucas coisas que recordava de seu passado, vai para La Pirámide, trabalhar no lugar que oferece o iminente pre-cipício como forma de diversão.

O que dispara a narrativa é o assassinato de um mergulha-dor, morto ao lado de uma pis-cina com um arpão nas costas. Outra pessoa também é encon-trada morta com um detalhe bi-zarro: um nó no pênis. As mortes colocam a reputação do lugar em risco, afinal, “não é fácil geren-ciar o paraíso com um cadáver a bordo”, mesmo com a proposta oferecida pelo paraíso. Para que o caso possa cair logo no esque-cimento, tentam convencer a todos que os crimes foram, na verdade, um pacto mortal entre um casal de gays e aí esbarramos em um dos planos do livro: não importa a verdade, mas as histó-rias em que as pessoas acreditam ou que lhe são convenientes.

Góngora procura eluci-dar o crime. Contudo, a histó-ria — longe de ser um romance policial, ao menos em seus for-matos mais clássicos — adentra sua vida, seu passado esquecido. Conforme essas duas frentes — a solução do crime e a reconstru-ção do passado — se desenrolam, o protagonista começa a enten-der um tanto da situação de seu país, um lugar de “ilusões gigan-tescas”, onde “o desastre contem-porâneo é atenuado com projetos desmedidos” e a diferença entre a vida e a morte pode ser apenas um trâmite. Aqui regressamos novamente para a questão ini-cial, mas sob outra perspectiva: como a violência está intrincada na própria engrenagem social. O mesmo lugar que diverte pessoas, por exemplo, pode ser onde má-fias lavam seu dinheiro. O mes-mo Estado que deveria defender seus cidadãos, pode ser, na verda-de, parceiro no narcotráfico.

O programa de televisão só existe — e gera grandes lucros — por conta da violência (e do tiozão que chega cansado do tra-balho). E assim a fronteira entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilíci-to, o moral e o imoral, o crime e a diversão continuam menores do que a distância entre São Pau-lo e Osasco.

Por lá, o ganha-pão é a venda do medo com a experiência da beira da morte, em uma situação on-de o entretenimento e a espetacularização atingem um nível extremo, bizarro. “Ninguém sabe a data da própria morte e não queremos saber, mas se che-gar, queremos que seja rápida, bela, feliz! Criamos ficções legalmente aprovadas para viver ao máximo e sair de cena com uma dignidade irrepreensível.”

Isso só é possível em um mundo onde a di-ferença entre a vida e a morte — principalmente a morte violenta, espetacular, midiática — já é quase insignificante, totalmente banalizada. Um mundo que não é apenas o ficcional criado por Villoro, mas também o nosso, onde em todos os finais de tarde apresentadores alarmam tragédias — quase sempre particulares —, pedindo imagens e mais imagens, expondo todo o sangue que é possível, transfor-mando justamente a morte — e a “Experiência de quase-morte” — em algo fútil. Daí o tiozão chega em casa cansado do trabalho — mote mais utiliza-do como desculpa para a ingestão passiva de mon-tanhas e mais montanhas de porcarias de qualquer tipo —, liga a tevê e tá lá: diversão garantida com a desgraça, a violência, alheia. A meu ver, a distância entre ter essa diversão do sofá ou poder participar dela — desde mantida a segurança do sofá, como é a proposta da Cruci/Ficção — não é muito maior do que a distância entre São Paulo e Osasco.

Conheço pouquíssimo da realidade mexicana, mas creio que o cenário não seja muito diferente por lá, vide os noticiários, vide o trágico desaparecimen-to dos 43 estudantes de Ayotzinapa supostamente articulado pelo governo local em parceria com os grandes traficantes de drogas — algo já tratado mui-to bem por João Cezar de Castro Rocha no Rascu-nho. Na obra de Villoro, um dos dirigentes de La

trecho

arreciFe

O matador de conflitos do Atrium parecia cansado. Mas seu cansaço e desalinho eram formas secundárias da energia. As olheiras, os olhos injetados de sangue, a patinha de gafanhoto entre os dentes, a pele coberta por uma película de suor e de poeira do caminho e o cabelo despenteado pelo vento eram sinais de quem ainda pode ganhar o rali Paris-Dakar.

arreciFeJuan VilloroTrad.: Josely Vianna BaptistaCompanhia das Letras238 págs.

o autor

JuAn viLLoRo

Nasceu na Cidade do México, em 1956. Estudou sociologia na Universidad Autónoma Metropolitana e deu aulas de literatura, inclusive em universidades dos Estados Unidos e da Espanha. Autor de romances, contos, ensaios, peças crônicas, artigos e histórias infantojuvenis, é apontado como um dos escritores mais importantes da América Latina. No Brasil, também estão publicados o livro selvagem (Companhia das Letras) e o estádio dos desejos (Terceiro Nome).

ednodio quintero

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janeiro de 2015 | | 41

rabiscoliteratura infantil e juvenil

prateleirinha

ivã, o cavaleiro Do leãoFelicitas HoppeTrad.: Renata Dias MundtIlustrações: Midori HatanakaEstação Liberdade200 págs.

Os cavaleiros da Távola Redonda sempre foram de grande interesse para a literatura — aqui, em especial, será explorado o personagem Ivã, o Cavaleiro do Leão, o mais destemido dos cavaleiros. A gentileza de Ivã o fará embarcar numa aventura amorosa que, como não poderia ser diferente, acabará resultando em sua batalha mais difícil, contra um gigante que arranca árvores como se fosse um homem arrancando flores.

Brasil 12 x 12 alemanhaVários autoresVários ilustradoresDSOP68 págs.

Numa única jogada, a DSOP trouxe para o seu time 12 dos mais importantes nomes da literatura infantil brasileira — como Angela-Lago, Heloisa Prieto, Leo Cunha, Márcio Vassalo. E para reforçar, 12 ilustradores alemães completam o time — como Stefanie Harjes, Helme Heine, Moni Port. Entre outras situações envolvendo o futebol, temos o menino ansioso pelo jogo de sua vida, o time mais maluco do mundo e o futebol do ponto de vista de um cachorro.

os cinco esquisitosBeatrice AlemagnaTrad.: Carlo Alberto DastoliMartins Fontes40 págs.

Os cinco esquisitos não conseguiam fazer nada na vida, tampouco tinham vontade de fazer grande coisa — um preguiçoso, um do avesso, um furado, um dobrado e um todo errado. Certo dia, ninguém sabe de onde, chegou um sujeito dito extraordinário. Valendo-se de bom humor, a autora mostra que às vezes as esquisitices são muito menos esquisitas e as perfeições muito menos perfeitas do que podemos imaginar.

Caricatura para esquecer

Apesar do cunho moralista e religioso, narrativa juvenil de daniella Bauer não convence

carolina ViGna | são Paulo – sP

a sinopse no site da Bi-ruta diz: “Através dos olhos de uma meni-na, o leitor acompa-nha a trajetória de

sua família que, em meio à Re-volução Russa de 1917, viu-se obrigada a deixar para trás tudo o que conhecia e a empreender uma audaciosa e perigosa fuga rumo a um destino totalmente desconhecido. Com novas vi-das e identidades, vê-se desper-tada pelas inúmeras perguntas que permanecem sem resposta. Mas, essa é a chave da morada. Não ter as respostas lhe permi-te seguir em frente e abrir todas as portas”. Entretanto, Morada das lembranças traz uma nar-rativa moralista e religiosa do que seria um sofrimento enor-me, mas que não convence. Há uma total ruptura entre ques-tionamentos infantis e a lingua-gem utilizada. Fica claro desde o início que o livro é proposto co-mo um relato de uma senhora de idade que, ao lembrar de seu passado difícil, o narra na voz da menina. Esta diferença de ida-de entre a voz narradora e o que se lê de fato é justificada, então, por esta visita a um outro tempo. Justifica, não a torna boa.

Há um discurso de alma, de sofrimento por obrigação, de penar, que faz com que o livro caia em uma caricatura da mu-lher judia. Como toda carica-tura, imagino ter um fundo de verdade qualquer, mas ainda as-sim é uma caricatura, que, por natureza, explora traços mar-cantes mas não necessariamente relevantes. Explora os mesmos preconceitos que diz comba-ter. O livro é tão caricato e falha tanto em criar um vínculo afe-tivo com o leitor, que a decisão da editora em resolver o design só no projeto gráfico foi acerta-díssima. Qualquer ilustração ali reforçaria ainda mais este proble-

Parece haver um esforço da autora em aplicar seus conheci-mentos psicológicos na narrati-va, sob a forma de demonstração da fantasia infantil da indepen-dência. O problema é que isso funciona no consultório, não aqui. O delírio infantil é manti-do na voz de uma senhora: “Re-solvi que, daquele dia em diante, não levaria mais meus problemas a nenhum adulto, eu os resolve-ria sozinha, à minha maneira (p. 69)”. Crianças precisam disso para se tornarem independentes, se tornarem adultos saudáveis. A maioria dos adultos que acredi-tam que foram, de fato, plena-mente independentes quando crianças, é, no mínimo, deliran-te. Guerra ou não guerra. Este é um dos problemas de se colocar a narrativa na voz de uma senho-ra quando a história pertence a uma menina.

Não sei se a origem de Mo-rada das lembranças é essa, mas consigo imaginar uma senhora, talvez a avó da autora, contando essas histórias. Consigo até me identificar com a necessidade de colocá-las no papel, que não se percam. Estas histórias são impor-tantes. Não devem ser esquecidas. Este esforço precisa ser feito. Há, entretanto, um hiato entre a emo-ção de quem as recebe, de quem as escuta da boca de entes queri-dos, e a possibilidade de torná-las interessantes como literatura.

Tive uma professora na Belas Artes que me dizia que o fruidor não sabe e nem deve sa-ber se a obra foi ou não difícil de fazer, que seu percurso não importa. Ele deve se emocionar com o que tem à frente. A obra pronta, finalizada, é toda a in-formação que o fruidor tem. O mesmo vale para a literatura. Só podemos analisar um livro pelo livro, pela literatura, pela emo-ção que nos causa. Morada das lembranças não emociona.

ma, pois iria engolir o texto. O projeto gráfi-co, aliás, é ótimo e dá conta inclusive de um movimento necessário que falta à narrativa.

A história tinha tudo para ser incrível. Uma menina foge da Rússia, junto com sua mãe e um irmão bebê, após o assassinato do pai, durante a Revolu-ção de 1917. Primei-ro chegam à Polônia e, de lá, para o Rio de Janeiro. Só os contrastes dos lugares já seriam suficientes, mas não são explora-dos. A questão da língua é mencionada en passant mas o quanto a narradora vai bem na escola é re-forçado várias vezes. Ou seja, a narradora, ela, so-frida, injustiçada, explorada, ainda assim não tem problemas na escola, tão fantástica, ela. As outras mulheres nas mesmas condições se prostituem, ela não. As outras mulheres polacas corrompem o seu corpo e perdem o direito de serem enterradas em cemitérios judeus, ela não.

O livro ganhou um prêmio importantíssimo, o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacio-nal 2014 na categoria Literatura juvenil, ou seja, livros para jovens leitores a partir de 14 anos. Fico me perguntando se eu, que tenho parte de família judia fugida da guerra, que escutei histórias pare-cidas — inclusive no teor de rancor —, não con-segui criar nenhum vínculo afetivo com nenhuma das personagens, que adolescente de 14 anos o fará. Ao contrário do último livro de Marina Colasanti, o valor de Morada das lembranças é atribuído pe-lo prêmio, não pela qualidade literária.

Morada das lembranças esbarra perigosa-mente em uma autoajuda, em um tom de meri-tocracia, como quem diz que se a senhora-menina conseguiu manter-se “digna” e vencer, casar, criar filhos, estudar, trabalhar etc., mesmo com todas es-tas dificuldades, qualquer mulher consegue. Além do fato de que a perfeição não cria empatia com ninguém, acho especialmente perigoso quando es-te tipo de discurso está em um livro juvenil.

O livro todo é permeado por comentários fa-talistas, religiosos, moralistas. Exemplos: A vida é o que tem de ser, difícil é acreditar nisso (p. 58). Esses anos sem fé foram os anos mais difíceis de minha vida (p. 158). Ser homem é completamente diferente de ser mulher. Sei que essa é uma questão óbvia, mas, de tão óbvia, inexplicável (p. 175).

moraDa Das lemBrançasDaniella BauerBiruta200 págs.

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42 | | janeiro de 2015

A HORA ZERO

1.após dar três voltas na chave, hermética, a porta de entrada fica ali, branca e pura pomba da asa cortadaa insinuar o voo — un volque havia, a vida que havia

antes que o chão não fossetição ardente sob os pés

ou tapete de ladrilhosnuma igreja sem fiéis

2.os dedos revistam misturamcachecol com meiasdeixam atrás de si no corredor

um batalhão de objetos inermeshoras viradas sem medodetritos de casas derribadasapós o terremoto

e figura de homem exangue,no chão

perdidos para sempre os botões da camisa

3.enquanto apalpam rendas e sutiãsna terceira gavetasinto-as descer ávidas, as mãosem mim ao longo da nucapercorrem as vértebrasredesenham as curvastropeçam no fêmur

até que apaga-se a vontade e jogam-me no chão

boneca, cuja mola quebrou

reprodução

Prisca Agustoni

p risca Agustoni (1975) é suí-ça de nascimento, mas mo-ra no Brasil desde 2003. A relação com a literatura está presente desde as primeiras

escolhas universitárias, ainda na Suíça onde se forma em literaturas hispânicas e filosofia, até os dias de hoje. Desse mo-do, algumas referências iniciais são: Cé-sar Vallejo, Alejandra Pizarnik, Octavio Paz, García Lorca, Luis Cernuda.

Nos múltiplos binários entre po-esia e crítica ou crítica e poesia, Prisca segue desempenhando o papel de pro-fessora na Universidade Federal de Juiz de Fora e, no plano mais criativo, o de escrever poesia. Contudo, além dessas duas atividades, há ainda uma terceira via — a de tradutora, que segue parale-la às demais. Traduzir, ponte entre cultu-ras, trabalhar a língua, um quebra-cabeça nem sempre fácil, onde jogo, necessida-de, impossibilidade e invenção são os elementos principais. Do italiano para o português é possível lembrar os nomes de Elisa Biagini, Fabio Pusterla, Milo De Angelis, Valerio Magrelli, do francês Ju-lien Burri, do espanhol Jenaro Talens, Alejandra Pizarnik, Alfonsina Storni. E, ainda, do português para o italiano Paula Tavares, e outros poetas contemporâneos brasileiros. Um espaço onde as línguas se misturam, cada uma com a sua singula-ridade. A escritura como um espaço hí-brido, um rastro da sua proveniência que lhe propiciou um amplo leque de rela-ções e de escrituras possíveis. Com efei-to, além de traduzir de uma língua para outra, uma grande trama de fios, Prisca Agustoni também escreve nesses quarto idiomas e se autotraduz.

A experiência da autotradução está presente nos poemas escolhidos por ela especialmente para esta edição do Ras-cunho. Todos inéditos em português. A poesia para ela nasce como uma voz, uma escuta interior (“uma voz vinda de outro lugar”). Quem sabe um enigma? É um movimento de atenção, um esta-do de alerta para os detalhes, como fi-ca evidente na leitura dos textos abaixo. São temas recorrentes na sua escritura, mesmo perpassando por várias línguas, que operam questões importantes para a contemporaneidade: a condição do fe-minino, na vida pessoal, coletiva e his-tórica; a ideia de limiar, de limite, de fronteira seja social, linguística e mo-ral, um território também da psiché; o encontro ou desencontro com o outro, espaço primordial de transformações in-ternas e externas. Entre as várias publi-cações de Prisca Agustoni, destaque para a coletânea que reúne boa parte de seus textos poéticos, Poesie scelte (2000-2012), publicada em 2013, com o auxí-lio da Fundação Suíça para as Artes Pro Helvetia. Como o leitor poderá perceber os poemas abaixo tratam dos detalhes, do que restou depois do acontecido. Tra-ta-se de um assalto numa casa. E depois? Quais os rastros e vestígios dessa violên-cia? Um recomeço nos destroços?

L’ORA ZERO

1.Con tre giri di chiave, ermetica, la porta d’entrata resta lì,bianca e pura,colomba dall’ala tagliata a insinuare il volo — un vol che c’era, la vita che c’era

prima che il cotto non fosse tizzone ardente ai miei piedi

o tappeto di piastrelle antichein una chiesa senza fedeli

2.le dita frugano mescolanosciarpa con calzini e lasciano dietro di sénel corridoio

un reggimento di oggetti inermiintere ore trascorse senza pauradetriti come case diroccatedopo il terremoto

o figura d’uomo morto, per terra

persi per sempre i bottoni alla camicia

3.mentre palpano pizzi reggiseni e merlettinel terzo cassettole sento scendere avide, le mani,su di melungo il collo percorrono le vertebreridisegnano le curveincespicano nel femore

finchè scema la voglia e mi gettano a terra

come una bambola la cui molla s’è incagliata

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janeiro de 2015 | | 43

Martelos, alicates e

coisas assimMarco Polo GuiMarães

ilustração: Theo Szczepanski

o s homens têm cabe-los curtos grudados ao crânio. Andam sob a terra, nos tú-neis e galerias que

coagulam o sangue sujo da cidade. São três e usam a mesma indumen-tária: camisetas cor de papel, ber-mudas cor de areia, botas longas de borracha cor de asfalto. Não fa-lam não falam não falam. Formam uma santíssima trindade sinistra pois em suas mãos levam objetos de metal que não pressagiam boa coisa para quem eles vão encontrar.

Andam como casualmente andam manequins maneiristas nu-ma passarela iluminada por Cara-vaggio. Lidam todos os três com questões em última análise pare-cidas. Seus cérebros podem com-putar o que está rolando por conta da estereovisão e do poder de pro-cessamento trabalhando em tem-po real. Eles não se perdem de seu objetivo e não precisam trocar im-pressões ou informações. Não fa-lam não falam não falam.

Boa parte do seu trabalho trata do relacionamento entre ho-mem e máquina, ou melhor, entre homem e objeto. Eles não usam ca-pas. Sua ação é direta sobre a carne do outro e pode produzir muita su-jeira. Certamente seu envolvimen-to com os detritos faz parte de sua natureza, sendo aqui natureza en-tendida como o que há de implacá-vel num animal voraz. Eles gostam de deixar para trás uma imagem que é como uma assinatura.

Os homens são ao mesmo tempo magros e musculosos, seus olhos têm cor de ouro fosco embo-ra esta seja uma comparação cer-tamente imprecisa. Seus lábios são fendas sem lábios e suas expressões na verdade são inconclusivas os-cilando entre a indiferença e um prazer secreto. São como quadros de avisos num hospital. Há algu-ma coisa de imediatismo mas tam-bém de casualidade na maneira como se movem.

Agora eles sobem por uma escada vertical até saírem no in-terior de uma fábrica deserta. Há um colchão no chão com um len-çol branco e uma mulher jovem e nua com as pernas e braços aber-tos amarrados a quatro estacas metálicas fixadas no solo. Ela es-tá amordaçada mas tem os olhos bem abertos e os cabelos bem cur-tos. Ali é, ou foi, uma fábrica que lidava com produtos químicos, há um cheiro acre no ar. Não está ca-lor demais ou frio demais e aquela vasta sala poderia ser o estúdio de um artista.

Obviamente não sou res-ponsável por isso, mas existe aque-le senso de que uma peça de roupa caída no chão tem algum significa-do. A um canto da sala está largada uma lata de tinta cor de sangue. Os homens já não estão mais ali e de um lugar cor de noite bem adian-tada pequenos focinhos farejam. É certamente uma fábrica abandona-da pois há muita poeira nas máqui-nas. Não há sequer uma sombra cor de grama e o odor do uso pro-longado de produtos químicos se mistura ao de restos orgânicos.

MarcO POlO GuiMarãesJornalista, poeta e compositor. Nasceu em Recife (PE), em 1948. Foi hippie, artesão, tradutor de livros de bang-bang, cantor de banda de rock, gerente de supermercado e diretor de museu. Publicou os livros Voo subterrâneo, Narrativas, Memorial, Brilho, Palavra clara, A superfície do silêncio e Caligrafias.

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44 | | janeiro de 2015

Para Eloésio Paulo

a rouquidão român-tica de Naílson Pe-dreira se espraiava pelos campos de café e laranja da região do

Lago de Furnas, levada pelas on-das da Rádio Corinto FM. O seu De coração a coração começava logo depois de A voz do Brasil e se estendia noite adentro, sem pra-zo para terminar. Àquela hora, quase sem patrocínio, contava com escassos ouvintes, apenas os porteiros dos poucos prédios re-sidenciais, os seguranças do dis-trito industrial, os plantonistas da Santa Casa, alguns bêbados desgarrados em botequins da pe-riferia e os insones que, dispen-sando a companhia da televisão, aguardavam ansiosos o efeito do tranquilizante. Nem mesmo o diretor-proprietário da emisso-ra, doutor Éder Valenti, dono de metade da cidade, prefeito por vários mandatos, que lustrava com zelo seu nome inscrito em prata de lei, se preocupava com aquela grade necessária, mas dis-pensável, da programação.

E Naílson Pedreira apro-veitava-se, há pouco mais de um ano, desse estranho anonima-to. Vindo de São Paulo, empre-gara-se de imediato na vaga que Washington Lopes ocupava pro-visoriamente, um turno indeseja-do, porque a parte substancial do ordenado dos locutores provinha das propagandas que coletavam no comércio local — e ninguém queria anunciar naquela ho-ra morta. Naílson, no entanto, aceitou o encargo sem reclamar, apossou-se do microfone e, jun-to com Julinho “Prancheta”, que cuidava do som, atendia o telefo-ne, fazia o café e varria o estúdio ao final do expediente, divertia--se na solidão da noite interio-rana. Criou para isso um espaço onde dava conselhos inúteis, lia cartas imaginárias, inventava predições astrológicas, divaga-va sobre banalidades e tocava as músicas de sua preferência.

Toda noite, após chegar cansado da faculdade, eu me martirizava, enquanto tomava banho, colocava o pijama, desar-rumava a cama, acendia o último cigarro, pensando no quanto me distanciara dos planos ambiciosos da juventude. Eu, que imagina-

A vozluiz ruFFato

ilustração: FP Rodrigues

ra fama e sucesso, me contentava agora em repetir medíocres lições de língua portuguesa que não interessavam a nenhum aluno, aguardando como um cão abo-balhado a ração, suficiente ape-nas para pagar as contas do mês, as dívidas de cerveja acumulando no bar da Praça da Matriz, a bar-riga crescendo, os cabelos caindo, os sonhos apodrecendo.

Certa quarta-feira, o pior dia da semana, passava da meia--noite, entrei meio bêbado no Chevette velho e cheirando a morrinha quando, ao girar a chave de ignição, meu punho, escapulindo, pressionou o bo-tão do rádio, cujo dial há muito emperrara sintonizado na emis-sora da cidade. Então, a voz rou-ca de Naílson Pedreira explodiu dentro do carro, evocando tem-pos idos, infâncias inalcançáveis, memórias perdidas. Ao invés de me conduzir para a casa silencio-sa e melancólica onde morava, acelerei rumo ao pequeno prédio

de pintura desbotada no final da Avenida Presiden-te Vargas, que, tornando mais à frente rodovia, nos levava para longe bem longe, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo.

Estacionei no meio-fio, empurrei a porta que dava para a rua, apenas encostada, e subi devagar a escada escura. Percorri um comprido corredor até me deparar com uma sala bastante bagunçada, on-de Julinho, sentado numa cadeira giratória, con-trolava o equipamento de som, a estante de discos, o telefone e a garrafa térmica. Por trás do vidro, curioso, Naílson me viu e avisou o assistente, que, virando-se bruscamente, quase despencou no chão. Descalço, a camisa vermelha de manga comprida deslizando por sobre a calça jeans apertada, Naíl-son deixou o aquário. Sem graça, disse meu nome, expliquei que nos conhecíamos de vista, fôramos apresentados em alguma das festas que o doutor Valenti promovia em seu rancho à beira da repre-sa, e ele estendeu-me a mão frágil, estranhamen-te fria, mas cálida, como se aconchegasse pássaros ainda sem penas. A sensação de embriaguez de sú-bito cessara e lamentei estar ali, naquele estúdio abafado, frente a um sujeito de cabelos pretos des-grenhados, roupa amarfanhada de muitas tardes, dentes amarelados, sem saber o que falar.

Naílson me pediu um cigarro e encaminhou--se ao quintal. Descemos alguns degraus e nos ins-

talamos no breu que o perfume doce das damas-da-noite asfi-xiava. Ao longe, avistávamos as lâmpadas esmaecidas da cidade mergulhada na cerração. Os fa-róis dos carros que passavam na estrada iluminavam intermiten-tes as árvores trêmulas de frio. As águas do riacho que devia haver ali por perto escorriam pregui-çosas, escoltadas por uma anar-quia de sapos e grilos. Então, a voz rouca de Naílson insinuou displicente por trás da brasa, Afi-nal estou morrendo. Assustado, engasguei com a fumaça, Quê?! Ele continuou, calmo e distan-te, Tenho cagado sangue... Já não consigo comer nada... Meu estômago não aceita... Nervoso, joguei a guimba no chão e esma-guei com a ponta do tênis, Não deve ser nada sério, comentei, patético. Não durmo mais, a voz prosseguiu, alheada, Minha ca-beça não para de pensar... Parece uma cachoeira... O rosto adoles-cente do Julinho entreabriu uma fresta na porta, estendendo um facho de luz sobre o corpo arrui-nado de Naílson, No ar, em trin-ta segundos! Então, perguntei, Você não vai lutar contra isso? E ele, escalando rápido a escada, Não, estou lutando a favor.

Na semana seguinte, via-jei de férias, cismando, por todo o mês de julho esfuziante de es-trelas, sobre o brejo em que me afundava mais e mais. Voltei de-sanimado em agosto, certo de que algo deveria ser feito com urgên-cia, embora não atinasse com o quê. Passaram-se ainda uns qua-renta dias, até que uma madru-gada, em torno de uma mesa no bar da Praça da Matriz, alguém comentou sobre o Naílson Pe-dreira, um fulano esquisito, co-nhece não?, que dorme ao relento no quintal da rádio onde trabalha e toma banho no posto de gaso-lina em frente, porque ninguém mais quer fiar para ele, O cara in-jeta nas veias todo o mísero salá-rio de locutor. Imediatamente me levantei, corri para casa, peguei o telefone e liguei para o estúdio. Julinho atendeu e perguntei pe-lo Naílson. Voltou para São Pau-lo, não soube?, contou, Faz uma semana já! Abandonou o empre-go em pleno ar, falou assim: Não aguento mais, amigos ouvintes, e declamou uma poesia cheia de palavrões que não acabava mais... Ele deixou algum endereço?, in-daguei, ansioso. Não, disse que se alguém quisesse encontrar ele, que procurasse no cemitério... E riu, Uma figura aquele Naílson, não é não? É, uma figura, respon-di, desligando.

luiz ruffatONasceu em Cataguases (MG), em 1961. É formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou vários livros, entre os quais a pentalogia inferno provisório, o premiado Eles eram muitos cavalos e, recentemente, a coletânea de crônicas Minha primeira vez.

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TARDE DANS LA NUIT...

Le couleur que décompose la nuitLa table où ils sont assisLe verre en cheminée La lampe est un coeur qui se videC’est une autre annéeUne nouvelle rideY aviez-vous déjà pensé La fenêtre déverse un carré bleuLa porte est plus intime Une séparation Le remords et le crimeAdieu je tombeDans l’angle doux des bras qui me reçoiventDu coin de l’oeil je vois tous ceux qui boivent Je n’ose pas bougerIls sont assis La table est rondeEt ma mémoire aussiJe me souviens de tout le mondeMême de ceux qui sont partis

TARDE DA NOITE...

A cor que decompõe a noiteA mesa à qual eles se sentamO copo na lareira A lâmpada é um coração que se esvaziaÉ um outro ano Uma nova rugaE você já pensou A janela espalha um quarteirão azulA porta é mais íntima Uma separação O remorso e o crimeAdeus eu caioSobre os doces braços que me sustentamCom o canto dos olhos eu vejo os que estão bebendo Eu nem tento me moverEles estão sentados A mesa é redondaE minha memória tambémEu me lembro de todo o mundoMesmo daqueles que se foram

Pierre ReverdyTradução e seleção: André Caramuru Aubert

p ierre Reverdy (1889-1960) foi, sem a me-nor dúvida, um dos poetas mais influen-tes do século 20. Na

origem, ele esteve no centro da cena artística francesa quando esta era a vanguarda mundial. Amigo de Picasso e Braque, era “o poeta” para Guillaume Apolli-naire, Louis Aragon, Max Jacob, Tristan Tzara, André Breton e Paul Éluard. Foi figura central naqueles ismos que marcariam o mundo — o cubismo, o dada-ísmo, o surrealismo. Depois veio a invasão alemã, e Reverdy ain-da se deu ao luxo de ser herói da Resistência. Por muitos anos na-morado de Coco Chanel, soube perdoá-la, depois da Guerra, pe-las escorregadelas que a estilista deu, para o lado escuro da força, durante a ocupação alemã.

Do lado de cá do Atlânti-co, Reverdy foi e segue reveren-ciado, e entre seus admiradores estão alguns dos mais impor-tantes escritores e poetas da língua inglesa, como Paul Aus-ter, Kenneth Rexroth, Frank O’Hara, John Ashbery, Lydia Davis e Ron Padgett. Delica-do, sutil e preciso, ele é, na opi-nião de Octavio Paz, um “poeta secreto para leitores secretos”. Mas o Brasil parece que levou longe demais esta definição de Paz, uma vez que, entre nós, ele é pouquíssimo lembrado e traduzido. Para esta coletânea, selecionei catorze poemas que — espero estar pelo menos em parte enganado — nunca an-tes foram vertidos para o portu-guês.

PLUS LOIN QUE LÀ

À la petite fenêtre, sous les tuiles, regarde. Et les lignes de mes yeux et les lignes des siens se croisent. J’aurai l’avantage de le hauteur, se dit-elle. Mais em face on pousse les volotes et l’attention gânante se fixe. J’ai l’avantage des boutiques à regarder. Mais enfin il faudrait monter ou il vaut mieux descendre et, bras dessus bras dessus, allons ailleurs où plus personne ne regarde.

MAIS LONGE QUE LÁ

Na pequena janela, sob as telhas, olho. E as linhas dos meus olhos e as linhas dos dela se cruzam. Eu tenho a vantagem da altura, ela diz a si. Mas no caminho eles abrem as venezianas e a atenção embaraçosa se fixa. Eu tenho a vantagem das lojas para olhar. Mas no fim é melhor que eu suba ou que você desça e, de braços dados, vamos a algum lugar onde ninguém nos veja.

TOUJOURS SEUL

La fumée vient vient-elle de leurs cheminées ou de vos pipes? J’ai préferé le coin le plus aigu de cette chambre pour être seul; et la fenêtre d’en face s’est ouverte. Viendra-t-elle?Dans la rue où nous bras jetten um pont, personne n’a levé les yeux, et les maisons s’inclinent.Quand les toits se touchent on n’ose plus parler. On a peur de tous les cris, les cheminées s’étegneint. Il fait si noir.

SEMPRE SÓ

A fumaça vem das lareiras deles ou dos seus cachimbos? Eu teria preferido o canto mais agudo desta sala para ficar só; e a janela da frente está aberta. Ela virá?Na rua onde nossos braços formaram uma ponte, pessoa alguma ergueu os olhos, e as casas se inclinam.Quando os tetos se tocarem nós não ousaremos falar. Teme-se todos os gritos, as chaminés se vão. Está tão escuro.

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BELLE ÉTOILE

J’aurai peut-être perdu la clé, et tout le monde rit autour de moi et chacun me montre une clé énorme pendue à son cou.Je suis le seul à ne rien avoir pour entrer quelque part. Ils ont tous disparu et les portes closes laissent la rue plus triste. Personne. Je frapperai partout.Des injures jaillissent des fenêtres et je m’éloigne.Alors un peu plus loin que la ville, au bord d’une rivière et d’un bois, j’ai trouvé une porte. Une simple porte à claire-voie et sans serrure. Je me suis mis derrière et, sous la nuit qui n’a pas de fenêtres mais de larges rideaux, entre la forêt et la rivière qui me protegènt, j’ai pu dormir.

BELA ESTRELA

Eu talvez tenha perdido a chave, e todos riem à minha volta e cada um exibe uma enorme chave pendurada no pescoço.Eu sou o único que não tem como entrar em algum lugar. Todos eles desapareceram e as portas fechadas deixam a rua mais triste. Ninguém. Eu bato em cada porta.Insultos jorram das janelas e eu me afasto.Então, não tão longe da cidade, junto a um rio e um bosque, eu encontrei uma porta. Uma porta simples como uma claraboia e sem fechadura. Eu fui para detrás dela e, sob a noite que não tem janelas mas tem enormes cortinas, entre a floresta e o rio que me protegiam, eu pude dormir.

CLAIR HIVER

L’espace d’or ride où j’ai passé le tempsDans le lit de décembre aux flammes descendantesLes haies du ciel jetées sur les enceintesEt les astres gelés dans l’ais qui les éteint Ma tête passe au vent du Nord Et les couleurs déteintes L’eau suivant le signalTous les corps retrouvés dans le champ des aversesEt les visagens revenusDevant les flammes bleues de l’âtre matinalAutour de cette chaîne où les mains sonnentOù les yeux brillent du feu des pleursEt que les ronds de coeurs couvrent d’une auróoleLes rayons durs brisés dans le soir qui descend

CLARO INVERNO

O espaço do ouro enrugado onde eu passei o tempoNa cama de dezembro com as chamas descendentesAs bordas do céu jorrando sobre os recintosE as estrelas geladas no ar que as extingue Minha cabeça vai ao vento norte E as cores que se dissolvem A água seguindo o sinalTodos os corpos recolhidos dos campos dos aguaceirosE as faces retornamDiante das chamas azuis da lareira da manhãEm volta desta corrente onde as mãos soamOnde os olhos brilham com o fogo das lágrimasE que o circular de corações cobre com uma auréolaOs duros raios de sol rompem na tarde que cai

LE MÊME NUMÉRO

Les yeux à peine ouverts La main sur l’autre riveLe ciel Et tout ce qui arriveLa porte s’inclinait Un tête dépasseDans le cadreEt par les voletsOn peut regarder à traversLe soleil prend toute la placeMais les arbres sont toujours verts Une heure tombe Il fait plus chaudEt les maisons sont plus petitesCeux qui paissaeint allaient moins viteEt regardaient toujours en haut La lampe à present nous éclaireEm regardent plus loinEt nous pouvions voir la lumière Qui venaitNous étions contents Le soir

Devant l’autre demeure où quelqu’un nous attend

O MESMO NÚMERO

Os olhos a custo abertos A mão na outra margemO céu E tudo o que para cá vemA porta se inclina Uma cabeça a ultrapassaPela molduraE por entre as persianasPode-se observar atravésO sol preenche todo o lugarMas as árvores estão ainda verdes Uma hora se vai Faz mais calorE as casas são mais diminutasAqueles que passam vão menos ligeiroE ficam olhando para cima A lâmpada nos ilumina agoraOlhando para mais longeE nós podemos ver a luz Que chegaNós estamos contentes A tarde

Naquela outra residência onde alguém espera por nós

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m. era preto e forte. Recos-tado à pare-de, dormia com frequ-

ência. O corpo ereto. A profes-sora ralhava. Os colegas brancos ríamos do susto de M. pego em flagrante nas manhãs insones em sala de aula. Éramos todos crian-ças a desvendar mistérios na es-cola pública de pátio de terra e cantina minguada. Eu gostava de estudar. Lutava para contrariar a maldição familiar que nos assom-brava: meus pais aprisionavam poucas palavras no lápis entre os

o meNiNo do dedo torto

dedos. Nunca a mãe sentara-se ao meu lado para fazer a tarefa de casa. Impossível ensinar o desco-nhecido. Quando M. acordava do breve sono (sonharia?), pare-cia assustado — um frágil animal diante do caçador. Balançava a cabeça como se algo se enroscas-se em seus cabelos encarapinha-dos. Tirava o cansaço do corpo na marra. Às vezes, voltava a res-sonar. Outras, mantinha-se sole-nemente acordado, com os olhos brilhantes, prestes a chorar.

Eu gostava de M. Era si-lencioso e delicado. Falava baixo e pouco. Não agredia o silêncio a

sua volta. Movimentava com len-tidão o corpo enorme e muscu-loso. M. era três anos mais velho que a maioria de nós. Quando se tem nove anos (o meu caso), três anos parecem uma eternidade.

M. sabia pouco, quase na-da do emaranhado escolar. Está-vamos terminando o primário. Para ele, juntar letras, formar palavras, dar sentido ao mundo num pedaço de papel era algo intransponível — um rio cauda-loso a ser atravessado a nado em dia de tempestade. Nas aulas em duplas, sentava-me a seu lado na carteira estraçalhada pela delin-

quência infantil. Um professor mirim com seu aluno adotado. Tentava mostrar-lhe como era fácil ler e escrever. Bastava unir as letras de maneira correta, as palavras nasciam e significavam algo. Podíamos inventar outro mundo. Os números também tinham sua lógica. M. me enca-rava com um olhar bovino, sor-ria envergonhado e perdia-se em seu labirinto de silêncio.

M. entrara tardiamen-te na escola. Foi se enroscando, ficando pelo caminho. Aos do-ze anos já era um homem. Can-sado. Trabalhava à noite num restaurante. Era uma espécie de garçom mirim. Lembro-me da palavra cumim. M. era um cumim. Um auxiliar de gar-çom. Algo impensável hoje em dia, quando a infância é coloca-da numa redoma de aço. Muitos trabalhavam. Depois da escola, a mãe me esperava na chácara de flores que nos abrigava para aju-dá-la na lida diária. Passei parte da infância entre samambaias, avencas, crisântemos e azaleias. M. era o único que trabalhava à noite, às voltas com pratos no

sujeito oculto | roGério Pereira

ilustração: Fabiano Vianna

restaurante em Santa Felicidade — o bairro cujo nome sempre me pareceu uma ironia.

M. queria ser invisível, dormir em paz. Mas era impos-sível. Além de muito maior que todos nós, M. era preto e for-te. Nós, brancos, mirrados, pe-quenos. E não dormíamos em sala de aula. M. também tinha marcas. A cicatriz de uma quei-madura rasgava todo o seu an-tebraço direito. E o dedinho da mão esquerda era torto. Come-çava reto, mas na metade entor-tava para fora, formando um pequeno L. M., que pouco sa-bia das letras, carregava um L deformado na mão esquerda. Nunca mais encontrei M. Não sei por onde anda.

Sempre que faço a lição com meu filho de cinco anos, espanta-me como já sabe ler e escrever palavras difíceis. E se orgulha muito de fazer todas as letras do mesmo tamanho. Às vezes, quando estamos juntos a escrever seu nome na folha da ta-refa de casa, lembro-me de M.

O nome do meu filho co-meça com L.