Bairro dos Sonhos? Urbanização na periferia é aprovada pela população, mas criticada por...

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CARTACAPITAL – NOVEMBRO DE 2013 3 Grande periferia 4 | Solução com problemas. Ocupações irregulares em áreas de mananciais não são novidade Modelo de urbanização 8 | Ah, se toda a periferia fosse tratada assim Moradores do Residencial dos Lagos relatam com orgulho as mudanças no bairro 14 | Especialistas questionam a eficácia da Operação Defesa das Águas em garantir um meio ambiente equilibrado Proteção dos mananciais

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TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Grande reportagem para a revista CartaCapital sobre o resultado da Operação Defesa das Águas - projeto do programa Mananciais -, no bairro Residencial dos Lagos, no extremo sul da cidade de São Paulo. Equipe: Jessica Santos, José Francisco, Rodrigo Gomes, Taianne Rodrigues e Thamara Gomes. Orientador: Fábio Cardoso.

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CARTACAPITAL – NOVEMBRO DE 2013 3

Grande periferia4 | Solução com problemas. Ocupações irregulares

em áreas de mananciais não são novidade

Modelo de urbanização8 | Ah, se toda a periferia fosse tratada assim

Moradores do Residencial dos Lagos relatam com orgulho as mudanças no bairro

14 | Especialistas questionam a eficácia da Operação Defesa das Águas em garantir um meio ambiente equilibrado

Proteção dos mananciais

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As contradições da urbanização em São Paulo

EDITORIAL

Quando a repor-tagem visitou a região do bairro Residencial dos Lagos imaginou o que parecia ser o

óbvio: insatisfação, injustiça, falta de diálogo, frustração e histórias que refletissem a tradicional polí-tica violenta do Estado quando se trata de questões habitacionais da população pobre. O bairro passou pelos últimos cinco anos em obras — ainda inconclusas — que altera-ram drasticamente a região, com remoções de casas, abertura e pa-vimentação de ruas, construção de rede de esgoto e instalação de um imenso parque linear.

Especialistas ouvidos pela re-portagem apontam muitos pro-blemas na urbanização de bairros, como baixo impacto positivo na poluição ambiental, favorecimento a uma valorização imobiliária que pode expulsar famílias. Apontam até que há outros interesses nesse processos e não simplesmente a melhora dos bairros.

No entanto, os moradores do Residencial se mostraram satisfei-tos com o processo realizado. Veem problemas pontuais aqui e ali, mas nada comparável ao histórico co-nhecido de intervenções estatais sobre moradias e bairros. Inclusive em bairros próximos, como Canti-nho do Céu e Gaivotas, onde a popu-lação não quer ouvir falar em Ope-ração Defesa das Águas, em virtude da criminalização ocorrida e dos despejos forçados sem a mínima as-sistência a famílias que ali estavam há décadas.

Isso nos leva a um questiona-mento: porque alguns lugares são eleitos para ser modelo de urba-nização, com práticas legítimas e legais, com diálogo, indenizações reais, preservação do direito a per-manecer no local, valorização e melhorias palpáveis para a popu-lação; enquanto outros — a imensa maioria — ainda são tratados como bandidos, com despejos ilegais, com ignorância do direito básico à mo-radia digna?

Qual a dificuldade do Estado

em permitir, já que foi incapaz de garantir moradia digna em outras condições, que a população perma-neça onde se consolidou, possibi-litando processos de urbanização que lhes melhore as condições de vida, de infraestrutura local e do meio ambiente?

Como o leitor poderá perceber no trabalho que segue, a ocupação dessas regiões não se deu simples-mente pela opção de quem lá foi viver e, sim, pela falta dela. Com preços controlados pelo mercado e com políticas insuficientes por parte do Estado, a aquisição da casa própria sempre foi uma luta inten-sa para a população de baixa renda.

Porém, partindo de uma ideia de denúncia, encontramos histórias, sonhos, perseverança e realizações de pessoas comuns, que ajudam a entender o que motivou a busca por moradia em regiões tão distantes e porque a política de urbanização pre-cisa ser mais pautada pelo direito à moradia digna e responsabilização do Estado do que pela criminalização de quem foi viver nos mananciais.

Operação Defesa das Águas: uma solução com problemas

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Passear pelo parque linear construí-do ao longo da re-presa Billings, no bairro Residencial dos Lagos, é atual-

mente uma das opções de lazer das pessoas que moram ou que passam pela região do Cantinho do Céu, no extremo sul de São Paulo. Para que o parque exista, no entanto, casas foram removidas e famílias reas-sentadas em outros locais. Essas mesmas famílias, que um dia vive-ram de forma precária às margens

GRANDE PERIFERIA

Operação Defesa das Águas: uma solução com problemas

As ocupações irregulares em áreas de mananciais não são novidade para quem diariamente luta por moradia. A urbanização desses locais tem sido um processo lento, que nem sempre é eficaz ambiental e socialmente POR TAIANNE RODRIGUES

Espaço urbano saturado Nas periferias o adensamento é a

solução encontrada pela população pobre na cidade de São Paulo

RODRIGO GOMES

da represa – como tantas outras ainda vivem na cidade de São Paulo –, vieram de outras cidades e esta-dos, com a esperança na bagagem, em busca de melhores condições de vida e de trabalho.

Responsável por essas mudan-ças no bairro, a Operação Defesa das Águas é um conjunto de me-didas da Prefeitura de São Paulo e do Governo do Estado, iniciada em 2007, que visa proteger e recupe-rar mananciais, rios e córregos. E para que isso ocorra, se faz neces-sária a desocupação de moradias

irregulares nessas áreas.A necessidade de remoções é o

reflexo da desigualdade social da ci-dade de São Paulo, em que famílias inteiras vão morar na beira de rios e ficam a mercê da falta de saneamen-to básico e infraestrutura, vivendo sem o mínimo de dignidade. A trans-formação de ocupações em bairros é o maior exemplo de que a cidade ain-da não tem espaço para todos.

Ocupação irregular em manan-ciais é um fenômeno antigo e que surgiu com o progresso econômico e industrial da cidade de São Paulo,

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Entre 1925 e 1940Uso da represa para recreação. Abertura da estrada Washington Luis (1928) e Interlagos. Ideia de construir um balneário urbano na beira da represa

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Entre 1949 e 1962O crescimento urbano dobra e chega às áreas de mananciais

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Entre 1964 e 1976O preço dos terrenos subiu por conta dos financiamentos do BNH e a população sem condições foi para as regões leste e sul da cidade

1975 e 1976Leis de Proteção aos Mananciais (Leis Estaduais no 898/75 e 1.172/76) o poder público limita o crescimento urbano

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Ruas de terra batida, fiação exposta, esgoto a céu aberto: a realidade de quem mora nos bairros ainda por urbanizar na cidade

como aponta o Instituto Socioam-biental (ISA) no estudo Mananciais: Diagnóstico e Políticas Habitacio-nais (2009), organizado por Paula Santoro, Nicolau Ferrara e Marus-sia Whately.

Até a década de 1940, a represa Billings era muito usada pela popu-lação paulistana para recreação e práticas esportivas. Assim, projetos de abertura de estradas, loteamen-tos e melhorias na infraestrutura chegaram à região, com a intenção de atrair a elite da cidade. Nessa mesma época surgem os primeiros bairros populares da zona sul, como a Cidade Dutra, para comportar as moradias de trabalhadores da in-dústria e das empresas prestadoras de serviço.

O estudo observa que no gover-no Vargas (1930-45), a interferên-cia no mercado de aluguéis (com a Lei do Inquilinato congelando os preços a partir de 1942) obteve re-sultado controverso: desestimulou novos investimentos em moradias de aluguel e as ações de despejo contra os inquilinos tornaram-se constantes. A crise habitacional chegou ao seu limite nos anos se-guintes, pois os trabalhadores po-bres não tinham outra solução a não ser a de buscar moradia pró-pria, ainda que irregular, nas áreas

mais distantes do centro. Em seu livro “Origens da Habi-

tação Social no Brasil” (1998, edito-ra Estação Liberdade), o urbanista Nabil Bonduki analisa que o Estado incentiva a construção de moradia barata e precária pelos próprios moradores ao não impedir a ex-pansão de loteamentos clandesti-nos. Estratégia do poder público, segundo o autor, para facilitar a construção da casa própria, como um modo de viabilizar a moradia popular compatível com a baixa

remuneração dos trabalhadores. O que garante dois objetivos da elite: desadensar e segregar. Com isso, a partir de 1949, a malha urbana se aproxima das áreas de mananciais e passa a ocupá-las.

Leis para a proteção de manan-ciais, parcelamento do solo e medi-das para impedir novas construções em áreas sensíveis de preservação são criadas para controlar o crescimento desordenado em São Paulo. O Estado não podia mais fechar os olhos para as condições precárias em que seus

GRANDE PERIFERIA

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A partir de 1980Consolidação de loteamentos irregulares e precários nas represa Billings. Estruturação do movimento ambientalista, que se fortalece na década de 1990. Redução do ritmo de crescimento populacional.

Década de 1980Intensificação do crescimento urbano para o sul com a criação do distrito industrial de Santo Amaro.

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Final dos anos 1980Debates ambientalistas se intensificam com pressões sociais pela regularização fundiária.

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trabalhadores viviam, uma vez que a indiferença do poder público diante dessa população, largada às margens da cidade, de certa forma contribuiu para o crescimento urbano e para a especulação imobiliária.

Na década de 1970, o avanço da urbanização nas áreas de manan-ciais alcança um estado crítico. O crescimento de favelas explode e a situação se torna ainda pior sem coleta de lixo e saneamento bá-sico, com o esgoto sendo jogado diretamente no rio Tietê e seus

afluentes Billings e Guarapiranga. As leis de proteção aos mananciais passaram a tornar qualquer lotea-mento irregular ao ultrapassar os limites estabelecidos para cons-truções urbanas. Contudo, isso não impediu a ocupação dessas áreas, visto que a classe excluída não possuía condição de comprar casas ou terrenos, lhes restando apenas ocupar espaços “livres”, ainda que sujeitos a viver em con-dição irregular e precária.

A década de 1980 é marcada por um forte processo de organização da sociedade civil sobre os manan-ciais, que estimulou o debate pú-blico sobre a poluição da represa, difundindo amplamente a neces-sidade de ações mitigadoras, como aponta o estudo do ISA. Esse debate chega ao sistema fundiário, quando pressões sociais apontam para o Es-tado a necessidade de regularização da divisão de terras na metrópole. Nesse período, surgem movimentos e associações por moradia que ocu-pam áreas que, mais tarde, viriam a se tornar bairros, como o Residen-cial dos Lagos, localizado no Com-plexo Cantinho do Céu.

É na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992) que há o re-conhecimento da situação incon-tornável das ocupações irregula-

res nas áreas de mananciais, e um programa com recursos próprios é iniciado com a intenção de le-var infraestrutura a essas regiões, urbanizando favelas e tratando a água da represa para aumentar a capacidade de abastecimento da ci-dade. Mais tarde, o Estado se aliou ao município pelo Programa Gua-rapiranga.

Na gestão de Paulo Maluf (1993-1996), no entanto, a Lei de Anistia para imóveis irregulares, proposta em 1993, causou furor, e as áreas de mananciais passam a ser ocu-padas com mais intensidade. A ex-pulsão de moradores das regiões mais valorizadas da cidade para a construção das avenidas Faria Lima e Águas Espraiadas, e todas as obras de urbanização do entor-no, produziu uma nova população de excluídos que foram habitar, em favelas, as beiras de rios e regiões de mananciais. Na gestão de Celso Pitta (1997-2000) a questão não foi tratada de maneira muito diferen-te, pois não se conseguiu regulari-zar ocupações, já que o Estado se tornou ele próprio um empecilho para a regularização dessas ocupa-ções por conta da lei de proteção de mananciais, como aponta o estudo Mananciais: diagnóstico e políticas habitacionais.

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O Plano Emergencial, criado em 1998, atua com intervenções de in-fraestrutura em áreas já ocupadas, sem levar em conta os impactos ambientais. Além de não prover moradia regular para essas famí-lias, contribui para o adensamento de moradias e a expansão urbana nas margens das represas.

Já na gestão de Marta Suplicy (2001-2004), o programa de prote-ção aos mananciais foi continuado, e os investimentos de habitação voltados para as regiões mais pró-ximas do centro, embora a questão não tenha sido propriamente uma prioridade de seu governo.

Foi somente anos depois, duran-te a gestão Kassab (2004-2008), que o Programa Mananciais recebeu mais recursos, com a prioridade de reurbanizar favelas e não de inves-tir em moradia nas áreas centrais.

Toda a conjuntura de habitação criada nos governos anteriores fez necessária mais uma intervenção para garantir que os mananciais fossem protegidos, e ao mesmo tempo garantir moradia para as fa-mílias desses locais. Então surgiu a Operação Defesa das Águas.

Avaliando um projeto dessa pro-porção, que só no bairro Residen-cial dos Lagos removeu quinhentas e quatro famílias para a construção do parque linear, o urbanista Na-bil Bonduki afirma: “no sentido de urbanização e melhorias das con-dições ambientais nas regiões de proteção são, em tese, bem vindas, porque a água é um recurso escas-so, um recurso fundamental para a vida da cidade. A região metropoli-tana de São Paulo tem pouca água, hoje nós importamos água do sis-tema Cantareira; e, portanto, acho pertinente ter um programa que se preocupe com isso”.

Porém, o urbanista vê proble-mas na Operação Defesa das Águas: “muitas remoções foram feitas sem que se providenciasse as devidas al-

ternativas habitacionais. Famílias foram removidas e muitas foram para o Bolsa Aluguel. Não se equa-cionou o problema de habitação destas famílias”.

Esta reportagem verificou a im-plantação da Operação Defesa das Águas no Residencial dos Lagos – que compreende quase todo o pe-rímetro do parque ao longo da re-presa –, e ouviu tanto especialistas quanto moradores para constatar como as intervenções do programa foram sentidas. É possível enten-der, por exemplo, que as ações das gestões municipais e dos governos recentes são tentativas de adequar o quadro de favelas e ocupações à estrutura urbana de São Paulo, ao qual fazem parte.

Para os moradores que viram o Residencial dos Lagos se transfor-mar e ganhar ruas asfaltadas, sane-amento e iluminação, o programa cumpriu a sua proposta. Para os urbanistas, ambientalistas e líderes de movimento, a Operação, como outros projetos, é necessária, em-bora não alcance todas as pontas soltas. Um grande questionamento é a especulação imobiliária que se vê nos loteamentos de certas áreas.

Moradores que tiveram que dei-

xar o Residencial dos Lagos não têm mais condições de comprar uma casa, dada a atual valorização trazida pela presença da infraestru-tura antes inexistente. É claro que há outros problemas que são obser-vados por quem vive tranquilamen-te à beira da represa, como a falta de creches e postos de saúde pró-ximos, o que obriga o morador a se deslocar para os bairros de Cocaia e Grajaú, além disso há a presença si-lenciosa de usuários de drogas nas pracinhas do parque urbanizado, em plena luz do dia.

Para que haja significativa trans-formação, a atuação dos movimen-tos sociais como o MTST e da pró-pria líder comunitária do bairro, Vera Lucia Rodrigues, são essenciais para que o poder público não esque-ça a necessidade de dar atenção à população pobre, antes, durante e depois da implantação da infraes-trutura urbana. Pedro Augusto Cor-tez, vice-presidente da Comissão de Direito Urbanístico da Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de São Paulo (OAB-SP), observa que a atuação de lideranças nas próprias comunidades é fundamental para que as intervenções do setor público tenham maior eficácia.

GRANDE PERIFERIA

O arquiteto urbanista Nabil Bonbuki defende

que ocupação de regiões de mananciais se deu

com incentivo do Estado

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Modelo de urbanização

Ah, se toda a periferia fosse tratada assimVinte anos após apostar em uma região sem infraestrutura e distante da região central da cidade, os moradores do Residencial dos Lagos relatam com orgulho as mudanças no bairro POR RODRIGO GOMES E THAMARA GOMES

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“Antigamente, a gente tinha que colocar uma havaiana ou amarrar sacola plástica nos pés. E levava um sapato na bolsa. Tinha o barzi-nho do seu Alfredo, a gente chegava lá e guardava o chinelo no bar. Quando voltava pegava o chinelo. Hoje você vê uma mulher saindo de casa de salto.”

Após urbanização, moradores deram acabamento nas casas e passaram

a investir nas fachadas, que hoje lembram bairro de classe média

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Modelo de urbanizaçãoA líder comunitária Vera Lúcia afirma que o parque é resultado de anos de luta pela urbanização do bairro

A situação, rela-tada pela líder comunitária Vera Lúcia Rodrigues, de 63 anos, pode

não parecer algo importante, mas para os moradores do Residencial dos Lagos sintetiza a transforma-ção ocorrida no bairro nos últimos cinco anos.

Encontrar o Residencial dos La-gos não é uma tarefa simples. Uma rua estreita sai do encontro das ruas Pedro Escobar e Rubens de Oliveira, a caminho das águas da Billings. A linha de transmissão de energia que corta a região separa ainda mais o Residencial dos Lagos dos demais bairros. E estabelece uma área vazia que faz muitos vi-sitantes se perguntarem se estão no caminho certo.

O bairro está localizado às mar-gens da represa Billings, no distri-to do Grajaú, extremo sul da ca-pital paulista. Foi criado há cerca de 25 anos, quando a extinta imo-

biliária Cipramar loteou a área de antigas chácaras e a vendeu para uma população majoritariamente nordestina em busca do sonho da casa própria, e que fugia do terror do aluguel, que é, desde então, um dos maiores motivadores da cria-ção de favelas, ocupações irregu-lares e do loteamento de áreas de mananciais em São Paulo, como explica o urbanista Nabil Bonduki,

em seu livro Origens da Habitação Social no Brasil.

O pintor Francisco Alves Bezer-ra, de 63 anos, 25 deles vivendo no Residencial dos Lagos, destaca a importância que a casa própria ad-quiriu ao longo do tempo e relem-bra o caminho comum utilizado por aqueles que chegaram ao Gra-jaú nos anos 1980. “Um rapaz que trabalhava comigo me avisou que estavam loteando e a gente veio. Na época foi barato. Era bem longe do trabalho, mas pelo menos tinha como construir uma casa nossa, deixar algo para os filhos. Em São Paulo sempre foi muito duro pagar aluguel”, afirma.

Bezerra lembra que no começo era uma aventura viver no local, que se resumia aos lotes demarca-dos pela imobiliária. “Eu cheguei em 1988. Era só mato e os caminhos das pisadas. A gente pescava e pe-gava preá no mato. Mas não tinha água, nem luz em casa ou nas ruas, então de noite era bem difícil”, ex-plica. As pisadas acabaram se trans-formando em ruas de verdade.

Além disso, a chuva se tornara quase uma penitência aos mora-

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dores daquele bairro recém-criado, como conta Bezerra. “Quando cho-via a gente só saia de casa porque era obrigado”. A frase é comple-mentada pela aposentada Maria de Lourdes Oliveira Mendonça, de 73 anos, 23 deles no bairro. “Ficava uma lama de dar dó. Não tinha nem calçada, era tudo na terra”, conta.

Sorridente, Maria de Lourdes conta que não havia descanso para quem queria construir uma casa. Boa parte do tempo que seria de-dicado ao lazer foi usado no cabo da enxada. “Não me arrependo de tudo que precisamos passar. Fo-ram dois anos construindo. Mui-tos e muitos outros para acabar a obra. Meus filhos trabalhavam direto e no fim da semana a gente trabalhava junto na obra”.

Vera Lúcia explica que apesar de certa facilidade na compra da ter-ra, a construção das casas foi uma luta constante, por muitos anos. “A gente construía as nossas casas com muita dificuldade. Nós carre-gávamos a água da represa, porque não tinha água [encanada] e os po-ços daqui eram muito profundos. Eles não davam água o suficiente. Os fins de semana eram voltados a esse trabalho”, conta.

Ela começou a participar da As-sociação de Moradores do Residen-cial dos Lagos, em 1992. Naquela época era difícil conseguir qual-quer melhoria no bairro, por conta da legislação de proteção aos ma-nanciais. “A lei era muito dura. Se passasse um trator na rua e jogas-se cascalho pagava multa. Só que a gente comprou e pagou. Temos os documentos e queríamos melhorar o bairro”, recorda.

Embora seja considerada prati-camente nula pelos especialistas, a Lei 898, de 1975, estabeleceu pa-

drões rigorosos para a construção nas áreas de mananciais, e tornava muito complicado o processo legal de instalação de moradores nessas regiões. No entanto, em locais de ocupação irregular, como os vizi-nhos do Residencial dos Lagos, Jar-dim Gaivotas e Cantinho do Céu, a legislação não conseguiu evitar uma consolidação precária e altos índices de degradação ambiental.

Para Vera Lúcia, a coisa só me-lhorou quando o vereador Fernan-do Estima (DEM) começou a apoiar os moradores. “Ele nos ajudou mui-to aqui. Conseguiu fazer o poder público entender nossas necessida-des. Mas mesmo ele pagou multas por atuar aqui”, destaca. Estima não foi reeleito no último pleito.

As melhorias que não depen-diam dos moradores se tornaram processo mais complexos, como conta a líder comunitária. “A luz foi um pouquinho difícil, porque a Eletropaulo não passava os cabos por baixo das torres. Então a imo-biliária teve que comprar um pe-daço de terra no lado do Cantinho do Céu [bairro na outra margem da represa] para colocar um poste, e puxar a nossa luz pela Billings”,

relata. Isso foi em 1990. Mas essa eletricidade era somente para as casas. Só em 1992 foram instalados os postes de rua.

“Depois nós lutamos pela água”, lembra Vera Lúcia. As casas manti-nham tanto poços artesianos, como fossas. O que por si só constitui um grave problema de saúde pública.

Em 1991, os moradores começa-ram a contatar a Companhia de Sa-neamento Básico de São Paulo (Sa-besp) pedindo a instalação de redes de água. “O pessoal da Sabesp veio e colocou aquelas caixas enormes que o caminhão abastecia. Tinha três caixas em locais diferentes: Uma em frente a minha casa, uma na rua Falcão e outra ali na rua An-dorinhas”, descreve Vera Lúcia.

O problema é que as caixas não sanavam toda a necessidade dos cerca de 13 mil moradores à época, e com o tempo se tornaram o epi-centro dos conflitos entre vizinhos. “Era muita gente carregando água pra encher a sua própria caixa, para encher o seu tambor. Porque aquela água era para comer, cozinhar, lavar, passar, para tomar banho; enfim, para tudo”, continua Vera Lúcia.

O desfecho trágico veio em

Campo de futebol é movimentado dia e noite, mas carece de manutenção

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1994, quando um desentendimen-to por conta da água resultou na morte de um morador. “Só aí a Sa-besp entendeu a nossa necessida-de e começou a instalar a rede de água”, aponta a moradora.

Depois disso, até o ano de 2007, a vida dos moradores do Residen-cial não mudou muito. O bairro passou por um processo de conso-lidação, permanecendo na condição de região carente, sem asfalto, sem esgoto, sem escola, sem unidade de saúde, com os pequenos avanços se dando através da auto-organização.

A população começou a cons-truir seus próprios serviços: Uma padaria, uma casa do norte, um cuida-se de crianças, materiais de construção, farmácia. “Só botecos nunca faltaram”, contou Maria de Lourdes. “Virou um bairro mesmo. Cheio de problemas, mas dava para morar”, complementa.

Os moradores lembram que se falava muito de transformações

no bairro, mas com o passar dos anos os moradores não acredi-tavam que algo fosse acontecer, como relata Ivani Rosa Oliveira, comerciante, moradora do bair-ro há 20 anos. “Ninguém botava fé que iria acontecer o que está acontecendo. A gente até começou a cimentar a rua, em parceria com os vizinhos, para livrar um pouco dos buracos”, explica. A mudança veio. E foi bem diferente do que ocorreu em outros locais.

Novos ventos A Operação Defesa das Águas foi criada em 2007, na primeira gestão do prefeito Gil-berto Kassab (2006-2008), do DEM, hoje PSD. A ação compreende uma parceria entre secretarias estadu-ais de meio ambiente (segurança, habitação, saneamento e energia) e secretarias municipais de governo ( meio ambiente, segurança urbana e habitação), além de subprefeituras e do próprio Governo.

De acordo com a prefeitura, o objetivo é proteger, controlar e preservar áreas de mananciais. A operação compreende, por exem-plo, a instalação de redes de esgoto, estações elevatórias, pavimentação de vias e remoção de moradias de áreas de risco e em locais que se destinarão à construção de parques lineares, na borda das represas Guarapiranga, Billings e córregos da região.

No entanto, em bairros próximos do Residencial dos Lagos, como Can-tinho do Céu e Jardim Gaivotas, a operação consistiu basicamente na remoção de moradias, muitas vezes com processos truculentos de ação policial, com poucas intervenções efetivas de preservação ambiental. No Gaivotas, os escombros de boa parte das casas removidas continua nos locais onde elas estavam. No Cantinho do Céu, a maior parte das ruas ainda é de terra e o esgoto con-tinua sendo despejado na represa.

Já o Residencial parece ter sido eleito para servir de modelo de bairro urbanizado. Todas as ruas estão pavimentadas e a rede de es-goto chega a todas as casas. Exceto por um trecho com cerca de 300 metros, o parque linear foi imple-mentado, contando com quadras poliesportivas, campo de grama-do sintético, pista de skate, brin-quedos infantis, equipamentos de ginástica para terceira idade, pier para atracar barcos (que as crian-ças e adolescentes usam como local para mergulhos), muitas árvores e pontos para piquenique.

Para instalar o parque e as esta-ções elevatórias de esgoto, a prefei-tura precisou remover 504 famílias. Mas esse processo foi tranquilo no bairro, como conta Vera Lúcia. “Toda a área aqui era ocupada. Para fazer

Parque linear tem campo de futebol, quadras, pista de skate, áreas

infantil e para terceira idade e pier

Modelo de urbanização

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Antônio Martim O Comerciante afirma que

ampliou o bar e viu melhorar o movimento após a urbanização

tinha que tirar o pessoal. Tem várias pessoas que ainda estão no Resi-dencial. Eles saíram, mas a maioria comprou de novo aqui mesmo. As casas foram avaliadas e eles foram indenizados”, explica. Ela destaca que não houve truculência e quem teve de sair também não se opôs.

É o caso da comerciante Ma-ria José da Silva que, aos 75 anos, um terço deles no bairro, mantém uma lojinha de doces na terceira casa em que vive no Residencial. Ela vive na casa com os três filhos e dois netos. “Eu morava bem na beira da represa. A prefeitura veio, me retirou e eu comprei outra lá na rua das Gaivotas, onde montei o primeiro bar. Morei um ano e três meses. Aí o Marcelo [coordenador de assistência social da Prefeitura] chegou de novo e falou ‘eu preciso tirar a senhora de novo’ e eu disse ‘tem problema não’. Tem que sair, saímos”, resume.

Quem também teve de sair foi o pintor Francisco Alves Bezerra, ci-tado no início da reportagem. “Eu morava na última casa da rua. Às vezes a represa enchia muito e ba-tia em casa. Não tive problema em sair. Pagaram certinho e eu com-prei outra casa na mesma rua, mas mais para cima”, contou.

Pintor e gesseiro, Anicélio da Sil-va, de 38 anos, desde os 16 no bair-ro, afirma que quem vivia próximo da represa tinha consciência que teria de sair em algum momento. “Tinha um colega meu que pescava da janela de casa. Ele tinha cons-ciência de que, a qualquer hora, ia acabar a mordomia de abrir a ja-nela e pescar na represa”, afirmou. Para ele, os removidos saíram bem assistidos pela prefeitura.

Não há uma média das indeni-zações recebidas pelos moradores

removidos. Como em outros casos, elas variavam muito, de acordo com o tamanho da casa, as benfeitorias e o tempo de residência. De uma for-ma geral, segundo Vera Lúcia, todos conseguiram comprar uma nova casa, em alguns casos até melhores do que mantinham no Residencial dos Lagos.

Porém, há os que não ficaram totalmente satisfeitos com o proces-so. O segurança Leonardo Moreira, de 36 anos, não conseguiu comprar uma nova casa no bairro, ao ser re-movido de uma área muito próxima da represa. “Eu fui dos últimos a sair e quando recebi a indenização não era mais possível comprar uma casa aqui com o valor dela”, contes-ta. Moreira denuncia uma situação de especulação imobiliária no local, exatamente como alguns especialis-tas ouvidos pela reportagem disse-ram que aconteceria.

“Quando casei, comprei meu ter-reno por R$ 4,5 mil. Construí minha casa com muito trabalho e depois

recebi R$25 mil de indenização. Só que aí as casas já estavam custando por volta de R$70 mil”, conta. Morei-ra foi viver com a esposa e o casal de filhos no Jardim Gaivotas, em um lo-cal com urbanização ainda precária, aproximadamente três quilômetros mais distante do centro da cidade do que já vivia.

Especialistas apontam que a falta de uma política clara de habi-tação, a ser aplicada em processos que demandam remoção, acaba por incitar processos de especulação imobiliária e expulsão de morado-res, conforme explicam na reporta-gem a seguir.

Mesmo assim, o segurança apro-va a ação no bairro. “O bairro está maravilhoso. Sempre que posso eu vou lá, porque o parque é muito legal e eu adoro a represa. Só fico triste de não ter conseguido perma-necer”, relata.

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Maria de Fátima Teve que sair da casa em que vivia por duas vezes e mesmo assim se diz muito feliz com o bairro

Modelo de urbanização

Satisfeitos, mas querendo mais A expressão de satisfação com a mudança do bairro está presente em todos os entrevistados. No en-tanto, os moradores gostariam de ter outras demandas atendidas, como a construção de uma UBS (Unidade Básica de Saúde), creche e escola, e que uma linha de ônibus atenda o bairro.

Sobre o último, Vera Lúcia dis-corda. “Sou contra a linha de ôni-bus, porque as ruas são estreitas, vai ficar um inferno isso aqui”, ponderou. Segundo ela, a SPTrans, que gerencia o sistema de transpor-tes na capital, esteve no bairro dias antes da nossa reportagem para avaliar a possibilidade de instalar uma linha de ônibus.

Já as demais necessidades ain-da não foram atendidas por falta de espaço. “Teria de remover mais gente do bairro, porque embaixo das torres é que não será constru-ído”, avalia Vera Lúcia.

Outro problema é o sistema de elevação do esgoto, que muitas vezes deixa de funcionar e acaba despejan-do os detritos na represa. O problema é recorrente, como conta o funcioná-rio público Luís Pedrosa, de 42 anos, que chegou ao bairro no ano de 1988. “Toda hora esse esgoto rompe. A Sa-besp vem, conserta, passam uns dias e estraga de novo. Acontece desde que foi instalado”, comenta.

Tanto é assim, que, no dia em que a reportagem esteve no local, as duas estações estavam desligadas e o esgoto escorria em torrentes dire-tamente para a Billings.

Este também é um problema des-tacado pelos especialistas ouvidos pela reportagem, que consideram as ações de preservação ambiental irrisórias e frágeis, dentro do que a operação pretende realizar.

Mesmo assim, os moradores são unânimes em aprovar o que foi feito. “Melhorou 100%”; “está uma maravilha” e “ficou bom de-mais” foram as frases mais ouvi-das quando os entrevistados foram convidados a avaliar a diferença de hoje e de ontem.

Antônio Martim, de 72 anos, vive no bairro há sete anos e lá mantém um bar muito tranquilo e arru-madinho, quase no fim da rua das Garças Prateadas. Vindo da Paraí-ba, morou de aluguel no Jabaquara, mas afirma que era uma vida no li-mite. “Quase não dava para comer. Quando conheci aqui fiz um grande esforço para conseguir comprar, mas valeu a pena”, explica. No Re-sidencial dos Lagos, Martim mora com a esposa, uma filha, o genro e dois netos. Outros filhos já arranja-ram a vida e se mudaram.

Martim comprou o terreno em 1998, mas só foi morar ali em 2007, quando conseguiu erguer um cômodo que abrigasse a fa-mília. Quando ele chegou, o bair-ro estava às vésperas de iniciar o processo de urbanização. Segundo ele, até o movimento melhorou depois disso. “Meu filho, eu tiro o sustento desse bar. Antes, quando chovia, passava muitos dias até as pessoas toparem descer aqui. Ago-ra, esteja o tempo como for, o povo vem aqui”, conta.

Para o torneiro mecânico Lucia-

no Maciel, de 38 anos, 14 deles vi-vendo no Residencial, a urbanização alterou até a relação dos moradores com o bairro. “Antigamente, todas as ruas tinham entulho. Todo mun-do pegava entulho de casa e jogava na represa. Depois que fizeram isso [urbanização], o pessoal pensa duas vezes antes de jogar qualquer coisa na represa ou pelas ruas”, explica. A situação demonstra que, ao ver revitalizado o bairro, os morado-res passaram a cuidar melhor dele. Também se nota que são poucas as casas sem acabamento ou pintura na fachada.

Acompanhando o raciocínio de Maciel, o comerciante Martim sin-tetiza o sentimento geral de quem viu o bairro se transformar. “Nós temos orgulho daqui, todos nós. Eu não troco esse lugar por nenhum do mundo. Tá faltando mais coisa, mas vamos ver como vai ficar. Com o tempo, pode ser que melhore mais coisas ainda”, acredita. O modelo do Residencial dos Lagos demons-tra que é possível fazer um proces-so de urbanização respeitando a po-pulação e sem destruir a dinâmica social dos bairros. Só é preciso que esse tipo de ação deixe de ser mode-lo e passe a ser padrão.

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Sobrou truculência, faltou resultadoEspecialistas questionam a eficácia da Operação Defesa das Águas em garantir um meio ambiente ecologicamente equilibradoPOR JESSICA SANTOS E JOSÉ FRANCISCO NETO

Na tentativa de enten-der por que a Opera-ção Defesa das Águas causou um efeito tão contraditório entre os moradores do Re-

sidencial do Lagos e pessoas prove-nientes de outras áreas que rece-beram o projeto, esta reportagem investigou as ações pré-urbanização e descobriu que o bairro não sofreu

Proteção dos mananciais

Vazamentos de esgoto são comuns desde a construção do parque linear no bairro Residencial dos Lagos

intervenção policial no processo de remoção das famílias, o que na prá-tica estreitou a relação entre a popu-lação e as autoridades, fazendo com que a intervenção transcorresse de maneira pacífica.

“As áreas em que esses parques [lineares] avançam, geralmente é desocupada de uma maneira bas-tante violenta. As famílias são in-timadas a deixar seus lares em um

curto espaço de tempo”, revela Gus-tavo Moura, líder na Rede Extremo Sul – movimento popular criado na Zona Sul de São Paulo com a pro-posta de promover a organização in-dependente da região periférica – e que acompanhou de perto as ações de despejo no Cantinho do Céu.

Ainda segundo Moura, o maior resquício da forma truculenta com que as pessoas foram expulsas de

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Campo de futebol inaugurado em 2010 nunca recebeu manutenção e os meninos tiveram de amarrar a trave para ela não cair

Coordenador do MTST, Guilherme Boulos considera necessária a intervenção nas periferias, mas defende que elas sejam tratadas com os moradores

RODRIGO GOMES MARCELO CAMARGO/ ABR

Proteção dos mananciais

suas casas está a apenas 100 metros da Cooperativa de Serviços Gráficos que ele e outros militantes mantêm no bairro. “O que restou foi um ce-nário de guerra”, desabafa. Outro ponto que configura a ineficácia do projeto no que diz respeito às ques-tões sociais foi a carência de alterna-tivas à moradia, na qual as famílias foram impostas, principal respon-sável pela explosão de novas ocupa-ções no distrito do Grajaú.

Isso porque o Bolsa Aluguel, au-xílio no valor de R$400,00, forneci-do às famílias removidas das áreas de mananciais, é insuficiente para manter a taxa mensal da locação de uma casa, expondo a população a condições ainda mais precárias do que ela já vivia. “Nos últimos anos, a onda de remoções elevou a deman-da por aluguel. Além disso, o valor da bolsa se tornou o piso do aluguel da região, ou seja, o custo de vida está ficando proibitivo por aqui e as pessoas estão sendo obrigadas a se deslocar para áreas ainda mais dis-tantes, como Parelheiros, Marsilac e Colônia”, ressalta Moura.

Diante desse cenário, não é difí-cil perceber que a falta de planeja-mento habitacional é a haste mais frágil da Operação Defesa das Águas, mas que, na visão dos especialistas, seria facilmente resolvida se hou-vesse um envolvimento dos mora-dores no planejamento e na tomada de decisões do projeto, conforme prevê o Relatório Especial da ONU para moradia adequada. “O Plano Diretor definiu algumas áreas, as ZEIS 4 [Zonas Especiais de Interesse Social], que deveriam servir exata-mente como as das regiões de ma-nanciais, para atender com políticas habitacionais as famílias que estão em situações mais críticas”, destaca Nabil Bonduki.

Muito embora tenham dúvidas de que grandes empreendimentos possam se estabelecer no extremo sul de São Paulo, tanto pela distância do centro da cidade e dos principais agrupamentos empresariais quanto pela legislação de mananciais, Bon-duki e o coordenador nacional do MTST (Movimento dos Trabalhado-res Sem Teto), Guilherme Boulos,

concordam que a região é alvo de uma valorização no setor de imóveis e, consequentemente, de uma futu-ra substituição da população.

Boulos lembra que a urbanização de São Paulo acompanhou a especu-lação desde seus primórdios e que a maioria dos terrenos não foi inva-dida, mas sim comprada da mão de grileiros que, na época das vendas, atuavam como vereadores. “O Esta-do foi conivente com os loteamen-tos”, assegura.

O problema da operação, no en-tanto, não se limita apenas à questão da moradia. “O pouco que foi feito não conta com manutenção regular e as áreas desapropriadas no entor-no da represa, que deveriam receber os parques lineares, tornaram-se de-pósito de lixo durante o dia e o pon-to de tráfico e uso de drogas durante a noite, o que caracteriza uma situ-ação precária de saúde e segurança pública”, relata Moura.

Frustração. Eis a palavra que ex-pressa de modo mais preciso o sen-timento de César Pegoraro em rela-ção à Operação Defesa das Águas. Na

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Segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), o déficit habitacional na cidade de São Paulo é de 230 mil moradias.

O Dr. Pedro Cortez, da Comis-são de Direito urbanístico da OAB--SP, explica que a Operação Defesa Das Águas esbarra em três prin-cípios de ordem constitucional: o direito a todos os cidadãos de ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à moradia, e o direito à propriedade. Ainda de acordo com o advogado, que defen-de que este tipo de projeto carece de uma conversar entre todas as secretarias (social, ambiental, edu-cacional, da saúde e da segurança), as remoções originárias da opera-ção foram legais e legítimas.

“Se pegar a Constituição, em nenhum lugar você vai encontrar a preponderância de que a mora-dia está acima do meio ambiente ou que o meio ambiente está aci-ma da propriedade particular”, observa Cortez.

Sobre a justificativa de proteção ao meio ambiente do programa, Gustavo afirma ser um argumen-to frágil criado para encobrir um

processo de despejo que tem como interesse livrar os terrenos da clas-se mais pobre para inseri-los no mercado imobiliário. “Em vésperas de eleições, sempre são feitas novas rodagens de visitação para projetos de urbanização, etc. E as empresas que ganham são justamente as fi-nanciadoras de campanha. Então, você tem uma série de interesses econômicos por trás desta questão, que passam por cima da necessida-de social”, denuncia.

“E é de fato contraditório [o argumento ambiental] quando vemos a conclusão de obras como a do Rodoanel Sul, que atravessa uma área inteira de manancial sem o mínimo de respeito com a natu-reza”, enfatiza a jornalista e ecolo-gista Ângela Rodrigues, fundadora da ONG Fiscais da Natureza - enti-dade que protege as áreas verdes remanescentes da região Sul - que cita ainda o fato de que os maiores índices de poluição dos reservató-rios da capital paulista são causa-dos por metais pesados, despejados pelas indústrias de São Paulo e São Bernardo do Campo. “E nada é fei-to para mudar isso”, lamenta.

Argumento ambiental é frágilépoca em que se começou a pensar na intervenção pública, o biólogo trabalhava no Instituto Sócio Am-biental (ISA) e foi um dos responsá-veis pela elaboração de um diagnós-tico para o programa Mananciais, da Prefeitura de São Paulo. “Se há um programa habitacional, casado com desapropriações e um processo edu-cativo, que conta com a despoluição dos mananciais e a recomposição florística da região, aí você fala: ‘Le-gal! Vamos ver aonde vai dar’”, re-lembra Pegoraro. Porém, segundo ele, o processo se deu de maneira so-cialmente desastrada e foi ineficaz do ponto de vista ambiental. E não é difícil entender o porquê.

No Jardim Gaivotas, ainda é pos-sível encontrar entulho de casas que foram demolidas na beira da repre-sa. Em outros pontos, há resquícios de uma tentativa de ocupação re-cente. No Cantinho do Céu, o único sinal de que houve uma intervenção é o desgaste na relação entre o po-der público e os moradores. O esgoto continua correndo a céu aberto pelo meio da comunidade e desaguando na Billings.

Nos locais onde ocorreram as re-moções, novas casas já estão de pé. “Você via pessoas que moravam na beira da represa por não ter outra possibilidade. Não é que elas foram morar ali por capricho, mas por uma impossibilidade total da sociedade. Essas pessoas que em geral não ti-nham empregos, eram fichadas por um crime do qual foram mais víti-mas do que algozes”, desabafa Pe-goraro, que acompanhou de perto a operação em ambos os bairros.

Os moradores eram indiciados por crime ambiental e condenados a pagar até 50 cestas básicas – apro-ximadamente R$ 16 mil em valores atuais – para o Estado. Como a maio-ria das pessoas não tinha condições

financeiras para isso, a pena era convertida em prestação de servi-ços à comunidade. “O cara tinha que sair lá do Grajaú, pegar oito condu-ções pra chegar ao São Luís pra pres-tar as horas de serviço comunitário dele. Em que isso vai melhorar a questão da água?”, questiona o bió-logo, “não estão tirando uma gota de esgoto daqui, não estão recompondo a área, não estão dando consciência pra essas pessoas”, completa.

Mesmo no Residencial dos Lagos, bairro que parece ter sido escolhido

para ser modelo de intervenção, a maior queixa dos moradores é a fre-quência com que o sistema de esgoto entope e, consequentemente, acaba despejado na Billings. “O maior pro-blema nosso é o esgoto que sempre estoura. A Sabesp vem, conserta e logo em seguida quebra de novo”, reclama a aposentada Maria de Lourdes Mendonça.

O pintor Francisco Alves Bezerra lamenta não poder mais utilizar a represa para lazer. “A gente sempre pescou aqui. Mas ultimamente está

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O militante da Rede Extremo Sul Gustavo Moura acredita que as ações visam valorização imobiliária e podem agravar problemas habitacionais

Pescadores tradicionais da bairro afirmam que poluição tem afastado os peixes que sempre foram comuns na represa

RODRIGO GOMESDANILO RAMOS

Proteção dos mananciais

difícil porque tem muita sujeira na água”, conta. No dia em que nossa reportagem visitou o bairro, a ciclo-via do Parque Linear estava tomada por um líquido fétido de coloração escura. Os PVs, como são conhecidos os poços de visita destinados à ma-nutenção e inspeção da Sabesp, mais pareciam pontos de vazamento lan-çando detritos na Billings.

Na Grande São Paulo, atualmen-te, mais de 1,6 milhão de pessoas moram em áreas de mananciais. Entre os anos de 1991 e 2000, a re-gião que teve o maior crescimento populacional foi exatamente o en-torno das represas Billings e Gua-rapiranga. A especulação imobiliá-ria, segundo Pegoraro, foi a maior responsável pela expulsão de um grande número de famílias para as periferias da cidade.

“Quando começou a ocupação da [avenida] Água Espraiadas, por exemplo, foi feito um levantamento mostrando que as famílias estavam sendo conduzidas pro Grajaú e para Parelheiros.

Ou seja, por uma questão imo-biliária, de especulação e de ganhos particulares, você expõe a cidade in-teira a uma fragilidade que é não ter mais água em condição de potabili-dade”, arremata.

A Billings, maior reservatório de água da cidade, teria capacidade de abastecer 4,5 milhões de pessoas, caso fosse preservada. Entretanto, nos últimos 80 anos, devido à ocu-pação irregular, ao assoreamento e à construção de estradas, a represa perdeu 40% de sua capacidade origi-nal e hoje seu fornecimento de água está limitado 1,6 milhão de pessoas.

A arquiteta urbanista Paula San-toro coordenou os trabalhos para desenvolver o relatório Mananciais: diagnóstico e políticas públicas do ISA. Ela lembra que o principal fator de poluição da Billings é o esgoto não tratado de uma cidade inteira, e não apenas da população que ocupa as margens da represa. “A gente foi po-luindo as nossas águas e, diferente-mente do que as pessoas acreditam, que a represa está assim porque foi ocupada sem saneamento ao redor, um dos maiores fatores de poluição da Billings é o bombeamento do Rio Pinheiros, já que quando chove for-te a água do rio é bombeada pra não alagar São Paulo. Portanto, mais da metade da poluição da represa vem do Pinheiros”, elucida.

A temática da proteção dos ma-nanciais versus direito a moradia começou a ser encarada de fato pelo poder público a partir da gestão

Erundina. Desde então, o assunto está constantemente em pauta, mas os projetos são ou não tocados de acordo com quem está no comando da prefeitura.

A Operação Defesa das Águas, por exemplo, foi interrompida pela administração de Fernando Ha-ddad. “O modelo de gestão ambien-tal para as áreas de mananciais não existe, o que existe é obra entregue e você não vê uma continuidade. Isso é um problema político, pois a ges-tão atual considera o projeto como marca da gestão passada. Então, es-ses projetos vão e voltam de acordo com o partido que está no poder”, argumenta Ângela Rodrigues Alves, citada anteriormente.

Apesar de frustrado, Pegoraro mantém a esperança de que, num futuro não muito distante, a relação entre o Homem e o meio ambiente possa ser um pouco mais amistosa. “Se você ignora as leis naturais que estão ao seu redor, a natureza vai te cobrar um preço. Se você conhece as leis e as transgride, ela vai te cobrar dobrado. Quer dizer, nós vamos ser cobrados, nós estamos sendo cobra-dos pelo nosso viver aqui. Então eu acredito que a gente possa ter algo melhor do que temos. Porque isso aqui é insustentável”, conclui.