Baixar Revista Dia-Logos 2013

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Dia-Logos REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Nº 7 | NOVEMBRO DE 2013

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Dia-Logos REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Nº 7 | NOVEMBRO DE 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Reitor

Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-Reitora

Paulo Roberto Volpato Dias

Sub-Reitoria de Graduação

Lená Medeiros de Menezes

Sub-Reitoria de Graduação e Pesquisa Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron

Sub-Reitoria de Extensão e Cultura

Regina Lúcia Monteiro Henriques

Diretor do Centro de Ciências Sociais

Léo da Rocha Ferreira

Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

José Augusto de Souza Rodrigues

Coordenadora Geral do Programa de Pós-Graduação em História Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/ REDE SIRIUS/ CCS/ A ______________________________________________________________

D536 Dia-Logos - RJ. - vol.1 nº7 (2013) - .- Rio de Janeiro:

UERJ, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2013 –

v.

Anual

Dia-Logos - Revista dos alunos de Pós-Graduação em

História da UERJ, nº7, 2013.

ISSN 1414-9109

1. História - Periódicos. I. Universidade do Estado do

Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

CDU: 981 (05)

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Dia-Logos REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Nº 7 | NOVEMBRO DE 2013

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

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Conselho Consultivo (UERJ) Edgar Leite Ferreira Neto; Edna Maria dos Santos; Eliane Garcindo de Sá; Lená Medeiros de Menezes; Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves; Lúcia Maria Paschoal Guimarães; Maria do Carmo Parente; Maria Emília da Costa Prado; Maria Regina Cândido; Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos; Marilene Rosa Nogueira da Silva; Oswaldo Munteal Filho; Paulo Roberto Gomes Seda; Ricardo Antônio Souza Mendes; Tânia Maria T. Bessone da Cruz Ferreira. Conselho Consultivo (professores convidados) Alex Gonçalves Varella (UERJ); Álvaro de Oliveira Senra (CEFET/RJ); Álvaro Vicente G. Truppel P. do Cabo (UFRJ/UCAM); Andrea Barboza Marzano (UNIRIO); Andrea Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ); Beatriz Vieira (UERJ); Bernardo Borges Buarque de Hollanda (CPDOC/FGV); Bruno Leal (UFRJ); Carlos Gabriel Guimarães (UFF); Célia Cristina Tavares (UERJ/FFP); Daniel Aarão Reis Filho (UFF); Felipe Charbel (UFRJ); Felipe Magalhães (UFRRJ); Gelsom Rozentino (UERJ/FFP); Guilherme Pereira das Neves (UFF); Hilton Meliande de Oliveira (UERJ); Humberto Fernandes Machado (UFF); Icléia Thiesen (UNIRIO); Júlio Cesar Mendonça Gralha (UFF/PUCG); Kátia Krause (UFF); Laura Moutinho Nery (UERJ); Luciana Gandelman (UFRRJ); Luiz Reznik (UERJ/FFP); Marcelo de Souza Magalhães (UNIRIO); Márcia Regina Romeiro Chuva (UNIRIO); Maria da Conceição Pires (UNIRIO); Maria Letícia Corrêa (UERJ/FFP); Maria Regina Celestino de Almeida (UFF); Maria Teresa Villela Bandeira de Mello (UERJ/FFP); Mariana de Aguiar Ferreira Muaze (UNIRIO); Maurício Drumond (UFRJ); Mirian Cabral Coser (UNIRIO); Miriam Lourdes L. Luna (UERJ); Monica Almeida Kornis (CPDOC/FGV); Monique Gonçalves (UERJ); Norma Cortes (UFRJ); Patrícia Wolley Cardoso Lins Alves (FIS/UVA); Paulo Cruz Terra (UFF); Rafael Alex Rocha (UFF); Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ); Rui Aniceto (UERJ/FFP); Sérgio Chahon (FIS/UGF); Surama Conde Sá Pinto (UFRRJ); Vantuil Pereira (UFRJ). Conselho Editorial Beatriz Piva Momesso, Carlos Eduardo da Costa Campos, Sheila Conceição Silva Lima. Designer Gráfico Junio Cesar Rodrigues Lima | e-mail: [email protected] Desenho de Capa Gabriel Costa Labanca Correspondência Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F - 9º andar - sala 9037 Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20550-013 Tel./Fax.: (21) 2334-0678 - e-mail: [email protected]

Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a posição da editoria ou da instituição responsável por esta publicação.

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ÍNDICE

9 Apresentação

11 Editorial

15 O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur

Napoleão e Machado de Assis

Alexandre Raicevich de Medeiros

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

27 Mort, tu l’es déjà: a figura da morte e o espaço da

literatura em Maurice Blanchot

Aline Magalhães Pinto

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

42 Escola Nova e a literatura infantil na formação de

professores: o caso do Instituto de Educação

do Distrito Federal (1935-1937)

Aline Santos Costa

Universidade Federal do Rio de Janeiro

54 “O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco

na vida política

Amanda Muzzi Gomes

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

70 Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias

de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na

década de 1960

Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

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85 Aspectos indumentários e imaginário social no Rio

de Janeiro do início dos oitocentos

Camila Borges da Silva

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

100 Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o teatro

do oprimido

Desirree dos Reis Santos

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

116 Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto

Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os

aldeamentos da província de São Paulo

Gabriela Piai de Assis

Universidade Estadual de Campinas

130 As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e

civilidade na Inglaterra setecentista

Laila Luna Liano de León

Universidade Federal Fluminense

143 Lideranças indígenas e liberalidades régias:

expansão e limites da justiça distributiva no Império

Português - o caso emblemático de Araribóia

Marcello Felipe Duarte

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

158 A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do

Ventre Livre na província do Rio de Janeiro

(1871-1888)

Maristela Santana

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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172 Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano

nas canções de Chico Buarque

Priscila Gomes Correa

Universidade de São Paulo

183 O Carnaval de Ouro Preto: mercado e tradição

(1980-2011)

Sarah Teixeira Soutto Mayor

Universidade Federal de Minas Gerais

197 O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a

construção da memória de Eusébio de Queirós

Welinton Serafim da Silva

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

212 A Criação da Ancine e as instituições de cinema no

Brasil a partir das legislações que as criaram

William Geraldo Cavalari Barbosa

Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande

225 Resumos | Abstracts

240 Normas Editoriais

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Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 9

APRESENTAÇÃO

Os discentes do PPGH/ UERJ têm realizado um trabalho de grande valia

para divulgar os estudos desenvolvidos por eles e também por diversos

colegas de pesquisas. São conhecidas as dificuldades com as quais se

defrontam para publicar ao longo do processo de realização de seus

mestrados e doutorados. Produzir uma revista acadêmica também não é

uma tarefa fácil ao se considerar o nível de exigências para que ela atinja

um bom nível de excelência, concorrendo com publicações de cursos de

Pós-graduação no Brasil. No caso da revista Dia-logos esta tarefa de

selecionar textos, obter pareceres e sistematizar mais um número,

representa muito mais.

O destaque a ser enunciado é o consistente planejamento dos

alunos do curso de Pós-Graduação em História do IFCH/UERJ, o

cuidado editorial e acadêmico que procuram superar a cada número. A

captação de textos torna-se cada vez mais complexo, uma vez que o

periódico é organizado a partir de trabalhos mais relevantes

apresentados anualmente na Semana de História Política, promovida

pelos discentes e que tem tido um relevante êxito. Portanto, o número de

textos só se amplia, a se considerar a presença de pesquisadores de

vários estados brasileiros, e o número ascendente de inscrições de

propostas que acontecem anualmente.

A seleção de textos e a atenção com o leitor ficam cada vez mais

patentes, destacando-se neste número trabalhos sobre linguagens e

cultura políticas, ensino de História e sua perspectiva política, História e

cinema, História e Literatura, memória e biografia, além de abordagens

de questões teóricas e metodológicas de valor para os estudos

historiográficos. Ressaltam-se as variadas fontes utilizadas no trato

investigativo, salientando o estudo de gravuras e dos discursos de

lideranças indígenas. Estes investimentos proporcionaram a seleção de

15 excelentes artigos inseridos nas vertentes mais contemporâneas de

história política.

Textos muito bem elaborados, sumário bem organizado, tanto na

escolha dos artigos, quanto na sua articulação dão um estofo

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Apresentação

10 ISSN 1414-9109

considerável à publicação. Ao trazer à luz temas diversos, mas

entrecruzados, Dia-logos incorpora conceitos e permite a discussão entre

autores e leitores, contrapondo novos temas, novas abordagens, como

também o uso de fontes de maneira a apresentar a riqueza que os

estudos históricos têm produzido no Brasil.

Outro aspecto a destacar fundamenta-se na originalidade dos

temas, quer pela sua diversidade, quer pelas novas possibilidades de

estudos. Os artigos retomam alguns clássicos da historiografia, ou

abordam novas questões fundamentadas em estudos recentes da

historiografia, contribuindo dessa forma com a divulgação científica e a

apresentação da multiplicidade de temas em estudo nos últimos anos.

Reflexões sobre a produção científica na área de história na

contemporaneidade, o ensino e seus desdobramentos em períodos da

História do Brasil, a atuação do Ministério público na aplicação da

legislação pertinente, o imaginário social e suas representações, a

valorização dos estudos de lideranças indígenas e suas contribuições

para a consolidação da América Portuguesa, todas estas vertentes

temáticas encontram-se entre os artigos englobados pela comissão

científica para este número da revista. A história política dialoga aqui

com as novas tendências da história cultural de maneira bastante sólida e

inovadora.

A Coordenação do PPGH tem grande satisfação em apresentar

dessa forma o potencial historiográfico encontrado nas páginas da revista

Dia-logos, do qual este número é mais uma demonstração a ser

apreciada. Parabéns aos autores, aos organizadores, e boa leitura a

todos.

Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, pela

Coordenação do PPGH/UERJ

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Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 11

EDITORIAL

É hora de mais uma edição da Revista Dia-Logos. A cada ano

reafirmamos nosso compromisso de divulgarmos as produções

inéditas dos pesquisadores de todo o país. Dessa forma,

consolidamos nossa posição e estilo junto aos grandes periódicos

acadêmicos do Brasil! Dessa forma, nos alegramos por poder

divulgar a excelência de nosso Programa de Pós-Graduação em

História Política da UERJ. Esse esforço se deve ao trabalho

voluntário e árduo de alunos, professores e servidores do supracitado

programa, como da colaboração de docentes de outras instituições

que nos privilegiam com sua presença e participação.

Essa trajetória de sucesso tem início na Semana de História

Política/Seminário Nacional de História dos alunos do PPGH/UERJ,

que, a cada ano, abrange um número expressivo de participantes de

todos os Estados do Brasil. Esse processo tem beneficiado

professores e jovens pesquisadores, que tem a oportunidade de

dialogar com seus pares e o público em geral, acerca de suas

pesquisas e sobre a produção histórica. O resultado desse debate se

expressa nessa sétima edição de nosso periódico.

Estamos primando pela qualidade e respeito aos artigos dos

proponentes que, a cada ano, vem depositando sua confiança em

nosso trabalho. Artigos de excelência envolvendo um profundo

diálogo com a História Política, o que muito nos tem feito

avançar enquanto Programa e espaço de difusão, discussão e

consolidação de novos pesquisadores. É importante ressaltar, que

essas variedades de proposições contribuem diretamente para o

aprimoramento das trocas intelectuais, feitas no Seminário, o que

influencia diretamente na qualidade da Revista Dia-Logos.

Como revista discente, a Dia-Logos cumpre o papel de difundir

alguns dos melhores trabalhos historiográficos, sendo assim, não se

delimita temáticas para esse periódico. A nós cabe o papel de

promover o conhecimento dos novos trabalhos que se desenvolvem

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Editorial

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na academia, as mais interessantes pesquisas desenvolvidas por

jovens talentos, da mais variada gama de assuntos, de acordo com

os pareceres de especialistas nos mesmos temas. Sendo assim, a

Dia-Logos comporta artigos que tratam da abordagem da História

Política, como dos demais domínios da História. E nessa edição é

importante destacar que, entre as temáticas tradicionais da História

Política, esse lançamento nos brinda com discussões acerca da

sociedade musical enquanto espaço de manifestação cultural e

política, a importante discussão acerca do ensino de história na

Educação Básica, num diálogo entre a academia e a sociedade. As

propostas de trabalho com a imagem e o poder, os movimentos

sociais e suas interfaces com a política, assim como nos oferece a

discussão das questões indígenas no Brasil.

O Conselho Editorial desta revista muito tem se empenhado

em transformá-la num periódico online, angariando melhores

investimentos e ampliando a sua qualificação, que já é B5, no ranking

da CAPES. Essa luta permitirá valorizar ainda mais os trabalhos de

nossos proponentes e promover maior difusão e circulação de suas

questões e ideias.

Com todo esse movimento ainda nos é muito importante

imprimir, anualmente esse periódico, difusor de novas pesquisas e

pesquisadores, e distribui-lo entre os principais programas de pós-

graduação em História do país e do exterior.

Cabe ainda agradecer pelos 4 anos de trabalho e dedicação

que tive junto com Conselho Editorial na preparação dos exemplares

desde 2009, quando ingressei neste Programa de Pós-Graduação.

Cabe o agradecimento a cada membro que ajudou a transpor os

obstáculos e as dificuldades na trajetória de muita luta, mas também

de muitas gratificações. Agradeço a todos os conselheiros pelo apoio,

a partilha, a compreensão e o carinho com este periódico e o

respeito com nossos proponentes e pareceristas. Agradeço a todos

os colaboradores e aos leitores pelo crédito e pela confiança.

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Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 13

Despeço-me com um até breve, desejando muito sucesso e muitos

empreendimentos aos conselheiros que ficam e os que foram eleitos

no último pleito.

Esperamos que apreciem a revista e mais uma vez

agradecemos a todos que participaram desse imenso e árduo

trabalho, mas de grande importância para a divulgação da pesquisa

científica no Brasil.

Boa Leitura!

Conselho Editorial

Sheila Lima

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15

O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur

Napoleão e Machado de Assis

Alexandre Raicevich de Medeiros

O pianista e compositor português, Arthur Napoleão dos Santos (06

de março de 1843 - 12 de maio de 1925) nasceu na cidade do Porto,

e foi revelado pelo pai, o napolitano Alexandre Napoleão, como um

prodígio musical. Após algumas apresentações na sua cidade natal,

foi levado a Lisboa onde teve o talento reconhecido pela elite local.

Em 1852, deixou Portugal e passou a apresentar-se em diversos

palcos da Europa e Américas, incluindo o Brasil, que visitou por três

vezes 1857, 1862 e 1866, até se fixar definitivamente em 1868 na

cidade do Rio de Janeiro, onde tornou-se, além de pianista e

compositor, um atuante homem de negócios do campo das artes.

Durante essas viagens a trajetória artística de Arthur Napoleão se

entrecruzou com a dos principais artistas do período, cuja música

costumava ser apreciada nos salões frequentados por membros da

aristocracia e da burguesia em ascensão. Esses espaços eram muito

desejados pelos Napoleão, principalmente pelos possíveis

favorecimentos resultantes das talentosas apresentações, que

podiam variar desde algum recurso financeiro, até uma melhoria no

status social do músico e de seus familiares.

Ao estabelecer-se no Rio de Janeiro, Arthur Napoleão tomou

as rédeas de sua carreira, e decidiu investir no campo dos negócios

ligados a música, não abandonando entretanto sua carreira de

pianista. Um ano após sua chegada ao Brasil se associou a Narciso

José Pinto Braga, um editor de partituras, e fundou a Narciso, Arthur

Napoleão & Cia, uma nova casa de edição, publicação e

comercialização de partituras. i Em 1878, Narciso deixou a firma, e

Arthur Napoleão se associou ao jovem e talentoso violinista Leopoldo

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Alexandre Raicevich de Medeiros

16 ISSN 1414-9109

Miguez (1850-1902) fundando a Casa Arthur Napoleão & Miguez,

situada à rua do Ouvidor 89. ii

A firma, além de manter o trabalho de edição de partituras,

passou a comportar um pequeno salão destinado a pequenas

apresentações de música de câmara e concertos solo, abertas a um

público não muito diferente do frequentador dos grandes clubes e das

sociedades musicais cariocas do período. iii Pelo palco da Casa

Arthur Napoleão & Miguez passaram diversas atrações, tanto

nacionais quanto internacionais, o que pode comprovar a ocorrência

de uma circularidade constante de músicos. Dentre os instrumentistas

internacionais podemos citar o violinista português Francisco Pereira

da Silva Costa (1847-1890), iv o violoncelista português Frederico do

Nascimento (1852-1924), v e o violinista cubano José White (1836-

1918), que viveu no Brasil entre 1879 e 1889. Ainda em relação ao

público que frequentava a sociedade podemos destacar que o

concerto de José White em 30 de dezembro de 1879, no salão da

Casa Arthur Napoleão & Miguez, reuniu “Um núcleo de

distinctíssimas senhoras, ministros d’estado, músicos notáveis, e

outras pessoas gradas”. vi O virtuose da flauta e filho de escravos

Viriato Figueira da Silva (1851-1883), vii

e o então, jovem e talentoso

pianista Ernesto Nazareth (1863-1934) viii

foram alguns dos artistas

nacionais que se apresentaram no salão da Casa Arthur Napoleão

& Miguez.

Em relação a tarefa primordial do estabelecimento, a edição de

partituras, a Casa Arthur Napoleão & Miguez. editou a primeira peça

de Ernesto Nazareth, a polca-lundu Você bem sabe, em 1877, que o

compositor dedicou ao seu pai, contando com um anúncio publicado

no Jornal do Commercio : “Sahio a luz : Você bem sabe, linda polca

para piano, composição do distincto pianista Ernesto Júlio Nazareth,

acha-se a venda unicamente em casa de Arthur Napoleão &

Miguez – 89 Rua do Ouvidor 89”. ix A pianista Chiquinha Gonzaga

(1847-1935) também teve diversas composições editadas pela firma

de Arthur Napoleão, dentre as quais a balada Manhã de Amor

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O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão

e Machado de Assis

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 17

(ca. 1881), x e a valsa Carlos Gomes (ca. 1880),

xi escrita em

homenagem ao maestro e compositor brasileiro.

Arthur Napoleão e seu pai desembarcaram no Brasil pela

segunda vez em agosto de 1862, na busca de espaços para novos

concertos que, como de costume, contaram sempre com lotação

esgotada. Logo após sua chegada, Arthur Napoleão foi

homenageado por um artigo publicado no periódico O Futuro (1862-

1863), em 15 de setembro de 1862, assinado por Machado de Assis,

no qual o escritor destacou a chegada do jovem pianista português

ao Brasil, recordando o sucesso obtido por Arthur durante sua

primeira visita ao Brasil, em 1857. No referido artigo, Machado de

Assis não poupou elogios ao talento musical de Arthur, comparando-o

ao jovem Mozart, que também teve sua carreira tutelada pelo pai

Leopold Mozart, cerca de cem anos antes.

(...) Fallemos agora de Arthur Napoleão que acaba de chegar ao Rio

de Janeiro. Em 1857, aquelle prodigioso menino inspirou verdadeiro

enthusiasmo nesta corte onde acabava de chegar cercado pela

auréola de uma reputação. Creança ainda, o prestígio dos tenros

annos dava ao seu talento realce maior. (...) Assim cresceu Arthur

Napoleão na idade, na glória e no talento: de cidade em cidade, a sua

viagem foi um triumpho não interrompido; mas, como verdadeiro

artista, não se deixou adormecer nos louros e nas delícias de Capua;

estudou viajando e buscou pelo estudo a perfeição.xii

A referência de Machado de Assis a primeira estada do

pianista portuense no Rio de Janeiro nos faz supor que tenha sido

durante esse período que Arthur Napoleão e o escritor tenham se

conhecido, e travado os primeiros laços de amizade.

O texto das Memórias de Arthur Napoleão, publicado no

periódico Correio da Manhã entre 04 de setembro de 1925 xiii

e 07 de

fevereiro de 1926, xiv

descreve ainda um sarau ocorrido na residência

do contador, filólogo e bibliotecário do Gabinete Português de Leitura,

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Alexandre Raicevich de Medeiros

18 ISSN 1414-9109

Manuel da Silva Melo Guimarães (1834-1884), na rua da Quitanda

número 06, em 22 de novembro de 1862. O encontro cultural contou

com a presença de importantes figuras do universo sociocultural

carioca do período. Como de costume o evento foi dividido em partes,

na primeira foi representada uma comédia em um ato de autoria de

Machado de Assis, intitulada Quase Ministro. Machado de Assis

ressalta nas notas preliminares do seu texto, que essa comédia foi

“expressamente escrita para ser representada em um sarau literário e

artístico”, os papéis da peça foram distribuídos entre os senhores

Moraes Tavares, Manoel de Mello, Ernesto Cybrão, Bento Marques,

Joaquim Insley Pacheco, Muniz Barreto, Carlos Schramm e

Arthur Napoleão. xv

Na sua terceira visita ao Brasil, Arthur Napoleão compôs o

fundo musical para uma peça do ator português Furtado Coelho

(1831-1900), que residia no Rio de Janeiro, intitulada Remorso Vivo,

com texto de Machado de Assis, do jornalista Joaquim Serra

(1838-1888) e do próprio Furtado Coelho. Na instrumentação Arthur

Napoleão contou com a ajuda do trompetista e regente Henrique

Alves de Mesquita (1830-1906). Remorso Vivo foi representado pela

primeira vez no Theatro Gymnasio, em 21 de janeiro de 1867. xvi

O

espetáculo dentro do âmbito do teatro musicado apresentava

componentes rítmicos e melódicos comuns das modinhas e

romances do final do século XIX. xvii

Enfim, Machado de Assis e Arthur Napoleão teriam a

consagração de seus laços de amizade alguns anos depois, quando

o acaso voltou a coloca-los frente à frente. Esse reencontro deu-se

por motivo da chegada da senhorita Carolina Augusta Xavier de

Novaes (1820-1904) a cidade do Rio de Janeiro. A jovem Carolina

que mais tarde se tornaria a esposa Machado de Assis, deixou a

cidade do Porto, com o intuito de cuidar do seu irmão, o jornalista,

poeta e escritor português Faustino Xavier de Novaes (1820-1869),

que residia no Brasil desde 1858, e que nesse momento encontrava-

se hospedado na residência da senhora Rita de Cássia Calasans

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O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão

e Machado de Assis

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Rodrigues, filha dos Barões de Taquary, por estar sofrendo das

faculdades mentais. xviii

Quanto ao acaso, a família de Arthur Napoleão mantinha uma

antiga relação de amizade com a família Novaes, que pode ser

comprovada por uma poesia escrita por Faustino, em 09 de

dezembro de 1862, dedicada a Arthur Napoleão, e publicada no

periódico O Futuro. xix

Nada mais simples do que os Novaes

contarem com a ajuda do velho amigo pianista, solicitando que Arthur

Napoleão acompanhasse Carolina Novaes na sua primeira viagem ao

Brasil. Assim, desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, em 18 de

junho de 1868, trazidos pelo navio francês Estreamadure, Carolina

Augusta Xavier de Novaes, e Arthur Napoleão, o qual chegava ao

Brasil pela quarta vez. xx

Nessa ocasião, Machado de Assis foi

apresentado por Faustino Xavier de Novaes, àquela que seria sua

companheira de toda a vida, e naquele momento teve o prazer de

reencontrar-se com o amigo Arthur Napoleão. Em 12 de novembro de

1869, Carolina Augusta Xavier de Novaes casou-se com o escritor

Machado de Assis, e Arthur Napoleão foi convidado para ser padrinho

do enlace matrimonial. xxi

Alguns anos mais tarde, o pianista Arthur Napoleão e Machado

de Assis encontraram na prática do enxadrismo mais um laço de

fortalecimento de suas relações pessoais. Desde sua saída de

Portugal em 1852, até sua estabilização definitiva no Brasil em 1868,

a trajetória de Arthur Napoleão foi baseada em horas de estudo sob a

severa supervisão do pai, longos períodos de isolamento a bordo dos

navios que entrecruzavam oceanos, distribuição de cartas de

apresentação, concertos, e por fim, o êxito profissional. Todo esse

processo, apesar de estar voltado para o sustento da família

Napoleão, e para a consequente consagração de Arthur, talvez não

fosse ideal para o desenvolvimento de uma criança, que segundo o

próprio pianista, achava-se muitas vezes saturado por acordes, letras

e algarismos. xxii

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Alexandre Raicevich de Medeiros

20 ISSN 1414-9109

A solução imediata foi encontrar atividades que pudessem

distrair, mesmo que sumariamente, a alma infantil, evitando

problemas que pudessem eclodir na vida adulta do pianista.

Entretanto, por serem muito limitados os espaços de tempo livre na

cansativa rotina do musicista, nos únicos momentos distantes das

“atividades profissionais”, restava ao pequeno Arthur Napoleão

envolver-se nas atividades dos adultos, que costumavam se divertir

com jogos, geralmente após as apresentações musicais e literárias,

que aconteciam na cidade do Porto, entre 1840 e 1850. Ao circular

nesse universo, o menino Arthur, ávido por novidades, descreve ter

desenvolvido de imediato a paixão pelo jogo de xadrez, que foi

incentivada pelo pai, por parecer uma distração eficiente, e incapaz

de atrapalhar a carreira do seu prodígio infantil. Desde então, a vida

de Arthur Napoleão passou a contar com lições de piano, ensaios,

concertos, e a companhia do tabuleiro de xadrez.

Após encontrar-se estabilizado no Brasil, Arthur Napoleão

decidiu retomar sua ligação com a prática do enxadrismo,

organizando, em 1880, um torneio em sua residência que contou com

a presença dos enxadristas Carlos Pradez, Caldas Vianna, Machado

de Assis, Navarro de Andrade, Joaquim Palhares.

Torneio de Xadrez.

Está-se effectuando actualmente um torneio de xadrez entre seis dos

melhores amadores d`esta Côrte. Cada um tem a jogar 4 partidas com

o outro e no resultado final, será considerado vencedor. A situação

dos jogadores, n`esta data é a seguinte: Sr. Machado d`Assis, 6;

Arthur Napoleão, 5 ½; C. Vianna, 4 ½; Prades, 4; Navarro, 1; Dr.

Palhares, 1. Conforme os regulamentos hoje instituídos em toda a

parte, as partidas empatadas contam meia partida a cada jogador.xxiii

Ao término do torneio Arthur Napoleão saiu vencedor, sendo

seguido por Caldas Vianna, e por Carlos Pradez, no segundo e

terceiro lugar respectivamente. Segundo o próprio Arthur Napoleão,

esse torneio despertou o interesse da sociedade carioca pelo jogo, e

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O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão

e Machado de Assis

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 21

consequentemente estimulou a organização de outros embates na

cidade do Rio de Janeiro.xxiv

Em relação a Machado de Assis, acreditamos que o desejo em

aprofundar seus conhecimentos na prática do enxadrismo pode ter se

iniciado entre os anos de 1862 e 1865, por incentivo do amigo Arthur

Napoleão, que visitava o Brasil pela segunda vez nesse período. A

prática do jogo faz parte de alguns contos do escritor como, Questão

de Vaidade (1864), Astúcias do Marido (1886), História de uma

Lágrima (1867), Ruy de Leão (1872), Qual dos dois (1872), Antes que

cases (1875); do romance Iaiá Garcia (1878), e da novela A

cartomante (1884). O escritor ainda chegou a frequentar algumas das

mais importantes agremiações de xadrez, espalhadas pela cidade, e

o pianista costumava discutir com o amigo questões sobre o jogo. xxv

Rio de Janeiro, 25 de dezembro de [...]

Meu caro Machado. Eu creio ter-te dito ontem que te dava o problema

como muito bonito e difícil; tão difícil que não julgo que terei quem o

possa resolver. Quando li, pois, o teu cartão não julguei por um

momento que em 12 horas o tivesses resolvido! Há mil jogadas neste

problema que parecem ser as verdadeiras e afinal não são. Tu envias-

te-me: 1. B. 2 R 1. D. 3 R 2. D. 8 CD 2. Aqui se eu tivesse a

condescendência de jogar como tu indicas eu estaria mate em 4, mas

eu prefiro responder com 2. D. 4 B. Parece-me suficiente indicação.

Desculpa, e trabalha de novo, fica certo de que se resolveres o

problema eu te considero um grande homem na matéria. Em

compensação, quando quiseres eu te mando a solução, que te há de

deixar boquiaberto!!... Mais nada.

Teu amigo certo, A. Napoleão. xxvi

Em 1898, Arthur Napoleão escreveu um livro sobre o jogo de

xadrez, que foi publicado pela Typographia do Jornal do Commercio

de Rodriguez & C. e recebeu o título de Caissana Brasileira. xxvii

O

título do livro, Caissana Brasileira, foi inspirado na história de Caíssa,

ninfa da mitologia grega, considerada a deusa do xadrez. xxviii

Page 21: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Alexandre Raicevich de Medeiros

22 ISSN 1414-9109

A Caissana Brasileira de Arthur Napoleão se encarregava de

apresentar, pela primeira vez em língua portuguesa, um trabalho

sério sobre o enxadrismo. O livro continha um breve panorama

histórico do xadrez, incluindo seu código de regras baseado numa

bibliografia consistente, e uma série de anotações sobre a prática do

jogo, capaz de esclarecer dúvidas até mesmo dos mais experientes

enxadristas. Além de reunir cerca de quinhentos problemas de

autores brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, apresentando

suas soluções, e listar os torneios de xadrez, realizados no Rio de

Janeiro desde a chegada de Arthur Napoleão na cidade, em 1868,

até a data da publicação do livro. O nome de Machado de Assis é

citado no livro como autor de um problema em dois lances. xxix

Consideramos ainda que certas passagens da relação de

amizade e admiração entre o pianista e o escritor possam ter

inspirado Machado de Assis na sua trajetória literária, a qual vem nos

oferecer quase que um “relatório sociológico e histórico” em seus

contos, que se desdobram numa rede complexa de dinâmicas

coerentes com o que se tem estudado sobre o universo sócio-cultural

do Rio de Janeiro do século XIX.

Especificamente, identificamos semelhanças entre a história

apresentada no conto de Machado de Assis Um Homem Célebre,

publicado em 1888, no periódico Gazeta de Notícias, xxx

e algumas

passagens da trajetória do pianista portuense, descritas na sua

autobiografia.

Entre 1858 e 1860, Arthur Napoleão e o pai estiveram nos

Estados Unidos da América, sempre em busca de oportunidades de

apresentações, sendo que nesse período o jovem pianista começava

a ensaiar seus primeiros passos como um adolescente que desejava

encontrar o espaço necessário para as suas próprias realizações,

mesmo que para isso fosse preciso contrariar as ordens de seu pai.

Assim, ao circular por Nova Iorque mantendo a programação de

concertos organizada por Alexandre Napoleão, Arthur também

Page 22: Baixar Revista Dia-Logos 2013

O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão

e Machado de Assis

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 23

procurou encontrar-se com os mais importantes enxadristas da

cidade, como Sam Loyd (1841-1911), Miron James Hazeltine

(1824-1907), Charles Henri Stanley (1819-1901) e Theodor

Lichtenhein (1829-1874), e Paul Morphy (1837-1884), tendo inclusive

a oportunidade de visitar o New York Chess Club, e disputar algumas

partidas com esses grandes jogadores. Ainda em Nova Iorque, Arthur

Napoleão compôs e comercializou algumas polcas e valsas, se

utilizando de um pseudônimo, em troca de poucos dólares pagos por

editores norte-americanos, que eram destinados a propiciar a sua tão

almejada independência financeira.

O conto de Machado de Assis narra a história de um pianista

chamado Pestana, que tentava a todo o custo tornar-se um

compositor erudito. Na sua residência, Pestana vivia em companhia

de um preto velho, e mantinha seu piano cercado de retratos

gravados ou litografados de músicos europeus, como Beethoven,

Chopin, Mozart, Gluck, que contrastavam com uma tela a óleo na

qual destacava-se o rosto de um padre que além compositor de

motetes, e responsável pela educação de Pestana, seria

supostamente o pai do personagem. Entretanto, mesmo com muito

esforço e dedicação, Pestana não conseguia deixar de ser um

excelente compositor de “polcas buliçosas e ligeiras”, cujo nome era

protegido por um pseudônimo. Suas composições quando publicadas

se esgotavam logo, garantindo a renda do pianista e passando a

fazer parte do repertório da maioria dos músicos populares do

período. No conto, o personagem machadiano ainda se enamora de

uma jovem que conhecera numa festa de São Francisco de Paula, e

que poderia ter sido a maior fonte de inspiração para suas peças, se

não tivesse falecido de tuberculose, para aumentar a sua tristeza.

Machado de Assis encerra sua narrativa descrevendo a frustração do

compositor, que morre sem conseguir entrar no tão desejado campo

da música erudita.

Reconhecendo que a literatura pode servir como instrumento

Page 23: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Alexandre Raicevich de Medeiros

24 ISSN 1414-9109

avaliador dos níveis de tensão existentes no interior de determinada

estrutura social, tanto trazendo à tona os planos que não se

concretizaram, como se vinculando a grupamentos humanos que

ficaram marginais ao sucesso dos fatos, xxxi

e devido aos seus temas,

valores e motivos serem sugeridos pelo ambiente social que envolve

a sua produção. xxxii

Concluímos que certos pontos destacados no

conto machadiano “Um Homem Célebre”, podem produzir efeitos de

correlação sugestiva com a realidade, e que a trajetória do

personagem Pestana possa ter se baseado numa trajetória

especifica, como a de Arthur Napoleão, supostamente relatada

ao escritor pelo próprio pianista durante os seus anos de

franca amizade.

Assim, ao resgatarmos esse pequeno fragmento literário de

Machado de Assis, e a sua relação com o pianista Arthur Napoleão,

reconhecemos que esse entrecruzamento de trajetórias muito

contribuiu tanto para produções de campos específicos como o da

música e da literatura, quanto para de outros mais distantes como o

do teatro, e que essas produções vieram enriquecer profundamente o

universo cultural da sociedade carioca no fim do século XIX.

Notas e referências

Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),

orientado pelo Professor Doutor Orlando de Barros.

Contato: [email protected] i NAPOLEÃO, Arthur. Memórias, 1907, p. 145. ii Ibid., p. 191.

iii Revista Musical e de Bellas Artes, ano II, número 1, em 03 de janeiro de

1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). iv Nascido na cidade do Porto, Francisco Pereira da Silva Costa foi aluno

de Alard no Conservatório de Paris, chegando do Rio de Janeiro em

1871 onde atuou como instrumentista e professor.

Page 24: Baixar Revista Dia-Logos 2013

O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão

e Machado de Assis

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 25

v Nascido em Setúbal chegou ao Rio de Janeiro em 1880. Sendo indicado

em 1890, para a cadeira de professor no Instituto Nacional de Música,

tendo Heitor Villa-Lobos como um de seus alunos. vi Revista Musical e de Bellas Artes, ano II, número 1, em 03 de janeiro de

1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). vii

Ibid., ano I, número 20, em 17 de maio de 1879. (Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro). viii

Ibid., ano II, número 6, em 13 de março de 1880. (Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro). ix Jornal do Commercio, 25 de dezembro de 1878. (Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro). x Revista Musical e de Bellas Artes, ano II, número 14, em 26 de junho de

1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xi Ibid., ano II, número 17, em 17 de julho de 1880. (Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro). xii

O Futuro. Chronica por Machado de Assis, 15 de setembro de 1862.

(Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xiii

Correio da Manhã, 04 de setembro de 1925. (Biblioteca Nacional do Rio

de Janeiro). xiv

Ibid., 07 de fevereiro de 1926. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xv

NAPOLEÃO, op. cit., 1907, pp. 96-97. xvi

Jornal do Commercio, 21 de janeiro de 1867. (Biblioteca Nacional do Rio

de Janeiro). xvii

FREIRE, Vanda L. B. A Mágica. In : II Simpósio Latino-Americano de

Musicologia, 1999. Curitiba. Anais do II Simpósio Latino-Americano de

Musicologia. Curitiba, 1999. xviii

Ibid., pp. 142-143. xix

O Futuro, 01 de janeiro de 1863. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xx

VIANNA FILHO, Luiz. A vida de Machado de Assis. São Paulo: Livraria

Martins Editora, 1974. p. 79. xxi

NAPOLEÃO, op. cit., 1907, p. 157.

Page 25: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Alexandre Raicevich de Medeiros

26 ISSN 1414-9109

xxii

Ibid., p. 3. xxiii

Revista Musical e de Bellas Artes, artigo: Torneio de Xadrez, 17 de

janeiro de 1880. (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). xxiv

NAPOLEÃO, op. cit., 1907, p. 218. xxv

xxv

Revista Brasileira. Fase VII. Abril-Maio-Junho, nº 55, Ano XIV, 2008,

artigo: Machado de Assis, o enxadrista, de autoria de C. S. Soares, pp.

135-152. xxvi

Coleção Afrânio Peixoto. Academia Brasileira de Letras.

Correspondência de Machado de Assis : tomo II, 1870-1889

/coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet ; reunida, organizada

e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério.– Rio de Janeiro :

ABL, 2009, [171], p. 168. O bilhete não apresenta qualquer indicação de

data. Entretanto, o texto referencial cita que o texto está redigido num

papel com monograma ANLS (Arthur Napoleão Lívia Santos),

possivelmente impresso durante a primeira viagem do casal a Europa,

entre 1873 e 1876. xxvii

NAPOLEÃO, Arthur. Caissana Brasileira. Rio de Janeiro: Typ. Do Jornal

do Commercio de Rodriguez & C., 1898. xxviii

Revista Brasileira. Fase VII. Abril-Maio-Junho, nº 55, Ano XIV, 2008,

artigo: Machado de Assis, o enxadrista, de autoria de C. S. Soares, pp.

135-152. xxix

NAPOLEÃO, Arthur. Caissana Brasileira. Rio de Janeiro: Typ. Do Jornal

do Commercio de Rodriguez & C., 1898. xxx

Gazeta de Notícias, 29 de junho de 1888. (Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro) xxxi

SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão. São Paulo.:

Companhia das Letras, 2003, p. 28. xxxii

SARTRE, Jean-Paul. Situations II. 7. Paris: Ed. Gallimard, 1948, p. 13.

Page 26: Baixar Revista Dia-Logos 2013

27

Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da

literatura em Maurice Blanchot

Aline Magalhães Pinto

O escritor e ensaísta francês Maurice Blanchot foi um dos

personagens mais interessantes da intelectualidade francesa do

século XX. As relações que manteve, nos anos 30, com a extrema-

direita francesa são objeto de bastante debate e foram bastante

nuançadas pela postura adotada pelo intelectual durante a guerra e

sobretudo no pós-guerra. Aliás, o autor de L’espace Littéraire é uma

das figuras centrais na elaboração do discurso do pós-guerra europeu

e seu trabalho é fonte de inspiração para os maiores nomes da

filosofia francesa da década de 1960, entre eles, Foucault, Derrida,

Deleuze. Debruçando-se filosoficamente sobre o mundo das artes,

Maurice Blanchot construiu uma reflexão inquieta e instigante sobre a

escrita literária. Pensar a literatura para Blanchot, a partir do final dos

anos 1940, significou explorar a força cáustica, volátil e volatizante do

discurso literário e projetar o entendimento dessa força em um mundo

já sem fundamentos.

Blanchot está longe de estar isolado. Neste momento, a

“questão da literatura” é um ponto concentrado de incertezas, uma

tensão compartilhada pela intelectualidade francesa do imediato pós-

guerra. O fecundo debate intelectual no qual se insere Blanchot pode

ser atestado pela circulação de revistas como Esprit e a Tel Quel e,

principalmente, Les temps modernes fundada por J-P Sartre em 1945

e Critique criada por Georges Bataille em 1946. Embora mais próximo

da Critique, Blanchot esteve ligado tanto a ela quanto a Les temps

modernes como membro do comité de redação, publicando em

ambas vários artigos. Nas páginas dessas revistas estão impressas

as discussões que aconteciam nos cafés, nas universidades, nos

encontros nas casas dos escritores e editoresi. Ao fundo, encontram-

Page 27: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Aline Magalhães Pinto

28 ISSN 1414-9109

se as incertezas em relação ao futuro da cultura francesa e europeia,

em que pensadores e escritores reveem sua função numa sociedade

descrente e desamparada.

Em “Qu'est-ce que la littérature?” publicado em 1947 em Les

Temps modernes, Sartre elabora a exigência de que a literatura

cumpra no mundo uma função social que não seja puramente de

fruição estética. A questão capital para ele seria como pensar uma

literatura que, sem perdas estéticas, estivesse totalmente engajada

no mundo político. Blanchot se posiciona em oposição à “literatura

engajada” proposta por Sartre. O ensaio que vamos analisar, La

Littérature et Le droit à la mort, está inserido neste contexto.

Publicado em duas partes, ambas pela Critique, a primeira em

novembro de 1947 sob o nome de La règne animal de l’esprit e a

secunda parte, em janeiro de 1948, na edição sobre Bataille, sob

nome La littérature et le droit à la mort. Sob este nome a reunião dos

dois textos fecha o volume de La part du feu de 1949.ii

Ao discutir o espaço da literatura e da ação política do mundo,

Blanchot responde a Sartre em defesa da natureza ambígua e

misteriosa da palavra escrita. Desta forma, ao invés de ver o duplo

sentido em torno da palavra escrita como uma “doença” que o escritor

deve combater, Blanchot sugere que a incerteza e a dúvida que

pairam sobre o texto literário permitem ao leitor desenvolver um

diálogo sincero com o texto, através das leituras, interpretações,

infinitas conversas.

Já nas primeiras linhas Blanchot declara: “A literatura se edifica

sobre suas ruínas: esse paradoxo é para nós um lugar-comum”.iii

Com esta declaração, o crítico francês reconhece no surrealismo

literário, para Blanchot, a realização de uma tarefa fundamental: fazer

com que a literatura realizasse sua própria irrealidade. Combinando

um poderoso movimento negativo e uma grande ambição criadora, no

surrealismo: “A literatura, por um instante, coincide com o nada, e

imediatamente ela é tudo e tudo começa a existir: grande prodígio.”iv

Page 28: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura

em Maurice Blanchot

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 29

Contudo, para Blanchot, a despeito da importância do surrealismo e

dos movimentos literários da alta modernidade, eles não são

responsáveis pela força corrosiva da literatura. O intento deste artigo

é mostrar a argumentação mobilizada por Blanchot para construir

uma tradição literatura que tem o momento da revolução francesa e a

escrita de Sade como ponto de irradiação da força de negatividade da

literatura moderna na França.

La littérature et le droit à la mort é um texto inspirado pelas

leituras da filosofia hegeliana de Kojève e de Jean Hyppolite.

Percorremos o texto, focando os pontos de diálogo entre Hegel e

Blanchot, para mostrar como - na transposição para literatura da

lógica de entendimento que kojève, especialmente, imprimiu ao

sistema hegelianov – Blanchot constrói certa interpretação da

Revolução francesa e do Terror para criar uma tradição literária: a

tradição da negatividade, encontrando em Sade uma figura de

emergência. Toda transposição supõe um deslocamento que

diferencia, e nesse sentido este trajeto permitirá também a

singularização do hegelianismo de Blanchot.

Para Blanchot, aquele que escolhe ser literato se condena a

permanecer imerso numa teia de contradições. Enquanto Hegel

trabalha as contradições tendo em consideração a obra humana em

geral, Blanchot transporta a noção de contradição para a atividade da

escrita literária e explora as consequências deste deslocamento:

O individuo que quer escrever é impedido por uma contradição: para

escrever, precisa de talento para escrever. Mas nele mesmo os dons

não são nada. Enquanto não se puser à mesa e escrever uma obra, o

escritor não é escritor e não sabe se tem capacidade para vir a ser

um. Só terá talento após ter escrito, mas dele necessita para

escrever.vi

Para o escritor, a consciência de si e da obra vêm da obra.

Antes de escrever, mesmo o maior dos talentos é apenas

Page 29: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Aline Magalhães Pinto

30 ISSN 1414-9109

inefetividade. Não importam as circunstâncias, o momento de

começar a escrever é sempre fundamental. A escrita rompe a

inefetividade. Sem a obra, não há nada além de um problema: a

impossibilidade de escrever. A tautologia é explícita: antes de

escrever não há escritor.

Sem o respaldo da filosofia hegeliana, esta afirmação seria

absolutamente redundante e inútil. Por isso é preciso lembrar que o

Começo na Fenomenologia do Espírito assume uma posição de

relevo: o Começo não deve pressupor nada, não deve ser

mediatizado por nada, nem ter um fundamento; ao contrário deve ele

mesmo ser o fundamento. Deve ser absolutamente um imediato, ou

antes apenas a imediaticidade mesma. O começo é o ser puro.vii

Quando Blanchot se refere ao começo da escrita de uma obra

isto significa dizer, portanto, que começar a escrever desencadeia o

movimento da literatura e contém o que seria sua essência: a falta de

qualquer essencialidade. A obra acabada, por sua vez, desencadeia

uma experiência desconcertante:

O autor vê os outros se interessarem por sua obra, mas esse

interesse é diferente daquele que havia feito dela a pura tradução dele

mesmo, e esse outro interesse muda a obra, transforma-a em algo

diferente em que ele não desapareceu, ela se torna a obra dos outros,

a obra em que eles estão e ele não está, um livro que toma seu valor

de outros livros, que é original se não se parece com os outros, que é

compreendido porque é o reflexo dos outros. Ora, essa nova etapa

não deve ser negligenciada pelo escritor. Como vimos, ele só existe

em sua obra, mas a obra só existe quando se torna essa realidade

pública, estrangeira, feita e desfeita pelo contrachoque das realidades.

Assim, ele está na obra mas a própria obra desaparece. (...) a obra é o

que ele fez, não é esse livro comprado, lido, triturado, exaltado ou

esmagado pela cotação do mundo.viii

O desaparecimento da obra para o autor é a realização da obra

no mundo. O Começo da escrita e o desaparecimento da obra

Page 30: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura

em Maurice Blanchot

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 31

quando ela surge para o público são momentos distintos do

movimento literário, reunidos pelo que Blanchot chama, em diálogo

com a filosofia hegeliana, de “a própria Coisa”- “é tudo que acima da

obra, sempre em dissolução nas coisas, mantém o modelo, a

essência e a verdade de que ela é feitaix”.

A análise torna claro como as noções de fluidez e de verdade

no tempo presentes na Fenomenologia do Espírito conduzem a

noção de literatura de Blanchot. A escrita literária não se deixa

cristalizar em nenhuma de suas figuras, ela é o fluxo contínuo de

contradições que dialeticamente se negam. O empreendimento

literário tem como meta o que lhe é próprio: o movimento que em si

unifica o individuo que escreve, o poder de negação criador, e a obra

em movimento, no qual se afirma esse poder de negação

e superação.

Blanchot adota a noção de movimento contínuo, de maneira

formalmente análoga, ao raciocínio com que Hegel afirma que a

verdade do Espírito não está em suas determinações ou figuras

isoladas e sim no movimento que, negando cada uma destas figuras

particulares, realiza o universal. Contra as críticas literárias que

separam analiticamente autor, obra e leitor, Blanchot propõe a

literatura como um movimento que une estes momentos na persona

do escritor. O escritor, na concepção e na crítica literária de Blanchot,

funciona como um operador e também como uma máscara. Para o

entendimento do texto literário, Blanchot vai jogar com a toda a

plasticidade da persona do escritor. O trabalho de crítica e de

pensamento literário em Blanchot é feito a partir deste recorte: não se

fala de todos os homens, nem da obra humana como um todo. Trata-

se de uma abordagem metonímica, na qual o foco é alcançar a

literatura pelo escritor.x

O que é escritor para Blanchot? É o movimento que agrupa os

diferentes momentos da literatura. Blanchot não reserva para o

escritor o espaço daquele que porta a voz de um povo, tão somente

Page 31: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Aline Magalhães Pinto

32 ISSN 1414-9109

uma consciência infeliz, desesperada. Este escritor trabalha. Citando

Hegel e Marx, Blanchot reconhece o trabalho, atividade

especificamente humana, como negatividade. Por derivação inspirada

em Hegel, Blanchot conclui que a escrita literária realiza-se ao

negar-se. A transposição que desloca a fenomenologia hegeliana

(da maneira entendida por Kojève) da obra humana em geral para a

região da literatura é um dos apoios sobre os quais Blanchot buscará

entender a especificidade do trabalho da escrita.

Porque o ato de fabricar uma estufa [ou qualquer outra coisa] pode ser

considerado trabalho que forma e arrasta a história e por que o ato de

escrever aparece como uma pura passividade que permanece à

margem da história, e que a história arrasta sem querer?xi

Ao elaborar esta questão, Blanchot afirma que o escritor

trabalha como todo homem que trabalha, mas num grau mais

eminente. Isto porque o trabalho é uma categoria negativa. Trata-se

de uma negação que produz, modificando realidades naturais e

humanas, uma positividade. Contudo, ao contrário do trabalhador

comum, o escritor

para escrever, deve destruir a linguagem tal como é e realiza-la sob

uma outra forma, negar os livros fazendo um livro com o que não são.

O volume escrito é para mim uma inovação extraordinária,

imprevisível, e de tal forma que me é impossível, sem escrevê-lo,

imaginar o que poderia ser. É por isso que me aparece como uma

experiência cujos efeitos, por maior que seja a consciência com que

se produzem, me escapam e diante da qual não posso me reencontrar

o mesmo, por essa razão: na presença de outra coisa eu me torno

outro, mas por essa razão mais decisiva ainda: essa outra coisa – o

livro- da qual eu tinha apenas uma ideia e que nada me permitia

conhecer previamente, é justamente eu mesmo transformado em

outro.xii

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Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura

em Maurice Blanchot

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 33

À diferença do trabalho no mundo cotidiano, o trabalho de

escrever não somente transforma pela negação uma realidade já

dada. Dominado por uma força que extrapola a consciência, escrever

transforma o próprio escritor. No livro, na obra, está impressa esta

transformação. Para Blanchot, o trabalho de escrever é radicalmente

transformador. Escrever é mais radical do que o trabalho em geral,

pois não gera uma positividade no mundo. Sem dúvida, a obra existe.

Mas ela existe não como um ato realmente negativo, destruidor e

transformador de realidades. Ela existe porque realiza a impotência

de negar e a recusa de intervir no mundo. Nesta recusa, a liberdade

do escritor é infinita. Infinita, esta liberdade só pode ser irreal.

A influência do escritor está ligada a esse privilégio, o de ser senhor

de tudo. Mas ele é senhor apenas de tudo, só possui o infinito, o finito

lhe falta, o limite lhe escapa. Ora, não agimos no infinito, não

realizamos nada no ilimitado, de maneira que, se o escritor age bem

realmente produzindo sessa coisa real que se chama livro,

desacredita também, com esse ato, qualquer ato, substituindo o

mundo das coisas determinadas e do trabalho definido por um mundo

onde tudo é agora dado, e nada presenta ser feito além de gozá-lo

pela literatura.xiii

A liberdade infinita da escrita literária se dá à leitura. Ler é

desfrutar essa liberdade alcançada apenas de maneira irreal. O que é

a possibilidade aberta pela literatura e, ao mesmo tempo, a condição

de sua existência. A força de negatividade da escrita literária e sua

impotência como ação política tem como contrapartida o efeito de

liberação, de fruição - próprias do fenômeno estético. Contudo,

Blanchot não desconsidera a proximidade da liberdade que

fundamenta a ação consciente e voluntária (política) e a liberdade

que fundamenta o ato da escrita. Elas têm como ponto comum a

força de negação.

Page 33: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Aline Magalhães Pinto

34 ISSN 1414-9109

A compreensão do movimento da força de negação por

Blanchot tem como base a leitura de kojève sobre a Fenomenologia

do Espírito. No plano fenomenológico, portanto, a negatividade é a

liberdade humana. Ela só pode ser e existir como negação. A

liberdade, entendida por este prisma teórico, não é uma escolha entre

dois dados, ela é a negação do dado, realiza-se e manifesta-se como

ação criadora. Historicamente, a conexão entre liberdade e

negatividade tornou-se consciente, em sua radicalidade, nos homens

de 1789 durante a Revolução Francesa. Como afirma Kojève, o

mundo cristão encontra seu fim na realização abstrata da liberdade

que se efetua pela Revolução Francesa e se afirma no

Estado napoleônico.xiv

Esta conexão permite a analogia estabelecida por Blanchot

entre a ação revolucionária e a escrita literária. Em sua transposição

interpretativa, o crítico francês toma emprestada a análise da ação

revolucionária para fazer entender com precisão a maneira como ele

pensa o ato de escrever.

A ação revolucionária é, em todos os pontos, análoga à ação tal como

é encarnada pela literatura: passagem do nada ao tudo, afirmação do

absoluto como acontecimento e de cada acontecimento como

absoluto. A ação revolucionária se desencadeia com a mesma força e

a mesma facilidade que o escritor, que, para mudar o mundo, só

precisa alinhar algumas palavras. Ela tem também a mesma exigência

de pureza e essa certeza de que tudo o que faz vale completamente,

não é uma ação qualquer com relação a alguma meta desejável e

estimável, mas a meta única, o Último Ato. Esse último ato é a

liberdade, e só existe escolha entre a liberdade e o nada. É por isso

que, então, a única frase suportável é: liberdade ou morte.xv

Escrever e o agir político revolucionário teriam como raíz

comum constituírem-se a partir da mesma força de negação que

alimenta a liberdade humana. A leitura de Blanchot identifica e

trabalha a força de negação em sua capacidade destruidora e

Page 34: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura

em Maurice Blanchot

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 35

criadora. Neste sentido, a Revolucão Francesa é um momento

histórico decisivo, como abertura da modernidade. Ao mesmo tempo,

ela oferece uma modelagem para a criação artística moderna, pois

propõe simultaneamente a afirmação do absoluto como

acontecimento derivado de uma ação humana e cada acontecimento

como valor absoluto. Esta modelagem abre o caminho para o Terror.

Para Blanchot, a decisão pela encruzilhada entre liberdade e

a morte instaura o Terror. O Terror é a liberdade universal.

Politicamente, o Terror inaugura um mundo onde tudo é público e

ninguém tem direito ao segredo, à vida privada. O sentido do Terror,

para Blanchot, é criar este mundo no qual ninguém tem direito a uma

vida individual, a uma existência efetivamente separada e

fisicamente distinta.xvi

Nesse mundo, a morte não é uma condenação, ela é tão

somente a essência do direito de cada cidadão. No Terror, os

indivíduos morrem e isto é insignificante porque a morte é o próprio

trabalho da liberdade nos homens livres. A ação revolucionária

movimenta “la liberté d’une tête coupée”. Nos momentos em que a

liberdade é a aparição absoluta, morrer não tem importância. Esta é a

“lição” que, aprendida durante o Terror na Revolução Francesa, se

repete no horror das Grandes Guerras. Neste sentido,

Blanchot afirma:

Os terroristas são aqueles que, desejando a liberdade absoluta,

sabem que querem assim sua morte, têm consciência dessa liberdade

que afirmam como da morte que realizam e por consequinte, já que

estão vivos, agem não como homens vivendo no meio de homens

vivos, mas como seres privados do ser, pensamentos universais,

puras abstrações julgando e decidindo, além da historia, em nome da

história inteira.xvii

Blanchot move sua reflexão convencido do ponto de contato

entre o escritor e o “terrorista”: em ambos encontra-se o

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Aline Magalhães Pinto

36 ISSN 1414-9109

reconhecimento de que a morte é o ponto vazio da liberdade. O

escritor se reconhece na Revolução e no Terror. Ele tem como ideal

criar o instante em que a liberdade é a morte. Na escrita e no Terror,

a morte retém o desejo e preocupação da criatura humana forçando

um deslocamento da esfera de sentido para fora da vida. Este é o

ponto de contato que une figuras díspares como Robespierre e Saint-

Just a Sade. Para Blanchot, Sade foi aquele que soube reconhecer e

compreender que a possibilidade da escrita literária estava ligada a

liberdade radical e a morte.

Sade é o escritor por excelência; ele reuniu todas as contradições do

escritor. Só: de todos os homens o mais só e contudo, personagem

público e homem político importante, perpetuamente preso e

absolutamente livre, teórico e símbolo da liberdade absoluta. Escreveu

uma obra imensa, e essa obra não existe para ninguém.

Desconhecido, mas o que ele representa tem para todos uma

significação imediata. Nada mais que um escritor, ele representa a

vida elevada até a paixão, a paixão transformada em crueldade e

loucura. Do sentimento mais singular, mais oculto e mais privado do

senso comum ele fez uma afirmação universal, a realidade de uma

palavra pública que, entregue à história, se torna uma explicação

legítima da condição do homem em seu conjunto. Finalmente, ele é a

própria negação: sua obra é apenas o trabalho da negação, sua

experiência, o movimento de uma negação, sua experiência, o

movimento de uma negação furiosa, sanguinolenta, e que nega os

outros nega a Deus, nega a natureza e, nesse círculo eternamente

percorrido, goza de si mesmo como da absoluta soberania.xviii

A reflexão blanchotiana sobre o Terror entra em cena

provocando um duplo efeitoxix

. O primeiro efeito é uma concepção de

literatura que concede espaço e legitimidade aos movimentos da

vanguarda literária. Com a postura defendida em La littérature e Le

droit à la mort, Blanchot estabelece uma tradição para os movimentos

literários que fazem da negatividade sua força. Tradição inaugurada

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Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura

em Maurice Blanchot

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 37

com Sade, e que passa por Hölderlin, Nerval, Baudelaire,

Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Kafka.

O segundo efeito é a emergência da cena da metáfora da

morte como ponto de encontro entre estas duas formas

antropológicas de atuação - escrever e agir politicamente. Blanchot

soliticita a figura da morte tanto para definir a ação política em sua

formulação mais radical (o Terror) quanto para definir a escrita

literária e o escritor. E, se a figura da morte é usada para aproximá-

las, paradoxalmente, é também o uso diferenciado da mesma figura

que irá distingui-las. O que separa o escritor e o “terrorista”? Ao

contrário do “terrorista” para quem a liberdade do poder-morrer é

essencialmente transfigura-se em poder-matar; para o escritor poder-

morrer é a possibilidade de poder- escrever.

O escritor se sente presa de uma força impessoal que não o deixa

viver ou morrer: a irresponsabilidade que ele não pode superar torna-

se a tradução dessa morte sem morte que o espera à beira do nada; a

imortalidade literária é o próprio movimento pelo qual, até no mundo,

um mundo minado pela existência bruta, se insinua a náuse de uma

sobrevida que não é uma, de uma morte que não põe fim a nada. O

escritor que escreve uma obra se suprime nessa obra e se afirma

nela. (...) Ao realizar o vazio, criamos uma obra, e a obra, nascida da

fidelidade à morte, no final já não é capaz de morrer e a quem quis

preparar-se uma morte sem história só traz o desdém da

imortalidade.xx

Muito próximo a Hegel, Blanchot enlaça a linguagem à

liberdade e à morte, entendendo que o sentido da palavra está

sempre ligado a uma aniquilação. Como maravilha inquietante, a

linguagem oferece significado ao que suprime. “A palavra me dá o

ser, mas ele me chegará privado de ser. Ela é a ausência da palavra

desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o

único fato que ele não é.”xxi

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Aline Magalhães Pinto

38 ISSN 1414-9109

No que consiste a singularidade da interpretação da filosofia

hegeliana de Blanchot? Para o Blanchot de La littérature et le droit à

la mort, assim como para Bataille em, por exemplo, L’experiènce

intérieure, trata-se antes de tudo da leitura de Kojève sobre a

filosofia hegeliana. Esta leitura tem como propósito fazer uma

apresentação total da filosofia hegeliana e da experiência humana

tendo como horizonte o fim da história. Por sua vez, Bataille - que

apresentou o pensamento de kojève a Blanchot - pensa a

possibilidade do Sagrado e da soberania no mundo pós-guerra

segundo uma exigência antropológica, estando sempre atento à

negatividade sem emprego traduzida pelo riso e pelo gozo.xxii

Já Maurice Blanchot transpõe a totalidade do movimento

hegeliano para a região antropológica da literatura. Centralizando a

figura do escritor, ele transforma o trabalho de escrita na forma de

trabalho por excelência. Nesta transposição, sua leitura se

singulariza. Ele extrai, da leitura de Kojève, uma concepção de

literatura autônoma e legítima calcada em um uso específico da

metáfora da morte, concebendo um escritor submetido à estranha

condição de, já estando morto, estar condenado a trabalhar

(escrever) para morrer infinitamente. xxiii

A Literatura é uma forma de ocupação antropológica que

realiza no escritor um modo de efetivação do estar-no-mundo livre

somente na medida em que a experiência se mantém presa à

negatividade dialética da linguagem: questionamento, aniquilação,

superação e conservação da vida ausente.

Indeferida pela história, a literatura joga por um outro lado. Se não

está realmente no mundo, trabalhando para fazer o mundo. É porque,

por sua falta de ser (de realidade inteligível), ela se relacionada com a

existência ainda desumana. Sim, ela reconhece, existe em sua

natureza um deslizamento estranho entre ser e não ser, presença,

ausência, realidade e irrealidade. O que é uma obra? Palavras reais e

uma história imaginária, um mundo onde tudo o que acontece é tirado

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Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura

em Maurice Blanchot

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 39

da realidade, e esse mundo é inacessível. Personagens que se

querem vivos, mas sabemos que sua vida é feita de não viver (de

permanecer na ficção); então, um puro nada? Mas o livro está ali, nós

o tocamos, as palavras são lidas, não podemos muda-las; o nada de

uma ideia, do que só existe compreendido? Mas a ficção não é

compreendida, é vivida sobre as palavras a partir das quais se realiza,

e é mais real, para mi que a leio ou a escrevo, do que muitos

acontecimentos reais, pois se impregna de toda a realidade da

linguagem e se substitui à minha vida, à força de existir.xxiv

Numa época em que o esquecimento se torna a forma política

possível, Blanchot constrói esta concepção da literatura como

abertura, uma revelação dentro do vazio do esquecimento que, ao

mesmo tempo, conserva-se como uma impostura. Finalmente, em La

littérature et le droit à la mort, anuncia-se a literatura como espaço

literário. A análise de La littérature et le droit à la mort apontou para a

relação metafórica entre poder-morrer e poder-escrever, que culmina

na situação de um escritor situado como centro tenso de uma

dialética decapitada, descrevendo o movimento do fenômeno literário

e seu encontro com a metáfora da morte.

Notas e referências

Doutoranda do Programa de História Social da Cultura da Pontifícia

Universidade Católica (Puc-Rio), orientada pelo Professor Doutor Luiz

Costa Lima.

Contato: [email protected] i Para um maior aprofundamento acerca das políticas editoriais e

circulação de revistas na França do imediato pós-guerra, bem como da

importância do papel destas revistas para a reconstrução do ambiente

cultural francês Cf. Histoire de l'édition française 4. Le Livre concurrencé

1900-1950. sous la dir. deHenri-Jean Martin, Roger Chartier et Jean-

Pierre Vivet Paris : Promodis, 1986 p. 143-155.

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Aline Magalhães Pinto

40 ISSN 1414-9109

ii Blanchot, Maurice. La part du feu, Paris, Gallimard,1949,. A partir deste

momento, para citações literais, A parte do fogo – tradução de Ana

Maria Scherer. Rio de janeiro, Rocco, 1997; a referência ao original

segue entre colchetes. Para as demais citações a referência é a obra

original, indicada por (a). iii Blanchot, M. idem. p. 305 (a).

iv Blanchot, M. idem, p. 292 [p. 306].

v Alexandre Kojève entre 1933 à 1939 à l’école des Hautes-Études

(EHESS) proferiu uma série de seminários sobre a Fenomenologia do

Espírito. As anotações destes cursos foram posteriormente reunidos em

Introduction à la lecture de Hegel. Através dos seminários, mas também

através de sua atividade intelectual na revista Recherches

philosophiques,Kojève marca profundamente a comunidade universtária

dos anos 30-50 na França, fixando por algumas décadas, até mais ou

menos o fim do século XX, uma imagem de Hegel. Os seminaries

tiveram como ouvintes, entre outros, Georges Bataille, Raymond

Queneau, Gaston Fessard, Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan,

Raymond Aron, Roger Caillois, Éric Weill, Georges Gurvitch, Raymond

Polin, Jean Hyppolite et Robert Marjolin. Cf. Jarezyk, Gwendoline e

Labarrière, Pierre-Jean. De Kojève à Hegel – Cent cinquante ans de

pensée hégélienne em france. Paris: Éditions Albin Michel, 1996. P. 29 e

ss vi Blanchot, M. idem. p. 307 (a)

vii Hegel, G [1807] HEGEL, G.W.F. In. Prefácio à Fenomenologia do

Espírito. Tradução: Henrique Claúdio de Lima Vaz. São Paulo: Nova

Cultural, 1999. p. 305. viii

Blanchot,M. idem. p. 296 [p. 310]. ix Blanchot, M. idem. p 312 (a).

x Blanchot, M. idem. p. 315-316 (a).

xi Blanchot, M. idem. p. 304 [p. 318].

xii Blanchot,M. idem p. 303 [p. 317-318].

xiii Blanchot, M. idem. p. 305[p. 319].

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Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da literatura

em Maurice Blanchot

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 41

xiv

Cf. KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel: Leçons sur

La Phénoménologie de l’Esprit professées de 1933 à 1939 à l’école des

Hautes-Études réunies et publies par Raymond Queneau. Paris:

Gallimard, 1947. Tradução brasileira: Estela dos Santos Abreu. Rio de

Janeiro: Ed. UERJ; Contraponto, 2002. xv

Blanchot, M. idem, p. 307 [p. 322]. xvi

Blanchot, M. idem, p. 322] (a). xvii

Blanchot, M.idem. p. 308 [p. 323]. xviii

Blanchot, M. p. 324 (a). xix

A ideia de Terror está diretamente relacionada ao livro Les Fleurs de

Tarbes, em que jean Paulhan defende que a ojeriza a qualquer

convenção literária, iniciada com o romantismo moderno e, por fim,

transformada em um tipo de neurose na literatura da alta modernidade

era uma forma de terror. O terror seria, explicitamente, a preeminência

do pensamento sobre as regras e uso da linguagem. Blanchot publica

um artigo sobre a obra de Jean Paulhanxix

, chamado Le mystère dans

les lettres, publicado em1941 no Journal des débats, foi re-publicado,

assim como La littérature et le droit à la mort, em La part du feu. A

interpretação de Blanchot radicaliza o argumento de Paulhan, e afirma o

“terror” como exatamente o que a literatura tem de mais próprio. xx

Blanchot, M. idem 341-342 (a). xxi

Blanchot, M. idem. p. 311 [p. 325]). xxii

Cf. BATAILLE, G. L’experience intérieure. [1943] Paris, Gallimard, 2009. xxiii

Blanchot, M. idem. p. 339 (a) xxiv

Blanchot, idem. p. 341 (a)

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42

Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de

Professores: o caso do Instituto de Educação do

Distrito Federal (1935-1937)

Aline Santos Costa

A relação que se estabelece entre a Escola e a Literatura Infantil, no

Brasil, data aproximadamente do século XIX. No entre séculos, os

escritores Olavo Bilac e Manuel de Bonfim escreveram, em conjunto,

livros de poesias e contos infanto-juvenis que tinham como alvo os

alunos das escolas públicas brasileiras1. Na década de 1920,

Monteiro Lobato também teve seus livros infantis adotados por

algumas escolas e, tal expansão da Literatura Infantil continuou

crescendo nos anos de 1930, principalmente a partir de novas ideias

acerca da educação, propagadas sobretudo pelo movimento

denominado ―Escola Nova‖2. A ―Escolarização‖ do livro infanto-juvenil

se faz sentir, nesse período não apenas na adoção desse tipo de

literatura pelas escolas, mas também pela própria classificação que é

estabelecida para esse gênero. Algumas histórias são classificadas

de acordo com a faixa etária das crianças, princípio semelhante ao

usado para dividí-las em turmas escolares. Outro indicativo desse

crescente uso do livro infanto-juvenil nas escolas, é a criação de

disciplinas que visavam habilitar as futuras professoras para

trabalharem com os livros infantis em sala de aula. O caso que será

aqui melhor estudado é o do Instituto de Educação do Distrito

Federal, entre os anos d 1935 e 1937.

Para melhor compreender o papel da disciplina ―Literatura

Infantil‖ na formação de professores no Instituto de Educação, é

necessária a análise da ementa da disciplina que, de 1935 a 1937, foi

assinada pela educadora Elvira Nizynska da Silva (professora

assistente de Ensino de Leitura e Materiais de Ensino, entre 1934 e

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Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de

Educação do Distrito Federal (1935-1937)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 43

1937). A ementa é dividida em Objetivos (gerais e específicos) e

bibliografia. Na primeira parte, é explicitado que:

Ao lado dos objetivos de pura informação como o da significação

social da literatura, sua finalidade, gêneros literários, etc, a matéria

possui como função educativa geral, que pode assim ser discriminada:

(A) A literatura, como aprendizagem de apreciação, tendo por finalidade o

cultivo de sentimentos: educação estética e a formação de ideais de

ação;

(B) A literatura e as suas relações com as outras disciplinas; auxilio

prestado à motivação de outras aprendizagens, e a aquisição de

certas habilidades.3

O primeiro objetivo explanado apresenta questões que já nos

apontam certa aproximação com o chamado movimento de

Renovação do Ensino (ou, Escola Nova): a formação de ideiais de

ação. Nesse sentido, a Literatura Infantil deveria ser compreendida a

partir de uma função educativa, formando o gosto pela leitura, e os

sentimentos infantis. No período de 1930, com o movimento de

renovação do ensino, a chamada Educação Estética era fundamental.

Para muitos educadores, que comungavam dessas ideias, o ensino

da música, do desenho e, principalmente, da literatura eram

fundamentais para cultivar nas crianças e nos jovens, bons

sentimentos (entendidos aqui como amor à pátria, à escola, à família,

etc). O ―culto ao belo e ao harmônico‖ seria, então, uma forma de

também de inspirar esses sentimentos. Todavia, a estética não é

imutável ou atemporal. Ao contrário, varia de acordo com a sociedade

analisada e com o momento histórico nela vivenciado. Assim, é

importante compreender aquilo que, provavelmente, esperava-se de

um livro de literatura infantil com valor estético.

Apesar de não constar, ao menos no programa da disciplina,

clara concepção estética acerca do livro infantil, a professora

encarregada de ministrar o curso, Elvira Nizynska, escreveu algumas

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Aline Santos Costa

44 ISSN 1414-9109

considerações a esse respeito, no artigo intitulado ―O problema da

Literatura Infantil‖, que foi publicado na revista Infância, em 1936.

Segundo a educadora, o que se esperava de um bom livro

infantil era:

Se a literatura infantil souber tirar partido desses interesses naturais,

guiando, expandindo e apurando o gosto das crianças, aos poucos irá

aparecendo a exigência de maior sinceridade nas histórias; o desejo

do conhecimento do mundo que rodeia a criança, crescerá com um

pendor acentuado, nos anos que precedem a adolescência, para as

situações em que se faça sentir o predomínio da força, da coragem,

da beleza, do estoicismo. E um período ideal para dirigir as crianças

no sentido de apurar seu gosto estético, dar-lhes ideais nobres de

ação; desenvolver, convenientemente, seus sentimentos, afastando-a

do sentimentalismo piegas e pernicioso. [...]4

Nesse primeiro momento do artigo, Nizynska ressaltou a ideia

da função do livro infanto-juvenil na vida cotidiana das crianças. Além

da formação das crianças em leitores, a literatura infanto-juvenil

deveria ter o compromisso em também educá-los enquanto cidadãos.

Para atingir esse papel educativo, o livro infantil deveria, sobretudo,

partir dos interesses infantis. Tipos de histórias (aventuras, romances,

lendas, contos, etc) preferidos pelos petizes, deveriam ser

trabalhados de modo a direcionar, aos poucos, a leitura para o

objetivo principal (educar, ao mesmo tempo em que a criança se

diverte). No mesmo artigo, Elvira Nizynska apontou aquilo que

considera como valor estético dos livros infanto-juvenis:

Mas quais as qualidades essenciais aos livros, para que tal finalidade

seja alcançada?

Antes de tudo, arte.

Arte na apresentação material do livro, afim de que ele seja um

estímulo agradável. Até na linguagem, que deve corresponder a

simplicidade, a clareza, a correção, sem preciosismo de estilo e

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Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de

Educação do Distrito Federal (1935-1937)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 45

rebuscamento de termos, sem emprego de termos grosseiros de

gíria[...]

A arte no enredo, isto é, fantasia delicada, dentro dos interesses

dominantes nas crianças, em determinadas situações reais, embora o

elemento de ficção ali se deva fazer sentir; soluções felizes, sem

recurso a absurdos, incidentes jocosos que mostrem os aspectos

pitorescos da vida, sem abuso do grotesco, e muita ação, muita

vivacidade, muita imaginação com uma preocupação dominante da

―formação moral‖ da nossa infância [...]5

No quesito estética, para a educadora, o livro infantil deveria ter

assuntos ―leves‖ (sem tramas muito complexas ou que provocassem

sentimentos de angústia ou medo), de acordo com os interesses

infantis. Deveria também privilegiar a formação moral, a ação dos

personagens e o final feliz. Nesse estilo literário, a fantasia deveria

ser explorada em harmonia com as demais características do livro.

Vale ressaltar que a presença do elemento fantástico nos livros

infanto-juvenis foi, por muitos educadores, condenada. O próprio

Lourenço Filho ponderava que, em alguns casos, a fantasia poderia

interferir negativamente no conhecimento sobre o mundo (esse era

um dos motivos que o levava a desaprovar histórias com animais e

objetos inanimados falantes)6. Aqui, ao contrário, Nizynska salientou

a importância desse elemento, apontando que fazia parte do próprio

processo de crescimento cognitivo e psicológico das crianças.

O segundo objetivo, por sua vez, também dá indícios a respeito

da orientação que se quer renovadora, da disciplina. Esse indício é a

visão de que a literatura infantil deveria estar relacionada com o

ensino e aprendizado de outras disciplinas. Esse segundo objetivo

vem ao encontro do que o educador Fernando de Azevedo

ponderava. Segundo ele, o grande problema do ensino de literatura

(como um todo e não apenas a literatura infantil) era a preocupação

com a formação de futuros escritores, e não com a formação de

leitores. Para o educador, a literatura só fazia sentido se os leitores

fossem envolvidos pelas histórias, motivados a ―seguir viagem‖ com o

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Aline Santos Costa

46 ISSN 1414-9109

livro. A leitura, pois, deveria ter ações práticas, efetivas no cotidiano

daqueles que a praticassem. Relatos de algumas alunas do Instituto

de Educação demonstram essa relação estabelecida entre a literatura

infantil e as demais áreas do saber. Nas aulas, Elvira Nizynska

costumava ensinar às crianças a lerem através de histórias infantis.

Para melhor entender os objetivos da disciplina, é importante

compreender a importância da leitura para o movimento renovador.

No período de criação da matéria de ―Literatura Infantil‖, o Instituto de

Educação do Distrito Federal foi dirigido por dois importantes

expoentes da Escola Nova, no Brasil: Anísio Teixeira e Lourenço

Filho. O primeiro, enquanto Diretor Geral de Ensino do Distrito

Federal, em 1934, criou a Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco,

coordenada por Cecília Meireles. Além de biblioteca, o Pavilhão

Mourisco também oferecia às crianças, aulas de dança, teatro infantil

e música7. Havia, à época, por parte de alguns críticos, a acusação

de que a Escola Nova não dava a devida importância aos livros e a

leitura. Tal crítica derivava da ideia de que os renovadores

preconizavam o Ensino Ativo (através de atividades práticas, de

observação e experimento, sem grandes preocupações com a

leitura). Contudo, tanto a gestão de Anísio Teixeira na Direção e

Instrução Pública (até 1935) e a de Lourenço Filho no Instituto de

Educação (quando houve a organização da biblioteca, para alunos e

professores) demonstram justamente o oposto das críticas. A

mudança não estava no ―não uso‖ dos livros, mas sim, no seu papel.

Para os renovadores, a Criança (ou o aluno) era o centro da atenção

educativa. Assim, a leitura deveria respeitar os limites e

características desse público-alvo8.

Respeitando os limites de cada aluno, a leitura privilegiada

passou a ser a silenciosa. Além disso, uma vez que era a criança o

―centro de ação‖ educativa, os gostos literários infantis também

passaram a ser um importante aliado dessa ―nova literatura infanto-

juvenil‖ que, nas palavras de Elvira Nizynska, em parecer à Comissão

de Literatura Infantil, deveria recrear e educar, ao mesmo tempo.

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Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de

Educação do Distrito Federal (1935-1937)

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Sobre isso, Nizynska publicou, em 1936, um artigo na Revista

Infância, no qual, apontava algumas pesquisas feitas com crianças da

Escola Primária do Instituto de Educação, buscando verificar quais os

principais gostos literários das crianças a partir da idade, sexo, série

escolar, aos quais o leitor estava inserido9. Assim, buscava-se uma

literatura que, além do carater educativo, tivesse também de acordo

com os interesses infantis, privilegiando também a formação estética

do leitor (os livros deveriam ser belos, simples, em acordo também

com o desenvolvimento cognitivo das crianças).

Olha, era a professora Elvira Nizynska. Agora me lembrei o nome

dela. Ela usava as historietas infantis para ensinar o início da leitura e

as histórias. Era a melhor forma para despertar o interesse,

curiosidade e desejo para saber ler e reler tais histórias. Nós

usávamos [a literatura infantil] e adaptávamos de acordo com o meio

cultural das crianças (...) Dessas histórias tirávamos as frases

principais no ou do enredo, fazíamos tais frases no quadro negro. Elas

[as crianças] depois escreviam ‗no ar‗ as frases; a seguir, no quadro

negro (sem que apagássemos) e depois era destacadas tais ou

determinadas palavras, cujas letras se encontravam em sacos

individuais (alfabeto repetidos várias vezes, principalmente as vogais)

para cada aluno escrever e ler‗ sem usar a soletração. (OLIVEIRA,

Helena Silva de In: VIDAL, Diana: p. 22)10

.

Além dos objetivos e do uso prático das histórias infantis, a

disciplina também apresentava bibliografia de curso que nos faz

compreender melhor a relação entre a Escola Nova e a criação dessa

disciplina no Instituto de Educação.

b) Livros para consulta, para estudo comparativo e discussão:

- Claparède – Psicologia del niño;

- Helena Antipoff – Ideais e interesses das crianças de Belo Horizonte;

- Marcel Braunsclavid (Revista do Brasil – outubro de 1921) – A

Literatura Infantil.

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48 ISSN 1414-9109

c) Leituras recomendáveis:

- Sampaio Doria – Educação;

- Kilpatrick – Educação para uma civilização em mudança;

- Binet – Les idées modernes sur les enfants;

- Claparède – Educação Funcional;

- Dewey – Como pensamos;

- Piaget – Le lengage et la pensée chez l‗enfant.11

A maioria dos autores apresentados na lista de livros

recomendados pela professora é composta por teóricos da chamada

Escola Nova ou por estudiosos que ajudaram a pensar a criança

naquele momento. Piaget é um nome importante, pois classifica a

criança conforme a idade e o desenvolvimento cognitivo. Foi com

base nos estudos de Piaget que as escolas passaram a dividir seus

alunos em turmas. Na comissão há toda a preocupação em

classificar — de acordo com o nível de complexidade, de linguagem e

de tema — os livros infantis por idade. Levavam-se em consideração

dois aspectos: o interesse da criança e seu nível de desenvolvimento

cognitivo. Já os estudos de Edouard Claparède em ―Psicologia da

Criança‖, lança mão de pesquisas recentes sobre o universo infantil

para apresentar considerações acerca dos interesses, das melhores

maneiras de estimular o desenvolvimento cognitivo da criança. John

Dewey – considerado por muitos como o precursor da Escola

Nova – apresenta a importância do desenvolvimento de uma nova

educação para uma sociedade em constantes transformações.

Os autores que nortearam a disciplina Literatura Infantil, não

apenas apresentaram novas concepções acerca da educação, mas

também – e principalmente – em relação ao estatuto psicossocial da

criança. Uma vez entendida como centro de toda ação pedagógica, a

criança passa a ter seus interesses, gostos e sentimentos levados em

consideração (embora nem sempre eles prevaleçam no caso da

escolha dos melhores livros infanto-juvenis). Essa nova percepção

sobre a infância – enquanto fase do desenvolvimento humano –

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Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de

Educação do Distrito Federal (1935-1937)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 49

também se refletiu naquilo de era destinado aos petizes. No caso da

literatura infantil, o conhecimento apresentado por Piaget, por

exemplo, a despeito das fases do desenvolvimento, auxiliaram a

desenvolver a classificação etária dos livros infantis (de acordo com a

linguagem, com o tipo de história, de fantasia apresentada).

Além de aprenderem a trabalhar, em sala de aula, a usar a

literatura infanto-juvenil, as professorandas também aprendiam a

classificar os livros destinados às crianças, bem como avaliá-los. Dos

quesitos a serem avaliados estavam:

VI – Requisito que deve preencher um livro de literatura infantil:

Texto;

Organização: unidade, atualidade e exatidão de noções.

Adaptação aos interesses básicos das crianças

Qualidades artísticas.

Linguagem: propriedade, correção, clareza e simplicidade.

Feição Material.

Formato.

Encadernação

Papel.

Impressão.

Gravura. 12

As professoras em formação deveriam, quando escolher os

livros para serem trabalhados, considerar também as dimensões

materiais das obras (tamanho, número de páginas, encadernação,

papel). Os preferenciais deveriam ser aqueles acessíveis, que fossem

fáceis de serem carregados pelas crianças, de modo que os petizes

pudessem ler onde melhor lhes agradassem. Uma boa impressão e

linguagem simples, clara e correta, também eram quesitos

fundamentais. O exercício de escolherem os livros infantis ideais para

o trabalho na escola fazia, então, parte da formação docente nesse

período. A presença da escola nova se fazia aí presente não somente

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Aline Santos Costa

50 ISSN 1414-9109

pelas discussões teóricas, ou pelas práticas planejadas para serem

trabalhadas em aula com os alunos da escola elementar do Instituto

de Educação (onde as normalistas faziam o estágio docente), mas

também na estruturação do próprio curso de Literatura Infantil).

Outra parte da Ementa que nos leva a pensar sobre isso é a

destinada a explanar os ―processos de trabalho‖ (ou seja, a mameira

como se desenvolverá a disciplina).

4. Processo de trabalho:

Dissertação pelo professor, das noções básicas necessárias ao

estudo da matéria.

Pesquisas bibliográficas para o estudo da evolução dos interesses

nas crianças conhecimento de inquéritos realizados no Brasil e

estrangeiro sobre Literatura Infantil.

Leituras e apreciação de livros de literatura infantil.

Discussão sobre bibliográfico colhido pelos alunos.

Discussão sobre livros de literatura infantil para a apreciação e

classificação dos mesmos.

Inquéritos sobre interesses e ideias das crianças.

Inquérito sobre tipos de leitura preferidos pelas crianças, nas

diferentes idades e classes. 13

O incentivo à pesquisa sobre os gostos das crianças é

salientada nos dois últimos ítens do programa (―Inquéritos‖). A

construção do conhecimento por meio de discussões e pesquisas é

uma novidade trazida pelo ensino renovador. Os trabalhos realizados

pelas educandas foi citado por Elvira Nizynska no artigo publicado em

Revista Infância. Segundo a professora, o trabalho foi realizado pelas

professorandas e ―entrevistou‖ crianças da Escola Primária do

Instituto de Educação, além de crianças das famílias das alunas14

.

Por fim, podemos então perceber que o processo de

escolarização do livro infantil é muito mais complexo e envolve não

apenas a adoção de certos livros pelas escolas ou, ainda, a

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Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de

Educação do Distrito Federal (1935-1937)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 51

―pedagogização‖ das histórias infantis. Antes de mais nada, exige

definir o público - alvo desejado, compreender seus gostos e definir

critérios ―ecléticos‖ para avaliar os livros que serão destinados a ele.

Ao mesmo tempo, esse processo exige que a escola crie espaços

que disponibilizassem os livros aos alunos, uma vez que nem todos

teriam condições de comprar os livros infantis. As bibliotecas

escolares e as infantis, por sua vez, passam a ser pensadas tendo

como foco não mais o entesouramento as ―obras da humanidade‖,

mas a interação da criança com o livro e com o espaço. E essas

mudanças foram, então, iniciadas pelo movimento de renovação do

ensino15

. Em 1935, no Instituto de Educação, foi elaborada uma

monografia que constava como ―plano de ensino de linguagem e

leitura‖16

e muitas dessas ideias ―novas‖ de leitura, importância da

biblioteca e papel do professor como mediador entre aluno e o livro

foram ressaltadas. A disciplina Literatura Infantil, então, pode ser

entendida como uma das faces desse projeto de escolarização da

leitura (e da literatura infantil) implementado pelos educadores da

Escola Nova.

Notas e referências

Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato:

[email protected]

1 LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e

literatura escolar na

república velha. São Paulo: Ática, 1998.

2 COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São

Paulo: Editora Moderna;

2000.

Page 51: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Aline Santos Costa

52 ISSN 1414-9109

3 SILVA, Elvira Nizynska da. Ementa da Disciplina Literatura Infantil.

Publicação do Instituto de Educação & Universidade do Distrito Federal

– Rio de Janeiro – Brasil. Vol. I, março de 1937. (Localização: Centro de

Memória Institucional do Instituto de Educação do Rio de Janeiro).

4 SILVA, Elvira Nizynska da. ―O problema da Literatura Infantil‖. In:

Revista Infância. Julho de 1936. (Acervo de Periódicos da Biblioteca

Nacional).

5 Idem.

6 Ver: COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil/

Juvenil. Ática, São Paulo, 1991.

SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes: uma história da

formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo

Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP, 2007

7 PIMENTA, Jussara Santos. Leitura, arte e educação: a biblioteca infantil

do Pavilhão Mourisco (1934- 1937). Editora CRV: Curitiba; 2011.

8 VIDAL, Diana Gonçalves. O exercício disciplinado do olhar: livros,

leituras e práticas de formação docente no Instituto de Educação do

Distrito Federal (1932-1937). Bragança Paulista, São Paulo: Editora

Universidade São Francisco; 2001.

9 Sobre pesquisas e gostos infantis, e sua relevância para a definição de

literatura infantil ver:

COSTA, Aline Santos. A Comissão Nacional de Literatura Infantil e a

formação do público leitor infanto-juvenil no Governo Vargas (1936-

1938). Dissertação de Mestrado defendida pelo PPGHIS/UFRJ; Rio de

Janeiro; 2011.

10 Apud. VIDAL, Diana Gonçalves. O exercício disciplinado do olhar: livros,

leituras e práticas de formação docente no Instituto de Educação do

Distrito Federal (1932-1937). Bragança Paulista, São Paulo: Editora

Universidade São Francisco;p.22. 2001

11 SILVA, Elvira Nizynska da. Ementa da Disciplina Literatura Infantil.

Publicação do Instituto de Educação & Universidade do Distrito Federal

– Rio de Janeiro – Brasil. Vol. I, março de 1937. (Localização: Centro de

Memória Institucional do Instituto de Educação do Rio de Janeiro).

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Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores: o caso do Instituto de

Educação do Distrito Federal (1935-1937)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 53

12 Idem.

13 Idem.

14 SILVA, Elvira Nizynska da. ―O problema da Literatura Infantil‖. In:

Revista Infância. Julho de 1936. (Acervo de Periódicos da Biblioteca

Nacional).

15 VIDAL, Diana Gonçalves. O exercício disciplinado do olhar: livros,

leituras e práticas de formação docente no Instituto de Educação do

Distrito Federal (1932-1937). Bragança Paulista, São Paulo: Editora

Universidade São Francisco; 2001.

16 INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS. Linguagem na

Escola Elementar. Rio de Janeiro: 1935.

Page 53: Baixar Revista Dia-Logos 2013

54

“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco

na vida política

Amanda Muzzi Gomes

O jovem Joaquim Nabuco

Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em 1849, filho de

Ana Benigna de Sá Barreto e José Tomás Nabuco de Araújo, ex-

presidente de província, então deputado geral e futuro senador do

Império do Brasil. Os Nabuco de Araújo constituíam uma influente

família baiana, com senadores desde o Primeiro Reinado. Os Paes

Barreto eram extremamente influentes em Pernambuco desde o

século XVI. Quando sua família estabeleceu residência no Rio de

Janeiro, em razão de seu pai ter sido novamente eleito deputado

geral, Nabuco permaneceu com a madrinha, no Engenho

Massangana, em Pernambuco. Quando Ana Rosa Falcão de

Carvalho morreu, em 1857, Nabuco foi morar com os pais no Rio de

Janeiro. Como quase todos os jovens oriundos de família com

cabedal político, Nabuco estudou Direito, iniciando os estudos na

Faculdade de São Paulo e concluindo-os na Faculdade de Direito de

Recife. Pouco depois de ingressar na universidade, teve sua primeira

atuação no jornalismo. Foi um dos fundadores do jornal Tribuna

Liberal, criado para atacar o gabinete Zacarias de Góes e

Vasconcellos, em ação juvenil que muito desagradou seu pai.

O conselheiro Nabuco, então, tomou o impulso de iniciar os

filhos Joaquim, mais velho, e Sizenando no mundo da política,

levando-os a reuniões do Centro Liberal, em 1868. Beneficiando-se

das discussões que presenciava e dos primeiros contatos em círculo

de notáveis da política nacional, Nabuco escreveu seu primeiro

livreto, O Povo e o trono – profissão de fé política, sob o pseudônimo

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“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 55

de “Juvenal, Romano da decadência”.i Como todo e qualquer texto,

este escrito de iniciação foi marcado pelo seu contexto de produção.

Atentemos, portanto, ao panorama político, o de mais intensa

recomposição e realinhamento políticos do Segundo Reinado, em

que estava imerso o jovem Nabuco.

O desmonte da lógica da Conciliação

O Ministério da Conciliação, iniciado em 6 de setembro de 1853, foi

assim chamado porque cargos da administração e do parlamento

foram dados a liberais estando os conservadores no poder. Sua

direção coube a Honório Hermeto Carneiro Leão, visconde e

posteriormente marquês de Paraná.ii O conselheiro Nabuco de

Araújo, chefe conservador, foi um dos políticos que mais defendeu a

harmonização entre os elementos moderados dos dois partidos,

como no discurso de 6 de julho, apelidado pelos parlamentares de

“ponte de ouro”.iii

Com as eleições de 1860, entretanto, a oposição liberal

cresceu, e voltaram à Câmara vários liberais históricosiv, como Teófilo

Otoni. Os anos de 1860 a 1862 se caracterizaram por uma forte

oposição aos emperrados.v A maioria parlamentar não foi capaz de

garantir efetiva governabilidade aos conservadores, que se dividiram

entre as lideranças tradicionais e as novas, mais moderadas.

Tal esfacelamento intra-partidário fez com que os

conservadores herdeiros da conciliação iniciassem uma dissidência e

se aliassem aos liberais históricos, em outra coalizão, a Liga

Progressista. Na articulação desta nova composição destacaram-se

dois chefes políticos: no Senado, o seu principal mentor, o

conservador dissidente Nabuco de Araújo; na Câmara, o liberal

Zacarias de Góis e Vasconcelos. Eles conseguiram retirar os

conservadores do poder e iniciaram um novo gabinete, agora de

primazia liberal.vi

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Amanda Muzzi Gomes

56 ISSN 1414-9109

A Liga Progressista levou adiante o ideal da harmonização dos

partidos, subjacente à conciliação, mas agora sob a égide liberal. De

bloco parlamentar a nova composição transformou-se no Partido

Progressista, em 1864, o primeiro partido formalmente criado no

Brasil. Seu programa demandava, entre outros fatores, a

descentralização, tese clássica dos liberais, e a responsabilidade dos

ministros pelos atos do Poder Moderador.vii

Embora nem tenha sido

publicado, este foi o primeiro programa político elaborado por um

partido no país.

O predomínio liberal da aliança progressista era incerto, sendo

frequentes as mudanças de posições partidárias. O período

progressista foi o de maior instabilidade ministerial do Império.viii

O

caráter volúvel já começou com o primeiro gabinete, de Zacarias, de

1862, que durou apenas seis dias. Até a reação conservadora, em

1868, sucederam-se cinco ministérios.ix

A Guerra do Paraguai veio jogar mais água no moinho das

volatilidades políticas, fazendo com que as discussões sobre relações

estrangeiras e demarcação de fronteiras, particularmente com a

invasão brasileira ao Uruguai e o bloqueio de Montevidéu, afetassem

a política doméstica. Diante de um conflito externo, os partidos

brevemente abrandaram suas animosidades. Mas a calmaria

partidária durou menos do que as circunstâncias exigiam, em parte

pelo próprio prosseguimento da Guerra, dado o adiamento de

operações, os problemas de organização e a resistência paraguaia.x

De um apoio inicial à Guerra, os parlamentares começaram a

questionar a centralização das operações pelo gabinete e erros de

comando das estratégias bélicas. Conflitos de bastidores foram

travados entre o progressista Zacarias, presidente do Conselho

de Ministros, e o marquês de Caxias, general em chefe, do

Partido Conservador.

Para não desagradar o comandante das tropas brasileiras,

Pedro II, fazendo uso do poder moderador, chamou Zacarias para

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“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 57

indicar o seu sucessor. Como Zacarias pediu para ser dispensado de

fazer a indicação, ele foi destituído. O Partido Progressista se

desintegrou, até porque já vinha sendo minado internamente

pela própria divisão pela qual se formou: liberais históricos e

conservadores dissidentes. Todavia, o fim do Partido Progressista

não significou um recuo dos liberais. Muito ao contrário, iniciou-se

movimento de violentos ataques ao Poder Moderador e novas

recomposições partidárias.

Para compor novo gabinete, Pedro II chamou Joaquim José

Rodrigues Torres, o visconde de Itaboraí, antigo líder do Partido

Conservador e um dos integrantes da trindade saquarema, que

aceitou o convite para o que ele mesmo chamou de “perigosa

tarefa”.xi O início do novo gabinete, a 16 de julho, ocasionou mais

uma crise partidária: a separação definitiva entre liberais e

conservadores e nova cisão entre os liberais.

Desde o início do primeiro gabinete Zacarias (24 a 30 de maio

de 1862), os liberais e os progressistas (a partir de 1864) estavam no

poder. Apesar de divididos, com maioria nas duas casas

parlamentaresxii

, os progressistas reagiram bruscamente à nova

situação conservadora, vista como reacionária. Um dos políticos que

mais influenciou a onda de ataques à figura do imperador e ao

falseamento do sistema representativo foi Nabuco de Araújo. Teve

bastante repercussão o seu discurso proferido na sessão do Senado

de 17 de julho de 1868:

O Poder Moderador não tem o direito de despachar ministros como

despacha delegados e subdelegados de polícia. [...]

Ora, dizei-me, não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro

absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país?

Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do

sistema representativo: o Poder Moderador chama a quem quer

para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de

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Amanda Muzzi Gomes

58 ISSN 1414-9109

fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis, aí está o sistema

representativo do nosso País! xiii

O discurso do senador Nabuco funcionou como reforço ao

ataque às usurpações do Poder Moderador. Reativaram-se nas

fileiras liberais os brados contra o poder pessoal ou “imperialismo”.

Apesar de antigo, esse havia sido o mote de críticas do período de

governo da Liga/Partido Progressista. No momento de sua queda,

acabou sendo intensificado.

Principalmente na Corte e em São Paulo todas as ocasiões

eram aproveitadas para combater os excessos da centralização.

Entre a juventude acadêmica, o antimonarquismo levou a uma

significativa adesão ao republicanismo.

Resolvidos a reorganizar o Partido Liberal, líderes da

dissidência progressista, como Nabuco de Araújo e Zacarias

fundaram o Centro Liberal, ainda em 3 de outubro de 1868, presidido

pelo primeiro.xiv

O Centro se tornou o embrião do (novo) Partido

Liberal, criado no ano seguinte, cuja conformação se manteve, sem

se subdividir, até o fim da monarquia.

Nabuco de Araújo redigiu o Manifesto do Centro Liberal,

publicado em 30 de março de 1869, com árduas críticas ao ministério

Itaboraí. A legenda proclamada no Manifesto, “Reforma ou

revolução!”, ajudou a bandeira reformista a ganhar amplitude em um

momento prenhe de insatisfações. Em maio, nas páginas do jornal A

Reforma, os membros do Centro Liberal apresentaram um vasto

programa de reformas: eleição direta; abolição gradual da escravidão,

iniciando-se com a libertação do ventre; descentralização;

vitaliciedade do Senado; reforma do Conselho de Estado; redução

das forças militares em tempos de paz; extinção da Guarda Nacional;

as reformas judiciárias do programa progressista, entre outros itens.xv

Criticou-se também a reforma do Código do Processo Criminal, que

teria deixado o cidadão sujeito às arbitrariedades policiais

e judiciais.xvi

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“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 59

Foi em 1868 que Nabuco de Araújo colocou o filho para

traduzir documentos publicados pelo Anti-Slavery Reporter, revista da

British and Foreign Anti-Slavery Society de Londres.xvii

O jovem

Nabuco consolidou relações com eminentes políticos liberais amigos

do pai, como o próprio Zacarias e Saldanha Marinho. Foi no clima de

ebulição de fins de 1868 que Joaquim Nabuco, ainda estudante

universitário, escreveu o seu primeiro livreto político, influenciado pelo

ambiente de hostilidades ao imperador.

“O povo e o trono”: retórica e argumentação

O livreto O Povo e o Trono, escrito em fins de 1868 e publicado no

ano seguinte, foi redigido em estilo bem colérico, refletindo a pouca

maturidade de Nabuco, aos dezenove anos. Acabou sendo

praticamente desconsiderado pela historiografia, pois manchava a

imagem criada pelos seus biógrafos. Luiz Viana Filho chegou a

questionar se o panfleto não passaria de um “simples assomo

de mocidade” e concluiu que Nabuco, como jovem apaixonado,

vivendo num momento divisor de águas, não sabia de que lado

se posicionar.xviii

Assim como o biografado fica marcado com as impressões do

biógrafo, aquele cuja vida será traçada, principalmente quando já

redigiu memórias e outros escritos autobiográficos, deixa traços com

os quais espera ser pintado por biógrafos futuros. Como David

Lowenthal adverte, “toda memória transmuta experiência”. Por isso,

“destila o passado mais que o reflete”.xix

Nos seus textos autobiográficos, Nabuco esboçou as marcas

com os quais gostaria de ser visto e retratado pela posteridade. Ao

contar sua história de vida, como observa Bourdieu, o indivíduo atua

como autor de sua própria história, seleciona alguns acontecimentos

em função de uma intenção maior e estabelece entres eles nexos

com o objetivo de garantir uma determinada coerência. Assim, o

indivíduo cria uma retórica ordenadora da descontinuidade do real em

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Amanda Muzzi Gomes

60 ISSN 1414-9109

um esforço de produção de si mesmo. Portanto, a coerência perfeita

de uma história de vida já tem suas bases dadas por quem produz

esta representação de si.xx

Essa é uma das maneiras pela qual se

manifesta a ilusão biográfica. Cria-se uma representação linear,

coerente e acabada, mas que não se relaciona de fato à realidade,

pois, como observa Michel de Certeau, cada homem é “um locus no

qual uma incoerente e frequentemente contraditória pluralidade

de determinações relacionais interagem”.xxi

A coerência e a

perfectibilidade estão longe da existência real, embora sejam anelos

humanos e daí a ânsia do indivíduo em representar a si mesmo neste

padrão. Evidentemente, como não há memória estável e fixa, ela é

(re)atualizada constantemente nas memórias e biografias. Os dois

principais biógrafos de Nabuco, a sua filha Carolina e Luiz Viana

Filho, pintaram-no de maneira similar à que ele mesmo se

representou em Minha Formação. Daí a pouca valorização dos

escritos embora não a atuação da juventude, até finais da década

de 1870, e mesmo da fase radical, na década de 1880. Há um

favorecimento da fase clássica, da proclamação da República em

diante, quando um nostálgico Nabuco pintou a si próprio como mais

sério e moderado.

Carolina descreveu Nabuco como “pouco indulgente para suas

obras de mocidade”.xxii

Foi por isso que ela nem mencionou O Povo e

o Trono, reportando-se ao trabalho incompleto e não publicado A

Escravidão como se fosse o primeiro escrito não literário e não

jornalístico de Joaquim Nabuco.xxiii

A Escravidão, apresentada como o

primeiro livro político de Nabuco, se encaixa muito bem na imagem

que a biógrafa anunciou desde o início para o pai: o “apóstolo da

Abolição”, em prosseguimento à obra do avô como “oráculo

do Senado”.xxiv

Em outra chave interpretativa, Leonardo Dantas Silva vê o

opúsculo, embora “escrito no fervor das paixões”, como “um

verdadeiro libelo contra a monarquia”.xxv

Na parte final, Nabuco

apresentaria tom republicano: “Sejamos um povo livre. Nos cânticos

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“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 61

sagrados da América seja a nossa voz uma harmonia, não uma

dissonância”. Nabuco, de fato, teve um rápido namoro com o

reacender das ideias republicanas em solo brasileiro, até porque essa

aproximação foi típica dos ambientes universitários da virada da

década de 60 à de 70. Entretanto, Nabuco nunca se posicionou de

fato como republicano. Desde a juventude, em seu conteúdo tendeu a

seguir os passos do pai, embora a forma, de fato, fosse bastante

desabrida, com estilo impetuoso de um jovem que queria

causar impacto.

O pensamento político dos estadistas brasileiros do Império

teve nítida inspiração européia, particularmente dos textos legais

franceses, além dos de filosofia que os embasava.xxvi

Logo no início

de O Povo e o Trono, o jovem Joaquim Nabuco também tomou a

França como madrinha do “verbo santo da liberdade moderna”

ouvido pelos povos após a Revolução Francesa. Com forte viés

historicista, após comentários retóricos sobre outras experiências,

Nabuco apresentou o trono como uma “fatalidade” e o povo como

a “liberdade”.

O trabalho do século XIX seria a extinção da realeza. Nos

países que a mantinham, como o Brasil, ela deveria se harmonizar

com o povo. Nabuco, mais do que defender a república, levantou a

bandeira de luta daquele momento do Partido Liberal: o combate ao

Poder Moderador. Só uma “regeneração social” possibilitaria a

substituição do “regime pessoal” pelo “puro governo representativo”.

Apenas quando a “vontade de um só” fosse suplantada pela “voz da

praça pública” haveria, em vez do “imperialismo”, a “democracia”.xxvii

Os conceitos antitéticos assimétricos, profusos no texto de

Nabuco, foram empregados para defender a democracia, e não

propriamente a república, face ao “déspota cruel”. Alguns pares

conceituais antônimos bem simples e explorados no setecentos do

Iluminismo – como verdade e mentira, sombra e luz, tirania e

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Amanda Muzzi Gomes

62 ISSN 1414-9109

liberdade – foram caracterizados por ele como “antíteses eternas, que

se repelem ainda mais na terra americana”.xxviii

Como aponta Reinhart Koselleck, pela própria relação

dicotômica, os conceitos antitéticos assimétricos têm efeito

persuasivo.xxix

Por seu valor argumentativo de fácil inteligibilidade, na

medida em que os pólos são mutuamente excludentes, eles foram

bastante utilizados na oratória moderna, para fins de propaganda

política, e também em panfletos, opúsculos e artigos de jornais. No

caso do primeiro opúsculo de Nabuco, foi com base nesses pares

antitéticos e nas comparações, da realidade brasileira com outras,

que o autor pretendeu convencer o leitor do caráter extemporâneo

da organização política da monarquia brasileira. Apesar de

constitucional, o regime político no Brasil não seguia a senda do

século, pois o “governo pessoal pertence às criações híbridas do

passado”. Assim, o país teria um governo absoluto como o da China

e o do Japão e a Constituição do país seria “um disfarce calvo do

absolutismo turco”.xxx

Daí a argumentação de Nabuco de que “o trono deve ceder ao

impulso do povo”, para que “barco” do Brasil se coloque na “cadência

das ondas” do século. Citando autores europeus e sobretudo

franceses ‒ como Louis Adolphe Thiers, Jules Favre, e Jules Simon –

Nabuco combateu o absolutismo. Outro alvo de crítica, a este

relacionado, era o aulicismo, até porque beneficiava o Partido

Conservador, pois este, “proscrito pelo povo”, foi “reintegrado pela

coroa”, em uma referência indireta à queda de Zacarias. No par

antônimo assimétrico principal, que dá título ao opúsculo, Nabuco

reverberou a crítica do pai no discurso do sorites:

Como ainda se ouse negar que o poder do rei seja o único – quando

se o vê demitindo e nomeando livremente os ministros, que por sua

vez demitem e nomeiam as câmaras, porque de há muito as câmaras

não são as depositárias de um poder extenso como a soberania do

povo [...].xxxi

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“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 63

A mesma crítica que o pai fez, e os liberais bradavam contra o

falseamento do sistema representativo, Nabuco repetiu ao falar das

eleições: “se as eleições não são senão uma comédia ridícula... o

único poder sério, alfa e ômega... princípio e fim de toda autoridade

fica sendo o da majestade imperial”. Nabuco tanto defendeu causas

dos liberais que tratou das divergências entre os partidos do Império,

afirmando que “a mais radical separação dos dois partidos está no

modo de entender a estrutura dos poderes públicos”. Os liberais

demandavam a responsabilidade do Poder Moderador ou a sua

extinção, ao passo que os conservadores queriam o status quo.xxxii

Nabuco tanto se posicionou como um simpatizante do Partido Liberal,

e não de algum republicanismo, que defendeu bandeiras liberais,

tais como:

[...] pedimos como urgente e primeira reforma, garantia necessária à

conservação social – a abolição do poder moderador!

Queremos a responsabilidade ministerial para todos os atos do poder

– porque só assim teremos a verdade da fórmula sobre que assenta o

regime representativo: o rei reina, mas não governa.xxxiii

Foi com base na máxima de Thiers, já antes muito citado pelos

progressistas, que Joaquim Nabuco prosseguiu nas críticas ao Poder

Moderador, particularmente no que se refere à irresponsabilidade,

inviolabilidade e sacralidade do imperador.

Ainda seguindo os preceitos do Centro Liberal, Nabuco

levantou também a bandeira das reformas, apresentando-as como se

fossem demandadas pelo povo. A reforma constitucional seria

imprescindível, uma vez que, para os conservadores, a Constituição é

“o manto esfarrapado com que encobrem todos os arbítrios, todas

as vergonhas”.xxxiv

Outras “reformas demandadas” foram enumeradas nesta

ordem: a eleição direta, a liberdade de cultos, a temporalidade do

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Amanda Muzzi Gomes

64 ISSN 1414-9109

Senado, a abolição da Guarda Nacional e “por último resta o

elemento servil”. Tais propostas foram apresentadas como o

“programa” do Partido Liberal, partido de “popularidade grande pelo

esplendor de suas ideias”.xxxv

O jovem Nabuco apresentou este receituário político porque

seguia a plataforma política do Centro Liberal, do qual se originou o

Clube da Reforma e o (novo) Partido Liberal. Ainda que só viesse a

fazer sua estreia parlamentar quase dez anos depois, esta foi à

primeira inserção de Nabuco na política do Império.

Os reveses do Primeiro Reinado, culminando com a

independência de fato do Brasil, no 7 de abril de 1831, foram

apresentados como lições ao Segundo Reinado. No traçado histórico

de Nabuco, desde a Independência até a abdicação, observa-se uma

exemplaridade negativa, ao estilo de Francesco Guicciardini. Por

isso, o reinado de D. Pedro I era “fonte de grandes lições para os que

governam” agora, porque seus erros seriam “conselhos sábios”

capazes de ensinar que o trono só pode se manter com

reconhecimento do povo.

No último item, disposto por Nabuco como epílogo, a atenção

voltou-se ao continente americano no tempo presente. Daí a frase

que dá a entender que ele defende a “república” como forma de

governo para o continente, embora o termo não apareça nenhuma

vez no opúsculo. Embora Nabuco se reporte à maneira como a

América do Norte se livrou “das cadeias da opressão”, sua atenção

recaiu no grande acontecimento daquele momento: a guerra no Sul,

com a tomada de Lomas Valentinas. Nabuco propôs que o Brasil

deveria se livrar da tirania tal como o Paraguai, pois “ainda há outra

vítima, além do Paraguai, é o Partido Liberal”. Assim, ele repetiu o

eixo em torno do qual girou o panfleto: o Partido Liberal estava

proscrito pelo trono, mas contava com o acolhimento do povo, que

deveria ser o verdadeiro depositário da soberania. A própria analogia

com o Paraguai teve esse sentido: era preciso livrar o Partido Liberal

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“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 65

dos grilhões que o aprisionavam. A motivação para a redação do

panfleto era a situação brasileira e, mais particularmente, a condição

de “proscrito” do Partido Liberal, pois “aqui estamos sob a influência

de uma crise que deve resolver-se”.xxxvi

Um opúsculo de expressão do (novo) Partido Liberal

O Povo e o Trono de Nabuco foi redigido num momento de

recomposição dos liberais; daí que apresentou propostas próximas à

do Centro Liberal, de onde saiu o programa do (novo) Partido Liberal.

Apesar de sua forma desabrida, O Povo e o Trono foi um livreto de

expressão do (novo) Partido Liberal, então em formação. O panfleto

foi escrito pouco antes da publicação do novo programa partidário,

mas Nabuco se beneficiou do que ouvia nas reuniões políticas no

Centro Liberal. No turbilhão de debates e novidades em que se via

imerso em 1868, a sua experiência familiar e cotidiana lhe fornecia

meios de expressar, e tornar inteligível para si mesmo, o que via

pipocar no meio político.

Portanto, O Povo e o Trono, escrito de iniciação de Nabuco na

vida política, foi um manifesto crítico do autor sobre o seu momento.

O jovem estudante, recém inserido em um mundo de políticos,

presenciando uma grande crise política, resolveu se posicionar e

chamar atenção. Daí algumas imprecisões, o exagero da retórica,

certas diatribes e a farta tecedura de analogias. Agindo como um

cronista, o panfleto foi uma estratégia de Nabuco, já versado na

atividade jornalística universitária, para se fazer conhecido. O jovem,

filho de notório político do Império, tentava se projetar. Sendo ator da

narrativa que escreve, o autor acaba relatando um pouco da própria

história.xxxvii

No fundo, Nabuco falava da experiência mais próxima: do

pai e seus co-partidários. Novo na idade, inexperiente na avaliação

do panorama político, o texto não poderia deixar de ter exageros.

Tratava-se de um reflexo do próprio choque da crise de 68 que

impulsionara Nabuco em seu primeiro escrito político.

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Amanda Muzzi Gomes

66 ISSN 1414-9109

Notas e referências

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da

Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC Rio), orientada pelo

Professor Doutor Marco Antônio Villela Pamplona.

Contato: [email protected] i NABUCO, Joaquim. O povo e o trono – Profissão de fé política de

Juvenal, Romano da decadência. Rio de Janeiro: Typographia e

Litographia Franceza, 1869. In: SILVA, Leonardo Dantas. Joaquim

Nabuco e a República. Recife, FUNDAJ, Editora Massangana, 1990.

Série República, Fundação Joaquim Nabuco, vol. 6. Disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/jn000026.pdf

Acesso em 10 jan. 2012. ii O Ministério da Conciliação ficou sob a chefia de Paraná até a sua

morte, em 3 de setembro de 1856. Foi substituído provisoriamente pelo

titular da pasta da Guerra, Luís Alves de Lima e Silva, na época conde,

depois marquês e duque, de Caxias, que ficou na chefia de gabinete até

4 de maio de 1857. O último presidente do Ministério da Conciliação foi

Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, até 12 de dezembro de 1858. iii Apud NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5ª ed. Rio de Janeiro:

Topbooks, 1997. 2 v. [1897-1899], p. 151-155. iv Os liberais históricos assim se autodenominavam porque reivindicavam

para si a herança das glórias do 7 de abril de 1831 e do Ato Adicional de

1834. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de história do Império.

Organização: Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras,

2010, p. 146. v Id., ibid., p. 105 e p. 111. O primeiro a empregar o termo emperrados foi

o liberal Zacarias. vi BASILE, Marcello Otávio N. de C. “O Império brasileiro: panorama

político”. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9ª ed.

Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 254.

Page 66: Baixar Revista Dia-Logos 2013

“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 67

vii

Apud BRASILIENSE, Américo. Os programas dos partidos e o Segundo

Império. São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878, p. 15-22. O

programa reivindicava: divisão de poderes, responsabilidade dos

ministros pelo poder moderador, liberdade individual, descentralização

administrativa, representação de minorias, execução do Ato Adicional,

reforma da lei eleitoral, reforma e organização judiciária, separação da

polícia e justiça, reforma hipotecária, organização de um código civil,

revisão do código comercial, organização do crédito territorial, revisão do

código comercial, reforma municipal, reforma da guarda nacional,

educação e regeneração do clero. viii

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política

imperial. Teatro das sombras: a política imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2008, p. 410. ix Seguiram os ministérios de: Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda,

até 15 de janeiro de 1864; Zacarias de Góis e Vasconcelos, até 31 de

agosto de 1864; Francisco José Furtado, até 12 de maio de 1865; Pedro

de Araújo Lima, marquês de Olinda, até 3 de agosto de 1866 e Zacarias

de Góis e Vasconcelos, até 16 de julho de 1868. x IZECKSOHN, Vitor. “Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a

Guerra do Paraguai”. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY,

Hendrik (orgs.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora

FGV, 2004, p. 188. xi HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 145.

xii De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., 75% dos deputados

eram liberais ou progressistas, p. 118. xiii

Apud MORAES, Evaristo de. Da monarquia para a república (1870-1889).

2ª ed. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985 [1936], p. 23-41 e

CELSO, Afonso. Oito Anos de Parlamento. Brasília, Editora Universidade

de Brasília, 1981. Coleção Temas Brasileiros, vol. 8 [1901], p. 149-150. xiv

Eram representantes do Centro Liberal: Nabuco de Araújo, Zacarias de

Góes e Vasconcellos, Bernardo de Souza Franco, Antonio Pinto

Chichorro da Gama, Francisco José Furtado, José Pedro Dias de

Carvalho, João Lustosa da Cunha Paranaguá, Teófilo Benedito Otoni e

Francisco Otaviano. A. Celso, op. cit., p. 159.

Page 67: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Amanda Muzzi Gomes

68 ISSN 1414-9109

xv

Transcrito em BRASILIENSE, Américo, op. cit., p. 33-54.

xvi Esta plataforma reformista acabou se tornando o programa adotado pelo

(novo) Partido Liberal e assim perdurou por vinte anos, até a elaboração

de um novo programa, em maio de 1889. xvii

BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. Joaquim Nabuco e os

Abolicionistas Britânicos (Correspondência 1880-1905). Rio de Janeiro:

Topbooks, 2008, p. 17. xviii

VIANA FILHO, Luiz. A vida de Joaquim Nabuco. São Paulo: Livraria

Martins Fontes Editora, Instituto Nacional do Livro/MEC, 1973, p. 34-35. xix

LOWENTHAL, David. “How we know the past”. In: ______. The past is a

foreign country. Cambridge: New York, Cambridge University Press,

1988. Tradução em Revista Projeto História, n. 17, Trabalhos da

Memória. São Paulo: PUC-SP. Programa de pós-graduação em História,

nov. de 1998, p. 63-201. xx

BOURDIEU, Pierre. “A Ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta M; AMADO,

Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 183-192. xxi

Apud SCHMIDT, Benito Bisso. “Construindo biografias... historiadores e

jornalistas: aproximações e afastamentos”. Estudos Históricos, vol. 10,

n. 19, 1997, p. 17. xxii

NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. 4ª ed. rev. Rio de Janeiro:

Livraria José Olympio Editora, 1958. Coleção Documentos Brasileiros,

vol. 92, p. 27. xxiii

Id., ibid., p. 30. xxiv

Id., ibid., p. 11 e p. 79. xxv

SILVA, Leonardo Dantas (org.). Nabuco e a República. Recife:

FUNDAJ/Massangana, 1990, p. X-XI. xxvi

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado

Imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro, Access, 1999, p. 246. S. B. de Holanda,

Capítulos de história do Império, p. 91-92. xxvii

NABUCO, Joaquim. O povo e o trono, p. 7- 9. xxviii

Id., ibid., p. 13.

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“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco na vida política

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 69

xxix

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos

tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p.

191-231. xxx

NABUCO, Joaquim. O povo e o trono, p. 7-14. xxxi

Id., ibid., p. 11. xxxii

Id., ibid., p. 11-14. xxxiii

Id., ibid., p. 15-16. xxxiv

Id., ibid., p. 15-18. xxxv

Id., ibid., p. 19-22. xxxvi

Id., ibid., p. 28-31. xxxvii

MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO, Rebeca. “O presente como questão: a

República nas histórias do Brasil de João Ribeiro (1860-1934) e a

proposição da uma „ética da atualidade‟”. In: ROCHA, Helenice Aparecida

Bastos; MAGALHÃES, Marcelo de Souza; GONTIJO, Rebeca. A escrita da

história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro, Editora FGV,

2009, p. 374.

Page 69: Baixar Revista Dia-Logos 2013

70

Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias

de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na

década de 1960

Andrea Siqueira D‟Alessandri Forti

Introdução

Esta pesquisai tem como objetivo analisar as trajetórias de três

artistas plásticos da década de 1960 que se tornaram militantes

políticos: Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro. A

investigação visa, ainda, problematizar as relações destes artistas

plásticos entre as opções ligadas à produção artística e ao

engajamento político ligado às organizações armadas, a partir da

análise de entrevistasii.

A década de 1960, para muitos artistas, foi o momento de

engajar a arte. Aqui no Brasil, isso pode ser observado antes e após

o golpe de 1964. Do Teatro de Arena aos Centros Populares de

Cultura (CPC), o Cinema Novo, a Música Popular Brasileira, o show

Opinião, entre outras manifestações colocaram a arte a serviço das

causas de contestação da ordem vigente, buscando as raízes

populares para valorizar a cultura brasileiraiii. Nas artes plásticas,

entretanto, “foram raros os exemplos de busca do povo em moldes

parecidos com os das outras artes”iv. As artes plásticas não abriram

mão da capacidade crítica do eruditov. Utilizaram elementos das

diferentes inovações mundiais do campo, principalmente as francesas

e as norte-americanas, adaptadas à realidade brasileira para se

manifestarem. Seu engajamento é observado após o início da

ditadura. A identificação com o show Opinião em sua resistência ao

regime levou à organização das exposições Opinião no Rio de

Janeiro e Proposta em São Paulo, ocorridas nos anos de 1965 e de

1966.

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Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da

Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 71

O início da atividade artística e os primeiros contatos com a

política

O carioca Carlos Augusto da Silva Zilio iniciou sua vida artística em

1962, quando ingressou para o Instituto de Belas Artes, na Praia

Vermelha, no Rio de Janeiro. Zilio foi durante este período aluno do

pintor Iberê Camargo, consequência de sua “relação natural com a

modernidade”. Iberê era o único docente não acadêmico do instituto.

Zilio era filho de militar e estudava no Colégio Militar. Durante o

primeiro científico, ele frequentou as palestras do Instituto Superior

de Estudos Brasileiros, indicadas como uma de suas fontes

formadoras na política. O jovem era também leitor dos jornais do

Partido Comunista: Semanário e Novos Rumos. Com o golpe, Zilio

respondeu ao seu primeiro Inquérito Policial Militar no Instituto de

Belas Artes. Inquérito que não resultou em nada. Mas seu choque

emocional com o golpe teve como consequência conflitos familiares.

Em 1965, o impacto da primeira mostra Opinião e o contato com as

obras de artistas argentinos fez com que Zilio rompesse com o ensino

de Iberê que naquele momento já não era mais seu professor. Neste

mesmo ano, o jovem prestou vestibular para Psicologia. Sua família

exigia que cursasse uma faculdade. As duas atividades de Zilio

durante os anos de 1966 e 1967 foram então estudar Psicologia na

Universidade Federal do Rio de Janeiro e continuar produzindo como

artista plástico. O artista participou da exposição Opinião 66 no

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de outras mostras

coletivas, apresentando trabalhos com caráter político. No ano

seguinte, entrou para o diretório acadêmico do seu curso. Zilio não se

sentia comprometido com a política inteiramente, era uma

responsabilidade que tinha como cidadão. A política era uma

necessidade, mas não era tudo para elevi. Por isso, ao mesmo tempo

em que cursava a faculdade e era membro do diretório acadêmico, o

artista frequentava o MAM e as rodas de amizade artística. Participou

Page 71: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

72 ISSN 1414-9109

da mostra Nova Objetividade Brasileiravii

em abril de 1967, também

no MAM do Rio de Janeiro, e da IX Bienal de São Paulo.

O baiano Renato da Silveira passou sua infância e

adolescência em Ilhéus. Em 1959, aos 15 anos, foi para Salvador.

Sua luta para se tornar artista só foi finalizada quando foi estudar na

Itália. Oriundo de uma família de fazendeiros do Sul, uma “família

meio aristocrática, decadente”, impossibilitou Renato por algum

tempo de seguir a vida artística. Em 1966, ganhou uma bolsa para

estudar na Università per Stranieri di Perugia. Morou no exterior por

quase um ano, cursou dois cursos trimestrais oferecidos pela

instituição, onde aprendeu sobre História da Arte, Filosofia, Literatura

e um pouco de História. Ao retornar foi selecionado para ser monitor

da I Bienal Nacional de Artes Plásticas de Salvador. Segundo o

artistaviii

, “foi a convivência – durante quatro meses de bienal – com

os outros monitores que me levou para a esquerda, porque aqueles

vinte jovens eram uma pequena elite da juventude baiana”; grande

parte deles era de “militantes estudantis de esquerda, tinha alguns

artistas de vanguarda jovem e também católicos de esquerda e

evidentemente a gente passava o tempo todo discutindo”. Esse

convívio não apenas o levou para a esquerda, mas o levou para a

política. Antes da viagem, o artista disse ser um “alienado perfeito”,

preocupado com o “sucesso social e ganhar dinheiro”. Após o

trabalho na Bienal, Silveira produziu um trabalho artístico ligado ao

surrealismo e à pop artix como linguagem, mas com um conteúdo

contestatário. Por conta própria, estudava marxismo, principalmente

um marxismo voltado para a cultura.

O curitibano Sérgio Ferro Pereira se mudou com sua família

para São Paulo em 1950, quando tinha apenas 12 anos. Cursou a

Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, onde

posteriormente começou a lecionar. Ainda como estudante da FAU se

filiou ao Partido Comunista Brasileiro. Tanto a arquitetura quanto a

pintura que fazia, procurava adequá-las às preocupações políticas.

Em relação à arquitetura, a crítica era devido ao esquecimento de

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Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da

Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 73

suas missões sociais mas também a exploração do trabalhador no

canteiro de obra. Já na pintura, a ideia era que qualquer um pudesse

entendê-la e com ela dialogar, além de pregar a “paleta do povo”, ou

seja, as cores que não levavam muito colorante, mais econômicasx. O

artista se refere à pintura como o seu meio de expressão, mais até do

que a própria palavra. Após o golpe de 1964, sua pintura se

transformou também numa arma, adotando uma frase do Picasso: “A

pintura é uma arma, ofensiva ou defensiva, contra o inimigo”. Sua

primeira exposição individual ocorreu em 1965, mas já havia exposto

em mostras coletivas. Participou ativamente da vida artística de São

Paulo, tendo sido um dos organizadores e expositores de Propostas

65 e 66. Expôs também na Nova Objetividade Brasileira em 1967,

além de ministrar cursos no Museu de Arte de São Paulo e dirigir

duas revistas – Teoria e Prática e Aparte - que, entre outros assuntos,

tratavam de questões de arte.

O envolvimento com as organizações de esquerda

Acredito que, antes de apresentar a relação dos três artistas

plásticos com as organizações armadas, seja importante pontuar

algumas questões relativas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a

criação de organizações dissidentes e independentes que se

formaram ao longo das décadas de 60 e 70. Segundo Araujoxi, o

conjunto dessas organizações que, em grande maioria, foram criadas

entre 1962 e 1972, compartilhava uma posição e um sentimento

político crítico ao PCB. Embora as organizações fossem, em diversos

aspectos, diferentes entre si, elas se aproximavam no sentimento de

negação em relação ao partido. Com o golpe de 1964, parte dessa

esquerda atribuiu à estratégia e à tática do PCB a responsabilidade

pelo acontecido.

Essas organizações de esquerda tinham conquistado uma

hegemonia entre jovens, estudantes, intelectuais e artistas. Para a

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Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

74 ISSN 1414-9109

autora, isso pode ser explicado pelos acontecimentos ligados ao

golpe, pelas manifestações estudantis pós-1964 e também pelo que

ocorria em outros cantos do mundo, criando uma imagem positiva

das experiências de luta armada. Por isso, os militantes brasileiros da

década de 60 foram marcados pelo “desejo de rompimento, de

radicalidade, e pelo sentimento crítico ao que era considerado, de

forma geral, reformismo, passividade, conciliação”. O tema da

democracia também era visto de maneira crítica. A democracia

representativa era entendida como sinônimo de negociatas e vista

como uma farsa liberal. Essa democracia era bem diferente à

democracia proletária e esta só existiria com a revolução. Este

sentimento em relação à democracia foi um dos motivos principais

que levaram à opção pela luta armada, afirma a historiadora. Outro

forte motivo foi a decretação do Ato Institucional no 5. Contudo, a luta

armada não foi consequência direta do ato institucional, essa

opção já era discutida pela esquerda brasileira desde o início da

década de 60.

Como foi dito anteriormente, o jovem Zilio circulava no

ambiente artístico e no universitário, inclusive tendo a experiência do

movimento estudantil. Em determinado momento, sua atuação

política fez com que ele não acreditasse mais no projeto artístico do

movimento Nova Objetividadexii

como algo eficaz para mudar a

realidade. A tentativa de conciliar arte e política se deu com a obra

LUTE: uma marmita com uma máscara sem rosto representando os

milhões de trabalhadores. A ideia era panfletar a marmita em porta de

fábrica, mas uma panfletagem compreendida como arte, uma

performancexiii

. A ideia não foi posta em prática. Em 1968, entrou

para o Diretório Central de Estudantes e “abandonou”xiv

a arte em

função do diretório. Neste ano, a União Nacional dos Estudantes

(UNE) organizou clandestinamente o Congresso de Ibiúna que,

segundo Araujoxv

, marcou o fim do “processo político, de confronto e

radicalização, que estava sendo vivido pelo movimento estudantil”. O

presidente do DCE da UFRJ, Franklin Martins, foi preso neste evento.

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Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da

Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 75

Zilio que era vice-presidente assumiu, então, a presidência do último

diretório antes do AI-5. No ano seguinte, ingressou em uma

organização, a DI-GB. Zilio viveu o processo de transformação da

dissidência em MR-8xvi

. Em março de 1970 foi ferido em uma das

ações e preso.

Renato da Silveira assim como Zilio abandonou a arte em

função da política. A diferença entre os dois está na trajetória de cada

um, os motivos que levaram os dois a se tornarem militantes são

distintos. No ano de 1968, Renato esteve novamente na Europa.

Havia conhecido uma suíça quando morou na Itália, se casando logo

em seguida. Participou das agitações do momento. Quando retornou

ao Brasil, entrou para a dissidência da Bahia que, posteriormente,

junto a DI-GB formaria o MR-8xvii

. Essa escolha do artista pode ser

em parte explicada pelo reflexo da edição do AI-5 no campo

cultural baiano. A II Bienal Nacional de Artes Plásticas de Salvador,

recém inaugurada, foi fechada. Além de alguns organizadores e

participantes terem sido presos. Com a desmobilização nos meios

culturais, o artista se sentiu isolado, sem possibilidade de fazer

exposições, com todas as portas fechadas, se aproximando dos

militantes de esquerda do movimento estudantilxviii

. Nesse período de

militância deixou de produzir também pelo fato dos militantes baianos

terem pouca formação e interesse cultural, ao contrário dos

cariocasxix

.

Sérgio Ferro, diferente de Zilio e Renato, não abandonou a arte

nem sua carreira de professor universitário para militar. Esta escolha

possibilitou que Ferro se tornasse um grande articulador entre a

guerrilha e o meio artístico e intelectual. O artista começou a se

aproximar da tendência Marighella após o golpe. Não só motivado

pelo distanciamento do PCB em relação à luta armada, mas também

pela teoria. Segundo Ferro, o partido dava muito importância à

evolução dos meios de produção, enquanto ele e outros faziam uma

crítica maior das relações de produção. Ao entrar para a dissidência

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Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

76 ISSN 1414-9109

paulistaxx

, depois integrada à Ação Libertadora Nacional (ALN)xxi

,

Ferro contribuiu principalmente por estar na legalidade. Como

professor universitário tinha acesso a informações e documentação

de difícil acesso, além de contato com professores, profissionais de

diferentes áreas e pessoas de outras organizações que podiam

contribuir de diferentes maneiras. Entretanto, essa legalidade não

impediu que o artista participasse de ações armadas. Ferro foi um

dos autores do atentado à bomba no consulado dos EUA em São

Paulo no dia 19 de março de 1968, uma das primeiras ações da

épocaxxii

, cujo objetivo era demonstrar a insatisfação com a guerra

do Vietnã. A autonomia dada pela ALN aos seus grupos internos

permitiu a aproximação com a VPR (Vanguarda Popular

Revolucionária). Ferro e os outros arquitetos não podiam ir a Cuba

para fazer cursos. Os ensinamentos sobre ações armadas foram

passados por militantes desta outra organização. Ferro e os

arquitetos da ALN foram presos em 1970.

Do período da cadeia ao exílio

O artista carioca ficou preso de 1970 a julho de 1972. Dentro

da prisão, Zilio retornou à produção artística com os desenhos, feitos

em bloco de papel com pilot. A princípio era apenas uma ocupação,

mas logo passou a ter um caráter documental, retratando sua

experiência no cárcere. Posteriormente, trocou os desenhos pelas

pinturas. As pinturas eram feitas nos pratos de comida com tinta

Revell, ideia que surgiu com um simples prato de comida esquecido

pelos funcionários dentro da cela. Essa produção foi retirada da

prisão aos poucos pela companheira de Zilio durante as visitas. Ao

ser posto em liberdade, o artista tentou retomar sua vida, inclusive

voltando a produzir – uma arte ainda muito militante –, a participar de

exposições e de discussões sobre arte, atuando na organização da

revista Malasartes. O artista foi convidado a participar da Bienal de

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Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da

Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 77

Paris de 1976, motivado pelo clima político, mas também pela

experiência de morar fora do Brasil por algum tempo, Zilio não só

aceitou como se mudou para a capital francesa.

Renato da Silveira foi preso três vezes durante sua militância.

No início de 1969, quando ainda era simpatizante e o MR-8 estava

em formação, um carro capotou e dois jovens militantes morreram. O

veículo tinha sido emprestado para um treinamento militar no interior.

Renato foi preso por ser o dono do automóvel, mas como nada foi

provado contra ele, pouco tempo depois o soltaram. Foi preso

novamente em março de 1971, ficando na cadeia até maio de

1972xxiii

. Em seu depoimento, Silveira conta que o MR-8 na Bahia

estava armado, mas não fazia ações “para não sujar o pedaço”,

evitando a atenção da repressão. Contudo, integrantes de outra

organização começaram as ações na região, o que resultou na forte

presença dos militares e no desmantelamento das organizações

existentes na Bahia. A presença, em 1971, do ex-capitão Carlos

Lamarca no estado contribuiu para a permanência da repressão. Em

1973, Renato passou outros sete meses no cárcerexxiv

, retomando

lentamente a atividade artística no final deste período. Sua produção,

diferente de Zilio e Ferro, não é uma documentação de sua

experiência prisionalxxv

, mas resultado de seu estudo sobre

Antropologia, mais especificamente o candomblé, iniciado dentro da

prisão. Já em liberdade, Renato trabalhou no Instituto Cultural Brasil-

Alemanha de Salvador, instituição que conseguiu manter suas

atividades culturais durante a ditadura. Se sentindo constantemente

ameaçado, mudou-se para Paris em 1976, após dificuldades para

conseguir o passaporte.

Sérgio Ferro e os arquitetos da ALN foram condenados a dois

anos de reclusão por atentados a bomba, pertencer a organizações

terroristas e outros delitos. “A sentença foi branda; para isso pesou,

além da influência da família de Ferro (seu pai era o secretário da

Educação), a posição social privilegiada dos envolvidos, conhecidos

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Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

78 ISSN 1414-9109

profissionais e artistas”xxvi

. Dentro do Presídio Tiradentes, instituição

na qual cumpriram a pena, já havia alguns pintores. Com a chegada

deste grupo de arquitetos - e após o fim do período de tortura -, a arte

prisional produzida passou a pretender um caráter mais artísticoxxvii

. A

arte dos presos políticos era um meio de expressão. Quando Carlos

Lamarca morreu, por exemplo, Ferro fez um quadro em sua

homenagem. Sobre a sua produção, o artista afirmou que “escoava

ali ataques de raiva ou desabafo”. Em relação ao trabalho artístico

coletivo, Ferro apontou duas consequências positivas: uma no

sentido educativo, uma atividade simples onde todos poderiam

participar, e outra no sentido de integração dos presos. Estes

trabalhos não documentaram apenas a repressão e a prisão, mas

também a solidariedade entre os presos e o desejo de justiça. Ferro

ficou apenas um ano preso. Convidado pelo Ministério da Cultura da

França foi lecionar na Europa, onde reside até hoje.

Considerações finais

Apresentar uma trajetória de vida, mesmo que seja apenas

uma parte desta, é uma tarefa difícil. Primeiro em relação às lacunas

deixadas no trabalho, causadas pela impossibilidade de cobrir a vida

de uma pessoa como um todo. O estudo sociológico de uma história

de vida sugerido por Pierre Bourdieu me pareceu interessante para

resolver este problema: a análise de pontos expressivos de uma

trajetória individual e sua relação com as interações sociaisxxviii

.

Procurei, neste artigo, problematizar estes momentos, relacionando-

os com os contextos e com as redes de sociabilidade de cada um dos

artistas.

Além do mais, sempre que escrevo sobre a vida de um

indivíduo, lembro da crítica de Giovanni Levi sobre este tipo de

pesquisa que, segundo o autor, associa uma “cronologia ordenada,

uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões

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Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da

Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 79

sem incertezas”xxix

. Por isso, busquei apontar aspectos que permitam

ao leitor se questionar sobre a parcela de liberdade de escolha do

indivíduo dentre as múltiplas possibilidades. Mas que, ao mesmo

tempo, esse campo de possibilidades é historicamente construído,

estabelecendo limites para a ação humanaxxx

.

O estudo crítico e reflexivo de trajetórias de indivíduos que

foram atingidos e/ou que lutaram contra a repressão é necessário

para o conhecimento das possibilidades existentes, efetivamente, na

vida destas pessoas, quais foram e o porquê das diferentes

estratégias desenvolvidas como atores sociais. No caso da minha

pesquisa, as escolhas de três artistas plásticos que tiveram como

semelhança a relação direta com as esquerdas armadas, se

distinguindo da maioria das pessoas do mesmo meio.

Através deste trabalho, espero estar contribuindo um pouco

para o conhecimento das artes plásticas durante a ditadura civil-

militar no Brasil: os seus personagens, a sua atuação e os reflexos do

regime no campo. Acredito que isso seja importante porque, diferente

de outras manifestações artísticas como, por exemplo, o teatro, o

cinema e a música, sobre as quais existem diversos estudos, as artes

plásticas durante este período permanecem ainda pouco exploradas.

Notas e referências

Mestranda em História do Programa de Pós-Graduação da Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Orientanda da

Professora Doutora Icléia Thiesen, na Linha de Pesquisa Cultura, Poder

e Representações. Contato: [email protected] i O presente trabalho é baseado no segundo capítulo da minha

dissertação que será defendida em abril do próximo ano. O artista

plástico Renato da Silveira, entretanto, não fará parte do trabalho final

do mestrado devido à insuficiência de fontes e à dificuldade de contato

com o mesmo. Apesar disso, mantive a análise de sua trajetória neste

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Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

80 ISSN 1414-9109

artigo, utilizando como documento a entrevista concedida ao professor

Marcelo Ridenti (Unicamp) em 1996. ii Em relação aos outros dois artistas, faço uso de entrevistas já

publicadas – entrevista de Sérgio Ferro pelo professor Marcelo Ridenti

em 1997 e entrevista de Carlos Zilio pertencente ao catálogo da

exposição Arte e Política: 1966-1976 de 1996 - e das duas realizadas

durante a pesquisa. Cabe dizer que Sérgio Ferro foi entrevistado por e-

mail, devido ao artista residir em outro país. As entrevistas se encontram

disponíveis para consulta no acervo do Laboratório de História Oral,

Informação e Documentação da Universidade Federal do Estado do Rio

de Janeiro (LAHODOC/UNIRIO). iii RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução,

do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. iv AMARAL in RIDENTI, 2000: 176.

v SEVERO in ZILIO, Carlos. Arte e política: 1966-1976. Rio de Janeiro:

MAM, 1996 (catálogo de exposição), p. 3. vi ZILIO, 1996: 15.

vii A „Nova Objetividade‟ foi organizada por um grupo de artistas e críticos

de arte, reunindo diferentes vertentes das vanguardas nacionais – arte

concreta, neoconcretismo, nova figuração – em torno da ideia de „nova

objetividade‟. A exposição não pretendia construir um grupo artístico,

mas ser a confluência de diferentes tendências (Disponível em:

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fus

eaction=marcos_texto&cd_verbete=3764) viii

SILVEIRA in RIDENTI, 2000: 190.

ix A arte pop se desenvolveu na década de 1960, principalmente, na

Inglaterra e nos EUA. Sua matéria prima foi fornecida pela cultura pop,

definida por Lucie-Smith (1966) como “(...) o produto da Revolução

Industrial e da série de revoluções tecnológicas que lhe sucederam.

Juntem-se moda, democracia e máquina, e a cultura pop é uma parte do

resultado.” (LUCIE-SMITH, Edward. “Arte Pop”. In: STANGOS, Nikos.

Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p.

282)

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Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da

Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 81

x Ridenti (2000: 177) aponta a presença de um romantismo revolucionário

original na obra de Sérgio Ferro. Embora o artista não retrate as raízes

populares brasileiras, Ridenti enfatiza a intenção de Ferro em buscar

uma possibilidade de comunicação com o homem comum. xi ARAUJO, Maria Paula Nascimento. “Lutas democráticas contra a

ditadura”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (orgs.). As

esquerdas no Brasil. Revolução e democracia, 1964... Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, vol.3, 2007, p. 323-353. xii

Quando cito o grupo Nova Objetividade, me refiro às dezessete

pessoas, entre artistas plásticos (incluindo o Zilio) e críticos de arte, que

assinaram a Declaração de Princípios Básicos da Nova Vanguarda,

idealizada por Hélio Oiticica em 1966 (in OITICICA, Hélio. Hélio Oiticica:

Penetráveis. Rio de Janeiro: Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica,

2008 (catálogo de exposição), p. 32). Sobre alguns dos tópicos desta

declaração, Alvarado (ALVARADO, Daisy Peccinini de. Figurações:

Brasil anos 60. Neofigurações Fantásticas e Neo Surrealismo, Novo

Realismo e Nova Objetividade Brasileira. São Paulo: Itaú

Cultural/EDUSP, 1999, p. 138) explica que “Os quatro últimos tópicos

eram dedicados à preocupação com uma atividade criadora integrada na

coletividade: na multiplicidade da proposta vanguardista, deviam utilizar

meios capazes de reduzir à “máxima objetividade” o subjetivismo,

tentando atingir o ser humano para despertá-lo para uma “participação

renovadora e para a análise crítica da realidade”, podendo ser usados

todos os métodos de comunicação com o público – como rádio, cinema,

TV, jornal, panfletos.” (grifo meu) xiii

A performance como modalidade artística foi criada na década de 1960.

Ela requer a presença do artista, necessita de acessórios e de uma ação

teatral mais estruturada, um cenário muito mais organizado. Coloca em

cena acontecimentos inéditos e surpreendentes que mobilizam o corpo,

o gesto, a palavra e desafiam os preconceitos e a resistência do público,

não havendo a participação deste. É uma arte efêmera e pode, ou não,

resultar em algum objeto como testemunho do ato. (Disponível em:

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fus

eaction=termos_texto&cd_verbete=3646)

Page 81: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

82 ISSN 1414-9109

xiv

Coloquei o verbo “abandonou” entre aspas porque, em depoimento, Zilio

disse sentir fazer arte durante as ações armadas, como uma

performance com uma eficácia transformadora. (ZILIO, 1996: 16) Ou

seja, do ponto de vista existencial, não houve uma interrupção do

processo criativo, mas apenas um deslocamento. (DUARTE in ZILIO,

1996: 6) xv

ARAUJO, Maria Paula Nascimento. Memórias estudantis, 1937-2007: da

fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará,

Fundação Roberto Marinho, 2007, p. 185. xvi

Entre 1965 e 1968, as bases universitárias por todo o território nacional

romperam com o PCB, constituindo as dissidências estudantis

(RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª Ed. São

Paulo: UNESP, 2010, p. 30). A transformação a qual Zilio se refere é a

mudança de uma organização universitária estudantil que pretende se

tornar uma organização revolucionária de luta armada (Entrevista de

Carlos Zilio a Andrea Forti, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2012).

Duas dissidências estudantis do Partido Comunista Brasileiro se

denominaram MR-8: a do Estado do Rio de Janeiro (DI-RJ) e a do

Estado da Guanabara (DI-GB). Elas não tinham nada em comum,

exceto serem dissidências do “Partidão”, explica Ridenti (2010: 115). A

DI-RJ já havia sido desbaratada pela polícia quando a segunda resolveu

assumir o nome MR-8 “para desmoralizar o governo que anunciava o fim

do MR-8 (DI-RJ)”. xvii

Entrevista de Renato da Silveira a Marcelo Ridenti. Salvador, 25 de

fevereiro de 1996. xviii

RIDENTI, 2000: 192. xix

RIDENTI, 2000: 193. xx

Segundo Ridenti (2010: 30), a DISP foi posteriormente integrada à ALN

ou à VPR e VAR-Palmares. xxi

Foi a organização guerrilheira mais destacada na década de 60,

encontrando apoio em diferentes setores sociais, principalmente por

causa da liderança de Carlos Marighella. Ao deixar o PCB, levou

consigo boa parte da seção do partido em São Paulo pela qual ele era

responsável. Encontrou adesões em todo o território nacional, onde seu

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Artes plásticas e política: uma análise das trajetórias de Carlos Zilio, Renato da

Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 83

nome era popular pela combatividade e liderança exercida no período

que pertencia ao PCB. No decorrer do processo armado, a ALN passou

a atrair, sobretudo, estudantes e trabalhadores intelectuais (RIDENTI,

2010: 62). “A ALN baseava-se no „princípio de que a ação faz a

vanguarda‟, ação revolucionária entendida como aquela „desencadeada

por pequenos grupos de homens armados‟ (in Marighella, 1974: p. 23),

que constituiriam a vanguarda guerrilheira do povo”. A estratégia dos

militantes da ALN era partir diretamente para a luta armada, colocando a

teoria revolucionária em segundo plano (RIDENTI, 2000: 166). xxii

A primeira ação da ALN ocorreu em novembro de 1967 em São Paulo,

marcando o início da luta armada. Cabe lembrar que, no início deste

ano, uma nova Constituição incorporou os controles mais importantes

dos dois atos institucionais anteriores e de uma série de atos

complementares, perdendo seu caráter excepcional, ganhando poder

constitucional. Esta constituição criava um Estado quase exclusivamente

baseado no Poder Executivo. xxiii

RIDENTI, 2000: 193. xxiv

Idem. xxv

O terceiro capítulo da minha dissertação será dedicado a análise desta

arte prisional de Carlos Zilio e Sérgio Ferro como documento

fundamental para o conhecimento de suas experiências no cárcere. xxvi

RIDENTI, 2000: 181. xxvii

SISTER, Sérgio in ALÍPIO FREIRE, Alípio; ALMADA, Izaías;

GRANVILLE PONDE, J.A. de (org.). Tiradentes, um presídio da ditadura.

Memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione, 1997, p. 210. xxviii

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de

Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. 8ª Ed.

Rio de Janeiro: FGV, 2006. xxix

LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes;

AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. 8ª Ed. Rio de

Janeiro: FGV, 2006, p. 169.

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Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

84 ISSN 1414-9109

xxx

REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”. In: Jogos de

escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV,

1998, p. 15-38.

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85

Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de

Janeiro do início do oitocentos

Camila Borges da Silva

A indumentária – ou seja, o conjunto que engloba a roupa e os

ornamentos e adereços que compõem o visual de uma pessoa – é

um elemento constitutivo da cultura material de uma sociedade.

Contudo, a cultura material não é descolada dos aspectos mentais e,

dessa maneira, qualquer objeto que pertence a uma cultura dialoga

com as representações simbólicas da mesma. A indumentária, como

não poderia deixar de ser, é um objeto de análise complexo porque

se insere em diferentes campos do tecido social. Assim, podemos

estudá-la em suas relações com a arte, a economia (produção e

comercialização), o social, as relações de gênero etci. Nesse

trabalho, a indumentária é analisada em suas imbricações com o

social, compreendendo-a como um elemento representativo do status

de uma pessoa na sociedade. Neste sentido, a roupa atua na

composição dos estamentos sociais por incutir honra e prestígio a

toda pessoa que utiliza determinados símbolos distintivos

reconhecidos no meio social, tornando-a membro de um grupo.ii A

análise se foca no estudo da indumentária utilizada pelas elites que

frequentavam a Corte do Rio de Janeiro tanto no período de

permanência de D. João, quanto durante o governo de D. Pedro,

após a independência. Entretanto, compreende-se que o estudo da

indumentária desse período precisa atentar para o fato que esta

participava de um duplo processo: de um lado a indumentária afetada

pela moda – através da análise do mercado de moda instalado no Rio

de Janeiro após 1808 – e de outro, a indumentária que compõe o que

se denominou como cultura indumentária do Antigo Regime – ou

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Camila Borges da Silva

86 ISSN 1414-9109

seja, os uniformes daqueles que participavam do aparato estatal e as

insígnias distintivas das ordens honoríficas que se constituíam em

mantos e medalhas dessas ordens.

Pode-se dizer que o mercado de moda somente passou a

existir após a chegada da corte portuguesa, facilitado primeiramente

pela abertura dos portos e, após 1815, pelo fim da guerra com a

França, que permitiu a vinda de inúmeros profissionais franceses

desse ramo. A moda se tornou um fenômeno social nesse momento

por conta do luxo com que se vestia a aristocracia portuguesa

ostentando as últimas modas trazidas da Europa nos espaços

abertos de exibição pública, ou seja, a rua. Esta era ocupada quando

ocorriam cerimônias públicas que passaram a ser freqüentadas por

membros da corte portuguesa. As mulheres da família real e as

damas da aristocracia portuguesa também se faziam presentes

nessas cerimônias, de modo que a saída da mulher do espaço

fechado da casa se intensificou a partir desse momento. Dessa

maneira, a indumentária exibida pela corte alimentava o mercado de

moda devido à necessidade social gerada pela exibição do luxo. O

depoimento de um cronista prussiano oferece a dimensão desse

aspecto:

O luxo das mulheres é indescritível. Jamais encontrei reunidas tantas

pedras preciosas e pérolas de extraordinária beleza quanto nos beija-

mãos de gala e no teatro (...). Seguem o gosto francês, ousadamente

decotadas. Os vestidos são bordados a ouro e prata. Sôbre a cabeça

colocam quatro ou cinco plumas francesas, de dois pés de

comprimento (...) e sobre a fronte, como em torno do pescoço e nos

braços, diademas incrustados de brilhantes e pérolas de excepcional

valor (...). Outro luxo considerável é o dos leques. Vi alguns que valem

milhares de talers, ornados de brilhantes e pérolas, e um até provido

de pequeno relógio verdadeiro. iii

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Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro

do início do oitocentos

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 87

A chegada de comerciantes sobretudo ingleses e franceses

bem como o fluxo comercial instaurado pela abertura dos portos

podem ser medidos tanto pela seção de entradas marítimas da

Gazeta do Rio de Janeiro, onde se percebe um grande fluxo de

navios vindos de portos ingleses e franceses, quanto pela seção de

anúncios do mesmo jornal.

Os anúncios apresentados por comerciantes e profissionais

franceses do ramo da moda tinham um tom novo, até então,

inexistente na cidade. Observa-se neles uma preocupação com a

criação de uma imagem de novidade para atrair a atenção do

comprador ou compradora. Eles buscavam chamar a atenção para a

novidade da mercadoria, para o fato de seus produtos serem de

“última moda” ou tratar-se do que “de mais recente” se utilizava na

Europa. Desse modo, termos como “último gosto”, “última moda”,

“mais moderno gosto” passaram a fazer parte do vocabulário

instaurado por estes comerciantes, o que atentava para o sentido de

modernidade de seus produtos. Um exemplo desses anúncios era o

do comerciante Charles Durand que dizia: “Carlos Durand e

Companhia, rua Direita nº 9, recebeu de França vestidos de filó

bordados de ouro e de prata, no último gosto, vestidos de garça para

baile, luvas de pelica e de seda, para homens e senhoras”iv.

Outra estratégia utilizada era valorizar o fato dos produtos

serem recém-chegados da Europa, como uma forma de adicionar

o valor de modernidade aos mesmos. Afirmava-se, assim,

que o produto havia chegado “proximamente”, “ultimamente”,

“recentemente”, “novamente” ou que os comerciantes tinham

“acabado de receber” suas mercadorias. Os sentidos atribuídos a

“proximamente” e “ultimamente” nos dicionários de Moraes e Silva e

Bluteau confirmam o sentido de “recentemente” desses termos. Para

Bluteau, proximamente é “muito perto” e “imediatamente”v e para

Moraes e Silva é “muito perto, imediato. Há pouco tempo, de

próximo”.vi Já “ultimamente” significa para Moraes e Silva “em último

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Camila Borges da Silva

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lugar”, “pela última vez” e “nos tempos últimos passados”vii

e para

Bluteau “pela última vez”, “em último lugar” e “estes dias atrás”.viii

Informar que um tecido, um vestido ou qualquer outro objeto havia

chegado recentemente, era dizer que esses objetos representavam

aquilo que de mais novo se fabricara no país de origem,

normalmente, França e, secundariamente, Inglaterra. Da mesma

maneira, quando se informava que uma pessoa havia chegado

“proximamente” ou “ultimamente” da Europa, implicitamente se dizia

que ela estava apta a dizer o que de mais moderno se vestia por lá.

Não eram apenas os comerciantes que enfatizavam a modernidade

em seus anúncios. Cabeleireiros, alfaiates, modistas, sapateiros – a

maior parte estrangeira – ressaltava constantemente a possibilidade

de executar serviços de acordo com o “último gosto de Paris”.

A França e, mais especificamente, Paris, apareciam com

destaque nos anúncios, como ponto de referência da elegância e da

modernidade. Se com a guerra empreendida por Napoleão era

vergonhoso ou mal visto chamar a atenção para o fato de um produto

ser francês, depois de 1815 isso era um fator de prestígio e uma

maneira de valorizar o anúncio. Sem dúvida, isto estava ligado à

memória dos tempos “áureos” da Corte francesa, que ditava a moda

e a elegância para o resto da Europa. A referência à França era,

portanto, um recurso utilizado recorrentemente e chamava-se a

atenção não apenas para a origem francesa dos produtos, mas

também para o saber fazer um vestido à moda francesa. Além disso,

todos os profissionais franceses residentes no Rio de Janeiro não

hesitavam em aludir à sua nacionalidade nos anúncios, simbolizando

implicitamente o domínio do bom gosto e um suposto conhecimento

do que de mais recente se estava ocorrendo na França em termos

de moda.

O emprego de vocábulos como “moderno” já começava a

apontar para as transformações que viriam ao longo do século XIX,

sobretudo, a conotação positiva dada àquilo que é novo. Tanto

Raphael Bluteau, no início do século XVIII (1712), quanto Moraes e

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Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro

do início do oitocentos

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 89

Silvaix, no início do XIX, dão a moderno o sentido de algo que é

“novo” e “recente”. No caso de Bluteau sua explicação é mais

detalhada, para ele moderno era “coisa desta era, destes últimos

anos, de pouco tempo a esta parte, respectivamente ao tempo antigo.

Qualquer coisa novamente inventada, introduzida, posta em uso,

&c”.x A descrição do termo “moda” em Bluteau, todavia, é reveladora

de uma conotação negativa dada ao processo de transformação

incessante e a constante criação de um “novo” ou de uma “novidade”,

além da estranheza proporcionada naqueles que, como ele,

possuíam uma visão mais antiga do fenômeno

Esta perpétua variedade de ornatos não deixa de ter pernicidas

conseqüências, os que a não seguem, parecem ridículos, os que com

ela se conformam, desperdiçam patrimônios. Os antigos, como

sempre seguiam no vestir o mesmo estilo, sendo ricos, tinham

quantidades de vestidos sobressalentes. (...) Quando o vestido é

cômodo para o uso do corpo, decente para a qualidade, & idade da

pessoa, & bom contra as injúrias do tempo; o inventar outro, mais

parece loucura, que bizarria. (...) o homem sisudo não deve abraçar

logo no princípio toda a moda. Convém que proceda passo a passo, &

como por degraus. Que é cousa ridícula passar logo de um extremo a

outro (...).xi

Verifica-se, simultaneamente ao estranhamento do autor, a

novidade do fenômeno ao afirmar que “antigamente não existia moda

nos trajos”, que para ele consistia em uma “uniformização” no vestir.

De acordo com esse trecho, pode-se observar que a moda não foi

uma invenção do século XIX, ao mesmo tempo que era ainda algo

recente, passível de estranhamento, sobretudo em Portugal, onde as

leis suntuárias eram bastante rígidas. Moraes e Silva descreveu o

termo “moda” de maneira mais lacônica, como “o uso corrente, e

adotado, de vestir, trajar, em certas maneiras, gostos, estudos,

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Camila Borges da Silva

90 ISSN 1414-9109

exercícios”xii

, sem considerações de cunho moral, mas destacando o

sentido daquilo que se veste “agora”, que está em voga.

A cultura indumentária de Antigo Regime é aquela que atenta

para a permanência e para a manutenção de práticas indumentárias

antigas, processo paralelo à intensa aceleração do tempo-moda

vivido no Rio de Janeiro. Estas práticas perpassavam o Estado, pois

consistiam em uniformes utilizados no exercício de determinados

cargos e veneras de ordens honoríficas, concedidas pelo governante

em recompensa de serviços prestados à Coroa. Assim, esta cultura

indumentária de Antigo Regime estava ligada ao Estado pois era

regulada por ele, não sendo acessível a todos.

Os uniformes utilizados nos serviços da administração pública

são característicos do Antigo Regime, pois identificam seu portador e

seu ofício. A toga identificava o magistrado, a espada identificava o

nobre e a riqueza da farda distinguia o funcionário do escalão inferior

e o alto funcionário (ministros, conselheiros e as pessoas que

ocupavam as chefias do serviço do Paço). Se o Antigo Regime é

compreendido como um sistema político e social em que cada pessoa

é entendida como ocupante de um lugar na hierarquia da

sociedadexiii

, sua cultura indumentária expressa os lugares sociais a

que cada um pertence. Evidentemente que este era um mundo em

decomposição, não existindo um controle total sobre a utilização

desses signos indumentários.

Chamava-se farda toda a roupa utilizada no exercício de uma

função. Assim, os empregados do Paço e os demais funcionários da

administração pública, desde o nível mais alto até o mais baixo, eram

obrigados a utilizar a farda. As roupas de gala, trajadas em

cerimoniais, eram denominadas “fardas grandes”, ou seja, fardas de

gala. As “fardas pequenas” eram os uniformes do cotidiano. Esses

uniformes constituíam-se, desse modo, tanto numa prisão – pela

obrigatoriedade – quanto no símbolo de uma função.xiv

Dentre os

chamados criados do Paço, encontravam-se, entre outros, as damas

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Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro

do início do oitocentos

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 91

da Corte e os titulados que ocupavam variadas funções. Os serviços

do Paço eram muito visados porque, em alguns casos, aumentavam

“a gradação social dos indivíduos que ali serviam”xv

, através do

recebimento de mercês e títulos.

Os uniformes, no período de estadia da Corte portuguesa,

seguiam as cores da casa de Bragança – o vermelho e o azul –

compondo-se de casacas bordadas e calções utilizados com meias

de seda. Existiam variações entre o que era azul e o que era

vermelho. Algumas vezes, as véstias eram azuis, outras, vermelhas,

e o mesmo acontecia com os calções. Os empregados do Paço, e

algumas pessoas especialmente protegidas pelo monarca, recebiam

uma ração de guarda-roupa, isto é, uma ajuda de custo em espécie

para a compra dos uniformes denominada “vestiaria”.xvi

As cores

portuguesas utilizadas nos uniformes foram alteradas por D.Pedro em

decreto de 20 de setembro de 1822, quando se adotou a cor verde

para as casacas, ficando o amarelo nas bordaduras e presilhas de

ouro e o branco para calções, coletes e meias. Neste decreto, passou

a ser admitido o uso de botas e calças brancas no lugar das

tradicionais meias e calções. Alegava-se no decreto que as

mudanças foram ocasionadas pelo fato dos uniformes serem muito

dispendiosos além de contrários ao clima do Brasil, mas a adoção de

tal medida em meio ao processo de independência demonstra a

preocupação em demarcar um rompimento simbólico com Portugal

através das cores adotadas por todos aqueles que servissem ao

novo governante.xvii

As funções de chefia dos serviços do Paço eram indicadas nos

uniformes por bordados específicos: o camareiro-mor, por exemplo,

tinha uma chave de ouro no uniforme como insígnia de seu cargo,

enquanto o reposteiro-mor tinha uma chave de prata e bordadura

mais simples, apontando para sua posição inferior na hierarquia se

comparado ao primeiro.xviii

Da mesma maneira, sabe-se que os

criados efetivos utilizavam um galão dourado preso ao uniforme,

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Camila Borges da Silva

92 ISSN 1414-9109

enquanto os criados honorários, um galão branco. A bordadura

característica da Corte portuguesa era a pena costurada em várias

posições distintas. No Império, a bordadura adotada foi substituída

por um ramo de arroz entrelaçado com palma, para marcar o

rompimento com Portugal.

No caso das ordens honoríficas, esse controle parece ter sido

muito mais rígido, pois apenas poderiam utilizá-las aqueles que

haviam sido condecorados pelo governante. Três destas ordens

honoríficas existiram por todo o Antigo Regime em Portugal e foram

adotadas no Brasil não apenas enquanto colônia, mas mesmo após a

independência. Eram elas - a Ordem de Cristo, de São Bento de Aviz

e de São Tiago. Elas eram compostas de mantos, faixas e medalhas

que deveriam ser utilizados publicamente por todos os membros das

ordens. Eram divididas em três graus: cavaleiros, comendadores e

grão-cruzes, além do grão-mestre das ordens que era o próprio

governante. Todos esses graus eram organizados hierarquicamente.

Os cavaleiros eram a base da pirâmide hierárquica e, por isso, eram

em maior número. Já os comendadores estavam no meio da

pirâmide, enquanto os grão-cruzes compunham o topo da mesma.

Por conta da distinção hierárquica entre os membros de cada ordem,

cada um dos graus era distinguido por um uso específico dos

símbolos indumentários das ordens. Assim, os grão-cruzes deveriam

usar, além do manto, uma faixa transversal ao tronco na qual seria

pendurada a medalha da ordem a qual pertencia. Já os

comendadores, deveriam utilizar a medalha em uma fita pendente do

pescoço, enquanto os cavaleiros utilizariam suas medalhas

penduradas diretamente no lado esquerdo de suas vestes. A medalha

dos grão-cruzes e dos comendadores traria um coração acima da

insígnia da ordem, o que era proibido para os cavaleiros.xix

Os mantos

dessas ordens deveriam ser usados em dias de festas e recebiam a

insígnia da ordem ao lado esquerdo do peito. Jean Baptiste Debret

fez uma descrição do manto utilizado na Ordem de Cristo:

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Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro

do início do oitocentos

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 93

O uniforme de gala dos cavaleiros de Cristo nas cerimônias religiosas

constitui-se unicamente do manto da ordem com o crachá do lado

esquerdo do peito; essa condecoração compõe-se de uma grande

cruz branca, muito estreita, colocada no campo vermelho de outra

mais larga de metal. O conjunto é cercado de raios de prata e

encimado por um coração envolvido numa coroa de espinhos com

uma pequena cruz vermelha. Este acessório pertence somente aos

dignitários. O manto, fechado na frente por alamares desce apenas

até o estômago, deixando de fora a metade dos braços. Embora de

fazenda extremamente leve, pois é feito de crepe branco, usa-se para

maior comodidade toda a parte inferior enrolada sobre o peito com um

cinta de algodão branco (cordão) cujas enormes bordas pendem na

frente. Toda essa passamanaria é cuidadosamente trabalhadaxx

.

Seguindo o modelo dessas três ordens, tanto D. João quanto

D. Pedro I criaram outras ordens honoríficas com o intuito de

ampliarem ainda mais o número de condecorados e de angariarem os

benefícios da vassalagem e da fidelidade utilizando um instrumento

que capitaneava os desejos de ascensão hierárquica e de distinção

dos luso-brasileiros. D. João restaurou no Brasil uma antiga ordem

portuguesa, a Ordem de Torre e Espada, em 1808, em comemoração

aos sucessos da viagem de transferência da Corte portuguesaxxi

, e

criou a Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, em

1818, em comemoração a sua aclamaçãoxxii

. Estas ordens, contudo,

foram extintas após a independência. D. Pedro I, por sua vez, criou a

Ordem Imperial do Cruzeiro, em 1822, em comemoração à sua

coroaçãoxxiii

, a Ordem de D. Pedro I, Fundador do Império do Brasil,

em 1826, em comemoração à independênciaxxiv

, e a Ordem da Rosa,

em 1829, em comemoração ao seu segundo casamento com a

princesa D. Amélia de Leuchtenberg. xxv

Percebe-se a preocupação em inflar o número de

condecorados, pois quase todas as ordens instituídas por D. João e

por D. Pedro ampliaram o número de graus adotados pelas ordens

portuguesas. A Ordem de Torre e Espada, tendo sido a primeira,

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Camila Borges da Silva

94 ISSN 1414-9109

manteve os três graus das demais, mas a Ordem da Conceição

ganhou um quarto grau – o de servente. D. Pedro I, por sua vez,

instituiu quatro graus na Ordem do Cruzeiro – cavaleiro, oficial,

dignitário e grão-cruz – e seis graus na Ordem da Rosa – grão-cruz,

grande dignitário, dignitário, comendador, oficial e cavaleiro. A Ordem

de Pedro I, apesar de ter sido instalada por decreto no Primeiro

Reinado, não teve seus estatutos publicados, tendo sido regulada

apenas em 19 de outubro de 1842. Os estatutos originais, contudo,

previam apenas três graus – o de cavaleiros, dignidades e grandes

dignidades, transformados em cavaleiros, comendadores e grão-

cruzes em 1842.

Seguindo o costume das ordens portuguesas, cada grau

deveria ter um uso específico das medalhas, faixas e mantos para

que as hierarquias entre os membros das ordens se tornassem

visíveis. O modelo de faixa transversal com medalha para grão-cruz,

medalha pendurada em faixa no pescoço para comendador e

medalha presa do lado esquerdo da roupa para cavaleiros era a base

para todas as ordens criadas nessas duas primeiras décadas do

século XIX. A Ordem de Torre e Espada adotava esse modelo geral

e tinha por insígnia uma chapa de ouro redonda com uma espada

com os dizeres “valor e lealdade” para os cavaleiros, enquanto os

comendadores e grão-cruzes trariam também uma torre acima da

insígnia, costume que foi expandido para os cavaleiros em decreto de

1810xxvi

. Estes últimos poderiam usar uma chapa na casaca com a

insígnia da Ordem, sendo que os grão-cruzes, além da faixa

transversal, usariam um colar formado de espadas e torres nos dias

de gala.

A Ordem da Conceição, por sua vez, diferenciava seus graus

por meio do tamanho das medalhas, além dos usos das faixas.

Assim, comendadores e grão-cruzes usavam um modelo maior,

enquanto cavaleiros e serventes usavam o modelo menor. Os

serventes, que eram a base da hierarquia, não poderiam utilizar ouro

ou joias em sua medalha, que deveria ser fabricada em prata. A

Page 94: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro

do início do oitocentos

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 95

insígnia da Ordem era uma “estrela grande de nove pontas,

esmaltadas de branco e arraiadas de ouro, com nove estrelas

pequenas do mesmo esmalte, colocadas sobre os raios entre cada

uma das suas pontas, e decorada com a coroa real sobre a ponta

superior”.xxvii

Na Ordem do Cruzeiro, a única diferença em relação às ordens

portuguesas era que os oficiais utilizavam, além da medalha dos

cavaleiros, uma chapa. Já os dignitários dessa Ordem, apesar do

nome distinto, mantinham o uso dos comendadores. A medalha do

Cruzeiro era uma estrela esmaltada de branco que seria “decorada

com [a] coroa imperial, e assentada sobre uma coroa emblemática

das folhas de tabaco e café, esmaltadas de verde”. Além disso, teria

“no centro, em campo azul celeste, uma cruz formada de dezenove

estrelas esmaltadas de branco, e na circunferência deste campo, em

círculo azul ferrete, a legenda – Benemerentium praemium – em ouro

polido”. No verso da medalha estaria a efígie de D. Pedro em ouro.

A Ordem de Pedro I manteve, em seus estatutos originais, os

usos das ordens portuguesas, mas as dignidades e grandes

dignidades, além do uso da medalha pendente da fita ao pescoço e

da faixa transversal respectivamente, utilizavam uma chapa bordada

com a insígnia da Ordem do lado esquerdo do peito. Já a Ordem da

Rosa, por conta do número maior de graus, teve algumas mudanças

maiores, misturando, em alguns casos, os usos das ordens

portuguesas com os da Ordem do Cruzeiro. Optou-se nela por fazer

uma distinção entre os grãos-cruzes efetivos e os honorários. Os

efetivos deveriam usar nos trajes de corte e grande gala, além da

banda compartilhada pelos honorários, um colar “formado de rosas

de ouro e esmalte”. Os grandes dignitários e os dignitários usariam a

medalha pendente do pescoço, como os comendadores das ordens

portuguesas, e as chapas da Ordem na casaca. Os comendadores e

oficiais usariam a medalha e a chapa pendentes nas casacas. Já os

cavaleiros usariam apenas a medalha na casaca, não tendo direito a

Page 95: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Camila Borges da Silva

96 ISSN 1414-9109

chapa. As cores da Ordem eram rosa e branco e as medalhas

possuíam todas um círculo de rosas ao redor de uma estrela branca,

cujo centro possuía um círculo azul no qual se poderia ler os dizeres

“amor e fidelidade”.

Com a criação da Ordem do Cruzeiro, os símbolos utilizados

nas medalhas – a coroa imperial, a estrela do Cruzeiro, as folhas de

tabaco e café – tinham a função de representar o Brasil. Esta

perspectiva expandiu-se para as medalhas das ordens portuguesas

aplicadas ao Brasil no decreto de 1843 que, nas palavras de Poliano,

visava a “nacionalizar” as insígnias dessas ordens, construindo uma

diferenciação entre as ordens brasileiras e suas homônimas

portuguesas. Poliano, contudo, admite a hipótese que estas

modificações tenham ocorrido antes do decreto, seguindo as

formulações de Artidoro Xavier Pinheiro. Este transcreve o decreto de

1843 retratando em pranchas as medalhas já com as alterações

simbólicas das estrelas do Cruzeiro, do café e do fumo, embora o

decreto de 1843 apenas admita a mudança nas cores das fitas das

Ordens Militares. Poliano conclui que Pinheiro apenas teria

formalizado em suas pranchas “mais de meio século de uso de tais

insígnias”. O autor apoia-se ainda no “Viagem pitoresca e histórica”

de Jean Baptiste Debret que retrataria a cruz da Ordem de Cristo

ladeada dos ramos de café e fumo. Aventa ainda a hipótese de que a

“fantasia dos ourives” levasse a modificações reais nas insígnias

dessas ordens, a despeito da interdição legal para isso. xxviii

A corte instalada no Rio de Janeiro, transformada depois em

império independente, vivia o dilema de um Antigo Regime em crise,

ameaçado que estava pela difusão das ideias liberais. Esse dilema é

perceptível pela coexistência de dois padrões indumentários distintos:

por um lado temos o rápido avanço das modas – sobretudo após

1815 com a “invasão” de franceses ligados ao comércio de moda –,

de outro lado, a restrição do acesso aos signos distintivos que

emanavam prestígio nessa sociedade, ou seja, os uniformes e

insígnias das ordens honoríficas. Nestes dois padrões percebemos a

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Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro

do início do oitocentos

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 97

luta de dois mundos diferentes: um lutando pela sobrevivência - o

Antigo Regime - e outro em rápida transformação.

O estudo da indumentária nas duas primeiras décadas do

século XIX permite-nos, assim, atentar para o processo de

interpenetração de diferentes temporalidades em um mesmo recorte

cronológico. Tradição e modernidade não eram elementos que

coexistiam em esferas separadas e sim se combinavam de diferentes

maneiras. Neste processo, a tradição acabava inserida na própria

concepção de moderno, dando forma a essa modernidade e

construindo as feições singulares dessa cultura.

Notas e referências

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da

Cultura da Universidade Pontifícia Católica (PUC-Rio), orientada pelo

Professor Livre Docente Antônio Edmilson Martins Rodrigues. Bolsista

Faperj Nota 10. Contato: [email protected] i MELLO E SOUZA, Gilda de. O espírito das roupas: a moda no século

XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; FREYRE, G. Sobrados e

Mucambos. 6a edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1981;

ROCHE, Daniel. A Cultura das Aparências: uma história da indumentária

(séculos XVII-XVIII). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007. ii WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia

compreensiva. 2 vols. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São

Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999 iii LEITHOLD, T.Von. e RANGO, L.Von. O Rio de Janeiro visto por dois

prussianos em 1819. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966,

p.30. iv Gazeta do Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1818, nº 1 e 14 de janeiro de

1818, nº 4. Grifo meu.

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Camila Borges da Silva

98 ISSN 1414-9109

v BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collégio

das Artes da Companhia de Jesus, 1712, v.3, p.809. vi MORAES E SILVA, Antônio. Grande Dicionário da Língua Portuguesa.

Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1813, v.2, p.523. vii

Idem, p.820. viii

BLUTEAU, Raphael. Op. cit., v.4, p.542. ix MORAES E SILVA, Antônio. Op. cit., p.308.

x BLUTEAU, Raphael. Op. cit., v.3, p.529.

xi BLUTEAU, Raphael. Op. cit., v.3, p.526.

xii MORAES E SILVA, Antônio. Op. cit., p.307.

xiii SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Análise de Estratificação Social (O Rio

de Janeiro de 1808 a 1821). São Paulo: USP. Departamento de História.

Boletim n.07, 1975. xiv

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro

(1808-1821). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 21 e 22. xv

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora

Unesp, 2005, p.275. xvi

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Análise de Estratificação Social, p. 19. xvii

Decreto de 20 de setembro de 1822. Arquivo Nacional. Códice 15,

volume 9. xviii

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São

Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1978, tomo II, p. 215. xix

Carta de Lei de 19 de junho de 1789. Livro das Leis. Chancellaria-Mor

da Corte, e Reino. Lisboa: Impressão Régia, p. 553 e 554. xx

DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p.169.

xxi Decreto de 13 de maio de 1808 e Carta de Lei de 29 de novembro de

1808 transcrito em POLIANO, Luiz Marques. Ordens honoríficas do

Brasil (história, organização, padrões, legislação). Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1943, pp.194-197. xxii

Decreto de 6 de fevereiro de 1818 e Alvará de 10 de setembro de 1819

transcrito em POLIANO, Luiz Marques. Op. cit., pp. 200-204.

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Aspectos indumentários e imaginário social no Rio de Janeiro

do início do oitocentos

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 99

xxiii

Decreto de 1º de dezembro de 1822. Arquivo Nacional. Graças

Honoríficas – códice 15, vol. 9. xxiv

Decreto de 16 de abril de 1826. Arquivo Nacional. Códice 961. xxv

Decreto de 17 de outubro de 1829. Arquivo Nacional. Códice 14 – vol.8. xxvi

Alvará de 23 de abril de 1810 transcrito em POLIANO, Luiz Marques.

Op. cit., p.200. xxvii

POLIANO, Luiz Marques. Op. cit., p.202. xxviii

POLIANO, Luiz Marques. Op. cit., p.81 e 82.

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100

Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e

o Teatro do Oprimido

Desirree dos Reis Santos

“Quiseram que eu me calasse, mas eu falo. Quiseram que eu dissesse

amém, mas eu digo não. Quiseram que eu morresse, mas estou vivo”.

(Augusto Boal, 1978)i

A trajetória de exílio do autor e diretor teatral Augusto Pinto Boal nos

anos 1970 foi marcada por várias de suas criações, onde se criticava

a ditadura militar brasileira, fazia-se denúncia da tortura nos regimes

autoritários da época, falava-se sobre as vivências de milhares de

exilados e as demais histórias de pessoas com quem encontrava no

exílio. Quiseram que se calasse, mas o exílio, apesar de todas as

dificuldades e da amarga experiência, foi a possibilidade de fala

naqueles anos de ditadura no Brasil: “Escutem, escutem. Eu não me

calo. Eu não me calo. Escutem” ii.

Crônicas de Nuestra América (1977)iii e Murro em Ponta de

Faca (1978) são exemplares no tocante às temáticas apontadas. A

primeira é uma série de histórias, expressadas em crônicas, de

pessoas que conheceu ou de que ouviu falar nos países latino-

americanos. São histórias de “Nuestros Americanos – aqueles que

sofrem, pelejam e que um dia se libertarão”, como disse o

dramaturgo. Já o Murro é uma peça teatral, em que a condição de

estar exilado e as angústias de viver fora do ambiente comunal

ganham foco. No presente artigo, propomos ir além da análise

somente de suas produções exilares, verificando de que maneira o

exílio influenciou as suas criações artísticas, quando comparadas aos

projetos por ele realizados nos anos 1960, quando era diretor do

Teatro Arena de São Paulo.

Para tanto, dentre suas produções, optamos por um olhar

direcionado ao Teatro do Oprimidoiv, criação resultante das

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 101

descobertas coletivas de seus trabalhos no exílio latino-americano

(sobretudo, Peru e Argentina) e aprofundada na Europa após o golpe

de Estado argentino em 1976. A relação entre intelectual e povo é

temática bastante presente tanto na sua atuação nos anos 1960

como no Teatro do Oprimido e será a partir dela que analisaremos

como os projetos de Boal foram metamorfoseados quando passou a

viver e produzir no exílio.

O antropólogo Gilberto Velho, na análise das sociedades

complexas – em particular, a brasileira – define a noção de

metamorfose vinculada à questão da mudança individual em

permanência com vivências anteriores, embora reinterpretadas com

outros significados. Isso possibilita, “através do acionamento de

códigos, associados a contextos e domínios específicos (...) que os

indivíduos estejam sendo permanentemente construídos” v.

No contexto específico do exílio, a vivência em outros países,

as diferenças culturais, as novas visões de mundo, a angústia por

estar longe de seu lar, a falta de reconhecimento no local que passa a

viver, as novas oportunidades e possibilidades, tudo isso interferiu

não somente nas trajetórias pessoais dos exilados, como também

nos seus projetos políticos e nas próprias criações artísticas.

Valendo-nos dos apontamentos do antropólogo, interessa-nos

verificar o “jogo da permanência e da mudança” através das

atividades e produções de Augusto Boal como contribuição para a

amplitude e pluralidade relacionada à temática do exílio brasileiro

predominante nos anos 1970.

Este é o tema deste texto composto em duas partes. A

primeira, uma breve análise sobre a relação entre intelectualidade e

povo no teatro de Arena. A segunda, mais extensa, dá enfoque a sua

trajetória de exílio e aos primeiros momentos de atuação com as

propostas do Teatro do Oprimido. Boal só voltou a morar no Brasil em

1986. No entanto, o presente texto contemplará somente a década

de 1970.

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Desirree dos Reis Santos

102 ISSN 1414-9109

1 Teatro de Arena, Boal e a luta contra a ditadura brasileira

Durante a maior parte dos anos 1960, houve a manutenção da

posição hegemônica do Partido Comunista Brasileiro (PCB) sobre as

expressões culturais, principalmente nas “artes de espetáculo” como

o cinema, a música e o teatro. Com objetivo de ampliar seus públicos,

a proposta do que seria arte engajada para essa esquerda estava

direcionada à ideia do nacional-popular. Voltada especialmente para

a plateia, essa concepção residia na tentativa de criar estratégias

para conscientizá-la quanto aos problemas sociais brasileiros.

Para Celso Frederico, as concepções de nacional e do popular

tinham dois claros pontos traçados. Em primeiro lugar, era enfatizada

a arte não-alienada através da tópica nacional, em que artistas e

intelectuais de esquerda contribuiriam para que o público refletisse

sobre a realidade brasileira e, a partir desse conhecimento, pudesse

transformá-la. O viés popular, por outro lado, estava diretamente

ligado à democratização da cultura, em detrimento de uma arte

elitizadavi. No teatro, por exemplo, até o final da década de 1950 e

durante uma parte dos anos 1960, as companhias teatrais

restringiam-se em montar repertórios estrangeiros e com públicos

elitizados. Foi a favor de uma revisão crítica a realidades como essa

que viria a proposta do nacional-popular, sendo ela base intelectual

para as montagens do Teatro de Arena de São Paulo.

A questão da conscientização conduzida pelos intelectuais e

artistas de esquerda ligados à hegemonia pecebista sofreu algumas

releituras depois de 1964. O Arena, que até então, seguia essa

proposta, começava a direcionar para outras perspectivas quanto ao

uso do conteúdo da obra. Essa tomada de posição do Arena consistia

no questionamento sobre a frente classista desejada pelo PCB, que

teve seus primeiros sinais de extinção nas esquerdas com o golpe de

1964 e a considerada traição da burguesia naquele momento.

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 103

A proposta do Teatro de Arena na relação entre palco e plateia

perpassava a iniciativa de conscientização para englobar a

perspectiva do protesto. Como se vê, o enfoque dado ao público e à

necessidade da mensagem política não era questionado. O que se

pretendia, nessa nova abordagem, era utilizar a mensagem para

alcançar um resultado prático imediato e não uma simples

conscientização sem atitudes mais concretas. Arena conta Zumbi

(1965) e Arena conta Tiradentes (1967) são exemplos dessa

nova proposta.

De acordo com Edélcio Mostaço, para Boal, uma peça passa,

nesse momento, a ter validade somente nas obras que resultassem

“em algum saldo político organizacional imediato, como os comícios e

as assembléias”vii

. O binômio emoção/consciência cede espaço ao

espírito cívico do protesto/resistência, como nos mostra Marcos

Napolitanoviii

. Boal e os demais integrantes do Arena buscavam as

discussões dentro da esquerda sobre as formas de se entender a

realidade brasileira e suas lutas. O objetivo era atingir o público, mas

na relação entre intelectual e povo, era o primeiro que detinha a

informação, o que ensinava e que atuava, como num processo

didático, para estabelecer as palavras de ordem para o povo. Como

veremos, o Teatro do Oprimido retoma criticamente essa relação.

De todo modo, qualquer forma de resistência à ditadura era

reprimida pelo governo. Para Miliandre Garcia, a ofensiva sobre o

teatro era explicada pela ideia de ser considerado pelas forças

situacionais como o braço mais fraco do comunismo e, por essa

razão, mais fácil de ser desarticuladoix. Preso em fevereiro de 1971,

Boal permaneceu no Departamento de Ordem Política e Social

(DOPS) de São Paulo por um mês em cela solitária e quase dois

meses no presídio Tiradentes. Grupos de artistas e entidades

profissionais do teatro pressionaram o governo para a libertação do

dramaturgo, que conseguiu sair da prisão, alegando ter de

acompanhar o Teatro de Arena durante o Festival de Teatro de

Nancy, mas assinando um termo de compromisso de que voltaria ao

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Desirree dos Reis Santos

104 ISSN 1414-9109

Brasil ao término do eventox. Seguiu para França para se juntar à

excursão do Arena, mas decidiu deixar a Europa para viver em

Buenos Aires com sua esposa de nacionalidade argentina

Cecilia Thuminxi.

2 O exílio e o Teatro do Oprimido

Viver no exílio implica ao exilado a condição de uma ruptura com o

ambiente comunal em que convivia outrora e/ou a percepção de estar

sempre fora do lugarxii

, para utilizar a expressão de Edward Said.

Essa vivência é marcada pela sensação de estar longe da pátria, por

estar afastado de amigos, familiares, mas também pelas dificuldades

de adaptação ao país que o acolheu, como o novo idioma, o não

reconhecimento entre esses habitantes e os problemas por conta da

criação de novas redes de sociabilidade. A segunda metade do

século XX nos países latino-americanos é marcada por essas

diversas vivências, fruto das políticas repressivas das ditaduras

instaladas na região. Augusto Boal faz parte dessas experiências.

O psicanalista uruguaio Marcelo Viñar, que viveu no exílio

nessa época por conta do governo autoritário que se instaurou em

seu país, escreveu em conjunto com sua esposa, Maren Viñar, um

livro em que a ruptura cujo exilado político tem de enfrentar é

analisada. Segundo Marcelo:

O homem se constrói a partir de suas ilusões e de seus projetos, e

uma das dimensões da existência é o fato de remodelar

permanentemente este jogo de ilusões e de projetos, que se dá entre

o ser e as pessoas de sua convivência. O exílio faz abortar este

movimento e o destrói, para retomá-lo na estranheza do não-familiar.

(...) Ele se apresenta como um tempo de inércia e contemplação, que

emerge após a tormenta, o naufrágio e a catástrofe: propõe o desafio

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 105

do que podemos construir a partir da perda, da desilusão, do

desencorajamento, da derrota.xiii

A ruptura por conta do afastamento, o impedimento de voltar

ao Brasil e continuar sua trajetória dentro do grupo teatral no qual

atuava desde os anos 1950, as tentativas de manter sua identidade, a

busca por oportunidades e as reflexões sobre o uso do teatro como

novo tipo de ferramenta política são marcas do exílio de Boal. A

chegada à Argentina, em 1971, e a dificuldade de adaptação foram

narradas pelo dramaturgo em seu livro de memórias:

Sensação estranha: a cidade não precisava de mim! Se não existisse,

eu não faria falta. Na minha terra eu fazia diferença, mesmo mínima.

Em Buenos Aires, nenhumaxiv

. Me sentia invisível. Me olhava no

espelho vazio e todo mundo tinha ido embora – até eu! Difícil fazer a

barba quando não se vê a imagem... Claro que o Brasil inteiro podia

viver sem mim – por muito tempo viveu, diga-se – mas fiz diferença,

sei. (...) Em Buenos Aires, senti o significado da palavra raízes...

quando as perdi. Quando as tinha, não sabia. Perdidas, dei falta.xv

Essas reflexões sobre o passado vivido expressas no livro de

memórias de Boal nos mostra como o exílio é por ele representado e

lembrado, principalmente quando se trata daquele primeiro momento

de contato com o não-familiar. Essa sensação é também comentada

por Marcelo e Maren Viñar:

Para o exilado, a ruptura da ancoragem narcísica se faz em um conflito

violento, sobretudo para quem outrora tinha um papel reconhecido por ele

e pela comunidade. Perde o espelho múltiplo a partir do qual criava e

nutria a sua própria imagem, seu personagem. No exílio ninguém o

conhece, ninguém o reconhece. Aquele que eu era não existe mais. O

personagem está morto, o cenário não é mais o mesmo, os atores

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Desirree dos Reis Santos

106 ISSN 1414-9109

tampouco. E nos encontramos ali, sem olhar, sem palavra: comoção e

crise radical de identidade. O homem está nu.xvi

A crise radical de identidade traz inúmeras consequências ao

exilado. No caso de Boal, a busca por uma nova linguagem teatral,

incorporada a técnicas teatrais antes utilizadas por ele foi uma delas:

seus projetos metamorfoseadosxvii

. Surge o Teatro do Oprimido.

O teatro, nessa perspectiva, é visto como instrumento político

para reflexão e transformação social, mas tendo o espectador como

sujeito ativo da produção. Através das expressões artísticas e do

diálogo entre os oprimidos, podem-se questionar e transformar

realidades opressivas em qualquer lugar, desde que tenha o oprimido

e uma situação a ser superada. O oprimido age, não há, em espécie

alguma, um aspecto de vitimização, pelo contrário, é o oprimido que

tem a capacidade de lutar contra. Seguindo a lição de Paulo Freire, é

aquele que melhor se encontra preparado e pode entender o terrível

significado de uma sociedade opressora e seus efeitosxviii

. Dentre as

formas de Teatro do Oprimido, o Teatro-Fórum é uma possibilidade

exemplar para entender essa proposta e perceber a relação entre

intelectual e povo a partir dessa nova linguagem.

Durante sua experiência com teatro popular no Peru, em uma

das sessões, Boal não conseguia compreender o que uma

espectadora dizia ao solicitar que os atores improvisassem suas

ideias, então, resolveu convidá-la ao palco para que pudesse

interpretá-las. Assim, “ela entrou em cena dividindo-se em duas: ela e

a personagem”xix

, um “espect-ator”, como passou a classificar, aquele

que age e observa. Nesse sentido, percebeu que para “ver” o

pensamento das pessoas era melhor que fosse através de seus atos

e não de suas palavras. Só assim, o teatro passaria a ser um “teatro

de perguntas”, de questionamentos. Não cabia ao intelectual, ao

estudante de teatro, ao ator que fazia parte da montagem da peça

conduzir e ensinar, era o povo que deveria deter os meios de

produção do teatro. Na concepção de Boal, esses meios de produção

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 107

teatral têm de ser utilizados pelo povo de acordo com suas maneiras

e para seus fins, “o teatro é uma arma e é o povo que deve manejá-

la”xx

. O público e os atores contratados para a peça agem tanto como

espectadores e atores, em uma igualdade de posições.

O Teatro-Fórum é divido em dois momentos. No primeiro,

apresenta-se uma peça convencionalmente, mas apontando para um

problema no qual o protagonista não tem uma solução. O problema

deve constar a opressão que se deseja combater. Finalizada essa

parte, começa um novo momento. A peça é novamente encenada,

mas ganha outro sentido: a qualquer momento, o público pode

interferir, dizendo para parar a encenação. Os atores congelam

aquela cena e o “espect-ator” intervém, veste parte do figurino do ator

em que escolhe para substituir, mantêm as ações físicas do mesmo,

dando continuidade e um novo rumo para aquela história, junto aos

demais atores. Através das ações desse novo integrante que se pode

refletir e questionar aquela realidade posta em questão.

O foco é na ação. Qualquer ideia pode ser proposta, mas não é

permitido que o público dê sugestões sem encenar, acomodados nos

seus assentos:

Tenho visto espectadores sempre disconformes que revelam ser

extraordinários revolucionários... porém sentados nas suas poltronas.

Falar é muito fácil, é muito fácil sugerir atos heroicos e maravilhosos.

O mais difícil é realizá-los. Esses mesmos espectadores se darão

conta de que as coisas são um pouco mais difíceis do que pensam se

tiverem que fazer eles mesmos os atos que preconizam.xxi

Naquele teatro popular, o povo é o protagonista, mas não

somente do conteúdo da obra, em que ele é o tema central e sua

realidade, discutida. Para o dramaturgo, a proposta era que o próprio

povo conduzisse a encenação, reassumindo “sua função protagônica

no teatro e na sociedade”xxii

. Sendo assim, transformam a ação

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Desirree dos Reis Santos

108 ISSN 1414-9109

inicialmente enunciada e oferecem sugestões modificadoras a partir

de suas vivências e de seus desejos. Em outras palavras, a Poética

do Oprimido propõe o aspecto transformador da ação dramática, em

que, segundo Boal, o espect-ator “invadindo nosso espaço,

concretizava sua verdade.” xxiii

Possivelmente comparando a sua trajetória dos anos 1960 e à

ideia do intelectual capaz de conscientizar e dar as palavras de

ordem ao público, Boal comenta essa nova proposta: “Longe o tempo

em que ensinávamos tudo, os sabichões. Quando violou as regras do

jogo, senti alívio: eu não era obrigado a saber, sempre, o bom

caminho. Não devia mais me sentir culpado!”xxiv

A experiência no Peru e a estruturação do Teatro do Oprimido,

a partir do Teatro-Fórum, foram realizadas numa época em que o

governo peruano iniciava o denominado ALFIN, um plano nacional de

alfabetização integral, por conta do alto índice de analfabetos que

tinha naquele país. O ano era 1973. Esse Programa seguia o método

de alfabetização de Paulo Freire e tinha como meta erradicar o

analfabetismo em aproximadamente quatro anos, utilizando

diferentes tipos de linguagemxxv

. A Boal coube o trabalho com o

teatro popular.

Para trabalhar com os peruanos, o dramaturgo foi além do uso

de métodos que já conhecia. O exílio possibilitou a Boal descobertas

e, não deixando recair à posição mais cômoda para o exilado (ou

seja, manter-se à margem e num estado melancólico devido à fratura

obtida pelo afastamento do ambiente comunal), propôs mecanismos

de libertação para povos oprimidos naquele contexto da segunda

metade do século XX.

A vivência no exílio fez parte dos estudos do intelectual

palestino Edward Said. Refletindo sobre sua experiência pessoal,

permanentemente “entre mundos”xxvi

, e analisando o exílio num

sentido mais amplo, identifica o exilado como um estado de ser

descontínuo, uma vez separado da terra natal, de suas raízes e de

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 109

seu passado. No entanto, apesar da dor mutiladora do afastamento,

Said nos fala dos “prazeres do exílio” que só são possíveis de

acontecer, ao passo que o indivíduo percebe que não se deve ficar à

margem de tudo nos lugares que passa a viver. Impedido da volta,

cabe ao exilado buscar novas possibilidades e, se possível, tentar

também uma nova vida que, mesmo minada pela perda, ganha um

novo sentido em meio ao aprendizado e às descobertas nos países

que o acolheram, como ocorreu no caso de Boal.

Said demonstra essa alternativa que o exilado deve seguir, já

que, “no final das contas, o exílio não é uma questão de escolha:

nascemos nele, ou ele nos acontece. Mas, desde que o exilado se

recuse a ficar à margem, afagando uma ferida, há coisas a

aprender”xxvii

. Tzvetan Todorov também percebe esse aspecto duplo

do exílio de perda e descoberta. Classificando-se como um exilado

circunstancial, nem econômico, nem político, discorre sobre a

situação do homem desenraizado, que, “arrancado de seu meio, de

seu país, sofre em um primeiro momento: é muito mais

agradável viver entre os seus. No entanto, ele pode tirar proveito de

sua experiência.”xxviii

Os trabalhos no Peru eram intercalados com a vida na capital

portenha, onde sua esposa e filhos viviam. A onda de golpes de

direita nos países latino-americanos ameaçava também a Argentina.

Depois da morte do então presidente Juán Perón, em 1974, Isabelita,

sua esposa e vice-presidente, assumiu o poder. Os anos em que

Isabelita esteve na presidência foram marcados pela fragilidade

política do governo, onde eram crescentes as ações tanto de grupos

paramilitares de direita, como da extrema esquerda, demarcando

uma fase de intensa radicalização política, que culminou na tomada

do poder pelos militares em 1976.

O golpe argentino foi decisivo para a partida de Augusto Boal e

para estender os anos de exílio: a volta ao Brasil era inviável e

permanecer em solo latino-americano, inseguro. Em 1976, junto com

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Desirree dos Reis Santos

110 ISSN 1414-9109

sua família partiu para Portugal. Lá, viveu por dois anos. Foi nessa

época que, no Brasil, surgiu a canção “Meu Caro Amigo”xxix

de Chico

Buarque de Hollanda e Francis Hime endereçada a Boal. A letra

musical utiliza metáforas para dar notícias ao amigo exilado, mas

também denunciar o regime autoritário, como muitas outras de

autoria de Chico.

De Portugal, passou a viver na França. O Teatro do Oprimido

passou a ser mais difundido na Europa a partir desse momento, já

que Boal foi convidado a lecionar sobre essa nova linguagem teatral

na Universidade Sorbonne. Em Paris, Boal participou da fundação do

Centre d’Étude et Diffusion des Techniques Actives d’Expression, que

ensinava a Poética do Oprimido para centenas de pessoas. As

técnicas foram ganhando repercussão internacional no final dos anos

1970.

Entre as formas de Teatro do Oprimido, além do Teatro-Fórum,

há o Teatro-Imagem, o Teatro-Jornal, o Teatro-Legislativo e o Teatro-

Invisível. O diretor teatral e os atores especializados (os “curingas” do

Teatro do Oprimido) atuam, dentro dessa perspectiva, como aqueles

que demonstram e ensinam os métodos e as técnicas para a

libertação por meio do teatro para outros grupos ou, em cena, são os

que estimulam os participantes, os “espect-atores”, a ousarem mais.

O teor libertário capaz de romper uma situação de submissão

ou, ao menos, causar estranhamento a ela são os vetores principais

de todas essas formas de Teatro do Oprimido. Uma experiência que

Boal presenciou e que narra no documentário de Zelito Viana,

chamado “Augusto Boal e o Teatro do Oprimido”, demonstra esse

estranhamento com a situação de ser oprimido e a possibilidade de

os métodos utilizados e o teatro em si serem armas para reflexão

desse indivíduo que vive uma forma de opressão. A história contada

é sobre um grupo de empregadas domésticas que atuava sob a

direção de Boal em sindicatos e praças e, certa vez, pediram ao

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 111

dramaturgo para encenar em um teatro convencional. Realizado o

desejo, foi feito o espetáculo: sucesso. A peça acabou sob aplausos.

Todas as atrizes estavam sorridentes, exceto uma que se

encontrava chorando no camarim. Boal foi encontrá-la, questionou o

motivo do choro e ela respondeu que eram ensinadas a serem mudas

e que havia um homem pedindo para falarem bem alto para que

todos da plateia pudessem ouvir. Ele perguntou, então, se foi por isso

que ela chorou, ela negou e continuou, dizendo que foi criada para

não ser vista e tinham luzes, holofotes a iluminando. Boal perguntou

novamente: “Então, foi por isso que você chorou?” e depois de muito

negar, ela disse que se emocionou, quando entrou no camarim, olhou

no espelho e viu uma mulher. Antes o que via era uma empregada

doméstica e explicou: “mas agora que eu estava iluminada, falei o

que pensava, disse as minhas emoções, agora, eu olho no espelho e

vejo uma mulher”. Boal conclui: “Não é só ela quem descobre isso, é

todo mundo que entra em cena, diz o que pensa, conta suas

emoções” descobre quem realmente éxxx

. Essa é uma representação

e uma das possibilidades de libertação do Teatro do Oprimido.

Diante da lógica da Doutrina de Segurança Nacional na

ditadura militar brasileira, o afastamento de Boal, assim como dos

demais exilados, serviria para “diminuir a carga de indésirables do

país”xxxi

nos termos de Hannah Arendt. A saída dos “indesejáveis” era

resultante de um longo caminho de perseguições, ameaças,

interrogatórios e/ou prisões, por vezes, seguidas de torturas,

inviabilizando a permanência no Brasil. As partidas, em geral, eram

vistas como uma garantia de sobrevivência e maneira de escapar

dessas perseguições. As decisões de sair decorriam de diversas

situações, desde o banimento (principalmente ligado a iniciativas

armadas que objetivavam a soltura de militantes presos) até a recusa

de viver num país sob ditadura. Mas, para todos esses exilados, o

lugar de chegada estava sempre vinculado a uma “utopia de paz”, já

que nunca se quer um país mais belicoso do que aquele de origem.

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Desirree dos Reis Santos

112 ISSN 1414-9109

No caso dos exílios latino-americanos, essas representações

dos países de chegada estavam diretamente ligadas às conjunturas

dos mesmos, seja por serem favoráveis à efervescência política de

esquerda ou, ao menos, que não estivessem tomados por governos

militares autoritários. Em um primeiro momento, de maneira geral,

Chile, Cuba e, em alguns casos, a Argentina foram os grandes focos

dos exilados. Após isso, tendo Chile e Argentina vivido golpes

militares em 1973 e 1976, respectivamente, a Europa, quando

conseguiam refúgio, era a principal moradia. Boal não foge a

essa evidência.

Entendemos a vida no exílio de Augusto Boal como sendo

determinante para que realizasse a linguagem teatral que

sistematizou o Teatro do Oprimido. Foi o aprofundamento de métodos

já utilizados, quando era diretor do Teatro de Arena de São Paulo. O

exílio permitiu complementá-los, estruturá-los e divulgá-los a partir de

novos ambientes culturais e novas redes de sociabilidade.

Pensando a noção da contemporaneidade, o filósofo Giorgio

Agambenxxxii

analisa a perspectiva da fratura. Ao trazermos para a

condição do exilado, os apontamentos do filósofo permitem uma

compreensão sobre o significado do afastamento que, ao contrário do

que pode parecer, não é lugar de fuga de seu tempo ou de sua

realidade, mas sim a possibilidade de maior engajamento do

indivíduo causado pelo desconforto e pelo distanciamento.

Boal esteve fora do lugar, mas, ao mesmo tempo buscando

seu lugar e, mais, as possibilidades no exílio de criar ferramentas

políticas para libertação dos que estão submetidos a opressões. Suas

produções não tinham mais como objetivo principal a luta contra a

ditadura militar brasileira – apesar de ela ser tema bastante

recorrente em suas obras. A militância ganha múltiplos sentidos.

Militar era através da linguagem no intuito de provocar. A

militância está ligada a pensar uma linguagem teatral que faça com

que as pessoas que sejam oprimidas percebam e sintam um

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 113

desconforto de estar naquela condição. Foi a partir das

experimentações naqueles países durante os anos de exílio que se

aperfeiçoaram as técnicas, que hoje são utilizadas por dezenas de

países, sistematizadas no livro Teatro do Oprimido e outras poéticas

políticas. E, por que esse título? Boal nos explica, através de seu livro

de memórias:

O Teatro do Oprimido, antes de editado, não se chamava assim. (...)

Livreiros argumentavam que ninguém compraria um livro de Poéticas

Políticas: poesia ou política? Mudei para Poéticas do Oprimido em

homenagem a Paulo Freire. Outra recusa: em que estante colocar?

(...) Quando, pela primeira vez, pronunciei Teatro do Oprimido, soou

estranho. Ainda hoje, para alguns, soa Deprimido, embora se trate de

Revoltado, do que quer lutar, ser feliz. Imaginem se eu o chamasse de

Teatro da Felicidade, Teatro da Revolução, Teatro do Futuro

Inventado! – pretensioso. Ficou como é, agora gosto: Teatro do

Oprimido!!!xxxiii

Notas e referências

Mestranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História

Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Bolsista

CAPES, orientada pelo Professor Doutor Mauricio Parada.

Contato: [email protected] i Trecho extraído do texto de Murro em Ponta de Faca (1978), peça de

sua autoria que toca o tema do exílio. ii Idem.

iii BOAL, Augusto. Crônicas de Nuestra America. Rio de Janeiro: Codecri,

1977. (Coleção Edições do Pasquim; v. 10) iv Os aspectos teóricos e técnicos desse teatro podem ser vistos em

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

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Desirree dos Reis Santos

114 ISSN 1414-9109

v VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades

complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 29. A ideia de “metamorfose”

ligada a exílio também é utilizada pela historiadora Denise Rollemberg

quando estuda as memórias de exilados brasileiros da recente ditadura,

cf. ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de

Janeiro: Record, 1999. Atualmente, o livro de Denise é uma das

principais referências para o estudo sobre os exílios durante os anos

1960 e 1970. vi FREDERICO, Celso. "A política cultural dos comunistas". In: Quartim de

Moraes, João (org.). História do marxismo no Brasil. Teorias.

Interpretações. Campinas: Ed. da Unicamp, 1998, p. 277. vii

MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião. São

Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 92. viii

NAPOLITANO, Marcos. “A arte engajada e seus públicos (1955-1968)”.

In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.28, 2001, p.7. ix GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na

ditadura militar (1964-1985). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro:

UFRJ/PPGHIS, 2008, p. 137. x Depoimento de Boal no documentário de Zelito Viana, v. AUGUSTO

Boal e o Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: MAPA, 2011. Diretor: Zelito

Viana. Produção: Patrícia Chamon. Trilha sonora: Francis Hime. DVD,

62’. xi Sobre a trajetória da prisão até o exílio de Boal, v. MAGALDI, Sábato.

Um palco brasileiro: Arena de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984,

p.96-97. xii

SAID, Edward. Fora do Lugar. São Paulo: Cia das Letras, 2003. xiii

VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Maren. Exílio e tortura. São Paulo:

Escuta,1992, p.111. xiv

Nessa parte do texto, Boal coloca em nota a seguinte passagem: “A

personalidade do exilado corre sério risco de desintegração – é preciso

que eu faça falta para saber quem sou: sou a falta que faço. Se não faço

falto, não sou! É o pior que pode acontecer a alguém: tornar-se anônimo

para si mesmo!”. V. BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro:

Memórias Imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 289.

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Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 115

xv

Idem, p. 289, 290,297. xvi

VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Maren. Op. cit, p.71. xvii

Metamorfose no sentido já explicitado a partir do conceito analisado por

Gilberto Velho. VELHO, Gilberto. Op.cit. xviii

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

2011. xix

BOAL, Augusto, Op.cit., p. 298. xx

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 127. xxi

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. xxii

Idem, p. 150. xxiii

BOAL, Augusto. Op. cit., 2000, p.298.

xxiv Idem.

xxv BOAL, Augusto. Op.Cit., 1977, p.124.

xxvi SAID, Edward. “Entre Mundos”. In: ___. Reflexões sobre o exílio e

outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. xxvii

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo:

Companhia das Letras, 2002, p. 57. xxviii

TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record,

1999, p. 27. xxix

Canção do álbum Meus caros amigos (1976) Philips 6349 398. xxx

Trecho do documentário “Augusto Boal e o Teatro do Oprimido” de Zelito

Viana. xxxi

ARENDT, Hannah. Apud. GRECO, Heloísa. Dimensões fundacionais da

luta pela anistia. Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2003. xxxii

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios.

Chapecó, SC: Argos, 2009. xxxiii

BOAL, Augusto. Op. cit., 2000, p. 299.

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116

Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto

Junior e José Joaquim Machado de Oliveira sobre os

aldeamentos da província de São Paulo

Gabriela Piai de Assis

Este artigo trata de alguns aspectos dos documentos “Notícia

Raciocinada sobre as aldêas de índios da província de S. Paulo,

desde o seu começo até à actualidade”i, do Brigadeiro José Joaquim

Machado de Oliveira, publicado pela primeira vez na Revista do

Instituto Histórico Geográfico Brasileiro em 1846 e “Memoria sobre

cathechese e civilização dos indigenas da provincia de S. Paulo”ii de

Joaquim Antônio Pinto Junior, publicado em 16 de abril de 1862.

Esses documentos compõem uma pequena parte das fontes

que estão sendo utilizados na minha pesquisa de mestrado, ainda em

sua fase inicial, que tem como objetivo verificar como o Estado agiu

diretamente, através de leis e da Diretoria dos Índios da Província de

São Paulo, e indiretamente, através do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, para moldar a condição, as imagens e até

mesmo as localizações dos grupos indígenas na Nação. Procurando,

portanto verificar as relações entre a política indigenista e como o

índio foi retratado na criação da História Nacional e regional da

província de São Paulo.

Machado de Oliveira foi um militar de carreira e político que

chefiou a Diretoria Geral dos Índios da Província de São Paulo, na

posição de Diretor Geral dos Índios, respondendo, nos termos da

legislação, diretamente ao Imperador. Ao mesmo tempo, participou

ativamente com inúmeros escritos como colaborador e,

posteriormente, como sócio efetivo no IHGB. Joaquim Antonio Pinto

Junior, por sua vez, ocupava o cargo de Advogado dos índios da

província e de Diretor das aldeias de “Carapycuyba” e “Baruery”.

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Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de

Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 117

Ambos trabalhavam em torno da Diretoria Geral dos Índios na

Província de São Paulo, órgão que reúne importantes indivíduos e

documentações. As Diretorias Gerais foram criadas pelo Decreto n°

426 de 24/07/1845, que contém o Regulamento das Missões de

Catequese e Civilização dos Índios.

O Regulamento dispunha que cada Província teria um Diretor

Geral de Índios, nomeado pelo Imperador, arrolando-lhe diversas

competências. Ele deveria interagir com o respectivo Presidente da

Província para algumas questões, como por exemplo, requisitar os

objetos que o Governo Imperial enviasse para os índios, a fim de

distribuí-los pelos Diretores das Aldeias e pelos Missionários (§ 10 do

artigo 1º). Com relação à Assembléia Provincial, deveria propor “a

creação de Escolas de primeiras Letras para os lugares, onde não

baste o Missionario para este ensino” (§ 18 do artigo 1º). As Aldeias

eram chefiadas por um Diretor, nomeado pelo Diretor Geral. Anote-se

que não havia uma hierarquia burocrática entre o Governo Imperial e

o Governo Provincial, mas, apenas, uma divisão de competências

jurídicas e materiais entre ambos. Essa divisão aconteceu a partir do

Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, que a alterou e, dentre outros,

criou as Assembleias Legislativas Provinciais, delegando-lhes

competências legislativas e materiais, incluindo a de elaborar as leis

orçamentárias (artigo 10, §§ 5º e 6º) e a de “[p]romover,

cumulativamente com a assembléia e o governo geral, a organização

da estatística da província, a catequese, a civilização dos indígenas e

o estabelecimento de colônias” (artigo 11, § 5º).

Na Província de São Paulo, o Diretor Geral dos Índios

nomeado pelo Imperador foi José Joaquim Machado de Oliveira e,

assim como previsto no artigo 11° desse Regulamento, foi-lhe

concedido título militar de Brigadeiro. Machado de Oliveira, então,

deveria nomear diretores para cada uma das aldeias da província.

Pinto Junior, ficou responsável pelas de “Carapycuyba” e “Baruery”,

ganhando por isso o título de Tenente Coronel. Burocraticamente,

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Gabriela Piai de Assis

118 ISSN 1414-9109

pode-se notar que estava prevista a criação dessas diretorias para

servirem uma política mais ampla nacional, que pretendia usar como

ferramentas, não apenas o próprio Governo Imperial, como também o

Estado-Maior do Exército e a Igreja.

A divisão menor de todo esse aparato seriam as referidas

aldeias, ou aldeamentos, locais em que os indígenas

deveriam ser estabelecidos, sob a tutela do Diretor para aprender a

serem civilizados: sedentarização, agricultura e eventualmente

treinamento militar.

Mas não foi a primeira vez que se tentou criar aldeias para

civilização dos indígenas, administrados por religiosos ou leigos, as

aldeias existiram durante todo o século XVII e XVIII. Durante o

período Pombalino, foram criados diretórios que deveriam desmontar

essas estruturas. A política indigenista de Pombal tinha caráter

assimilacionista e pregava indistinção entre os índios e os demais

súditos do rei, buscando diferenciar negros e índios e proibindo a

escravidão indígenaiii. Essa política objetivava a extinção dos

aldeamentos, mas seus limites ficaram evidentes a partir da

permanência e resistência dos grupos indígenas que utilizaram sua

etnicidade como instrumento político.iv Essa etnicidade, já

presente a partir da expulsão dos jesuítas, destaca-se após a

Independência, momento em que orientações individualistas, liberais

e crescentemente nacionalistas começaram a dirigir as expectativas,

bem como a direcionar a política de Estado colocando os próprios

grupos indígenas em focov.

Desde o fim do século XVIII, mas oficializadas pelas Cartas

Régias de D. João VI dos anos de 1808 e 1809, foram declaradas

guerras justas aos índios, permitindo matá-los ou tomá-los em

servidão temporária. Essa declaração evidencia uma política

agressiva de controle e ocupação efetiva do território portuguêsvi e

visava superar várias crises econômicas da metrópolevii

. Elas apenas

foram revogadas em 1831.

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Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de

Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 119

No entanto, é difícil identificar algum período em que os

conflitos locais cessaram, apenas notou-se leis mais ou menos

agressivas com relação aos nativos. O período durante a primeira

metade do século XIX ficou conhecido por Manuela Carneiro da

Cunha como vazio legislativoviii

no que concerne à questão indígena.

No entanto, esse vazio não significou que o indígena tivesse deixado

de ser pensado. Havia muitas discussões e um grande impasse entre

a decisão das Cartas Régias de fazer guerras justas aos índios e a de

buscar incorporá-los, no período seguinteix. Um importante exemplo

disso seriam os “Apontamentos para a civilização dos índios bravos

do Império do Brasil”, de José Bonifácio de Andrada e Silva, que,

apesar de não terem sido incluídos na Constituição de 1824, foram

muito importantes, depois, para a escrita do Regulamento

das Missõesx.

A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em

1838, materializou a discussão de criação de uma história brasileira.

Um dos grandes problemas para tal seriam os indígenas, por isso,

discussões e publicações sobre suas as populações eram muito

frequentes. Com certa postura iluminista, os intelectuais deveriam

esclarecer as elites, topo da pirâmide social, para que esta depois

esclarecesse o resto da sociedadexi.

O Instituto Histórico também estava a serviço da educação da

nova nação, mas se preocupava, principalmente, com a escrita da

história que deveria servir às decisões políticas tomadas pela

monarquia. O próprio Imperador passou a participar das seções de

discussões e conceder prêmios para as melhores publicações.

O Estado Nacional estava preocupado com a ocupação

territorial e com a localização dos povos indígenas; estes, por vezes,

eram aldeados em pontos estratégicos, para sair de terras a serem

ocupadas por particulares ou para tentar trazer outros indígenas à

civilização. Pensando em que lugar social o índio se encaixaria, o

Regulamento das Missões, influenciado pela política de José

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Gabriela Piai de Assis

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Bonifácio e pelas discussões no âmbito da RIHGB, não excluía aos

indígenas o direito de acesso à plena cidadania, apenas dissertava

sobre a cidadania para a população livre de acordo com critérios

de rendaxii.

José Joaquim Machado de Oliveira publicou, na revista do

IHGB, o artigo “Noticia Raciocinada sobre as aldêas de índios da

provincia de S. Paulo”, que lhe valeu prêmio Imperial em 1852,

mostrando o desenvolvimento das várias aldeias de índios na região

de São Paulo e apontando a situação delas no momento em que

escreveu. Ao longo de sua narrativa, dialogou, de maneira bastante

clara, com a questão indígena de seu tempo, transformando a história

em um mecanismo de compreensão de sua sociedade,

mostrando eventos que ressaltassem os motivos ocultos da situação

dos indígenas no período em que viveu, e pensando num

projeto indigenista.

Segundo John Monteiro, esse artigo é parte importante do que

se pode chamar de narrativa da extinção, na qual o desaparecimento

total dos índios demarcaria o triunfo do processo civilizatórioxiii

.

Já no início, afirmou:

Na província de S. Paulo, como nas demais do Brasil, predominou nos

conquistadores a idéa fixa de exterminar, trucidar e desolar homens e

cousas que ahi deparassem, comtanto que sua ambição fosse

satisfeita, seu domínio se estabelecesse, e suas idéas de exagerada

crença religiosa prevalecessem, por qualquer modo que fosse, sobre

as que ahi existiam.xiv

Segundo ele, os colonizadores seriam comandados por Martim

Afonso de Sousa e formariam um séquito armado e arrogante, o

exato oposto dos indígenas. Se os primeiros cobiçavam o ouro, eram

pérfidos e maliciosos, os últimos tinham natural abnegação aos bens

mundanos, eram ingênuos, de boa fé e com costumes singelosxv.

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Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de

Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 121

Em todo seu artigo, utilizou o passado para conversar e pensar

o seu presente. Explicou o nomadismo e caráter bravio e feroz das

tribos chamadas genericamente de bugres como conseqüências dos

maus tratos infligidos pelos antigos conquistadoresxvi

. Segundo

Guimarães, é muito comum, no período em que foi escrito o texto,

tentar integrar o “velho” e o “novo” evitando rupturas, ao mesmo

tempo em que se buscava evidenciar os novos tempos e apontar às

possibilidades de mudanças. Machado de Oliveira pode ser inserido

na vertente que conciliava o ideal iluminista supranacional da

república das letras com a necessidade de fundamentar

historicamente um projeto nacionalxvii

.

Para Machado de Oliveira, a origem da escravidão indígena

seria um pretexto dos conquistadores a partir de inúmeros conflitos

dos grupos indígenas em torno da povoação de Piratininga que

tentava se expandir.

Foi a pretexto d’esta desastrosa luta que originou-se a escravidão dos

indígenas, que nos conflictos cahiam em poder das forças da colônia,

ou que eram tomados em fuga: escravidão que, sendo um acto

arbitrário e atrocíssimo dos conquistadores, fora ao depois saccionada

por uma legislação especial, própria só do barbarismo de taes tempos,

e conseqüência immediata da prepotência europêa que presidiu ao

descobrimento da America... Que abusos se não seguiram d’esse acto

iníquo e feroz, revestido de autorisação do poder governativo!xviii

Nota-se o tom exaltado com que repudiava a escravidão

indígena. Empregando juízos de valor e noções morais, mostrava os

erros cometidos naquele tempo que foram autorizados pelo governo.

Assim, posicionou-se defendendo uma vertente do pensamento

imperial que explicava o desaparecimento dos índios pelos “fatos” da

história e não pela índole natural dos nativosxix

.

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Gabriela Piai de Assis

122 ISSN 1414-9109

Além dessa vertente, existia outra que colocava os

colonizadores e conquistadores portugueses como responsáveis pelo

início da história do Brasil, os indígenas como inimigos bárbaros e,

por isso, apontava a necessidade de civilização forçada, se

necessário através da escravidão ou do extermínio. De uma forma ou

de outra, ambos posicionamentos tinham como plano de fundo um

aspecto importante do projeto historiográfico do IHGB: ler a história

para legitimar seu presente, dando a ela sentido políticoxx

.

Nesse mesmo sentido, Machado de Oliveira argumentou ainda

que, no período colonial, a situação dos aldeamentos, administrados

por missionários ou autoridades coloniais, era muito complicada. A

escravidão indígena, desde seu início, seria mal vista pela Europa

civilizada a ponto dos barbarismos cometidos pelo governo português

não terem mais justificativa. Por isso, o governo português legislou

sobre a liberdade dos índios, nos anos de 1609, 1611, 1680 e 1755,

chegando a mudar a palavra de escravo para um epitheto menos

odioso de administrado, sem que fosse alterada a situação das

populaçõesxxi

. Novamente, utilizou-se de oposições, no caso

civilização/barbárie, para mostrar a culpa dos portugueses que nada

fizeram para o histórico de extermínio indígena.

Defendeu que os principais problemas das aldeias primitivas

eram administrativos, pois os únicos usufrutuários dos produtos das

aldeias acabavam sendo os administradores, que dificilmente

prestavam contas à administração e se apropriavam das terras dos

índiosxxii

. Esses administradores podiam ser leigos ou padres

superiores, no geral, capuchos ou jesuítas. Segundo Oliveira, os

religiosos eram mais rigorosos e prejudiciais, pois não deixavam

índios e brancos se misturarem.

Também não isentou as administrações leigas de problemas.

Contou então um caso de um Ouvidor da Comarca que queria aforar

terras indígenas. Contra esta atitude, o Administrador Geral das

Aldeias de São Paulo fez uma denúncia ao governo português. Em

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Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de

Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 123

1713, uma Carta Régia foi enviada mandando o Ouvidor da Comarca

devolver as terras e elas foram devolvidas. No entanto, as aldeias da

região acabaram ficando em ruínas e nenhum administrador

foi punidoxxiii

.

Oliveira apontou a aldeia de São João de Queluz e,

posteriormente, a de Guarapuava como as primeiras aldeias a terem

bons resultados, já que haviam aprendido com os aldeamentos

anteriores o que não fazer.

A aldeia de Queluz organizava um grupo indígena chamado

Puris, na região da Serra da Mantiqueira. Ela foi criada pelo

Governador Antonio Maria de Mello, em 1800. Esse governador foi

descrito como tendo qualidades necessárias que permitiram o

sucesso do aldeamento: seria um homem zeloso e de amor à

civilização. Essa aldeia deveria “servir de modelo às futuras

concepções n’esse sentido”xxiv

.

Outro personagem importante para o sucesso desse

aldeamento seria o Padre Francisco das Chagas Lima, conhecido por

associar zelo cristão e abnegação das coisas mundanas. Essa última

característica é a mesma utilizada por Machado de Oliveira para

descrever indígenas no período inicial da colonização. Interessante

notar, portanto, a caracterização dos indígenas com juízos de valor

adequados não às tribos, mas à elite de sua sociedade.

O padre seria exemplo paternal de como educar moral,

religiosa e civilmente, esses homens da natureza: “Seria

indubitavelmente proveitoso estudar o caracter, a índole d’esse

zeloso catechista; os meios de que se serviu para tirar proveito da

missão que se lhe confiou e que tão habilmente a desempenhara nos

dois aldeamentos [Queluz e Guarapuava]”. Ao mesmo tempo, em

nota de rodapé, indicou que foi publicado no tomo 4° da Revista do

Instituto o método usado pelo padre. Mais uma vez, a preocupação

evidente era de se escrever o passado pensando nos problemas de

seu presente, não apenas de Machado de Oliveira, que buscava ser

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Gabriela Piai de Assis

124 ISSN 1414-9109

nomeado Diretor Geral dos Índios da Província de São Paulo, como

da própria Revista do IHGB.

A preocupação com a política indigenista também está

presente na memória de Joaquim Antonio Pinto Junior, escrita em

1862 e intitulada “Memoria sobre Cathechese e civilização dos

indígenas da província de São Paulo”. Nesse período, a Diretoria

Geral dos Índios de São Paulo já havia se estabelecido, sob direção

de Machado de Oliveira.

A critica à catequese e civilização feita na Província de São

Paulo aparecia já no início do texto: “Há um ramo do serviço publico

nesta Província, que tem passado desapercebido; nem uma palavra

temos visto na imprensa sobre elle, se bem que seja um dos mais

importantes do Império –queremos fallar da cathechese e civilisação

dos indígenas (...)”xxv

Pinto Junior considerava que a política indigenista vigente não

levava em conta os diferentes grupos étnicos, pois em muitos

aldeamentos moravam apenas alguns mestiços que se misturavam

com a população, nem considerava as diferenças entre os índios

aldeados e os “selvagens bravios” dos sertõesxxvi

.

Denunciou ainda “(...) a sorte dos infelizes indígenas, que ainda

hoje, aos milhares, percorrem foragidos os sertões inóspitos, nus,

mortos de fome e de miséria, dilacerando-se mutuamente, e

acommettendo aqui e ali os últimos moradores da raça que se diz

civilisada!”xxvii

Como era comum à sua época, colocou o indígena como

alguém que precisava aderir aos costumes brancos católicos e que

precisava do civilizado para salvá-los de seu modo de vida. No

entanto, sua crítica foi ao próprio homem branco, que teria a

obrigação de retirá-los dessa situação, não por caridade, mas pela

necessidade de trazer os povos foragidos dos sertões ao centro da

sociedade nacional.

Page 124: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de

Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 125

Seu texto se aproximava dos relatórios a respeito das

situações dos aldeamentos que circulavam o centro da Diretoria

Geral em São Paulo, pois procurava diferenciar os aldeamentos que

deveriam ser extintos, por não possuírem mais função, daqueles que

deveriam ter mais atenção e dos que deveriam ser criados. Criticava

as atitudes práticas dos Diretores em torno dos aldeamentos, pois

dizia que muitos não se esforçavam para trazer indígenas

à civilização.

O aldeamento ideal deveria ter um professor de primeiras

letras, pois o pensamento deveria ser fixado pela escrita, defendendo

que vícios e crimes vinham da estupidez. Além disso, “um

aldeamento sem um padre, sem um professor de instrucção primaria,

sem uma officina ao menos de ferreiro, é uma utopia inconcebível” xxviii

. Assim, criticava também aqueles aldeamentos que estavam

administrados somente por religiosos ou por leigos, afirmando a

necessidade de um aparato mais completo. Caso impossível, ao

menos o religioso deveria se ocupar não apenas de batizar e casar os

indígenas, mas também de ensinar a religião.

Como havia no período muitos aldeamentos não regulares, os

índios não poderiam compreender “a grande diferença que vae da

vida nômade e bruta do homem das mattas, á vida estável commoda

e civilisada dos grandes povos”xxix

. Assim, nota-se em seu discurso o

que Monteiro coloca como política aparentemente contraditória de

agressão e assistência aos índios, que encontra sentido na legislação

e política coloniais “onde a espada nunca estava muito distante

da cruz” xxx

.

Enquanto advogado dos índios, o documento de Pinto Junior,

nos mostra a estrutura burocrática da Diretoria Geral e as

negociações feitas durante seu funcionamento. Ao fim de sua

narrativa, o advogado anexou cartas enviadas por ele para o

Presidente da Província pedindo verba para a criação de um

aldeamento em Salto Grande, no Paranapanema. A Assembléia

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Gabriela Piai de Assis

126 ISSN 1414-9109

Legislativa Provincial concedeu 800$000 (Lei N°.16 de 03/08/1861,

artigo 7° § 5), mas os índios da região acharam a quantia pequena,

negociaram e o advogado enviou outra carta para a Assembléia

Legislativa Provincial pedindo uma quantia maiorxxxi.

Quando o texto

foi escrito, Pinto Junior não sabia, mas um mês depois, lhes é

concedido 1.200$000 (Lei N°8 de 19/05/1962). Essa atitude é

demonstrativa de como a Diretoria Geral da Província de São Paulo

tinha uma divisão de competências entre o Governo Provincial e o

Imperial, apesar da estrutura burocrática da Diretoria Geral dos Índios

de cada província pertencer ao Império.

Concluiu seu escrito dizendo que o ensino catequético deveria

começar pelo sul, onde havia hordas bárbaras que ameaçavam

hordas pacíficas, e que estas últimas estavam pedindo socorro e

providências. Localizou ainda pontos específicos para o avanço da

civilização e do progressoxxxii

, um deles entre os rios Paranapanema e

Tietê e a Serra dos Agudos, lugar conveniente para se estabelecer

um aldeamento, que funcionaria como barreira, para conseguir

afastar os ataques das hordas do sertão.

O próprio advogado acaba identificando, grupos que são mais

avançados e pacíficos e grupos bárbaros que devem ser separados,

no entanto, mesmo com relação aos últimos, entendeu que, com

medidas pacíficas, os índios aprenderiam, através da catequese, de

alguma instrução e do ensino da agricultura, seria possível chegarem

a serem civilizados. Se mostrando contra atos violentos e a volta das

bandeiras:

(...) por mais terminantes que sejão as ordens do Governo, por mais

sabias e humanitarias as instrucções dadas aos capitães ou chefes

dessas forças, eles abusão sempre, e dest’arte, em vez de obterem-se

os resultados pacíficos que se deseja, ao contrario produz-se no

animo desconfiado do selvagem ignorante uma irritação difficil senão

impossível de conter.” Finalizou dizendo que o discurso empregado

em seu texto, por tratar dos indígenas, utilizaria as características dos

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Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de

Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 127

indígenas: “fallamos a linguagem do indígena, tosca, áspera e rude,

mas sempre natural e verdadeira 24

.

Pode-se notar que, tanto nos discursos de José Machado de

Oliveira, quanto no de Pinto Junior, o índio era um errante que

deveria ser inserido no interior da civilização branca católica,

seguindo um modelo evolucionista social e monogenistaxxxiii

predominantexxxiv

. É mostrada a uma preocupação em inserir na

história um discurso do desaparecimento em que os indígenas

sofreram maus tratos pelo governo português, mas agora, deveriam

ser assimilados, branqueados, levados, portanto, à civilização sem as

violências cometidas no passado. Os autores tentaram, portanto,

romper com a lógica considerada por eles colonial ao mesmo tempo

em que não consideraram violência o próprio ato de civilizar.

Notas e referências

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP), orientada pela Professora Doutora

Leila Mezan Angranti.

Contato: [email protected] i OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. “Notícia Raciocinada sobre as

áleas de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo até à

actualidade”, RIHGB, RJ: Typographia de João Ignácio da Silva, v.8,

1867. ii PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio In: Memoria sobre cathechese e

civilização dos indígenas da província de S. Paulo. SP: Typographia

Commercial, 1862. iii SPOSITO, Fernanda. In: Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na

formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São

Paulo (1822-1845) Dissertação de Mestrado defendido pela USP. São

Paulo, 2006.

Page 127: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Gabriela Piai de Assis

128 ISSN 1414-9109

iv ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. “Política indigenista e etnicidade:

estratégias indígenas no processo de extinção das aldeias do Rio de

Janiero- século XIX”. (ORG.) OHMSTEDE, Antonio Escobar; MANDRINI,

Raúl; ORTELLI, Sara. In: Sociedades em movimiento: los pueblis

indígenas de America Latina em El siglo XIX. Argentina: Anuário Del

IEHS Tandil, 2007. pp.219-233. v MOREIRA, Vânia.”O ofício do historiador e os índios: uma querela no

Império”. Revista Brasileira de História. São Paulo: vol. 30, n°59. p.58. vi SPOSITO, Fernanda. Op. Cit p.48.

vii NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na Crise do Antigo

Sistema Colonial (1777-1808.)SP: Hucitec,2002. viii

CUNHA, Manuela Carneiro da. “Introdução”. In: CUNHA, Manuela

Carneiro da. (org). Legislação indigenista no século XIX: Uma

compilação (1808-1889). São Paulo: Edusp; Comissão Pró-Índio, 1992. ix SPOSITO, Fernanda. Op.cit. p.61.

x VASCONCELOS, Cláudio Alves de. A questão indígena na província do

Mato Grosso: conflito, trama e continuidade. Tese de História para

obtenção do título de Doutor pela Universidade de São Paulo. SP, 1995,

p. 51. xi GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos:

O instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História

Nacional”.Estudos Históricos RJ: n°1,1988 P.6. xii

MOREIRA, Vânia Maria Losada. In: Os índios e Império: história, direitos

sociais e agenciamento indígena. Trabalho apresentado no XXV

Simpósio Nacional de História. Ceará, 2009. xiii

MONTEIRO, John M. In: Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história

indígena e do Indigenismo. Tese de Livre Docência na Área de

Etnologia, Subárea de História Indígena e do Indigenismo. Campinas,

2001. p.127. xiv

OLIVEIRA, J.J. Machado de. Op. Cit. p.205. xv

Idem. pp. 205-206. xvi

Idem. pp.206-207. xvii

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. Cit. p.7.

Page 128: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José Joaquim Machado de

Oliveira sobre os aldeamentos da província de São Paulo

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 129

xviii

OLIVEIRA, J.J. Machado de. Op. Cit.p. 208. xix

MONTEIRO, John. Op.Cit. p.120. xx

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. Cit. p.16. xxi

OLIVEIRA, J.J. Machado de. Op. Cit.p.209-210. xxii

Idem. p. 213-214. xxiii

Idem p.215. xxiv

Idem p.236-237. xxv

PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio. Op. Cit. p. 3. xxvi

MONTEIRO, J. M. Op. Cit. p.150. xxvii

PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio. Op. Cit. p.7. xxviii

Idem p. 9. xxix

Idem p.9-10. xxx

MONTEIRO J.M. Op. Cit p. 151. xxxi

PINTO JUNIOR, Joaquim Antonio. Op. Cit. P.18 xxxii

Idem p.23 xxxiii

Doutrina antropológica segundo a qual todas as raças humanas derivam

de um tipo primitivo único. xxxiv

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas,

instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo:

Companhia das Letras, 1993, p.112

Page 129: Baixar Revista Dia-Logos 2013

130

As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e

civilidade na Inglaterra setecentista

Laila Luna Liano de León

Introdução

A partir da Revolução Gloriosa, em 1688, uma nova concepção

política e econômica teve efeitos em diversos aspectos da sociedade,

destacando nesse ambiente de relativa tolerância, um “movimento

ilustrado” de sociabilidade e busca pela expansão do conhecimento.

Podemos destacar que esses processos perpassaram diversos

grupos sociais, dos mais baixos aos mais altos de maneiras variadas,

mas principalmente nos setores médios da sociedade que ascendiam

nesse novo momento político e econômico, não como grupo social

coerente, mas alcançavam espaços e papéis que antes eram restritos

à aristocracia e à corte, especialmente no que diz respeito ao

consumo de cultura e de lazer.

É importante compreender o significado do Ato de Tolerânciai

de 1689 e fim do Ato de Licenciamentoii em 1695, para fazer

considerações acerca da cultura desse período. Ambos

representaram liberdades relativas, porém, mais do que pensar as

suas limitações, é interessante notar o seu impacto numa sociedade

que passa a se entender como mais desenvolvida e tolerante,

especialmente em comparação com o continente. Para Roy Porter, a

derrubada do absolutismo, o aumento populacional e a revolução

comercial foram acompanhados de uma mudança de consciência,

que ajudou a se entender essas mudanças, e permitiu uma

percepção da modernidade, tanto em seus prós quanto em seus

contrasiii. E o que nos interessa aqui, é o impacto dessas novas

Page 130: Baixar Revista Dia-Logos 2013

As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade

na Inglaterra setecentista

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 131

percepções na produção impressa do período, e também o impacto

dessa produção numa sociedade que passava cada vez mais a

valorizar o conhecimento com caminho para o seu entendimento de

progresso e a civilização, presentes em jornais, panfletos, livros e

também gravuras, como as de William Hogarth.

Segundo Paul Langford, toda sociedade necessita de um

código de conduta e maneiras. Num contexto feudal e agrário, por

exemplo, existiam códigos de honra e vassalagem para sua

ordenação. Já numa sociedade comercial e dinâmica, com a

ascensão de setores médios, eram necessários meios mais

sofisticados para sua regulação iv. Nesse sentido, de acordo com

J.G.A. Pocock, que se desenvolveram as idéias de polidez e

civilidade, com o intuito de ordenação e regulação das paixões

através do comércio, que tinha nessa concepção, essa função de

refinamento e que afastava a sociedade das paixões não socializadas

do passado, logo da barbárie e selvageria v. Buscaremos, portanto

analisar essa moralidade muito característica da Inglaterra

setecentista, presente nas gravuras do artista William Hogarth, que

entre a sátira e as lições morais, buscou com suas obras “tanto

entreter quanto aperfeiçoar as mentes” vi.

As gravuras moralizantes de William Hogarth

William Hogarth nasceu em novembro de 1697, em

Bartolomew Close, em Londres, numa família modesta, que pode ser

encaixada na ampla definição de classes médiasvii

do século XVIII.

Seu pai, Richard Hogarth era professor escolar e escritor, e enfrentou

muitas dificuldades financeiras durante a infância do filho ao tentar

aproveitar as oportunidades e melhorar de vida: foi mal-sucedido no

projeto de uma coffee house dedicada ao ensino de latim, fracassou

na tentativa de lançar um Dicionário de Latim e um pouco depois foi

preso na famosa Fleet Prison por dívidas, onde permaneceu entre

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Laila Luna Liano de León

132 ISSN 1414-9109

1710 e 1713, e seis anos depois, morreu. Hogarth foi sempre um

crítico ferrenho da ambição da indústria das artes, especialmente a

falta de respeito com os artistas, e parte desse seu ressentimento

pode ser relacionada ao exemplo de seu pai: um homem de

educação clássica que na tentativa de ser “chefe de sua própria

caneta”, sofreu um cruel tratamento de livreiros e impressores viii

. É

de suma importância compreender as relações entre Hogarth e o

mercado para a inserção de sua produção nesse contexto.

Na nova dinâmica social da Inglaterra, “a expansão das classes

médias fez com que a atividade da aristocracia fosse menos central

para o mundo cultural” ix, ou seja, a cultura já não estava centrada

nos valores da aristocracia – mesmo que não os tenha descartado

por completo – e o progresso comercial permitiu uma participação

mais ativa das classes médias na cultura, o que era visto como um

meio de distinção social. Por não ter condições de efetuar a

patronagem como indivíduos, essas classes buscaram desenvolver

um mercado de artes e novas formas de lazer, próprios. Assim, a

comercialização da cultura teve o papel de aproximar os artistas das

demandas do mercado ao invés do patronato. A ascensão de uma

cultura pública baseada no poder de compra das classes médias

refletiu e sustentou uma série de práticas comerciais que se

fortaleceram ao longo do século e trouxeram mudanças para certas

atividades x. A pintura é um dos melhores exemplos de como isso

ocorreu: antes, a aristocracia possuía uma cópia individual exclusiva,

mas agora havia um crescimento considerável de acesso à arte com

a produção em massa de gravuras.

Porém, a arte contemporânea (e mais ainda a britânica) era

pouco ou quase nada valorizada, e até 1768, com a fundação da

Academia Real, nenhuma academia de arte havia durado tempo

suficiente para formar artistas nativos. Assim, a produção artística na

Inglaterra nesse período era dominada por estrangeiros franceses,

italianos, e especialmente holandeses e alemães. E o Grand Tour xi

reforçava o fato de que os padrões críticos eram desenvolvidos no

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As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade

na Inglaterra setecentista

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 133

continente, e a valorização da arte estrangeira, renascentista e

principalmente italiana foi uma conseqüência. A ausência de um

Estado centralizado também, segundo John Brewerxii

, não contribuía

para uma patronagem da monarquia ou da Igreja nos modelos

continentais. Sobrava assim para os pintores ingleses trabalhos

considerados menos elevados como retratos, paisagens e decoração,

contratados por um mercado formado pelas classes médias

prósperas e por membros da gentry. O papel dos pintores ingleses

era então reduzido a uma “arte servil”, como trabalhadores mecânicos

a serviço de um patrão e de um mercado xiii

. Desse modo, se

formava um mercado ávido para consumir arte em todos os setores

da sociedade, mas os padrões estavam sendo estabelecidos de

acordo com uma minoria que valorizava mais o estrangeiro, limitando

as possibilidades dos artistas ingleses, desde sua formação até sua

produção e venda.

Nesse contexto, Hogarth, que nunca teve uma formação

artística clássica, ao longo da carreira desenvolveu um método

próprio de produçãoxiv

. O seu ressentimento com a indústria

dominante da arte, serve para pontuarmos sua rejeição ao

Neoclassicismo. Seu combate certamente não foi contra os valores

clássicos, mas sobretudo contra um método predominante que

apenas treinava o estudante de arte a fazer cópias dos Grandes

Mestres, mas não instigava os artistas a observar o mundo presente

e através deste persuadir o publico moralmente. Além disso, ele

notava uma supervalorização do estrangeiro, o que causava a

desvalorização dos artistas ingleses, causada justamente por esse

modismo. Por isso, podemos observar o uso de tantas referências

clássicas em suas sátiras. Não era por desrespeito ao passado, mas

zombaria com aqueles que o veneravam de forma exagerada e que

assim se esqueciam das belezas do mundo contemporâneo, e as

importantes questões a serem levantadas.

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Laila Luna Liano de León

134 ISSN 1414-9109

Foi partindo dessa crítica que ele formulou o “moderno objeto

moral”, segundo ele, um campo inexplorado em qualquer época ou

lugar, e que se encaixava no intermediário entre o grotesco e o

sublimexv

. Em resumo, se tratava da representação do cotidiano da

sociedade londrina com uma perspectiva satírica e uma mensagem

moralizante. Além disso, tinha consciência do poder imenso que as

imagens têm em relação aos livros: “a demonstração ocular dará

mais convicção para a mente de um homem sensível do que ele

encontrará em cem volumes” xvi

. Baseado nessa perspectiva,

defendeu o aspecto pedagógico de sua obra, afirmando que seu

objeto deveria entreter e melhorar a mente, sendo assim de grande

utilidade pública.

Apesar de estar combatendo uma tendência artística da época

no que diz respeito ao estilo, Hogarth foi bastante coerente com um

pensamento ilustrado mais amplo que percorreu o século XVIII na

Inglaterra de difusão do conhecimento e educação dos sentidos. Os

ideais de polidez, civilidade e sociabilidade estiveram presentes em

grande parte da produção impressa desse período, mas sem dúvida o

maior expoente foi o periódico The Spectator, de Joseph Addison e

Richard Steele, publicado entre 1710 e 1711, mas reeditado inúmeras

vezes ao longo do século. Nele era possível encontrar os novos

valores ilustrados para um público maior e popularizou assim essa

“nova filosofia”, com o objetivo de refinar as maneiras e os gostosxvii

.

Além disso, segundo Maria Pallares-Burke, o periódico tinha um

intuito pedagógico de corrigir não apenas as maneiras, mas também

os modos de pensar e redirecionar para a razão e a civilidade xviii

. De

acordo com Roy Porter, foi crucial para Ilustração Inglesa, o “modelo

lockeano” de mente madurando através da experiência, da ignorância

para o conhecimento, e o seu paradigma para o progressoxix

. Em

outras palavras, era a crença de que os erros humanos eram

inevitáveis, mas suscetíveis de serem corrigidos, através do

conhecimento e da razão, e esse processo era fundamental para o

progresso da humanidade.

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As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade

na Inglaterra setecentista

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 135

E foi essa moralidade muito característica de um momento

histórico que podemos inserir as gravuras moralizantes de Hogarth e

sua eterna representação dos vícios e das virtudes. De acordo com

J.G.A. Pocock, com o desenvolvimento do comércio e de novas

formas de relacionamento social, “a virtude no sentido antigo se

tornou arcaica” xx

. Segundo o autor, o ideal de polidez surgiu pela

primeira vez na Restauração, como parte da campanha Whig de

substituir o profético pela religiosidade sociável. No século XVIII, não

se podia mais defender a vida urbana em termos greco-romanos, e

foi preciso conceber o cidadão sociável e refinado, que paga os

outros para sua defesa, em oposição ao proprietário armadoxxi

.

Então segundo Pocock, a polidez funcionou assim como um

“agente civilizador”, mas é preciso relativizar o seu efeito na

sociedade: pois não implicava apenas um comportamento moral e

refinado individual, mas também que esse comportamento fosse

socializado e a motivação para seguir tal padrão era exatamente

exibi-lo. Para tanto, surgiram manuais para instruir as pessoas como

se comportar, o tipo de impressão que você provocava nas pessoas,

como você aparentava para ele adquiriram nova importância e a

moralidade era um elemento no mundo de aparências. Desse modo,

a contrapartida da polidez era o risco da artificialidade e afastamento

dos verdadeiros valores. E Hogarth era um grande defensor do

progresso através do conhecimento e da educação dos sentidos, mas

não se absteve de criticar a superficialidade que a concepção de

polidez podia acarretar. Assim notamos em suas obras de variadas

temáticas, uma certa coerência quanto à preocupação com a

corrupção do ser humano, fosse através da política, do fanatismo

religioso, da ambição financeira ou da luxuria. Isso justifica o fato de

que nenhum setor da sociedade foi poupado de suas críticas bem

humoradas.

Selecionamos duas gravuras da obra de Hogarth, de fases

diferentes da sua carreira, que exemplificam essa sua preocupação

Page 135: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Laila Luna Liano de León

136 ISSN 1414-9109

em discutir a corrupção e a virtude, e também que exprimem seu

esforço pedagógico. A primeira, uma das suas primeiras gravuras

publicadas, de 1724, se referiu ao escândalo financeiro da South Sea

Company, fundada em 1711 pelos ministros Tories da Rainha Anne

como uma alternativa ao Banco da Inglaterra, controlado pelos

Whigs. Em 1719, já sob George I (1714-27) e a oligarquia Whig, foi

montado um esquema para redistribuir a Divida Nacional em

melhores termos. A grande dificuldade de sua administração era o

número de interesses que envolvia, e era preciso garantir os lucros

para toda sua base de apoio político como cortesãos e ministros,

interessados em lucro rápido. Por conta do rápido crescimento das

ações, a especulação foi generalizada, garantida por um regime

corrupto e investidores ingênuos, crescendo uma “Bolha” que

rapidamente inflacionou os preços. As consequências foram

devastadoras, especialmente para aqueles que venderam seus bens

para comprar ações xxii

.

Hogarth representou esse acontecimento, como muitos

satiristas da época em The South Sea Scheme. Alguns dos

elementos valem o destaque: no centro uma roda da fortuna com

personagens que representam a sociedade como um clérigo, uma

prostituta, uma senhora e um nobre. Nos versos abaixo da gravura é

explicado que a Honestidade é torturada pelo Interesse Próprio, a

Honra pela Vilania e alvo da zombaria de um macaco vestido de

cavalheiroxxiii

, e o Diabo arranca a pele da Fortuna vendada. Vemos

assim, as virtudes serem maltratadas e punidas pelos vícios. Três

religiosos: um judeu, um padre católico e um puritano jogam cartas,

ignorando o caos ao seu redor, demonstrando que os religiosos

tinham maior preocupação com seus próprios interesses do que com

seu rebanho, e ao fundo a Igreja de St. Paul, símbolo da caridade

cristã. O Monumento do Grande Incêndio de Londres de 1666 xxiv

, é

representado com a seguinte inscrição: “Esse monumento foi erguido

em memória da destruição da cidade pelo South Sea em 1720”, com

essa perspectiva, o artista compara o escândalo financeiro à um

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As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade

na Inglaterra setecentista

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 137

incidente de ordem natural e com consequências igualmente

catastróficas. É interessante notar que ambos os “desastres” foram

atribuídos no imaginário, à ambição e ao vício que infestavam

Londres, tornando a comparação de Hogarth bastante coerente. No

canto, o comércio, representado por uma mulher em trapos e

miserável, é mais uma vítima de toda a corrupção e não a sua causa.

A gravura sobre o caso South Sea foi produzida num momento

em que a produção impressa na Inglaterra borbulhava em críticas

políticas contra a corrupção, em especial num ataque direto ao

primeiro ministro Robert Walpole. Mas de acordo com Jenny Uglow,

as críticas feitas por Hogarth em seu conjunto tinham um caráter mais

geral, e abordavam no fundo a questão da corrupção da sociedade e

dos homens, ao invés de atacar individualmente um ou outro político,

ainda que tenha feito inúmeras menções indiretas em suas obras

acerca de personagens contemporâneosxxv

. Se buscarmos uma

coerência no seu conjunto de obra, o que encontramos é uma

preocupação recorrente com a índole humana, e todos os meios que

ela pode ser corrompida, não numa leitura puritana de pecado e

redenção, mas numa moralidade desenvolvida no século XVIII que

defendia o progresso através da educação e criticava a busca pelas

riquezas e prazeres de forma individual e gananciosa, sem considerar

o bem da sociedade. Na própria gravura acima descrita, que consiste

em uma sátira política, é possível encontrar essa mensagem mais

ampla, da ambição desmedida de alguns corrompendo toda uma

sociedade e culminando no caos, que Hogarth buscou imprimir em

sua produção ao longo de sua vida.

Seu engajamento na campanha do amigo e magistrado Henry

Fileding, contra o consumo de gim na década de 1750, talvez seja o

exemplo que melhor elucide o seu pragmatismo e racionalidade, não

tanto na mensagem que imprimiu em suas gravuras, mas na sua

própria empreitada de “educar as massas”. No ano de 1751, quando

Fielding publicou seu panfleto Inquiry into the Causes of Late

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Laila Luna Liano de León

138 ISSN 1414-9109

Increase of robbery, etc, no qual culpava o gimxxvi

, os jogos de azar e

a luxuria como causas da miséria entre as classes mais baixas, e

propunha também uma revisão das Poor Laws, Hogarth publicou dois

conjuntos de gravuras inspirados por essa temática: Beer Street and

Gin Lane, e Four Stages of Cruelty, esse último sobre o qual vale a

pena fazer algumas considerações. Em ambos os casos, as gravuras

tinham um objetivo prático de alcançar as massas, e o próprio

Hogarth assumiu a técnica mais rudimentar que utilizou para que

fossem vendidas a um preço acessível. Nelas, ele não imputou o seu

senso de humor satírico tão característico e buscou uma mensagem

mais direta de contraste entre o bem e o mal. Sobre a sua

representação da crueldade para as massas, Hogarth justificou em

sua autobiografia o uso de imagens grotescas e fortes, que imprimem

agonia e medo: “o fato é que, paixões são mais forçosamente

expressas por um forte, audaz golpe do que pela mais delicada

gravura. Tendo as endereçado a corações duros, preferi deixá-las

áspera, e dar o efeito de rápido toque, para uma representação

apática e débil”xxvii

. Aqui, fica bem claro também o pragmatismo do

artista, em produzir de acordo com um objetivo e com o público alvo.

Em Four Stages of Cruelty, Hogarth contou em quatro gravuras

a trajetória de um jovem órfão que inicia sua carreira de crueldades

torturando animais, para depois se tornar um assassino e por fim é

recompensado como vítima da crueldade da lei. Em nenhuma outra

obra ficou tão explicita a importância que Hogarth incutia à educação

e ao “conserto” dos defeitos humanos desde cedo. Filantropo,

defendia a caridade privada e foi patrono do Foundling Hospital,

destinado a órfãos. Além da corrupção da sociedade pelos vícios e

maus exemplos, aqui ele destacou o descaso do governo com os

mais pobres, na questão das paróquias que detinham a jurisdição de

aplicar o “alívio aos pobres” e coordenar a renda destinada a isso,

mas eram consideradas ineficazes e gananciosas. Na primeira cena,

meninos órfãos sem qualquer tipo de supervisão maltratam animais

em pleno pátio da paróquia de St. Giles. O único menino que

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As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade

na Inglaterra setecentista

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 139

demonstra gentileza com os animais está mais bem vestido,

indicando que pertence a uma boa família. Hogarth tentou sinalizar

que a falta de atenção com uma educação apropriada na infância

pode formar criminosos, mas ao mesmo tempo, com uma linguagem

simplificada e através de figuras impactantes, tratou de fazer a sua

parte em educar as classes mais baixas. A cena final mostra os

horrores aos quais estão submetidos aqueles que agem como

crueldade desmedida e desrespeitam a lei, pior que a morte era o

terror de ter seu corpo dissecado.

Considerações Finais

O historiador Roy Porter se refere às séries de Hogarth como

fábulas ilustradasxxviii

, ou seja, nessa concepção, as séries narrativas

de Hogarth eram ilustradas pois tinham um intuito didático de agir na

sociedade de forma a melhorá-la através do conhecimento.

Contextualizar Hogarth em seu século e sociedade, é importante

porque apesar dele ser controverso e tentar se opor a uma estética

vigente no mundo das artes, seu pensamento condiz com muitas das

noções desenvolvidas no período e, além disso, ele foi parte

integrante de todas as mudanças culturais que marcaram a Inglaterra

nesse período. Parte das classes médias, era um artista mas também

um empreendedor, e esteve atento ao espírito comercial de seu

tempo para obter lucro e notoriedade, tendo alcançado um público

que abrangia desde os setores mais altos aos mais baixos da

sociedade. Também apreciava as noções de busca da felicidade

terrena e dos “prazeres”, sendo um assíduo freqüentador da vida

social londrina.

Hogarth possuía uma moral que era muito mais racional e

pragmática, do que puritana, e a defendia não com um objetivo

conservador, mas por acreditar no melhoramento da sociedade. Suas

críticas à corrupção se direcionam nesse sentido a uma concepção

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Laila Luna Liano de León

140 ISSN 1414-9109

moderna de progresso através do reconhecimento dos defeitos

humanos e o esforço de consertá-los através do conhecimento. Em

suas gravuras, o destino da corrupção era trágico, e através de uma

construção racional de que todo crime tem uma punição terrena,

sinalizava a possibilidade de que se a sociedade se despisse dos

valores morais, cedo ou tarde, também estaria condenada. Assim,

para Hogarth, o progresso comercial só seria bem sucedido através

do respeito das virtudes clássicas e cristãs, mas dentro de uma

concepção de moralidade muito característica do século XVIII na

Inglaterra, de educação dos sentidos através da experiência e

refinamento das paixões, com a sociabilidade e civilidade.

Notas e referências

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal Fluminense (UFF), orientada pelo Professor Doutor Luís Carlos Soares.

Contato: [email protected] i O Ato de Tolerância se estendia apenas para os protestantes

dissidentes. Católicos e não-cristãos não tinham o direito de culto público, sendo sujeitos às antigas leis penais. As cortes eclesiásticas ainda tinham poder de processar ateísmo, blasfêmia e heresia. Ver PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern World. 2ª Edição. Londres: Penguin Books, 2000, p. 107.

ii O fim do Ato de Licenciamento significou o fim da censura pré-

publicação. De acordo com Roy Porter, ainda que houvesse leis contra a blasfêmia, obscenidade e caráter sedicioso, e que publicações ofensivas ainda pudessem ser processadas, a situação da imprensa na Inglaterra estava a partir desse momento com anos de avanço em relação ao restante da Europa. Ver Id. Ibid. p. 31.

iii PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern

World. Op. Cit. p. 12.

iv LANGFORD, Paul. Eighteenth Century Britain: a very short introduction.

1ª edição. New York: Oxford Press, 2000, p. 4.

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As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e civilidade

na Inglaterra setecentista

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 141

v POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. Tradução: Fábio

Fernandez, 1ª Edição. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 97. vi NICHOLS, JB (Org). Anecdotes of William Hogarth written by himself.

Londres: J.B. Nichols and son, 1833, p. 3.

vii As classes médias na Inglaterra do século XVIII não podem ser

entendidas como um grupo social coerente e consciente. Mas o termo é útil para indicar os setores médios da sociedade em ascensão. Ver LANGFORD, Paul. Eighteenth Century Britain: a very short introduction. Op. Cit, pp. 52-66.

viii NICHOLS, J.B.(org.) Anecdotes of William Hogarth written by himself.

Op. Cit, p. 2.

ix BLACK, J. A subject for taste: culture in eighteenth-century England. 2ª

edição. Londres – Nova York: Hambledon and London, 2005, p. 79. x Id., Ibid., p. 104.

xi Grand Tour era um hábito da aristocracia de viajar na juventude aos

grandes centros de cultura da Europa, especialmente França e Itália, para obter instrução e refinamento. Ver PLUMB, J.H. Georgian delights.

Londres: Weidenfeld & Nicholson, 1980, pp. 21-23. xii

BREWER, John. The pleasures of imagination: English culture in the eighteenth century.1ª edição. Londres: Harper Collins, 1997, p. 208.

xiii Id., Ibid., Op. cit., p. 211.

xiv O método de Hogarth supunha era o da observação e memorização das

fisionomias ao invés da prática de cópias de clássicos para desenvolver a técnica. O artista publicou em 1755 um livro sobre o seu método: HOGARTH, William. Analysis of the Beauty.

xv NICHOLS, J.B. Anecdotes of William Hogarth Written by himself. Op.

Cit., p. 9.

xvi Id. Ibid.

xvii PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern

World. Op. Cit., P. 80. xviii

PALLARES - BURKE, Maria. The Spectator: o teatro das luzes. São

Paulo: Editora Hucitec, 1995, p.17. xix

PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern World. Op. Cit., p. 70.

Page 141: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Laila Luna Liano de León

142 ISSN 1414-9109

xx

POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. Op. Cit., p. 154.

xxi Id. Virtue, Commerce and History: essays on political thought and

history, chiefly in the eighteenth century. 6ª edição. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 2002, p. 248.

xxii LANGFORD, Paul. Eighteenth Century Britain: a very short introduction.

Op. Cit., p. 16-18.

xxiii A alegoria do macaco como cavalheiro é recorrente nas sátiras do

século XVIII, e presente em mais de uma gravura de Hogarth, e se refere à imitação de algumas categorias sociais dos modos da aristocracia, de maneira exagerada que se torna ridícula. Em inglês o jogo de palavra fica mais evidente pois ape pode tanto significar símio quanto imitação.

xxiv Sobre o Grande Incêndio que destruiu parte de Londres em 1666 e teve

grande impacto no imaginário, como uma ação divina para punir pelos pecados Ver TINNISWOOD, Adrian. By Permission of Heaven: the story of the great fire of London. London: Pimlico Edition, 2003.

xxv UGLOW, Jenny. Hogarth.Londres: Faber and Faber, 1997, p. 91.

xxvi O consumo de gim pelas populações pobres era uma grande

preocupação das autoridades. Barato e capaz de causar vício facilmente, foi alvo de diversas leis que tentaram regular e até proibir seu consumo. Sobre a Gin Craze e os Atos do Gim ver SOARES, Luiz Carlos. A Albion revisitada: “ciência, religião, ilustração e comercialização do lazer na Inglaterra do século XVIII”. Rio de Janeiro: FAPERJ – Editora 7 Letras, 2007, pp. 176-181.

xxvii NICHOLS, J.B (ed.). Anecdotes of William Hogarth Written by himself.

Op. Cit., p. 68.

xxviii PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and Creation of the Modern

World. Op. Cit., p. 20.

Page 142: Baixar Revista Dia-Logos 2013

143

Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão

e limites da justiça distributiva no Império Português

O caso emblemático de Araribóia

Marcello Felipe Duarte

As novas abordagens historiográficas que privilegiam o pacto político

entre as monarquias europeias e seus vassalos ultramarinos

contribuíram para um novo olhar sobre os povos indígenas ao

valorizarem suas atuações nos processos de construção e

desenvolvimento das sociedades coloniais. Estes foram capazes de

se transformarem e de rearticularem seus valores e suas culturas à

medida que a sociedade colonial foi sendo gestada ao longo dos

séculos. No dizer da historiadora Maria Regina Celestino de Almeida

os povos indígenas se metamorfosearam.i

Essa metamorfose diz respeito ao enobrecimento das

lideranças indígenas, denominadas como Principais, que se

viabilizava pelo requerimento de mercês régias (concessão de

favores, títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio),

tendo como respaldo os atos de bravura em campo de batalha e os

diversos serviços prestados quando lutavam para defender os

interesses da coroa portuguesa e sedimentar sua hegemonia política

em seus domínios ultramarinos.ii Como bem observa Regina

Celestino, esta prática já existia no Rio de Janeiro no século XVI.iii

Depois de efetivada a conquista a implantação da ordem

colonial em todo o território tornou-se prioridade. Os Principais seriam

então peças fundamentais nesta tarefa devido à influência que tinham

sobre os índios de suas aldeias. Nesse sentido, vale lembrar que as

chefias indígenas, ao absorverem os novos símbolos de poder que

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Marcello Felipe Duarte

144 ISSN 1414-9109

lhes eram conferidos pelo governo português, buscavam preservar

sua posição de prestígio na nova situação em que se encontravam.iv

Muitos se lançaram em viagens até a corte para solicitar ao rei

tais privilégios. Um dos exemplos mais interessantes dessas

representações foi o pedido de mercês do Hábito de Cristo e da tença

correspondente, feito pelo principal da aldeia do Camucy, no

Maranhão, à coroa portuguesa. O autor da petição utilizou como

justificativa para seu pedido os atos de obediência e serviços

prestados por ele e por seu pai. Mais interessante ainda é o alvitre

dado pelo conselheiro do Conselho Ultramarino ao rei D. Afonso IV

em 1º de agosto de 1659:

Jorge Tajaibuna, Índio do Maranhão, fez petição a Vossa Majestade

neste Conselho, em que diz que ele é filho de Domingos Ticuna,

principal, e Capitão da sua nação, e Aldeias sitas na Capitania do

Camucy do dito Estado; e que o dito seu pai, e outros Índios

circunvizinhos o enviaram a esta Corte; a oferecer suas pessoas, e

vidas ao serviço de Vossa Majestade, protestando de nunca lhe

negarem obediência, como a seu Rei e Senhor, como sempre fizeram

em tempos passados. Alega mais que obrigado, o dito seu Pai, de seu

zelo, com seus amigos, e vizinhos, tomaram dos Holandeses a

fortaleza do Ceará, e a conservaram no serviço de Vossa Majestade,

até que se retiraram para o Sertão, por não poderem ser socorridos de

Pernambuco; e que tendo depois notícia do cerco que as armas de

Vossa Majestade puseram ao Recife, tornaram outra vez o dito seu

Pai com os ditos Índios, a sitiar a mesma praça do Ceará, e lançaram

dela aos holandezes, que a ocupavam, matando-lhes quarenta

infantes – e que de [mãos] deste serviço franqueou ele Jorge

Tajaibuna por mandado de seu Pai, o caminho do Maranhão, até

Pernambuco, que são mais de quatrocentas léguas, para poder haver

comunicação seguramente de uma parte a outra, em grande validade

do serviço de Vossa Majestade, e daqueles moradores, de que

também resultou viram muitos índios, e outra gente bárbara ao grêmio

da Igreja, e receberam o Santo Batismo – e porque havendo visto, e

falado a Vossa Majestade, prostando-se a seus reais pés, se quer

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Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 145

embarcar para a sua terra, e deseja ir contente, para manifestar aos

seus as honras e mercês, que espera receber de Vossa Majestade

para com isso se animarem cada vez mais a continuarem seu real

serviço. v

O episódio, que não é o único, revela-se importante por dois

motivos. Primeiro, por ser uma representação direta ao rei em que o

requerente, Jorge Tajaibuna, deixa os trópicos e se desloca à corte,

demonstrando ter conhecimento dos meandros processuais em torno

da solicitação da mercê, fato que por si só já é formidável, pois revela

a capacidade de rearticulação de seus valores culturais com a ordem

sociopolítica vigente na época. Em segundo lugar, pelo parecer do

conselheiro para que o rei recompensasse o Principal a fim de

“animá-lo” a continuar fiel. Tais recompensas limitaram-se à

concessão de um ornamento, um sino e as charamelas, dois

vestidos, uma espada, um chapéu, meias e duas medalhas de ouro

que apenas serviriam para iludi-lo, sem que, no entanto, atendesse

aos seus pedidos principais pois eram distinções “de mais valia”.

Assim no lugar do Hábito e da tença, o conselheiro sugeriu:

(...)em que se oferece inconvenientes, e escrúpulos, por Vossa

Majestade os prover como governador, e mestre das ordens militares,

sujeito às Bulas, e Breves, porque sua Santidade lhe dá este poder e

jurisdição; lhe mande Vossa Majestade dar duas medalhas de ouro,

com a sua efígie, que pesem ambas até trinta mil reis; e que também

pelos armazéns, se lhe proveja o necessário para sua matalotagem, e

de um criado que trouxe em sua companhia, de sua mesma nação. vi

A partir da perspectiva político-cultural do Antigo Regime que

se estende aos trópicos principalmente pela noção de pertencimento

vivenciada pelos súditos ultramarinos, onde a exterioridade, marcada

principalmente pela indumentária, era extremamente valorizada por

ser sinal de distinção entre as pessoas, não é de se estranhar o

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Marcello Felipe Duarte

146 ISSN 1414-9109

comportamento das lideranças indígenas no que tange as suas

representações ao rei.

O posto de chefia da aldeia, que na tradição tupi caberia a

quem conquistasse a confiança do grupo para exercê-lo não sendo

necessariamente transmitido de pai para filho, passava a ser

hereditário provido pelo governador e às vezes remunerado,

demonstrando uma alteração significativa na ordem social indígena,

que se conformava à nova ordem colonial que estava sendo

engendrada. O capitão-mor de um aldeamento colonial, deveria

descender de uma linhagem direta a um ascendente enobrecido, que

por seus feitos fora reconhecido e agraciado pelas autoridades

coloniais.

Na função de capitão-mor, cujo cargo nem sempre era

remunerado, os principais buscavam, por meio de recursos jurídicos,

obter soldos que consideravam justos para o exercício de suas

funções. vii

Os principais, entre as novas funções que adquiriram, podiam

repartir os índios para o trabalho e puni-los, quando fosse necessário.

Tais prerrogativas, que se pensadas sob a ótica de intermediação e

de controle social são bem coerentes, revela-nos uma mudança

significativa na tradição tupi, em que os chefes não tinham poder de

coação. viii

Outros privilégios outorgados aos principais eram o de não

serem incluídos nos trabalhos, assim como o direito de possuir índios

que trabalhassem para si, conforme nos mostra Almir Diniz, na

extração de drogas do sertão. ix

Pode-se afirmar que a política de enobrecimento das

lideranças indígenas com a concessão de privilégios, títulos, e novas

funções visava a introduzir hábitos, costumes e valores do mundo

cristão-europeu para envolver estes homens na ordem colonial de

forma a que conduzissem seus liderados à obediência e disciplina

nas aldeias. Segundo o historiador Almir Diniz:

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Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 147

O cargo ou função de Principal correspondia naquele contexto a uma

multiplicidade de papéis que iam desde aliados militares de grande

prestígio nos primeiros anos da conquista, até simples chefes de

grupos que não faziam mais do que gerenciar o processo de

repartição dos trabalhadores indígenas sob seu comando. Esta

suposta “elite indígena” estava mais para intermediários culturais do

que aliados políticos. Cumpriam a sua função e defendiam seus

interesses e de seu grupo. Usavam estratégias políticas variadas para

se fazerem ouvir ou para conseguir benesses. Muitos foram forjados

pelas autoridades coloniais, mas somente conseguiam vingar no

grupo se, de alguma forma, cumprissem seu papel tradicional de

liderança. Não fosse assim, não teriam razão para existir. O jogo era

complexo e a nova ordem colonial impunha novos tipos de práticas.

Ser Principal era constituir-se como fronteira e como ponte entre dois

mundos. x

Desta forma, desde os primórdios da colonização, tornou-se

fundamental estabelecer postos de comando e de natureza militar

entre os índios, que recebiam os ofícios de Principal, Capitão e

Sargento-mor. O historiador Almir Diniz afirma que as técnicas

militares tradicionais desses índios eram muitas vezes mais eficientes

que aquelas originadas no velho mundo. Sem o apoio decisivo dos

arqueiros indígenas, as tropas portuguesas não teriam conseguido

implantar e conservar a sua hegemonia em território amazônico. Por

outro lado, o conhecimento dos terrenos, o uso dos mais diversos

tipos de venenos, e a estratégia de ataques de guerrilha atordoavam

seus inimigos. Nas florestas os estrategistas europeus tinham que se

curvar diante do guerreiro indígena. xi

Em relação às técnicas de guerra, a mais eficiente sem dúvida

era o assalto repentino, comumente hoje chamado de guerrilha.

Como os europeus não estavam acostumados, esse tipo de

estratégia era muito eficiente. Assim é que “muitas vezes, escondidos

entre os arvoredos às margens dos rios atacavam as canoas que

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Marcello Felipe Duarte

148 ISSN 1414-9109

tentavam revidar sem sucesso, uma vez que se mantinham

camuflados à sombra das árvores e protegidos por seus troncos.

Atacavam também seus inimigos tradicionais quando estes estavam

em suas festas ou distraídos em suas canoas pelos rios.”xii

Depois de estabelecida a hegemonia portuguesa, boa parte

das técnicas militares indígenas ficaram a serviço dos brancos. Seus

aliados guerreiros, os índios, passaram a compor as tropas nos

combates aos inimigos europeus da Coroa e, por esse motivo,

usufruíram um status diferenciado.

A historiadora Luciana Gandelman faz uma oportuna referência

a Damião de Lemos Faria e Castro, cuja obra referente à política

moral e civil endereçada à doutrina e direção dos príncipes, pode

servir como ponto de partida para estabelecer o liame entre a

liberalidade régia e enobrecimento das lideranças ameríndias.

Damião alertava no ano de 1749: “A força que vence não reina nos

corações; a generosidade que obriga, domina nas vontades.”xiii

Esse

tratadista, tardiamente sem dúvida, ao aconselhar príncipes e reis a

se esmerarem em atos de generosidade visava lhes dar uma direção

segura para o que na época Moderna era chamado de “bom

governo”. O bom governo do rei estava diretamente associado à ideia

do quanto ele podia ser generoso. A generosidade, por sua vez, não

podia ser entendida sem a ideia de obrigação, sendo que os dois

elementos se articulavam e faziam parte de um “sistema de

prestações econômicas”.xiv

Qualquer monarca no Antigo Regime deveria operar dentro

desse regime ético baseado no amor, na dádiva e na reciprocidade.

Deveria ser alguém com capacidade e meios para proceder de forma

afetiva na prática do favor, recompensando os serviços prestados por

seus vassalos de forma a tornar pública sua gratidão. As dádivas,

portanto, eram instrumentos do bom governo, pois se por um lado o

dar tornava-se obrigação precípua da realeza (liberalidade régia), por

outro lado, acabava por ensejar uma cadeia de obrigações que

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Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 149

vinculava ao rei os seus vassalos espalhados tanto em Portugal,

quanto nos domínios ultramarinos. Em razão desse contexto, a

governabilidade da monarquia portuguesa encontrou no

estabelecimento de redes imperiais um importante mecanismo de

construção das hierarquias sociais, econômicas e políticas sendo que

cada um dos agentes que integravam as diversas redes, possuíam

recursos e obrigações próprias, sendo, portanto, distintos um

dos outros. xv

É a partir dessa perspectiva de considerar a diferença que

havia entre os diversos agentes que compunham as redes imperiais

do vasto império português, que passamos a considerar as seguintes

questões: Quais eram os limites da justiça distributiva real, através da

concessão de mercês, em relação às lideranças ameríndias? Poderia

o rei agraciar as lideranças indígenas com hábitos de Ordens

Militares em detrimento às normas vigentes na época quanto aos

defeitos de sangue?

Entre os séculos XVI e XVIII a Ordem de Cristo era a insígnia

mais procurada das ordens militares que estavam sob o controle da

Coroa Portuguesa. Em 1551, D. João III, rei de Portugal, conseguiu

do Papa a incorporação perpétua das Ordens de Cristo, Avis e

Santiago à Coroa Portuguesa. Ao anexar os mestrados destas

ordens, D. João III conseguiu para a Coroa recursos políticos e

econômicos enormes. No entanto, depois de 1551 os bens

e jurisdições das Ordens não mais se confundiam com os da Coroa.

O monarca apenas ordenava e estabelecia algo relativo a estas

milícias somente como o administrador perpétuo das mesmas. Ao

mesmo tempo, os recursos financeiros da Ordem eram oriundos de

um tributo pago à mesma. Recompensar os seus servidores foi uma

das mais importantes razões da concessão das ordens militares, em

particular a de Cristo. xvi

Originalmente, os cavaleiros das Ordens Militares atuavam

como defensores da cristandade e da monarquia. Após a

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Marcello Felipe Duarte

150 ISSN 1414-9109

incorporação das três Ordens Militares, a monarquia passou a

recorrer ao patrimônio dos três mestrados para “viabilizar a

pacificação e centralização política do reino, além da manutenção do

império frente às ameaças dos infiéis.” xvii

Já no Reinado de D. Manuel, foram criadas novas comendas

da Ordem Cristo que, conforme nos informa Raminelli, “eram uma

honra concedida pela monarquia aos leais vassalos que se

destacassem nos serviços militares no norte da África, durante as

disputas contra os mouros.”xviii

Em 1572, o regimento responsável

por reformar as três Ordens admitia, pela primeira vez, a

remuneração de serviços prestados na Índia e nas galés da costa do

Algarves. Anos depois, em 1577 os serviços em armadas de alto

bordo no Oceano contra turcos, piratas, heréticos e infiéis tornaram-

se equivalentes aos feitos realizados na África ou nas galés do

Algarves. Assim o breve papal contemplava uma ampla área de

atuação e expandia a luta contra os demais infiéis. xix

Cabe ainda destacar que “embora os serviços na América não

contassem para obtenção do hábito, no Regimento de Tomé de

Souza (1548), o monarca concedia ao governador o poder de armar

cavaleiros, mercê que era o reconhecimento dos bons serviços

prestados nos navios das armadas ou nos campos de batalha.” xx

O grande interesse por tais hábitos e comendas está no fato

dos comendadores e cavaleiros terem direito às tenças e a foro

privilegiado, caso fossem acusados de algum crime. Pelo foro

privilégio eles eram, inicialmente, julgados pelos juízes dos

cavaleiros, mas podiam apelar para corte de terceira instância.

Mesmo depois de condenados pela Mesa de Consciência e Ordens e

pelo rei não podiam receber punição pública.xxi

No que diz respeito aos impedimentos legais é preciso dizer

que não era qualquer um que podia alcançar o tão desejado hábito,

pois sua concessão dependia de criteriosa investigação sobre a vida

do requerente. O candidato não poderia apresentar “defeito de

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Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 151

sangue”, isto é, não deveria ter ascendência moura, judaica,

indígena, não ter defeito físico ou incorrer em defeito mecânico, o que

correspondia a ser filho ou neto de indivíduo que exercera atividade

manual ou se vivia ele próprio desse mister. Caso se confirmasse

quaisquer desses “defeitos” o candidato seria rejeitado. No entanto, o

rei tinha o poder para dispensar tais defeitos, salvo para o caso de

judeus onde somente o papa tinha autoridade para isso. xxii

Conforme se pode observar, a não ser o sangue judaico que só

o papa tinha autoridade para dispensá-lo, o rei tinha o poder de

dispensar quaisquer defeitos, e se o fazia frequentemente era

porque tinha interesse em estabelecer, como observa o historiador

Ronald Raminelli, “uma rede clientelar para defender seu reino e os

domínios ultramarinos.” xxiii

Convém lembrar, no entanto, que desde a incorporação das

Ordens Militares à Coroa em 1551, o órgão que administrava estes

institutos era a Mesa de Consciência e Ordens. Ainda que o monarca

remunerasse os serviços a ele prestados com um hábito, para se

sagrar cavaleiro era necessário o aval da Mesa. As habilitações

aconteciam através de inquéritos rigorosos mandados fazer a partir

de 1597 nos locais de nascimento do requerente e ainda nas terras

em que nasceram seus pais e seus quatro avós.

Quanto ao fato do requerente ser índio, no entanto, como

atestam os vários casos narrados por Evaldo Cabral de Mello, parece

que tal defeito de sangue era atenuado pois o “chamado gentilismo, o

sangue gentio de uma avó ou bisavô, nunca constituiu obstáculo de

monta para o acesso às ordens militares, embora a Mesa da

Consciência e Ordens se mostrasse intransigente quando se tratava

de premiar um índio de quatro costados.” xxiv

Nesse sentido, como

afirma Regina Celestino, em graus mais remotos então, como o

quinto ou sexto grau, o gentilismo não fazia qualquer impedimento.xxv

Sob essa ótica então é possível considerar que se as

lideranças indígenas e seus descendentes solicitavam mercês o

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152 ISSN 1414-9109

faziam na esperança de terem a dispensa, por parte do rei, de seu

defeito de sangue, ainda mais se alegassem com provas cabais, que

suas representações estavam respaldadas por atos de bravura em

campo de batalha, pois tais “serviços de guerra e defesa da terra

eram dos mais enobrecedores e muito importantes para a concessão

de cargos, títulos, honrosos e dispensas de defeitos de sangue ou

mecânico.”xxvi

Sem falar que, como lembrou Schwartz, nos primórdios

da colonização, ou melhor, no que ele denominou primeiro estágio de

colonização, a discriminação contra os índios e mestiços era menor

pela necessidade que se tinha deles e pela raridade da população

branca. xxvii

Tal é o caso emblemático do principal Arariboia,

posteriormente, batizado com o nome cristão de Martim Afonso de

Souza que se aliou aos portugueses na conquista de Guanabara,

contra franceses e tamoios. A indesejada presença francesa no Rio

de Janeiro mediante a fundação da França Antártica em 1555

representou uma ameaça a ser expurgada. Ameaça aos domínios da

Coroa Portuguesa e também ao domínio espiritual da Igreja católica

que, pelo Concílio de Trento, condenara o protestantismo como

heresia contumaz. É bom lembrar que além de uma colônia, a França

Antártica adquiriu posteriormente conotação de possível abrigo aos

huguenotes, principalmente, para o almirante Coligny que os enviou

ao Rio de Janeiro em atendimento às solicitações de reforço feitas

por Villegagnon.xxviii

Diante de tal ameaça era mister que os portugueses fizessem

aliança com os nativos, que seriam arregimentados sob o comando

dos chefes indígenas. É nesse contexto que se situa a figura de

Arariboia, que após ter ajudado os portugueses na expulsão dos

franceses no Rio de Janeiro, ali permaneceu como capitão-mor, em

atendimento à solicitação de Mem de Sá para garantir a segurança

da região, sendo criada, então, a aldeia de São Lourenço, que se

tornou baluarte de defesa da recém fundada cidade.

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Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 153

Regina Celestino afirma que Arariboia foi agraciado com o

hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo e uma tença de 12 mil réis.

xxix No entanto, o historiador Ronald Raminelli sinaliza alguns

contratempos que impediriam a efetivação de tais honrarias ao

principal, o que não descarta a outorga de outros privilégios como de

fato aconteceu.

O primeiro empecilho é justamente a bula papal de 1570 que

reafirmava a necessidade de lutar no Norte da África para alcançar as

mencionadas mercês. “À época, foram revogadas as dispensas e os

direitos a isenções de suplicantes que não apresentassem os

serviços militares nos lugares estratégicos.” xxx

Não obstante ao

auxílio primordial dado por Arariboia à defesa da Baía de Guanabara,

naquele momento, esta região encontrava-se muito distante da área

prioritária estabelecida pela Coroa, que ainda tinha seu olhar voltado

para África e Índia. Em segundo lugar, não há registros na

Chancelaria da Ordem de Cristo da tão propalada mercê concedida

ao referido chefe, o que reforça a hipótese de que Arariboia recebera

apenas uma promessa do título.xxxi

Por último, e não menos

importante, devemos considerar o breve papal expedido em 1577

que, apesar de tornar equivalente aos feitos realizados na África e

galés do Algarves os serviços em armadas de alto bordo no Oceano

contra turcos, piratas, heréticos e infiéis, pela data, situava-se bem

depois da concessão de mercê feita ao chefe temiminó. xxxii

No entanto, para além da efetivação ou não da tença e do título

de cavaleiro da Ordem de Cristo, é inegável que Arariboia passou a

desfrutar de certos privilégios inerentes a um valoroso guerreiro,

recebendo “patente de capitão-mor de sua Aldeia e sesmaria de uma

légua de terras sobre a baía e duas para o sertão, situada à margem

oposta da cidade de são Sebastião do Rio de Janeiro.”xxxiii

Além

disso, tornou-se proprietário de casas na rua Direita (atual Primeiro

de Março), onde residiam os notáveis da cidade, incluindo o

próprio governador. xxxiv

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O prestígio alcançado por Arariboia pode ser melhor observado

no evento de recebimento do governador Antonio Salema no Rio de

Janeiro, narrado por frei Vicente de Salvador. Tal fato fato nos revela

o nível de consciência que ele tinha sobre seu papel como importante

chefe na defesa da terra e mediador entre dois mundos culturalmente

distintos. Arariboia após ter sido advertido quanto a sua descortesia

de ter “cavalgado” com uma perna sobre a outra segundo seu

costume, respondeu ao governador:

Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em

que servi a el-rei não estranharas dar-lhe agora este pequeno

descanso; mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para

minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não tornarei

mais à tua corte. xxxv

Considerações finais

Observa-se a metamorfose de tais índios em vassalos do rei.

Tais homens que viveram na fronteira entre os mundos europeu e

ameríndio, servindo de elo entre ambos, deram seu sangue e vida

pela causa portuguesa. Em troca disso buscaram, como uma forma

de recompensa pelos serviços prestados, privilégios que os

capacitassem a manter suas posições de liderança nos aldeamentos,

e, ao mesmo tempo, o status de vassalos cristãos, dignos, portanto,

das mercês régias cujo objetivo precípuo era animá-los ao serviço da

coroa portuguesa para a manutenção de sua hegemonia política e

militar nos territórios ultramarinos.

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Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 155

Notas e referências

Mestre do Programa de Pós-Graduação de História Política pela

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientado pelo

Professor Doutor Edgard Leite Ferreira Neto. Contato:

[email protected] i ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas –

identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. ii ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso:

lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais.

In: VAINFAS, Ronaldo, SANTOS, Georgina Silva dos e NEVES,

Guilherme Pereira das (orgs). Retratos do Império – trajetórias

individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF,

2006, p. 13. iii ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas, p.150-

168. iv ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso:

lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais,

p. 19. v AHU/ Maranhão, 009, Cx. 4, d. 418.

vi AHU/ Maranhão, 009, Cx. 4, d. 418.

vii ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso:

lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais.

p. 21. viii

Idem, p. 22. ix MOREIRA NETO, Carlos de A. Índios da Amazônia: de maioria a

minoria (1750-1850). Rio de Janeiro: Vozes, 1988, p.187. x JÚNIOR, Almir Diniz de Carvalho. Índios cristãos: A conversão dos

gentios na Amazônia Portuguesa (1653,1769). Tese de Doutorado.

Unicamp. Campinas, 2005 p. 255 xi Idem, p. 248.

xii Idem, p. 249.

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Marcello Felipe Duarte

156 ISSN 1414-9109

xiii

GANDELMAN, Luciana. “As mercês são cadeias que se não rompem”:

liberalidade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime

Português. In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda B. e

GOUVÊA, Maria de Fátima S (orgs). Culturas políticas: ensaios de

história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro:

Mauad, 2005, p.109. xiv

Idem, p. 110.

xv SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de

Fátima (orgs.). op. cit., p. 79. xvi

JÚNIOR, Almir Diniz de Carvalho. op. cit., p. 246. xvii

RAMINELLI, Ronald. “Honra malograda dos chefes potiguar, 1630-

1695”. Manuscrito, 2007, p.3. xviii

Idem, p.2. xix

Idem, p.4. xx

Idem, p.2. xxi

Idem, p.7. xxii

MELLO, Evaldo C. de. O nome e o sangue. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989, p.23. xxiii

RAMINELLI, Ronald. op. cit., p.3. xxiv

MELLO, Evaldo C. de. op. cit., p.120-121. xxv

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso:

lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais,

p. 16. xxvi

Idem, p.16. xxvii

SCHWARTZ, S. Brazilian ethnogenesis: mestiços, mamelucos, and

pardos. In: GRUZINSKI, S. et. al. Les Nouveaux mondes. Paris: (s.n.),

1996, p. 10. xxviii

MARIZ, Vasco e PROVENÇAL, Lucien. Villegagnon e a França

Antártica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 107.

xxix ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De Araribóia a Martim Afonso:

lideranças indígenas, mestiçagens étnico-culturais e hierarquias sociais,

p. 14.

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Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português - O caso emblemático de Araribóia

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 157

xxx

RAMINELLI, Ronald. op. cit., p. 4. xxxi

Idem, p.4. xxxii

Idem, p.4. xxxiii

Idem, p.5. xxxiv

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Retratos do Império. p. 14. xxxv

Vicente do Salvador, Frei. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo:

EDUSP; Belo Horizonte: Itatia, 1982, p.187.

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158

A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do

Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro

(1871-1888)

Maristela Santana

Os primeiros meses de pesquisa sobre um grupo de fontes primárias

levaram-nos a suspender provisoriamente a expressão Militante da

Liberdade atribuída por nós ao Promotor Públicoi, que fez parte do

título do projeto originalii2, em vista do material encontrado até o

momento, sem, contudo, descartar essa possibilidade. Apresentamos

a seguir algumas referências que motivaram o trabalho, seu

desenvolvimento e o estágio atual em que se encontra.

Militante da Liberdade é uma expressão, não exclusiva, mas

utilizada pela historiadora Keila Grinbergiii para referir-se a bacharéis

em Direito ou solicitadores, aqueles indivíduos que não tinham

formação jurídica institucional, mas tinham autorização para atuar nos

juízos de primeira instância em ações de liberdade e de manutenção

de liberdade de escravos, entre outras. O historiador Eduardo Spiller

Penaiv, por sua vez, utiliza o termo “militância política abolicionista” de

forma genérica para advogados, solicitadores, curadores, e juízes

que teriam auxiliado juridicamente escravos em ações judiciais da

mesma natureza. Com cautela, estendeu a expressão para

jurisconsultos e magistrados que alcançaram grande expressão social

e política, ligados ao Governo Imperial por laços diversos, que

utilizavam linguagem e militância abolicionista moderada.

Numa conjugação do emprego da “militância” utilizada pelos

dois autores, e com base em indícios legislativos, pareceu-nos

desafiador empregar o termo como título da pesquisa em referência a

outro ator social interativo, um sujeito apenas referenciado em

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A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 159

legislações e obras historiográficas relacionadas à justiça no Brasil,

mas não objeto de estudos mais profundos. Esse sujeito aparece nas

legislações em torno da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871,

conhecida como Lei do Ventre Livre, exercendo função de extrema

relevância. Trata-se do Promotor de Justiça, agente do Ministério

Público, fiscal do cumprimento da lei.

A Lei nº 2.040 de 1871 a despeito do que a alcunha de “Lei do

Ventre Livre” sugere, foi editada objetivando a libertação de dois

sujeitos: o filho de mulher escrava a partir daquela data, e o escravo

adulto pertencente ao Império em conformidade com duas previsões:

libertação anual de escravos de cada província de acordo com cotas

reunidas em Fundos de Emancipação criados nos municípios para

esse fim; e libertação individual por meio da formação de pecúlio para

compra direta da alforria, ou para pagamento de indenização ao(s)

senhor(es). A formação de pecúlio também estava prevista para o

filho livre de mulher escrava e em ambos os casos o Governo

regulamentaria as formas de proteção e de rendimento desses

pecúlios. Outra disposição importante prevista era a matrícula ou

registro especial que todos aqueles que detinham o poder ou a posse

dos escravos do Império eram obrigados a realizar a partir de então,

e no caso de não cumprimento dentro do prazo estabelecido, sujeitar-

se-iam a sanções de multa e de penas. E nesse particular, conforme

estabelecido no Decreto n.º 4.835 de 1871, regulamento da Lei n.º

2.040 que disciplina “a matrícula especial dos escravos e dos filhos

livres de mulher escrava” caberia ao agente ministerial e seus

adjuntos, entre outros (Curadores Gerais de Órfãos e Juízes de

Órfãos), a atribuição de intervenção para que a matrícula

fosse realizada.

Existe uma ampla produção na área da História do Direito

enfatizando o desenvolvimento do Poder Judiciário no Brasil. Estudos

relativos à perspectiva histórica do Ministério Público Estadual (Rio de

Janeiro) baseados em fontes primárias, que não somente a

legislação, são escassosv; limitam-se muitas vezes a um caráter

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Maristela Santana

160 ISSN 1414-9109

introdutório em livros específicos sobre os princípios institucionais do

órgão e a artigos esparsos em publicações temáticas, ora com mais,

ora com menos detalhes. Trabalhos sobre a Instituição no Rio de

Janeiro realizados por historiadores estão dando os primeiros passos.

Tecemos nossa problemática a partir de afirmativas

semelhantes de dois membros do Ministério Público contemporâneo

que se propuseram em trabalhos acadêmicos sobre a Instituição,

fazer constar a evolução histórica da mesma. São eles: José Eduardo

Sabo Paes, Procurador de Justiça do Ministério Público do Distrito

Federal e Territórios, no livro O Ministério Público na Construção do

Estado de Direito, publicado em 2003, resultado da sua tese doutoral

em Direito defendida em 2001 na Universidad Complutense de

Madrid, Espanha; e Ronaldo Porto Macedo Jr., Promotor de Justiça

do Ministério Público de São Paulo, Pós-Doutor em Direito, Professor

da Universidade de São Paulo-USP e da Fundação Getúlio Vargas –

FGV/SP no artigo “Evolução Institucional do Ministério Público

Brasileiro”, 1995. Ambos conferem importante destaque ao Promotor

de Justiça no século XIX que com a promulgação da Lei do Ventre

Livre teria como função proteger “fracos e indefesos” uma vez que lhe

competia fiscalizar se os filhos livres das mulheres escravas eram

registrados na forma da lei. Esse entendimento de “protetor

dos fracos e indefesos” repete-se inclusive no portal do

Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)vi, no link sobre a

“História do MP”.

O impacto de tal afirmativa foi bastante expressivo,

despertando nosso interesse de modo que a afirmação impôs-se

irresistivelmente como objeto de investigação e ponto de partida para

o nosso estudo.

Ao consultarmos o corpo da Lei nº 2.040 de 1871 não

encontramos disposições explícitas que justifiquem a afirmação

contundente feita pelos membros do Parquet atual de o Promotor de

Justiça como responsável: a) pela fiscalização da matrícula dos

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A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 161

ingênuos; e b) pela defesa de interesses dos escravos, ingênuos e

libertos. Esses dispositivos são encontrados sim, nos Decretos n.º

4.835 de 1º de dezembro de 1871 e n.º 5.135 de 13 de novembro de

1872, respectivamente, que disciplinam e regulamentam a aplicação

da Lei n.º 2.040. Entendemos que, na realidade, houve uma leitura

jurídica enaltecedora da Instituição, especialmente ao referir-se aos

promotores como “protetores” dos filhos livres de mulher escrava, ou

ingênuos, termo como eram tratados à época; e nós a convertemos

numa pesquisa histórica, a partir de inter-relações complexas entre

legislação civil, criminal, processos judiciais cíveis de liberdade,

inquéritos policiais, relatórios administrativos provinciais e relatórios

relativos à administração da justiça imperial.

A historiografia voltada para a escravidão no Brasil nas últimas

duas décadas consolidou a interpretação de que as três principais leis

sobre a questão: Lei n.º 2.040 de 28 de setembro de 1871 ou Lei do

Ventre Livre; Lei n.º 3.270 de 28 de setembro de 1885 ou Lei do

Sexagenário; e Lei n.º 3.353 de 13 de maio de 1888 ou Lei da

Abolição da Escravatura, não foram processos isolados em torno de

situações imediatistas visualizadas pelo Governo e pela elite

escravocrata brasileira que teriam culminado na última lei como o fim

derradeiro do sistema no país. Ao contrário, as três leis compunham

um projeto de emancipação gradual e segura que não alterasse a

ordem hierárquica social. Realidade há muito antevista, mas que não

poderia ocorrer de qualquer forma, não poderia dar margem, por

exemplo, a rebeliões escravas que ameaçassem as ordens

econômica, social e política. No tocante à Lei n.º 2.040, tal

preocupação parece justificar a quantidade de legislações correlatas

cíveis e criminais: leis, decretos, regulamentos, avisos e alterações

regulamentais, sempre procurando (em tese) conferir precisão àquele

ordenamento jurídico, evitando brechas que possibilitassem a perda

do controle em prol da manutenção da ordem estabelecida; e

presente em todos os níveis da sociedade. Sendo a sociedade, em

todos os seus segmentos, um elemento orgânico e dinâmico, é

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Maristela Santana

162 ISSN 1414-9109

possível observar interações, tensões e reações que se refletem nas

leis que, por sua vez, são empregadas em processos judiciais e

provas utilizadas pelas partes envolvidas, e na retórica que faz dos

dispositivos legais instrumentos manipuláveis contrários ou não

segundo interesses escravistas e abolicionistas; permite senão a

inversão, perceber os movimentos e as “vozes” reativas

àquela ordem.

No tocante à legislação cível e criminal, em especial a esta

última destacamos: o Código Criminal (1830), o Código de Processo

Criminal (1832) e suas reformulações referentes às disposições

judiciárias, com destaque para a Lei n.º 2.033 de 20 de setembro de

1871 e o seu regulamento, o Decreto n.º 4.824 de 22 de novembro de

1871. Essa legislação criminal também faz importante referência às

atribuições dos Promotores Públicos que analisadas em conjunto com

a legislação cível relacionada à Lei n.º 2.040 de 1871 constituem

fontes relevantes para pesquisar a atuação cível do Promotor de

Justiça. Sendo assim, nossa problemática consiste em investigar

esse agente histórico: quem era? Que espaço ocupava na

sociedade? Como aparece nos processos judiciais e inquéritos? Que

discurso utilizava para fazer cumprir suas funções legislativas? Teria

sido um Militante da Liberdade?

Diante dessas questões apresentamos algumas

considerações, parte delas ainda a serem aprofundadas para

apresentação futura. Segundo o Código de Processo Criminal de

1832, a função do cargo de Promotor poderia ser exercida por

qualquer pessoa que reunisse as condições para ser jurado,

preferencialmente “os que fossem instruídos nas Leis”, a aptidão para

ser jurado derivava da condição de os indivíduos serem cidadãos e

eleitores; ou seja, uma pequena parcela da população detentores de

direitos civis e políticos, com reconhecimento social de serem

sensatos e honestos. Esses critérios eram bastante subjetivos e eram

eles que prevaleciam nas proposições e aprovações por autoridades

superiores. A Lei n.º 2.033 de 1871 dispunha que, em caso de falta

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A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 163

do Adjunto do Promotor Público, qualquer pessoa idônea poderia ser

nomeada pelo juiz para a causa específica (criminal) apresentada,

disposição essa corroborada pelo Decreto n.º 4.824 de 1871 que

regulamenta a lei citada.

Disposto dessa forma pode-se afirmar que a princípio qualquer

indivíduo poderia ser Promotor de Justiça, e não necessariamente

bacharel em Direito, bastando apenas ser dotado de “boa índole”. Os

critérios subjetivos eram determinantes, denotando que a escolha e

nomeação para o cargo de promotor, essencial ao funcionamento da

Justiça, era feita por critérios que faziam do promotor um agente

político, de modo que o “fiscal da lei” do século XIX não corresponde

exatamente ao “fiscal da lei” dos séculos XX e XXI, defensor dos

direitos sociais individuais homogêneos e sociais difusos e coletivos.

A grande inovação da Lei n.º 2.040 foi a interferência do

público (Estado) nas relações privadas (entre senhores e escravos)

em que o Estado passou a administrar a concessão de alforrias,

fosse por meio da formação de pecúlio ou classificação pelo Fundo

de Emancipação. Autores diversos concordam que com a

promulgação da lei aumentou o número de escravos, libertandos e

libertos que procuravam o Poder Judiciário para fazer valer seus

direitos. Como não possuíam capacidade postulatória por serem

considerados “incapazes”, recorriam a curadores, solicitadores,

advogados abolicionistas e mesmo pessoas simples que sabiam ler e

escrever para peticionarem suas ações.

Dois trabalhos que consideramos relevantes para a perspectiva

com que estamos trabalhando, constituem obras de referência para

estudos do gênero, citadas no início do trabalhovii

e enriquecidos com

trabalhos afins como o artigo intitulado: “A Legislação de 1871, o

Judiciário e a tutela dos ingênuos na cidade de Taubaté”, da autoria

de Maria Aparecida C. R. Papali, e publicado na Revista História

e Justiça; Todos os autores estão afinados com a corrente

historiográfica História Social, e voltam-se para a análise de

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Maristela Santana

164 ISSN 1414-9109

legislações combinadas com processos judiciais, jornais e atas de

reuniões de grupos diretamente envolvidos com o Abolicionismo.

Demonstram a riqueza de análises fornecidas pelas fontes que

consolidaram a mudança de paradigma no estudo da escravidão

no Brasil.

Eduardo Spiller Pena foi orientado no doutorado por Sidney

Challoubviii

, um dos precursores no estudo de ações de liberdade na

província do Rio de Janeiro. Challoub evidenciou a importância dos

processos judiciais como fonte primária e expressão da busca de

direitos de escravos e libertos, apontando a possibilidade do uso

desse instrumental, bem como a relevância de advogados nos

processos de libertação. Pena defende a tese de o direito “como

campo previsível e devidamente orientado para a defesa dos

interesses de uma determinada classe, passando a contemplar o

direito como um campo possível de indeterminações e como uma

arena de conflitos entre interesses diversos de classes”.ix O

argumento do autor é de que haveria várias possibilidades de

interpretação dos textos legais. Um campo amplo e privilegiado do

Direito para a discussão da escravidão no país.

Keila Grinbergx questiona essa autonomia interpretativa dos

advogados. A quantidade de leis, decretos e regulamentos expedidos

pelo Governo, no seu ponto de vista, constituíam formas de refrear a

“criatividade jurídica” de advogados envolvidos com ações de

liberdades que se utilizavam da legislação portuguesa (em especial

as Ordenações Filipinas) e da doutrina, indiscriminadamente, de

modo a convencer os juízes de seus argumentos. Uma informação

fornecida por Grinbergxi, envolvendo a legislação nacional, e

constatada na amostragem de processos cíveis envolvendo a Lei n.º

2.040 por nós consultada no da Justiça do Tribunal de Justiça do

Estado do Rio de Janeiro, com referências constantes a artigos dos

Decretos n.º 4.835 de 1871 e n.º 5.135 de 1872, é de que a partir da

promulgação da lei as Ordenações Filipinas praticamente deixaram

de ser um recurso válido nas ações de liberdade reduzindo

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A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 165

consideravelmente a referência a elas nos processos. A autora

concorda com Pena e Challoub que até por volta da década de 1850,

advogados e juízes possuíam grande autonomia interpretativa, no

entanto não faziam uso nos processos de referências a

jurisprudências (julgados) anteriores e semelhantes; e menos, que

o argumento com base na citação de leis e doutrinas fosse feita

de qualquer forma, a retórica obedecia uma lógica do que era

juridicamente aceito à época, argumento esse com a

qual concordamos.

Quanto aos Militantes da Liberdade, ao questionamento sobre

quem eram ao certo estes indivíduos, Grinberg ressalta a importância

do estudo sobre as conclusões, as interpretações e o senso político

das atuações dos mesmos, por meio dos argumentos por eles

apresentados.

Tendo por base as reflexões já apresentadas e as disposições

legislativas sobre as atribuições do Promotor Público, tem-nos

intrigado bastante a dificuldade em encontrar documentos com a

manifestação direta do promotor. Procedemos ao levantamento de

processos judiciais de ações de liberdade disponibilizadas no Museu

da Justiça. Numa amostragem significativa não encontramos

nenhuma assinatura de Promotor Público, sendo vasta a assinatura

de curadores. A identificação “curadores” era bastante abrangente,

podendo referir-se a uma gama de postuladores legais.

Procederemos ao cruzamento de dados fornecidos pelas fontes de

modo a averiguar se promotores correspondiam a curadores nas

petições. E em caso positivo, por que razão não assinavam em

função do cargo?

Segundo o Decreto n.º 4.824 de 1871 que alterou a legislação

judiciária foi recriado o 2.º Juizado de Órfãos no Município neutro da

Côrte onde tramitariam as causas relativas aos escravos, libertandos

e libertos, podendo o cargo de Curador Geral de Órfãos da 2.ª Vara

ser ocupado por Adjunto de Promotor e ainda segundo a norma,

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Maristela Santana

166 ISSN 1414-9109

deveria existir junto aos Juízos Cíveis de Órfãos e Ausentes nas

comarcas uma Curadoria de Órfãos, em que atuariam Promotores de

Justiça e/ou Promotores Adjuntos. Os processos judiciais relativos

aos juízos de órfãos da Côrte compõem o acervo do Arquivo

Nacional, ainda a ser consultado.xii

No Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro com o auxílio

da elucidativa obra recém publicada pela Instituição: A província

fluminense: administração provincial no tempo do Império do Brasil

(Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2012),

encontramos dados mais reveladores. Na estrutura administrativa

provincial havia a Secretaria da Presidência da Província, dividida em

seções na qual, a 3.ª Seção cabia a segurança pública e a

administração provincial da justiça em que o Promotor Público, exceto

na Côrte, era nomeado pelo presidente provincial.

Concluímos em parte que a dificuldade em encontrar material

judicial em que apareça o promotor atuante, ocorre porque ele era um

ocupante de cargo público criado e estabelecido pela legislação

imperial, ligado ao exercício do Poder Judiciário (atribuições), mas

controlado pelo Poder Executivo (nomeação, designação, exoneração

etc). Importante ressaltar que o Poder Judiciário introduzido no

ordenamento brasileiro com a Constituição de 1824 não tinha seus

contornos bem definidos na prática, sendo a função judicial muito

imiscuída com a função administrativa. A “novidade” trazida pela Lei

do Ventre Livre, em que o Estado passou a administrar a concessão

de liberdade aos escravos é referenciado em duas passagens que

destacamos e mostram a relação dos promotores com o Executivo

provincial:

A Lei do Ventre Livre e a necessidade de normatizar, esclarecer e

regulamentar os processos de emancipação de escravos cujas regras

expostas na legislação nem sempre foram claras, desencadeou um

grande volume de correspondência enviada ao Presidente da

Província para dirimir dúvidas de juízes, delegados, párocos,

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A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 167

proprietários de escravos, integrantes das juntas de classificação de

escravos e até mesmo de escravos sobre o processo de emancipação

previsto na lei.xiii

Os Promotores Públicos compunham com o Presidente da

Câmara Municipal e o Coletor de Rendas as Juntas de classificação

de escravos que eram anualmente libertados pelo Fundo de

Emancipação nos municípios. Da mesma forma:

Os ofícios dos juízes enviados à Secretaria [da Presidência da

Província] mantinham o presidente informado sobre o número de

juízes, promotores nos termos e comarcas da província, a nomeação

dos mesmos, além da divisão judiciária.xiv

Encontramos inquéritos policiais envolvendo crimes praticados

por escravos e libertos e contra esses e ingênuos, fazendo menções

ao Promotor Público da comarca para manifestar-se no pleito.

Pouquíssimas vezes o nome é citado, mas os inquéritos revelam-se

fontes importantes sobre a dinâmica das relações administrativas,

policiais e judiciárias entre promotores, juízes de direito, juízes

municipais e de órfãos, delegados e subdelegados nos municípios e

comarcas e de todos com o chefe de polícia provincial, a serem

esmiuçadas.

Ainda sobre a função do promotor, pretendemos elucidar a

vinculação ou adjetivação conferida a ele pelo exercício da

“advocacia pública” no Império, tratamento esse, atribuído por

estudos em andamento (vide nota n.º 5) e em trabalho sobre a

Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Nesse há a iniciativa

de destacar o papel do Defensor Público, outro ator social ligado ao

Estado, atualmente com exercício junto aos hipossuficientes, aqueles

que não podem arcar com as custas processuais da justiça comum,

definido-o como “advogado do povo”. Trata-se de a História da

Defensoria Pública e da Associação dos Defensores Públicos do

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Maristela Santana

168 ISSN 1414-9109

Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004) de

autoria do historiador Jorge Luís Rocha. Na evolução histórica até a

institucionalização oficializada em 1988, uma conquista na Carta

Constitucional democrática, o autor, por meio da legislação desde o

período colonial mostra que há várias menções ao que seria a função

do defensor. Tais referências dizem respeito a concessões aos

pobres, ou “miseráveis”, termo jurídico utilizado à época e são muito

próximas às funções do Promotor de Público no Império. O discurso

que prevalece é o da assistência judiciária direcionada aos pobres

nas causas cíveisxv

, enquanto ao promotor, como já citamos, nas

causas criminais à assistência quando não houvesse representante

legal do indivíduo miserável, cabendo ao promotor representá-lo.

Desse modo, a nosso ver, a diferenciação manter-se-ia significativa

marcada se, no contexto da promulgação da Lei nº 2.040 de 1871, o

promotor também não tivesse se voltado para ação cível. Essa

afirmativa constitui uma das nossas principais hipóteses de trabalho,

melhor formulada como: a legislação em torno da Lei do Ventre Livre

seria o marco da atuação cível do Ministério Público até então restrita

à ação penal.

Nossa problemática remete à questão do acesso à justiça, no

caso por escravos e ex-escravos, portanto, recorremos aos

sociólogos do Direito Boaventura de Sousa Santos e Luis Werneck

Viannaxvi

. Os conceitos de justiça e direito são contemplados pelos

autores, configurando o que podemos chamar de uma sociologia

institucional jurídica. Em Santos, a abordagem ocorre num contexto

de desigualdade social contemporânea, alude às bases estruturais

fincadas na formação da sociedade brasileira, calcada na escravidão,

prejudicando o exercício da cidadania plena no âmbito, também, da

justiça. Nesse sentido, entendemos que a pertinência em relação ao

nosso objeto de estudo assenta na premissa de os promotores,

segundo a legislação, atuarem a favor de partes autoras constituídas

por escravos, libertos e cativos em vias de libertação, com atuação

(entre outros atores sociais) para garantir o acesso desses à justiça,

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A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 169

sendo que como “fiscal da lei”, o agente do Ministério Público era o

único que possuía esta atribuição.xvii

A partir dessa perspectiva, afastamo-nos da abordagem

predominante pela História Social seguida pelos autores que

compuseram nossa bibliografia básica para elaboração do projeto de

pesquisa (Keila Grinberg, Eduardo Spieller Pena, Maria Aparecida

Papali e Adriana Pereira Campos, entre outros) em vista de nossa

ênfase recair sobre uma História Institucional; o foco deles está na

relação entre senhores e escravos utilizando processos judiciais

como fontes primárias privilegiadas dentre outras. Os processos (e

inquéritos) também constituem para nós fontes privilegiadas, mas sob

outro olhar, oferecendo outra dinâmica de análise das relações entre

escravos e ex-escravos com a justiça, e nesse particular, a atuação

do Ministério Público.

Nesse sentido, a percepção dos processos judiciais e

inquéritos policiais como indícios de investigação cultural e social

(Carlo Ginzburg, teórico da Micro-história) é corroborado. Em Visões

da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na

Corte, de autoria de Sidney Chalhoubxviii

, esse também faz referência

ao instrumental teórico da Micro-históriaxix

aplicado aos processos

criminais sobre os quais trabalhou. Para tanto, a análise do discurso

(o dito, o não dito e os silêncios nos processos e nas leis) assume

fundamental relevância. Para o tratamento do discurso, recorremos à

linguista Eni Orlandi, precursora da análise do discurso no Brasil. No

livro Análise do Discurso: princípios e procedimentos encontramos a

leitura da análise do discurso como teoria da interpretação em que os

textos/objetos de estudo representam sentidos estabelecidos nas

relações entre as dimensões política e simbólica a partir das

condições de produção. Essas condições implicam a tecelagem entre

o material, o institucional e o mecanismo imaginário produtor de

imagens dos sujeitos, bem como do objeto do discurso insertos numa

conjuntura sociohistórica.xx

No nosso estudo, observamos tal

configuração com a difusão crescente do acesso à justiça por

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Maristela Santana

170 ISSN 1414-9109

escravos, libertandos e libertos para reinvidicar e garantir a liberdade

após a promulgação da Lei n.º 2.040 de 1871, ou seja, a recorrência

à instância jurídica estatal como autoridade institucional legitimadora

daquele direito, sendo possível perceber as representações políticas

e sociais das ideias políticas circundantes.

Sendo assim, esperamos contribuir no avanço dos estudos

históricos do Ministério Público no período imperial, com todas as

potencialidades que ele oferece.

Notas e referências

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela

Professora Doutora Maria Emília Prado.

Contato: [email protected] i Os termos Promotor Público e Promotor de Justiça são encontrados nos

documentos como sinônimos, sendo o primeiro corrente no período

estudado. ii “Um Militante da Liberdade: A atuação do Ministério Público em Ações

Cíveis na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro

(1871-1888)”. iii GRINBERG, Keila. O Fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e

direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2002. iv PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos,

escravidão e a Lei de 1871. Campinas: Editora da Unicamp, Centro de

Pesquisa em História Social da Cultura, 2001, p. 23-28. v No II Seminário Internacional de História e Direito: instituições políticas,

poder e justiça, realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF)

nos dias 9, 10 e 11 de maio de 2012 foi apresentada a comunicação “O

Ministério Público no Império” de autoria de Adriano Moura da Fonseca

Pinto e Sandra de Mello Carneiro Miranda. A perspectiva adotada é de

uma visão histórica sobre as origens e desenvolvimento da advocacia

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A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 171

pública no Império (1822-1889) utilizando como fontes primárias a

legislação imperial e publicações do Diário Oficial do Império do Brazil.

Disponível em:

<http://www.uff.br/sihd/images/stories/arts_2011/ARTIGO_SIHD__Adriano_M

oura_da_Fonseca_Pinto_e_Sandra_de_Mello_Carneiro_Miranda.pdf>

Acesso em 10/08/2012. vi Disponível em: < www.cnmp.gov.br> Acesso em 20.09.2012.

vii PENA, 2001 e GRINBERG, 2002.

viii CHALLOUB. Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas

décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras,

2011. ix PENA, op. cit., p.25.

x GRINBERG, op. cit., p.235.

xi Ibdem, p.251.

xii O Arquivo Nacional vinculado ao Ministério da Justiça esteve em greve

no período de julho a início de setembro de 2012, inviabililizando a

consulta em tempo hábil para apresentação de resultados. xiii

p. 78; grifos nossos. xiv

p. 104; grifos nossos. xv

Referências às Ordenações Manoelinas e Filipinas. (ROCHA, op. cit.,

p.123-124). xvi

Os trabalhos utilizados para a reflexão são: o artigo “Introdução à

sociologia da administração da justiça” (Revista de Processo 37, 1985,

p. 121-139), e o livro Por uma revolução democrática da justiça (São

Paulo: Cortez, 2007) da autoria de Santos; e de Vianna o título: Corpo e

alma do magistrado brasileiro (et alli. Rio de Janeiro: Revan, 1997). xvii

Conforme o Aviso Imperial de 16 de janeiro de 1838. xviii

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo, Companhia das

Letras, 2011. xix

CHALLOUB, p.15-31 xx

ORLANDI, Eni. Análise do Discurso: princípios e procedimentos.

Campinas: Pontes. 2012. p. 40.

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172

Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano

nas canções de Chico Buarque

Priscila Gomes Correa

Ao longo da obra da musical de Chico Buarque, destaca-se uma

constante referência ao samba como um instrumento capaz de

instaurar o tempo/lugar da festa, que surge como o extraordinário do

cotidiano, ou seja, como uma possibilidade transformadora existente

no seio de uma realidade repetitiva e maçante, em geral associada ao

tempo/lugar do trabalho. Trata-se da cotidianidade tecida sob o

processo de industrialização e urbanização desordenada, uma

consolidação de espaços urbanos cada vez mais carentes de lugares

de lazer e festa.i A sensibilidade para o drama contemporâneo das

grandes cidades, voltadas para a exploração do trabalho e para o

tempo regrado, caracteriza muitas das canções do artista desde seu

primeiro disco, lançado em 1966.

A música de maior sucesso, A Banda, já chamava atenção

para as transformações operadas pela música, como um despertar

para a vida, ainda que momentâneo, enquanto outras canções

expunham contrastes desconcertantes, até mesmo “naturais”, de um

dia-a-dia sem “festa”, então lançada à excepcionalidade, como uma

transgressão consentida. Quando, por exemplo, o desatino do “eu”

apenas revelava o desatino do “outro” (Ela desatinou), sob a festa do

carnaval: “ela não vê que toda a gente/ já está sofrendo normalmente/

toda a cidade anda esquecida/ da falsa vida da avenida onde/ ela

desatinou”.ii

De tal modo a narrativa imbuída de gestos cotidianos traça com

naturalidade o foco de tensão para o extraordinário da vida, ainda que

sob os símbolos do desatino ou da obediência. Também Tamandaré

(1965), primeira canção censurada de Chico, considerada uma

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Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 173

ofensa ao patrono da Marinha brasileira, compõe uma representação

bastante significativa desse ponto de vista, digamos, do homem

simples. Não se trata, no entanto, da vida de Zé qualquer como parte

de uma esfera maior de sentido, mas sim da significação que esse

protagonista atribui ao Marquês de Tamandaré, que sob seu contexto

nada mais é que uma nota de um cruzeiro desvalorizada. Solidário ao

Marquês, Zé qualquer promove o encontro e compartilha dor e samba

com o novo amigo, cujo destino ingrato ao seu se assemelha ou

vice-versa.

Convém acompanhar esse breve encontro, sob essa canção

que possui apenas um registro gravado na voz de Chico Buarque, em

seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som (1966), mas também

foi gravada pelo Quarteto em Cy em 1991, no disco Chico em Cy.

Esta gravação aparece bastante similar à interpretação original de

Chico, explorando com sutileza a interposição de vozes, do narrador

ao Zé qualquer. A canção costuma ser interpelada como uma crítica

ao poder militar, mas é substancialmente rica em valores contextuais

de perspectiva social, revelando uma relação com o tempo capaz de

absorver quaisquer destinos sob um contexto urbano.

Eis que “Zé qualquer tava sem samba, sem dinheiro/ Sem

Maria sequer/ Sem qualquer paradeiro/ Quando encontrou um

samba/ Inútil e derradeiro/ Numa inútil e derradeira/ Velha nota de um

cruzeiro”. Anuncia-se na vida de um homem simples, “perdido” sob

tantas desventuras, um encontro (a festa) que só o samba pode

trazer, mas essa interlocução se revela, na verdade, a consciência do

poder do tempo, que passa sobre vidas, sonhos e valores,

independentemente de status e posição social de cada indivíduo.

Inaugura-se um samba ligeiro, sob o qual Zé qualquer tenta expor ao

Marquês “de semblante meio contrariado” que, mesmo sabendo que

“antigamente era bem diferente”, agora pode dispor da liberdade de

lhe questionar de igual pra igual sobre suas glórias e nobreza: “Meu

marquês de papel/ Cadê teu troféu/ Cadê teu valor/ Meu caro

almirante/ o tempo inconstante roubou”.

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Priscila Gomes Correa

174 ISSN 1414-9109

O entrelaçamento de temporalidades envolve Zé qualquer, o

Marquês e a nota de um cruzeiro na mesma sina de desvalorização

irreversível: “Zé qualquer tá caducando/ Desvalorizando/Como o

tempo passa, passando/Virando fumaça, virando/Caindo em

desgraça, caindo/Sumindo, saindo da praça/Passando, sumindo/

Saindo da praça”.iii A repetição, reforçada pela aceleração rítmica,

como aquela que aflige Pedro Pedreiro (1966), também envolve

esses dois personagens, vítimas, quiçá, da lógica da mercadoria.

Lógica que citamos aqui não objetivamente como conceito filosófico,

mas como contexto sensível, quando a percepção do sujeito intui

sobre determinados objetos o lócus de problemas mais amplos, que

encontrará morada na relação com a modernidade.

Pode-se dizer que são as temporalidades tecidas pela

sociedade burguesa ao longo do século XIX e a consequente busca

pelo “tempo perdido”, como em Marcel Proust, que permanecem

presentes quando se está “assim debochando do tempo perdido” (Ela

desatinou), quando a história se perde no consumo das coisas, como

um “marquês de papel” (Tamandaré). Cabe notar que na obra

intitulada Em Busca do Tempo Perdido (1914-27), Marcel Proust

expôe um personagem que diante da angústia de uma temporalidade

irreversível, diante da fugacidade da própria vida, encontra na

memória um impulso criador capaz de superar a cisão entre o “eu”

(artista) e o “mundo” (sociedade burguesa), quando o personagem

consegue se “situar no único meio onde poderia viver, gozar a

essência das coisas, isto é, fora do tempo”,iv uma reminiscência

involuntária evocada pelos sentidos. Como observado por Walter

Benjamim, essa experiência, no entanto, pauta-se pelo

acontecimento lembrado e sem limites, pois o acontecimento vivido é

finito.v Em meados do século XX, o pensamento sobre a

modernidade, do qual Chico advém, encontrará a pulsão criadora

também na fugacidade, no vivido.

Aliás, os anos de 1960 caracterizam-se precisamente pelo

descortinar das mais diversas “visões de mundo” (Weltanschauung),

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Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 175

o despontar de percepções como a de Guy Debord, que

aprofundando a reflexão sobre as consequências extremas da

fetichização da mercadoria, identifica a “sociedade do espetáculo”,

com seu tempo irreversível, com seu “tempo das coisas”. Tempo em

que a “história que está presente em toda a profundeza da sociedade

tende a perder-se na superfície”.vi

Ora, é justamente a sensibilidade para esse contexto que

permite ao artista sobrepor à crítica conceitual a experiência. Decerto

a concepção buarquiana surge também como fruit de l´air du temps,

mas sobretudo como busca estética, como parte de sua trajetória,

formação e valores. Nesse sentido, cabe lembrar que a ideia de festa,

em todas as suas virtualidades, pode ser considerada uma expressão

por excelência de experiências transformadoras sob o cotidiano. O

encontro da festa como transformação, como ação positiva do sujeito,

tem sido uma das prerrogativas da música popular, que sendo

urbana e comercial está inevitavelmente inserida no espetacular,

exigindo do artista e do seu público o domínio dos meandros de

determinadas linguagens.

Na verdade, a festa da/na música popular se transfigura no

exercício de identidades, possibilitando um processo socialmente

criativo, embora substancialmente abstrato, pois prenhe de usos e

práticas sociais e estéticas. Nesse exercício está inscrita

naturalmente a interlocução com a tradição, seus temas, sonoridades

e modos de dizer. São gestos frente à cultura, atitudes e posturas

compartilhadas no âmago das mídias e do consumo, situações que o

compositor popular procura, não raro, reverter a seu favor.

Nesse sentido, outra canção bastante representativa desse

período de ajustamento estético/narrativo de Chico Buarque é Olê,

Olá (1965), pois a busca/espera pelo samba/música revela a

dicotomia entre festa e cotidiano, como felicidade e tristeza. Assim o

samba perde sua onipotência (“tem mais samba”), pois adquire tempo

e lugar. A idealização do samba salvador acompanha, porém, uma

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Priscila Gomes Correa

176 ISSN 1414-9109

construção de espaço popular propício, mas efêmero, para sua

realização. Eis que ao longo das quatro primeiras estrofes da canção

a dimensão negativa da cotidianidade fica em suspenso, pois ela

abafa, mas não suprime a possibilidade do êxtase provocado pela

música; resvalando em situações e conflitos que supostamente

compõem esse potencial espaço urbano para o samba.

Existe, por conseguinte, uma tensão constante anunciada

pelas sonoridades, enquanto a esperança predomina ao longo da

narrativa verbal, visto que a felicidade pode ficar, e até mesmo o

tempo poderia parar: “Felicidade aqui/ Pode passar e ouvir/ E se ela

for de samba/ Há de querer ficar (...). E um samba tão imenso/ Que

eu às vezes penso/ Que o próprio tempo/ Vai parar pra ouvir”.

Contudo, a diversificação sonora, a partir da segunda repetição

do refrão, já começa a instaurar a tensão diante de uma interrupção

iminente, “mas muito cuidado, não vale chorar”, sugerindo

interferências, ou seja, o anúncio de que a esperança pelo

samba/felicidade será minada.

Deve-se notar que esta instável esperança está associada à

possibilidade de transformação/festa em oposição à determinação da

cotidianidade. O instrumento para a concretização dessa esperança é

o violão, associado logo à percussão, mas dependente das

circunstâncias. Tal esperança é primeiramente abortada pelo

amanhecer: “Luar, espere um pouco/ Que é pro meu samba poder

chegar”. Em seguida, o espaço urbano e o tempo cotidiano

restringem o espaço/tempo do samba, uma tensão dialética e não

excludente: “Não há mais quem cante/ Nem há mais lugar/ O sol

chegou antes/ Do samba chegar/ Quem passa nem liga/ Já vai

trabalhar”.vii

Ora, “não há mais lugar”, pois não há mais tempo; o lugar

assume, assim, diferentes papéis: a rua ao sol é lugar de passagem,

agora sim de determinação.

Em suma, percebe-se que a narrativa está calcada na fala, no

coloquial, expressando as esperanças e possibilidades, ao passo que

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Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 177

as variações de timbre e diversificação sonora imputam-lhe uma

tensão a partir da aceleração do andamento da música e apesar da

batida do samba reanimada após cada refrão, ou seja, exploram-se

as temporalidades da própria música como recurso inibidor de sua

continuidade. Portanto, a tensão sonora induz o canto à pressa, signo

do novo tempo, por isso “seu padre toca o sino, que é pra todo

mundo saber”, e a figura do “padre” aparece como uma referência ao

contexto urbano, tradicional e popular da cidade pequena, no lado

oposto do caminho apressado de quem vai trabalhar. Na verdade, tal

açodamento do narrador advém da busca frustrada pela

desaceleração do tempo, até que nem mesmo o violão, o samba e o

clamor conseguem conter seu avançar, e no lugar (na rua, na cidade)

uma cotidianidade se instaura quando na última estrofe é anunciada o

fim de sua suspensão (“E você, minha amiga/ Já pode chorar”).

Percebe-se, logo, que a incorporação de instrumentos de

percussão em paralelo ao violão caracteriza a maioria das obras de

Chico do período; o tempo rítmico aparece fortemente marcado, com

ênfase na repetição, sobretudo nas canções referentes à temática do

cotidiano. Característica cuja construção composicional fica patente

nas interpretações realizadas por Chico no Depoimento para a

posteridade do MIS. Ali temos a rara oportunidade de presenciar a

performance solitária de Chico, só com o violão, o que permite a

percepção de propostas de interpretação para suas composições,

pois na ausência de outros instrumentos ele explora os silêncios,

reduz e acelera o andamento das melodias e, sobretudo, expõe

intuitivamente o seu projeto rítmico para a canção, justamente

trabalhando com as possibilidades percussivas do violão.

Contudo, não podemos deixar de observar que alguns

elementos formais da música de Chico remetem intuitiva e

propositalmente à estruturas musicais mais sedimentadas do samba.

Intuitiva porque apreendida na prática como músico, proposital

porque o compositor visa contribuir a partir e para a tradição do

samba. A canção mais expressiva neste sentido é Pedro Pedreiro

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Priscila Gomes Correa

178 ISSN 1414-9109

(do primeiro LP de Chico – 1966, mas que apareceu pela primeira vez

em um compacto com Olê, Olá em 1965), na qual, aliás, desponta o

tema do cotidiano suburbano que terá longevidade ao longo de sua

obra. Com seu ritmado “martelar”, suas sonoridades e narrativa

sugerem a ausência de novidades no dia-a-dia de um operário da

construção civil, que espera como um gesto mecânico e desgastado

pela repetição, mas que no mesmo gesto desenvolve a percepção de

que sua espera é muito maior e infinita. Assim, a canção expõe uma

representação acerca da vivência urbana de um trabalhador de baixa

renda e de origem migrante, que espera o trem, como a sorte de

melhorar de vida; e permanecendo errante, empurrado para longe,

espera voltar para sua terra de origem, de onde, outrora, também fora

expulso. Ou nem sequer isso, só espera a morte.

Ao avaliarmos o registro fonográfico de Pedro Pedreiro de

1966, também com arranjo de Francisco de Moraes, percebe-se um

samba com tempo fortemente marcado, enfatizando o efeito de

repetição percussiva logo na introdução, simulando uma situação de

ruídos comum ao canteiro de obras, um burburinho típico de centros

urbanos. Por um lado, a percussão preponderante é acompanhada

pela narrativa verbal calcada no recurso da aliteração (criando uma

ambiência repetitiva, neste caso, expressão da cotidianidade);.

É interessante notar que ao buscar o elemento popular, as

sonoridades do dia-a-dia, Chico Buarque apresenta-nos a

sensibilidade para aquela composição musical que estava sendo

executada no “palco do mundo”, assim expressando uma paisagem

sonora, como definiria Murray Schafer.viii

A crítica buarquiana incide,

portanto, sobre um problema social, daí a elaboração de uma

realidade pressuposta, uma cotidianidade urbana que tem o trem

como foco. Mas também sobre questões existenciais que afligem o

próprio compositor em sua “missão” como artista-intelectual, o

samba/festa aparece como grande elemento de transformação. Note-

se que a dicotomia básica que percorre a maioria de suas primeiras

canções é samba/cotidiano, ora como negativa ora como positiva, na

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Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 179

verdade uma profunda tensão. Em Tem mais samba, o cotidiano

ainda propicia a festa, mas em Olê, Olá e Pedro pedreiro, essa

relação se tensiona até que a cotidianidade não consegue se

reconciliar com a festa.

Por exemplo, em Com açúcar, com afeto (1965) Chico adota o

eu lírico feminino, mas sob uma ótica crítica, expondo a cotidianidade

de um casal que vive sob um conflito silencioso, mas reproduzido

graças à passividade da mulher, visto que esta se sente preterida por

um conjunto de hábitos de seu marido, mas, apesar da queixa, sua

rotina repetitiva é aceita passivamente. Aí reaparece o operário pobre

que vive a dicotomia samba/trabalho em seu dia-a-dia, sob o contexto

urbano: casa/bar/trabalho. Já em Fica (1965), apresentam-se um

conjunto de elementos de uma cotidianidade pressuposta, porém de

um ponto de vista negativo (ironia), pois adaptada a um modo de vida

em desajuste com o senso comum, mas sugerindo em oposição os

hábitos desejados. Predomina a “vista de baixo”, da margem, da

cidade pequena ou suburbana, em que alguns valores ainda norteiam

a conduta pública, o receio à desmoralização: “Fale do nosso

barraco/ Diga que é um buraco/ Que nem queiram ver/ Diga que o

meu samba é fraco/ E que eu não largo o taco/ Nem pra conversar

com você/ Mas fica”.ix

O fato é que do conjunto de seus personagens conseguimos

perceber a preocupação central com a temporalidade, vivida, suposta

e imposta pela cotidianidade. Neste sentido, Lorenzo Mammi fez uma

interessante observação: “toda a obra de Chico Buarque parece se

estruturar entre esses dois tempos, um circular e obsessivo, outro

cumulativo, que gera tensão crescente até um ápice que é ponto de

volta ou de repouso”.x Ora, Chico também se identificava com tais

angústias, citava paralelos com seus personagens, sua persona.

Como se pode perceber em artigo de 1965, publicado no Diário da

Noite:

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Priscila Gomes Correa

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Nem sei se vou ser músico. Sei que toco. E a canção é tudo. „Pedro

pedreiro‟ chegou esperando. [...] Eu também espero. Não sei o que,

mas espero. Talvez um trem. O sonho, ou o Carnaval. A festa, a sorte.

Ou, como Pedro, espero alguma coisa mais linda que o mundo, maior

do que o mar. Não vou sonhar demais. Dá um desespero sonhar

demais. Quero ser o Chico Buarque, nada mais, sem ficar esperando,

esperando, esperando...xi

Neste sentido, poderíamos citar uma série de exemplos presentes

em seus dois primeiros LPs. Por exemplo, A Televisão, em que à

reflexão sobre o cotidiano urbano é acoplada a crítica ao processo de

expansão da indústria da cultura e seu principal recurso naquele

momento, a televisão. As consequências do intenso processo de

industrialização e massificação surgem na canção de um ponto de

vista negativo, visto que estaria sobrepujando modos e vivências da

cultura popular. Não só substituindo a festa popular, como também

imobilizando o povo que humildemente abdica da confraternização

popular ao aceitar passivamente a informação televisiva.

Reproduzindo, assim, uma atitude de inércia não só frente a

cotidianidade, como também em relação a festa.

Em suma, a norma, a eficácia, a repetição, a disciplina e a

obrigação, eis um tal cotidiano, que prescinde do lazer, da festa, ou

que mesmo esta normatiza. A experiência do cotidiano passa a ser

frequentemente associada à rotina e à exploração do trabalho. A

opressão do cotidiano, que, na verdade, é uma opressão gerada por

uma estrutura social específica, é traduzida em cotidianidade,

aparecendo na espera do trem, nas filas, vilas, favelas. É nesse dia-

a-dia que aflora a sensibilidade para um tempo imposto, ou para um

tempo livre esvaziado de sentido, pois que orientado e vigiado. Um

cotidiano, ainda que equivocado, começa a se definir pela

sensibilidade, como tantos artistas cantam, pintam e escrevem, pois,

a arte, como as canções de Chico Buarque, já aponta a situação e,

dentro dela, a saída.

Page 180: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções de Chico Buarque

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 181

Esse desassossego que habita o fazer artístico, remete, portanto,

ao fato básico para um encontro com a festa, a consciência de que “a

vida cotidiana não está „fora da história‟, mas no centro do acontecer

histórico; é a verdadeira essência da substância social”.xii

De acordo

com Agnes Heller, o artista se converte, em suas fases produtivas,

em representante do gênero humano, aparecendo como protagonista

do processo histórico global, mas “toda obra significativa volta à

cotidianidade e seu efeito sobrevive na cotidianidade dos outros”.xiii

Por isso, não é difícil entender a relevância atribuída ao artista

popular, como arauto de tantas vivências.

Notas e referências

Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora

da Universidade do Estado da Bahia.

Contato: [email protected] i LEFEBVRE, Henry. A Vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo,

Ática, 1991. ii HOLLANDA, Chico Buarque. Chico Buarque de Hollanda Vol. 3. RGE,

CD, (2001), 1968. iii CY, Quarteto em. Quarteto em Cy: Chico em Cy. Cia Industrial de

Discos, CD, 1991. iv PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: O tempo redescoberto.

São Paulo, Editora Globo, 2004, p.152 v BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo,

Brasiliense, 1994, p.37 vi DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro,

Contraponto, 1997, p.99 vii

HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque de Hollanda. RGE, CD, (2001), 1966

viii SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo, Ed UNESP, 2001

ix HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque de Hollanda Vol. 2.

RGE, CD, (2001), 1967

Page 181: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Priscila Gomes Correa

182 ISSN 1414-9109

x In ZAPPA, Regina. Cancioneiro Chico Buarque. Rio de Janeiro, Jobim

Music, 3v, 2008, p.20 xi In ZAPPA, Regina. Cancioneiro Chico Buarque. Rio de Janeiro, Jobim

Music, 3v, 2008, p.65. xii

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo, Paz e Terra,

2008, p.34 xiii

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo, Paz e Terra, 2008, p.43.

Page 182: Baixar Revista Dia-Logos 2013

183

O Carnaval de Ouro Preto: mercado e

tradição (1980-2011)

Sarah Teixeira Soutto Mayor

Introdução

Este artigo é fruto da dissertação de mestrado intitulada “O carnaval

de Ouro Preto: mercado e tradição (1980-2011)”, que teve como

objetivo principal compreender as recentes transformações do

carnaval da cidade de Ouro Preto (MG), com especial atenção às

relações construídas entre mercado e tradiçãoi.

Acompanhando um processo que se desenrolou em grande

parte do país no final do século XX, a cidade de Ouro Preto

vislumbrou uma grande e rápida transformação do seu carnaval,

relacionada a um conjunto de fatores interligados e inseridos dentro

de um contexto de progressivo reconhecimento da festa carnavalesca

como um dos principais símbolos do país e, em contrapartida, do seu

valor no crescente mercado do lazer e do entretenimento.

O mais importante a ser constatado no processo de

transformação do carnaval ouro-pretano não é a presença das

iniciativas mercadológicas em si, fato bastante comum em várias

cidades do Brasil e que, provavelmente, tenha se iniciado em período

anterior, atendendo a especificidades e expectativas diferentes,

pautadas por momentos históricos distintos. O que, de fato, fez com

que a cidade se tornasse objeto desta pesquisa foi a relação

estabelecida entre as diversas investidas mercadológicas/midiáticas e

a ideia de tradição remetida à cidade e às suas manifestações, em

Page 183: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Sarah Teixeira Soutto Mayor

184 ISSN 1414-9109

especial, o carnaval. Nesse caso, a evocação a um passado remoto,

abarcada por esta ideia, foi amplamente valorizada e veiculada à

medida que as novidades, fundadas cada vez mais em um esquema

“global” de festa carnavalesca, emergiam, enquanto as próprias

manifestações tidas como tradicionais, declinavam frente aos novos

interesses e às novas necessidades.

Para pensar estas relações torna-se importante considerar o

valor que o signo da tradição possui em Ouro Preto. Cidade histórica

do interior de Minas Gerais, guarda importantes relações com o

período colonial mineiro e com os movimentos de independência do

país. Duarte (2009, p.9) ii considera a cidade de Ouro Preto uma “das

maiores riquezas da história brasileira e um dos mais importantes

acervos barrocos do mundo.”

Com sua raiz no ciclo do ouro, o maior reconhecimento da

importância da preservação de sua história veio com a elevação à

Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1980. Nesta cidade, onde

ruas e casarões ainda remetem ao século XVIII, o passado não é

apenas um motivo de preservação, é um símbolo, uma especificidade

que destaca Ouro Preto no cenário mundial e que se torna motivo de

orgulho aos seus moradores.

Esta forte relação com o passado contribui para que a ideia de

tradição seja amplamente valorizada e incorporada a tudo o que se

produz na cidade, incluindo o seu carnaval, uma de suas principais

manifestações festivas. Remonta ao período de predominância do

entrudoiii na capital mineira e em várias regiões do país. Silva (1969)

iv

relata tentativas de proibição deste festejo já nos anos de 1734 e

1735. Considerando que o surgimento da cidade remonta ao ano de

1698, tem-se uma noção da longevidade desta prática na cultura

ouro-pretana.

A noção de antiguidade das manifestações desempenhou,

assim, um forte papel nas investidas mercadológicas/midiáticas em

prol da promoção da festa ouro-pretana, demonstrado nas diversas

Page 184: Baixar Revista Dia-Logos 2013

O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 185

reportagens e demais recursos jornalísticos coletados e analisados

durante os trinta anos abarcados pela pesquisa.

O jornal foi escolhido como fonte principal pensando nas

incontáveis possibilidades que o estudo de suas produções, bem

como de seu contexto de veiculação e disseminação de informações,

poderia propiciar para o entendimento das transformações da festa.

Foram analisados o Estado de Minas e O Liberal. O primeiro foi

escolhido por ser considerado o jornal de maior representatividade no

cenário mineiro na temporalidade proposta pela pesquisa; já o

segundo, por se constituir como principal veículo de comunicação da

cidade de Ouro Preto em sua história recente. Ambos possuem

exemplares que abarcam, em conjunto, toda a temporalidade desse

estudo.

Quaisquer possibilidades de reportagens, de textos e de

informações diversas foram selecionadas, observando-se variadas

formas de apresentação e inserção nos jornais, como notícias,

crônicas, colunas de opinião, notas informativas, propagandas, entre

outros. Nos diferentes recursos jornalísticos, foram observados vários

fatores, como a sua disposição no conjunto do jornal e da página

onde se inseriam, a presença de fotos, as manchetes e o conteúdo

geral de cada material selecionado.

As décadas de 1980 e 1990: “carnaval, agora, mais do nunca, é

um ato público altamente válido para promover as cidades” v

No início da década de 1980 o carnaval ouro-pretano se caracterizou

como uma festa essencialmente de rua. Duas eram as suas principais

manifestações: o bloco Zé Pereira dos Lacaios e as escolas de

samba, reunindo moradores e turistas na principal praça da cidade, a

Tiradentes. Com pouca preocupação em relação à rigidez de um

tempo cronometrado e a uma programação pré-estabelecida,

desfilavam nas noites de carnaval.

Page 185: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Sarah Teixeira Soutto Mayor

186 ISSN 1414-9109

O bloco Zé Pereira remonta ao período de predomínio do

entrudo no Brasil e é considerado, nas diversas fontes consultadas,

como o mais antigo bloco em atividade no país. Criado em 1867,

ainda hoje conserva algumas de suas características originais, como

os bonecões gigantes, os lampadários e os tocadores de bumbo,

marcando, ao som da percussão, a sua passagem pelas ladeiras da

cidade. Já as escolas surgiram em Ouro Preto na década de 1950.

Embora com algumas similitudes com um modelo espetacularizado

que já se observava no Rio de Janeiro, como a necessidade de

eleição de uma vencedora e a premiação em dinheiro, as escolas

ouro-pretanas ainda se caracterizavam por certa espontaneidade no

início dos anos 1980, com a população acompanhando os desfiles

gratuitamente na Praça Tiradentes.

A festa ouro-pretana, neste momento, era pequena, contava

com pouca participação de turistas e possuía um caráter mais local.

O carnaval de Ouro Preto não vigorava entre as principais cidades

mineiras destacadas nos jornais e a frequência de reportagens, assim

como a ênfase na abordagem desta festa, era bem pouco expressiva

em relação a outros locais, como São João Del Rei e Juiz de Fora. A

cidade também não se destacava entre os destinos mais procurados

pelos turistas.

Porém, ainda no início da década, comerciantes locais

manifestaram o desejo de que a festa fosse deslocada da Praça

Tiradentes para as principais ruas comerciais da cidade, a Direita e a

São José, com a justificativa do “resgate” das manifestações que ali

aconteciam em outros carnavais. A São José foi mencionada como o

“antigo quartel-general dos foliões do século passado” vi. No entanto,

o saudosismo não pode ser desconectado de outros interesses. O

deslocamento da centralidade do carnaval para as ruas citadas

possibilitaria não apenas a vivência das manifestações naqueles

lugares, mas também, o deslocamento do público para as portas dos

comerciantes.

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O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 187

Concomitante às reivindicações, não atendidas plenamente, foi

criada em 1982, a “janela elétrica”, uma inovação no carnaval da

cidade que, até então, concentrava-se nos desfiles de blocos, nas

escolas e em bailes populares. A janela consistia na instalação de

caixas de som nas janelas e na sacada de um dos estabelecimentos

comerciais da Rua São José. Com uma clara menção aos trios

elétricos baianos, foi responsável em levar a Ouro Preto os grandes

sucessos do axé music de Salvador, contribuindo para tornar as ruas

comerciais, os novos redutos da folia ouro-pretana. Neste momento,

observava-se o início de uma mudança referente não apenas aos

espaços da festa, que se descentralizou, mas à suas manifestações,

aos investimentos públicos e privados e à sua divulgação pelos

impressos.

Em 1984 já era possível perceber a grande mudança de

enfoque no carnaval de Ouro Preto nas publicações do Estado de

Minas. De pequenas notícias do início da década de 1980 para

grandes manchetes e reportagens com expressivo número de fotos e

com conteúdo mais elaborado, em que já era perceptível o aumento

do número de turistas, o esgotamento de vagas na rede hoteleira, a

crescente preocupação com a organização e estruturação da festa e

a sua promoção. Nesse ano, algumas importantes iniciativas, ainda

não percebidas nos anos anteriores, foram bastante ressaltadas,

como a realização da abertura da festa em dos maiores hotéis da

cidade, a participação de empresas privadas como patrocinadoras ou

apoiadoras do carnaval, a divulgação do mesmo pela Prefeitura em

eventos específicos, bem como, o anúncio do expressivo aumento da

verba destinada à realização da festa:

Logo mais, no hotel Estrada Real, do empresário Carvalho, o coquetel

de abertura do carnaval deste ano, iniciativa do citado

empreendimento e da Prefeitura. Foram convidados empresários,

agentes de viagens, políticos, autoridades e jornalistas, pois é desejo

do hotel e da municipalidade dar nova dimensão ao carnaval, bem

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Sarah Teixeira Soutto Mayor

188 ISSN 1414-9109

como, outras promoções que a histórica e turística cidade comporta.

Taí uma deliberação digna de aplausos, pois, até então, nada

praticamente se fazia para ativar o sistema promocional da cidade,

ficando naquela de esperar ou confiando demasiadamente no seu

potencial. Hoje em dia existe concorrência, oferecimento e tudo mais

para se buscar os turistas, exigindo-se, portanto, projetos nesse

sentidovii

.

A combinação dos fatores citados pode ser considerada um

importante marco para pensar as transformações do carnaval ouro-

pretano, haja vista a constatação de certa regularidade na divulgação

da festa em anos anteriores, com o foco nas escolas e blocos e com

as vivências acontecendo especialmente, na Praça Tiradentes. Do

mesmo modo, nenhuma menção a patrocínios ou políticas de

divulgação da festa havia sido veiculada anteriormente.

As reivindicações dos comerciantes locais a favor do

deslocamento da festa contribuiu para retirada da centralidade das

escolas e dos blocos, principalmente o Zé Pereira. A criação da

janela elétrica reforçou este aspecto, contribuindo, também, para a

incorporação de uma nova forma de brincar o carnaval, levando a

Ouro Preto a moda da festa baiana em ascensão naquele momento.

Ficaram claras as intenções por trás do considerável aumento dos

investimentos públicos e privados na festa, com a veiculação explícita

da necessidade de se promover a festa.

As mudanças iniciadas nos anos 1980 chegaram com força

total na década seguinte. Os anos 1990 vislumbraram o auge da

janela elétrica, com a música baiana tornando-se uma marca do

carnaval ouro-pretano. Nesse momento, a festa já era veiculada

como a principal do estado mineiro e uma das mais importantes do

interior brasileiro. Os investimentos privados tornaram-se comuns,

com o aumento significativo do número de empresas, como

demonstrado na seguinte reportagem:

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O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 189

O carnaval 97 deverá ser promovido em Ouro Preto sob o patrocínio

de um pool de empresas (destacando-se Samarco, Alcan, Vale do Rio

Doce, Brahma e Sesc). Com a participação empresarial que garanta

os recursos, a alegria espontânea dos foliões poderá voltar a ser a

grande energia na propulsão de um grande carnaval com sabor local

[...]viii

.

No entanto, a principal mudança viria com a alteração das

possibilidades de participação na festa que, até meados da primeira

década dos anos 2000, acontecia de forma prioritariamente gratuita,

nas ruas da cidade, mesmo considerando uma participação já

mediada pelos interesses mercadológicos abordados anteriormente.

A criação do Espaço Folia: “tá se vendendo um carnaval que não

de Ouro Preto mais” ix

Em 2006, dado o grande crescimento da festa ouro-pretana e o

reconhecimento do seu valor de mercado aliado ao aumento da

veiculação midiática, foi criado o Espaço Folia. Com um misto das

influências da janela elétrica e do sucesso que o carnaval das

repúblicas estudantis alcançava nesta década, um espaço que servia

de estacionamento do Centro de Convenções da cidade foi fechado

para abrigar shows de bandas de renome nacional no período do

carnaval. Com a entrada paga e simbolizada pelo uso do abadá, o

Espaço Folia inaugurou um momento importante para a festa, ao

delimitar outras formas de participação e pertencimento ao carnaval.

Idealizado pela prefeitura, contou com o apoio dos moradores

das inúmeras repúblicas estudantis de Ouro Preto, que passaram a

realizar a concentração de seus blocos também neste espaço, no

mesmo esquema de utilização do abadá. Neste momento, o carnaval

produzido pelas repúblicas alcançava grande expressão na cidade. A

grande representatividade que já possuíam como um dos símbolos

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Sarah Teixeira Soutto Mayor

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de Ouro Preto aliou-se à supervalorização de estilos de festejar

relacionados a uma cultura jovem, a exemplo do sucesso das

músicas baianas possibilitadas pela janela elétrica e à própria

constatação do poder lucrativo que a festa ouro-pretana evidenciava

nas últimas décadas do século XX. Com um explícito apelo comercial,

as repúblicas passaram a vender a participação nos seus blocos que,

como às demais manifestações anteriores, também aconteciam nas

ruas da cidade com a participação gratuita dos foliões.

Assim, o Espaço Folia contribuiu para que o Ouro Preto se

consolidasse no circuito nacional de festas carnavalescas,

alcançando, nos anos finais desta pesquisa, enorme projeção

midiática. O carnaval possibilitado por este espaço em quase nada se

diferenciava dos grandes eventos da moda, destinados ao público

jovem, que se espalhavam pelo país, como o Axé Brasil, realizado

anualmente em Belo Horizonte. Desta forma, percebeu-se a

progressiva construção de uma festa com características globais,

criada por meio de signos consumíveis por um público cada vez mais

crescente.

Em meio a essas transformações, inúmeras foram as

campanhas promocionais dedicadas a tornar Ouro Preto um destino

turístico no carnaval. Porém, o que mais chamou a atenção foram os

estratégicos apelos de uma publicidade preocupada em, ano após

ano, consolidar a festa como uma das principais do Brasil,

ressaltando a sua especificidade. Por exemplo, no ano de 2002 foi

noticiada a inserção de Ouro Preto a uma proposta da Secretaria de

Estado de Turismo chamada Minas Folia, que tinha o objetivo de

“resgatar o autêntico carnaval mineiro” x. Em 2009, Ouro Preto

também passou a integrar o projeto “Carnaval das Cidades

Históricas”, do Governo de Minas, com o intuito de divulgar o evento

nas cidades de Ouro Preto, Mariana e São João Del Rey nos moldes

“tradicionais” xi.

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O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 191

Diante de tantos outros carnavais espalhados pelo país, algo

precisava tornar a significação global, impressa nas manifestações

festivas ouro-pretanas por meio dos grandes eventos, um pouco mais

específica para pontuar diferenciais daquela cidade, justificando,

assim, a sua divulgação como algo especial. Neste caso, a venda da

inovação, assim como a sua aceitação, precisava se aliar a símbolos

do passado, capazes de conferir uma ideia de originalidade e

autenticidade e, ao mesmo tempo, permitir a possibilidade de

participação em algo exclusivo, que só existe naquele lugar. A

tradição, assim, tornava-se também um produto diferenciado, o valor

simbólico de uma materialidade que era, na verdade, efêmera, criada

por meio dos símbolos de uma moda reciclável.

O reconhecimento de que o carnaval de Ouro Preto precisava

aliar as novidades ao passado histórico, fez com que a ideia de

tradição ocupasse um lugar de destaque na veiculação da festa,

mesmo quando totalmente desconectada dos objetivos e do formato

que o carnaval já adquiria nos anos 2000. Como exemplo, um

integrante de uma das escolas de samba da cidade, já bastante

enfraquecidas naquele momento, fez a seguinte denúncia no jornal O

Liberal, no ano de 2009:

tá se vendendo um carnaval que não é de Ouro Preto mais. O

carnaval de hoje é o da república e do abadá, sendo “em mais de 70%

badalação, abadá e barulho”. Quem chega de fora, não encontra

“esse carnaval tradicional que está sendo anunciado na mídia” xii

Segundo o entrevistado, apesar das iniciativas de promover o

carnaval tradicional por meio do projeto do Governo do Estado

voltado às cidades históricas, “o axé, funk, rock ou sertanejo

continuariam sendo os grandes destaques durante os cinco dias de

festa” xiii

.

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Sarah Teixeira Soutto Mayor

192 ISSN 1414-9109

Da mesma forma, o bloco Zé Pereira dos Lacaios, em meio aos

abadás, aos shows fechados, aos grandes sucessos do axé e do funk

que vigoravam naquele momento, foi amplamente veiculado como

legitima expressão do carnaval ouro-pretano. A divulgação de sua

existência centenária e de seu desfile pelas ruas da cidade, não raro,

remetia ao entrudo do século XIX e a outras formas de participação

popular, já quase inexistentes naquele momento.

Em 2011, o carnaval foi, assim, anunciado: “No ano em que

são comemorados os 300 anos da criação de Vila Rica, a folia em

Ouro Preto faz jus à memória e à tradição dos antigos carnavais” 1. A

imagem promocional da festa retratava os personagens do Zé Pereira

nas ruas, junto a outras manifestações da cultura ouro-pretana.

Nesse ano, a Praça Tiradentes foi decorada com os bonecos do

bloco centenário, porém em meio a um grande palanque e aos

mesmos estilos de shows do Espaço Folia, desconectados do que

acontecia naquele espaço na maior parte do tempo. O “real” carnaval,

indiscutivelmente lucrativo, era, na verdade, outro, mas presente na

mesma moldura barroca.

A grande menção ao Zé Pereira contrastava também com a

pouca importância dada a sua passagem nas ruas da cidade,

denunciada inúmeras vezes por ouro-pretanos que temiam o

encerramento: “Abadás para todos os bolsos e gostos. Mc‟s para lá.

„Bundinha‟ para cá. E a gente fica pensando até quando ainda existirá

o Zé Pereira [...]” xiv

.

A contínua menção ao passado servia, assim, para veicular

uma noção de legitimidade daquela festa, como se fosse possível

estabelecer uma relação de continuidade entre as vivências do século

XIX e as que se faziam presentes no final do século XX e início do

século XXI. Um fato importante a ser destacado é que a menção ao

passado quase nunca era datada, o que contribui para o

1 TUPINAMBÁS, Glória. Bandalheira nas ladeiras. Estado de Minas, Belo Horizonte, 06

mar. 2011. Especial, p.6.

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O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 193

estabelecimento desta noção de um passado remoto, romântico,

idealizado e, ao mesmo tempo, intocável.

A tradição, vinculada a uma ideia de antiguidade longínqua,

tornou-se assim, o principal produto vendido no carnaval ouro-

pretano, servindo aos mais diversos interesses. A realização desta

pesquisa evidenciou as ambiguidades de seu uso, pautadas na

distinção de uma festa que se pretendia veicular como única e

legítima, com base em suas especificidades históricas, e como

diferencial de um carnaval que precisava se destacar no cenário

nacional.

Como observam Hall; Tucker (2004) xv

, a criação de um destino

turístico envolve dar lugar ao desenvolvimento de uma representação

deste destino dentro de um contexto de consumo e de produção de

lugares, incorporados no sistema de capital global. Os autores

ajudam a pensar a importância da veiculação de discursos sobre o

passado histórico da cidade de Ouro Preto, ao afirmarem que as

representações criadas passam a ser vendidas mais do que qualquer

outro produto regional.

Considerações finais

As décadas estudadas (1980-2011) podem ser consideradas marcos

importantes para compreender as transformações da festa ouro-

pretana, haja vista a multiplicidade de fatores que, em um período tão

curto de tempo, visaram a sua transformação e a sua incorporação ao

cenário carnavalesco nacional. Por meio da pesquisa, pode-se inferir

que o sucesso alcançado por este processo foi facilitado, em grande

medida, pela incorporação da ideia de tradição às novidades que

emergiam, pautadas, sobremaneira, pelas iniciativas mercadológicas

que surgiram na década de 1980 e que se consolidaram nos anos

1990 e na primeira década dos anos 2000.

Page 193: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Sarah Teixeira Soutto Mayor

194 ISSN 1414-9109

Para Canclini (2008) xvi

, a referência à tradição pode ser um

esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora,

em relação à qual deveríamos atuar hoje, um referente histórico e um

recurso simbólico contemporâneo, que possa estabelecer, assim,

uma conexão com o passado. No caso da pesquisa, pôde-se

perceber a tradição como uma ideia fundada em uma produção

discursiva que, na sua aparente imutabilidade e por seu valor

conferido a um passado intangível, transformou-se para atender a

diversos interesses.

O trabalho demonstrou, assim, a necessidade de

desnaturalizar a ideia de tradição, compreendendo seu caráter

construído e teatralizado (CANCLINI, 2008) xvii

, apontando duas

funções principais: elo com o passado, já que diante das

transformações que visavam promover o carnaval e torná-lo um

atrativo turístico com signos globais, a recorrência à tradição conferia

legitimidade histórica; valor aos novos produtos criados, pois o novo

formato da festa precisava se diferenciar no mercado em que se

inseriu, servindo a ideia de tradição como uma qualidade, um símbolo

de status.

Pode-se concluir que a ideia de tradição foi essencial para as

mudanças percebidas no carnaval da cidade, justamente (e,

paradoxalmente) pela imutabilidade conferida ao passado e por certo

consenso de que tradição não se discute.

Notas e referências

Mestre em Lazer pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista CAPES, orientada pelo

Professor Doutor Victor Andrade de Melo.

Contato: [email protected] i Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Victor Andrade de Melo (UFMG/UFRJ)

e financiado pela CAPES (2010-2012).

Page 194: Baixar Revista Dia-Logos 2013

O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011)

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 195

ii DUARTE, Antônia Reis. Desenvolvimento do turismo cultural da cidade

histórica de Ouro Preto (Minas Gerais – Brasil), Patrimônio da

Humanidade. 2010. Tese (Doutorado em Geografia). Universidad de Las

Palmas de Gran Canaria . Las Palmas de Gran Canaria. iii Segundo Araújo (2008), o entrudo pode ser considerado a primeira

manifestação carnavalesca no Brasil. O seu significado seria “entrada” e

uma hipótese de sua criação é que estaria ligado a festejos portugueses

como forma de comemoração do início da primavera, antes do

Cristianismo. Com o tempo, foi incorporado ao calendário cristão,

atendendo aos próprios interesses da igreja, e recebeu uma data fixa,

passando a designar os dias de despedida da carne e o início do

período quaresmal. Uma das brincadeiras comuns, nesse momento,

consistia em jogar água e farinha nas pessoas que passavam nas ruas,

incrementada no século XIX pelos limões de cheiro. O entrudo,

considerado por muitos o precursor do que chamamos hoje de carnaval,

era, na verdade, uma manifestação diferente, embora com princípios

comuns pautados pela característica do “carnavalesco”, descrita por

Bakhtin (2008, p.9) como uma paródia da vida ordinária e uma “lógica

original das coisas ao avesso”. Ambas as manifestações, assim,

coincidiram no tempo, passaram a ser comemoradas em um mesmo

período do ano e se misturaram em alguns momentos históricos com

interesses diversos. iv SILVA, Henrique Barbosa da. Ouro Prêto. Belo Horizonte, 1969.

v NETO, Nicolau. Sociedade do interior. Estado de Minas. Estado de

Minas, Belo Horizonte, 08 mar. 1981. 15.340, Primeiro caderno, 1981. vi OSWALDO, Ângelo. Estado de Minas, Belo Horizonte. Carnaval em

Ouro Preto. 15.327, Caderno Turismo, p.1 vii

NETO, Nicolau. Sociedade do interior: Ouro Preto. Estado de Minas,

Belo Horizonte, 18 fev. 1984. 16.141, Primeiro caderno, p.12. viii

TRÁFEGO em Ouro Preto durante o carnaval. O Liberal, Ouro Preto, 27

jan. a 02 fev. 1997. 284, p.8. ix CARNAVAL 2009 de Ouro Preto „será embalado pelo axé e funk‟. O

Liberal, Ouro Preto, 16 fev. a 22 fev. 2009. p.11.

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Sarah Teixeira Soutto Mayor

196 ISSN 1414-9109

x MINAS folia. Estado de Minas, Belo Horizonte, 20 jan. 2002. Caderno

Gerais, p.24. xi SECRETARIA de Cultura e Turismo de Ouro Preto faz balanço positivo

do carnaval 2009. O Liberal, Ouro Preto, 02 mar. a 08 mar. 2009, p.7. xii

CARNAVAL 2009 de Ouro Preto „será embalado pelo axé e funk‟. O

Liberal, Ouro Preto, 16 fev. a 22 fev. 2009. p.11. xiii

Idem. xiv

MEDEIROS, Neto. Geléia Real. O Liberal, Ouro Preto, 02 mar. a 08 mar.

2009. p. 9. xv

HALL, Michael, TUCKER, Hazel. Tourism and postcolonialism: an

introduction. In: _______ (orgs). Tourism and postcolonialism: contested

discourses, identities and representations. Nova Iorque: Routledge,

2004. xvi

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e

sair da modernidade. 4 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 2008. xvii

Idem.

Page 196: Baixar Revista Dia-Logos 2013

197

O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a

construção da memória de Eusébio de Queirós

Welinton Serafim da Silva

Membro do IHGB, e celebre estadista do Império, Eusébio de Queirós

faleceu no Rio de Janeiro em 1868. E, conforme previa os estatutos

da instituição encarregada de tecer a teia da história nacional, à

memória do finado conselheiro foi oferecido um elogio fúnebre,

declamado pelo orador oficial, à época, o romancista Joaquim Manoel

de Macedo. De sua transcrição, na revista do instituto, é possível

extrair uma singular representação acerca de Eusébio de Queirós; um

relato dos anos que antecederam a sua morte, pouco difundida e em

muito dissonante da memória construída ainda no século XIX:

Os habitantes desta capital viam as vezes um homem que

vagaroso passava apoiado em braço amigo; não era velho, e

seus passos dúbios se arrastavam, seus olhos tinham perdido

o brilho antigo, em seu rosto estampavam-se dor e a paciência,

em seus lábios triste sorriso, sorriso irmão de lagrimas alguém

acaso perguntava: “Quem é?...” Todos respondiam

compungidos: Euzebio em ruínas. i

No necrológio, o orador acrescenta à imagem paradigmática

construída acerca de Eusébio de Queirós, a figura de um homem

desprovido de suas capacidades, condenado às dores de uma

enfermidade que havia lhe paralisado o corpo, e o destituído do

sentido imputado a sua vida: a de servidor dos interesses da nação.

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Welinton Serafim da Silva

198 ISSN 1414-9109

Em Macedo, a narrativa dos últimos anos do “ilustre cidadão” se

contrapõe a enumeração dos feitos pródigos de um hábil e estimado

magistrado, político e gestor, que obtivera na tribuna parlamentar

memoráveis triunfos em virtude de uma oratória privilegiada.

A passagem reproduzida acima, obscurecida pelo tempo, é

bastante sugestiva quanto às vicissitudes e pluralidades do processo

de construção identitária no âmbito do discurso biográfico. Neste

sentido, acreditamos que a busca pelos contornos pelos quais

Eusébio de Queirós foi representado em vida, e na morte, pode

permitir a compreensão das concepções ideológicas e dos modos

políticos empregados no Brasil no século XIX, como também das

características normativas dos relatos biográficos oitocentistas. Para

esses propósitos, comecemos nossa abordagem pelo fim,

comecemos pelas ruínas: “Mal terrível cahira como um raio sobre o

ilustre varão: profunda enfermidade que punha ruína a sua

organização manifestou-se ainda mais cruel na paralysia mais ou

menos completa da língua.”ii

A queda de Eusébio de Queirós, exprimidas nas últimas

páginas do necrológio, é marcada, sobretudo, pela perda da principal

faculdade atribuída a sua figura, a fala. Segundo Macedo, Eusébio

fora: “orador doutrinário, de palavra fácil e amena, de dialectica

cerrada, moderada ainda nas mais fervorosas discussões, sempre

cortez na forma, sempre vigoroso na matéria possuindo condão

apreciável”iii. De maneira geral, podemos afirmar que o necrológio

suscita uma interpretação marcada pela não correspondência entre

memórias sobre um mesmo sujeito; ele marca uma contraposição

que engendra a existência de dois Eusébio de Queirós: um, ativo,

projetado pela palavra; o outro, passivo, recolhido pelo silêncio

imposto pela sua doença. Essa disjunção parece ser um importante

recurso retórico.

A realização de uma dicotomia entre o “ilustre varão”, atuante

até 1863, e a desolada figura descrita para o período compreendido

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O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de

Eusébio de Queirós

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 199

entre 1863-1868, aparece como artifício para resgatar e fixar uma

imagem que a memória, então recente, negava; em seus últimos

anos, o político teria sido apenas uma sombra pálida daquilo que fora

um dia; a viva lembrança não fazia justiça à memória que deveria ser

legada à posteridade. O necrológio estabelece essa distância, daí a

importância da dúvida, enunciada pela sentença: “Quem é?”. Essa

perda da notabilidade, pela indeterminação da identidade, e

posteriormente pela construção de uma nova –“Eusébio em ruínas” –

tem como finalidade destacar o oposto: o Eusébio monumento, cujo

fomento podemos perceber no esboço biográfico publicado na

Galeria dos Brasileiros Ilustres de Sébastien Sisson.

Síntese da produção de uma multiplicidade de autores, a

Galeria de Sisson teria o intuito de constituir um panteão nacional,

tendo como elemento de uniformidade a premissa da representação

do homem público em seu perfil virtuoso, coadunando

representações litográficas e biográficas em nome do soerguimento

dos ideais defendidos pelo governo imperial brasileiro.iv

As proposições presentes na introduçãov da obra já explicitam

as escolhas dos objetos e os graus de entonação que pesariam sobre

o conjunto descritivo. Os biografados seriam os estadistas,

diplomatas, sábios, poetas e artistas que tivessem relação com o

ideal civilizatório e com a marcha para o progresso. Esses

personagens mereceriam os louros da glória porque, embora a

história apontasse o caminho da civilização, o percurso até ela não

seria uma certeza; a posição de destaque no rumo dos

acontecimentos políticos – responsabilidade que estava depositada

sobre seus ombros –, poderia levar a gloria, mas também culminar na

decadência de uma nação. Por isso sua ação triunfante exigia a

gratidão nacional, então, convertida em monumento de papel pela

Galeria dos Brasileiros Ilustres.

O estabelecimento do marco inicial na independência do Brasil,

segundo consta na introdução, tinha como causa dois fatores:

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Welinton Serafim da Silva

200 ISSN 1414-9109

primeiro, a dificuldade em estabelecer uma obra que abarcasse do

descobrimento à época da produção, “dilatando-se pelo espaço

imenso de mais de três séculos”; o segundo aspecto é igualmente

importante: a Galeria dos Brasileiros Ilustres não é uma produção

meramente biográfica, e como litografia, ela acrescenta à descrição,

as gravuras dos “ilustres varões”, a fim de transmitir-lhes vivacidade,

recurso que muitos dos finados do Brasil colonial não poderiam

fornecer.

Quanto aos intuitos da Galeria, sua finalidade pedagógica era

clara: legar a posteridade o caráter exemplar daquelas vidas, tanto

daqueles que já haviam se tornado sombras ilustres a serem

seguidas, como daqueles que ainda vivos, fossem capazes de

aconselhar os jovens sobre os caminhos e descaminhos do

progresso, da civilização, e da ordem monárquica.

A narrativa biográfica dos “ilustres” vivos teria duas importantes

limitações: o olhar ao “lar doméstico” – ao “proceder particular” –, pois

“não pertence ao escritor a vida íntima do cidadão somente à tradição

cabe revelar esses detalhes para completar o caráter dos homens

celebres”vi; e o juízo contemporâneo, pois só a posteridade caberia

conceder a justa fama. A missão da Galeria dos Brasileiros Ilustres,

nesse sentido, seria apenas a de fixar os traços públicos dos heróis

para as futuras gerações, fomentando uma identidade do biografado

alinhado aos interesses da nação.

A reprodutibilidade e longevidade da narrativa produzida na

obra acerca de Eusébio de Queirósvii

são, de fato, marcantes.

Nenhum ensaio biográfico anterior é mais conhecido, e nem foi tão

repetido. Publicado em 1859, ano em que Eusébio completou 47

anos de vida, e 27 anos de carreira no serviço público, o ensaio

biográfico fixa a contemporaneidade do estadista a partir da sua

gestão no ministério da Justiça (1848-1852) e prossegue com o

exercício da “vida parlamentar”, sendo esta possivelmente posterior

ao ministério, posto que os fatos desenvolvidos em seu exercício

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O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de

Eusébio de Queirós

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 201

seriam “muito recentes e públicos”, sendo então relegados na

rememoração. A organização, e exposição, dos acontecimentos

distantes e de domínio de poucos sugere a orientação a nortear a

construção do monumento: uma biografia que procura esboçar ao

menos quarenta anos de vida, dedica metade de suas linhas ao cargo

de chefe de polícia (1833-1844).

O cânone estabelecido por Sisson consiste em uma narrativa

que abrange da carreira do pai à sua atuação no senado. Para um

melhor entendimento, é interessante discorrer rapidamente sobre

seus pontos principais. Em síntese: o estadista nascera no exterior

em virtude dos serviços do pai, sendo o terceiro em ordem, e o

primeiro, dentre cinco filhos, a resistir aos “efeitos deletérios da

África”. Em sua formação educacional, uma laureada trajetória:

estudo das primeiras letras aos seis anos; latim aos dez, sob a tutela

do padre Francisco do Rego Barros; filosofia racional e moral, grego e

retórica no Seminário de São José, entre quatorze e quinze anos,

agora orientado pelos padres mestres Fr. Peres e Fr. Custodio Faria;

o título de bacharel viria da recém inaugurada faculdade de Direito de

Olinda, chegando Eusébio à instituição acompanhado do

desembargador Lourenço José Ribeiro.

É possivel apontar a preocupação em demonstrar que a sua

trajetória se deu em um meio de indivíduos também virtuosos. No

seminário, o reconhecimento viria pelo professor Fr. Custódio de

Faria e por seus pares, que teriam proclamado que a ele os prêmios

eram merecidos. Na faculdade de Direito o mesmo teria se repetido:

Tinha acabado de fazer 15 anos, teve por condiscípulos homens

feitos e alguns dos que mais se têm distinguido. Entretanto coube-

lhe a honra de ser premiado com o atual bispo do Rio de Janeiro, o Sr.

Conde de Irajá, que já era sacerdote e lente de teologia moral no

seminário de Olinda. Foi premiado ou proposto a prêmio em todos os

quatro anos desse curso em que houvera prêmios.viii

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202 ISSN 1414-9109

Grande entre os grandes, Eusébio teria todas as virtudes para

despontar no cenário nacional e receber sobre os ombros

responsabilidades que a juventude convencionalmente negava, daí a

exclamação: “foi nomeado juiz do crime do bairro do Sacramento

nesta corte, lugar que começou a servir como juiz de fora no dia 24

de novembro de 1832. Ia fazer 20 anos em 27 de dezembro!”ix (grifo

meu). Em Sisson, Queirós é um jovem prodígio, e herdeiro de uma

tradição de distanciamento das questões políticas, o que teria lhe

imposto amplos desafios em uma “época melindrosa”.

As páginas dedicadas a polícia da Corte, são, talvez, as de

maior apropriação na historiografia sobre Eusébio de Queirós.x O seu

grau de responsabilidade sobre as feições que a polícia teria

adquirido é um dos paradigmas da historiografia sobre o período;

nesta perspectiva, a Eusébio teria cabido a função de conformar as

especificidades do cargo de chefe de polícia, ampliando suas

atribuições e superando as deficiências do Código Criminal (1830),

marcada por uma conduta eficiente em seus propósitos, e prestigiada

no círculo político. Na descrição de sua atuação frente à instiuição,

podemos ver a preocupação em classificá-lo como um sujeito idôneo.

Entre a rápida narrativa de sua ação em diversos outros

cargos, e uma detida reflexão de sua gestão à frente da polícia da

Corte, o grau de sua inserção com os assuntos políticos é utilizada

para balizar as suas ações. Para retirar a nódoa de sua trajetória -

uma suposta negligência diante dos distúrbios da Sociedade Militar

de 1833, considerada de motivação partidária -, a sua “nulidade em

política” o isentava de responsabilidade; já posteriormente, quando

partícipe do jogo político, o elogio dos contrários seria a prova de sua

retidão nos negócios do Estado.xi

Os termos em que se apresenta o esboço biográfico de

Eusébio de Queirós na Galeria dos Brasileiros Ilustres, e a sua

prevalescência como discurso oficial sobre a vida do estadista, enseja

uma série de comparações com o necrológio dedicado à sua

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O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de

Eusébio de Queirós

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 203

memória, onde a disjunção entre as imagens ativas e passivas do

biografado são marcantes, como já salientado. E, embora

ambicionassem legar lições de vida ao futuro da nação, enquanto

genêro discursivo, o elogio fúnebre guarda consideráveis diferenças

em relação à biografia.

Discutindo os termos da oração fúnebre ateniense, Nicole

Lorauxxii

demonstrou a necessidade de se perceber como o elogio

fúnebre é pautado em uma específica relação entre o tempo vivido e

a temporalidade da comemoração (cerimônia); a peculariedade da

solenidade que insere o tempo presente em uma tradição. Neste

sentido, em termos de forma, na oração fúnebre a narrativa é

atravessada por uma dupla relação temporal, a do orador, circunscrito

à contemporaneidade, e a de um tropos discursivo, de profundidade

histórica.

A tradição, que respaldava os discursos fúnebres constituídos

no interior do IHGB, não apenas transmitia a forma, como também

delimitava seu conteúdo. Os pontos que diferenciavam o gênero

epidítico em questão, da biografia, foi talhada pelo próprio Joaquim

Manoel de Macedo em um discurso de 1863:

O elogio acadêmico de um finado não pode ser uma biografia escrita

com toda severidade dos preceitos da história, porque nesta deve

somente falar a justiça e naquela podem desafogar-se a estima e a

saudade; em uma a imparcialidade setencia, na outra a gratidão paga

tributo.xiii

Se ambos os gêneros primavam pela perpetuação de uma

memória pautada nos serviços prestados à nação, no necrológio

abria-se espaços para os afetos; e eles estiveram presentes na

oração fúnebre prestada a Eusébio de Queirós:

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Welinton Serafim da Silva

204 ISSN 1414-9109

Julgue de seus acertos ou de seus erros a posteridade; pela nossa

parte somos duas vezes suspeito: havia vinte anos que eramos seus

adversários políticos, havia dezoito annos que eramos seu

estimado amigo. O adversário não pode julgá-lo: o amigo se

lembrará d’elle sempre com saudade.xiv

Percebem-se, então, propósitos distintos entre biografar um

indivíduo, e lhe prestar um elogio fúnebre nas concepções dos

membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em “O Culto

aos mortos no século XIX: os necrológios”,xv

Nanci Leonzo aborda

estes aspectos, e indica como premente: “a preocupação com

reabilitação da memória do falecido”, que teria como diretrizes, a

ilustração do caráter e a refutação das supostas acusações.

No caso de Eusébio de Queirós, Macedo volta ao episódio de

1833 na tentativa de remover qualquer mácula de sua trajetória. O

orador ressalta a honradez da palavra de Queirós, e a persistência da

calúnia, sugerindo um método interessante para evitar problemas

semelhantes: não ser apenas ator, mas também autor, e um autor de

si, resguardando a própria memória com a prática da escrita.

Joaquim Manoel de Macedo acreditava na função de juiz

exercido pela posteridade, mas suspeitava de suas fontes de

informação. Se suas vidas eram páginas constantemente assimiladas

pelo livro da história da nação, convinha ao “ilustre” oferecer uma

versão da sua trajetória à historiografia, como uma garantia diante da

certeza da finitude da vida: “podeis advogar a própria causa diante

dos futuros historiadores; escrevei e deixai memórias: ellas

aproveitarão à pátria e a nos mesmos.”xvi

A posteridade aparece,

então, na perspectiva do século XIX, como um ente responsável pelo

parecer justo e desapegado sobre um indivíduo, afastado das

turbulências políticas caras à contemporaneidade do biografado.

Em “Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade”,xvii

temos

uma análise aprofundada das interdições da posteridade à emissão

de um parecer justo a uma trajetória de vida. A partir de uma

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O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de

Eusébio de Queirós

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 205

pesquisa da seção “Biografias de Brasileiros Distintos por Letras,

Armas, virtudes, etc.”, da Revista do IHGB, Maria da Glória de

Oliveira buscou entender como o gênero biográfico se articulava ao

projeto político da instituição. A autora problematizou a questão de o

ímpeto memorialista das produções biográficas serem respaldados

por específicos estatutos de verdade e de imparcialidade,

relacionados à passagem do tempo, conforme a concepção do século

XIX.

Utilizando o escopo teórico de Reinhart Koselleck,xviii

Maria da

Glória de Oliveira asseverou que a escrita da história oitocentista

seria perpassada pela mudança de entendimento sobre o significado

da história, saindo dos relatos particulares para uma perspectiva de

representação de um tempo coletivo singular, dotado de um sentido

progressivo. Entrementes, a autora sugere que no Brasil, a alteração

não teria correspondido a dissolução do tropos da História Magistra

Vitae, e que, antes, teria engendrado uma concepção em que a ideia

de uma ordenação da história em direção ao futuro – uma aceleração

à civilização – se daria pautada na exemplaridade do passado.xix

O fazer biográfico, portanto, seria perpassado pelo respaldo na

exemplaridade legada pelo passado. É neste contexto que se

alinhariam as biografias dos sujeitos considerados ilustres, tomadas

como metonímias da biografia da nação; mas a referência ao

passado não se daria no sentido de uma repetição, tal qual supunha

a História Magistra Vitae, e sim como uma orientação ao exercício e a

adoção de práticas e posturas “virtuosas”:

É o passado que assim se torna mestre do futuro. São as sombras

venerandas de alguns mortos que parecem surgir incessantemente do

abismo das sepulturas para mostrar aos vivos a estrada do dever, do

patriotismo e da honra, como as nuvens de fumo e de fogo, que dia e

noite dirigiram o povo escolhido de sua retirada do Egito.xx

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Welinton Serafim da Silva

206 ISSN 1414-9109

Eusébio de Queirós fora mais ator que autor, e embora conste

como relator de leis significativas, não deixou nenhum testemunho

vigoroso de si. Restara à sua memória o testemunho de seus

contemporaneos sobre seus atos e o julgamento da posteridade. Dos

dois relatos aqui analisados percebemos uma interessante interação:

o necrológio apontava os sucessos e diminuia sua responsabilidade

nos erros, consolidando o canône estabelecido pela Galeria dos

Brasileiros Ilustres, e adicionando interessantes metáforas.

O que se verifica na homenagem prestada por Joaquim Manoel

de Macedo, é que a trajetória heróica do finado não apenas se

vincula à história da nação, como estabelece também uma

correspodência com outros casos modelares de sagacidade, justiça e

coragem. Assim, a junventude que suportara o peso da

responsabilidade da magistratura, seria a mesma de Metternick, Louis

II de Bourbon-Condé, e do inglês William Pitt, quando estes

experimentaram suas maiores conquistas. xxi

A perícia na condução da polícia da Corte também suscitava

espanto em Macedo: “Euzebio de Queiroz parecia ter dois privilégios:

o de não dormir e o de adivinhar: o crime ou era prevenido, ou de

prompto seguido e apanhado nos reconditos da mais profunda

obscuridade.”xxii

Segundo o romancista, a sagacidade de Queirós era

equiparável a de Joseph Fouché, considerado por muitos como o

principal fomentador do moderno “Estado policial”, constituído em sua

experiência de anos à frente da policia francesa durante e após a

Revolução iniciada em 1789.

Medida à luz de sua utilidade aos propósitos da nação, a

trajetória do Eusébio-monumento se encerra no momento em que,

devido a doença, necessita se afastar da vida pública. Neste ponto

inicia-se uma vida desprovida de sentido: Eusébio de Queirós é

relegado “aos martyrios de um longo viver moribundo”xxiii

. Em relação

a designação de um sentido para a vida, parâmetro mediante a qual é

traçado um curso para a trajetória pessoal, é interessante

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O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de

Eusébio de Queirós

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 207

percebemos as ponderações de Norbert Elias, pois o autor modifica a

maneira como habitualmente compreendemos a concepção de

indivíduo, e nos ajuda a enteder a maneira como o formato dos

panegíricos e necrologios são importantes para compreendermos as

idéias de nação e cidadão no século XIX. Elias asservera que aquilo

que chamamos de sentido: “é uma categoria social, [...] o sujeito que

lhe corresponde é uma pluralidade de pessoas interconectadas.”xxiv

Ao explicitar o caráter social da atribuição de sentido para a

vida, Elias tem a intenção de denunciar uma cisão fictícia entre o “self

íntimo” e o “mundo externo” em relação a apreensão da experiência

de si, e a construção de uma individualidade completamente

independente, autocentrada, isolada de uma coletividade; de um “eu

enclausurado.”xxv

Quando Nobert Elias recoloca o indivíduo em uma

coletividade, subordina a essa comunidade a imputação dos sentidos

para a vivência, e também torna explícito que esses sentidos são

conjugados no interior de um universo comum de signos e

simbologias; então, o sentido de vida é sempre constituído por

significados partilhados por um grupo específico.

Para a nossa análise essa perspectiva é esclarecedora. Antes

de tudo, biografia, necrológio, e outros relatos de trajetória vivênciais,

tem como premissa uma articulação concatenada de significados à

experiência; tem como fundamento a atribuição de uma ordem ou

sentido para vida. Esse postulado também está presente nas

elaborações biográficas oitocentistas, e no Brasil podemos afirmar

que se coaduanava com um ideário que respaldava a formação de

uma comunidade nacional. Dentro desta concepção, Temístocle

Cezar ressaltou a congruência entre a escrita da história do Brasil e a

composição de biografias na organização de “um tempo da nação”.xxvi

Podemos inferir que a elaboração de relatos biográficos de

brasileiros ilustres no século XIX, com as suas finalidades

pedagógicas e portadora de um ideal de nação, dedicadas aos

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Welinton Serafim da Silva

208 ISSN 1414-9109

futuros gestores, procuravam manter e alargar as fronteiras de

significação de uma comunidade em construção; e que tinham o

intuito de demonstrar a maneira de como se deveria dedicar a vida

para o engradecimento Estado-nacional.

Então, a produção de sentido da vida de Eusébio de Queirós

nas formulações biográficas aqui analisadas operou pautada em

valores cultuados pela comunidade política em que ele se inseriu, e

pelas condições normativas que os gêneros discursivos em questão

impunham. Já foi salientado nesta digressão, as diferenças nas

formas de representação entre o ensaio biográfico (e litográfico) e o

elogio fúnebre quanto aos seus objetivos e limitações. Ocorre que

essas delimitações significaram também permissões e interdições

ditadas - para além dos elementos derivados de projetos políticos e

ideologias – por aspectos formais de tradições discursivas.

Com esta colocação procuro inserir a análise em uma

abordagem similar à empreendida em “O Espaço biográfico” por

Leonor Arfuch. Nesta obra, a autora expõe a ideia de se circunscrever

os aspectos narrativos da biografia em uma dupla dimensão: a

intertextual, e a interdiscursiva, o que, em síntese, traz como

consequência, a concepção do biográfico como um procedimento

tanto retórico (modelar), quanto interativo (varia em função dos

discursos envolvidos), e, portanto, como um artefato inseparável das

contingências históricas. Subjazeria desta relação de fatores, a

constituição de um “valor biográfico” expresso pelo correlacionamento

entre uma ordem narrativa e uma orientação ética, ou seja, o valor

corresponderia a uma apreciação histórica e social.xxvii

Assim, podemos considerar que o Necrológio concebido por

Joaquim Manoel de Macedo e a “Galeria dos Brasileiros Ilustres” de

Sisson, foram perpassadas por elementos que delinearam seu

conteúdo e definiram a sua forma edificando uma imagem de Eusébio

de Queirós segundo critérios de uma época e configuração social

específica. Outros elementos, e distintos grupos e lugares sociais,

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O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de

Eusébio de Queirós

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 209

propiciariam discursos embasados em outras concepções, em outros

valores. Como exemplo temos o caso do próprio Eusébio de Queirós

e a ressignifação e profundidade que as leis de limitação e abolição

da escravidão trouxeram para sua memória.xxviii

Notas e referências

Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista CAPES,

orientado pela Professora Doutora Márcia de Almeida Gonçalves.

Contato: [email protected] i. Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868.

R.I.H.G.B., Rio de Janeiro, Tomo XXXI, 1868. p. 429-435. ii. Ibid. p. 435.

iii. Ibid. p. 434.

iv. CEZAR, Temístocles. “Livros de Plutarco: biografia e escrita da historia

no Brasil do século XIX”. Métis: Historia & Cultura, Caxias do Sul – RS,

2003, v.2, n.3, p. 85; MARTINS JUNIOR, Leandro Augusto. Galeria de

Ilustres: Escrita Biográfica e Formação da Nação no Império do Brasil

(1840-1860). 2011. In: http://www.snh2011.anpuh.org/ v. SISSON, Sébastien A. Galeria dos Brasileiros Ilustres. Brasília: Senado

Federal, Vol I, 1999. p. 13-16. vi. Ibid. p. 15.

vii. Ibid. p. 27-31

viii. Ibid. p. 28. Grifo nosso.

ix. Idem.

x. Um estudo clássico que reproduz esse discurso é HOLLOWAY,

Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade

do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. xi. Ibid. p. 31.

Page 209: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Welinton Serafim da Silva

210 ISSN 1414-9109

xii

. LORAUX, Nicole. Invenção de Atenas. São Paulo: Editora 34, 1994.

(Coleção Trans) xiii

. Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1863.

R.I.H.G.B., Rio de Janeiro, tomo XXVI, 1963. apud LEONZO, Nanci. “O

culto aos mortos no século XIX: os necrológios”. In: MARTINS, José de

Souza (org.). A morte e os mortos na sociedade na sociedade brasileira.

São Paulo: Hucitec, 1983. p. 78. xiv

. Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op.

Cit. p. 435. Grifo nosso. xv

. LEONZO, Nanci. Op. Cit. p. 76-84. xvi

. Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op.

Cit. p. 433 xvii

. OLIVEIRA, Maria da Glória de. “Brasileiros ilustres no tribunal da

posteridade biografia, memória e experiência da história no Brasil

oitocentista”. Varia Historia, Belo Horizonte, 2010, v. 26, nº 43, p.283-

298. xviii

. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica

dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida

Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. xix

. OLIVEIRA, Maria da Glória de. Op. Cit. p. 289. xx

. Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1861.

R.I.H.G.B. Rio de Janeiro, Tomo XXIV, 1861. apud LEONZO, Nanci. Op.

Cit. p. 77. xxi

. Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op. Cit.

p. 431- 433. xxii

. Ibid. p. 433. Para uma versão da maneira como funcionava o sistema de

informação de Eusébio ver CHALHOUB, Sidney. “Costumes senhoriais:

escravização ilegal e precarização da liberdade no Brasil Império”. In.

AZEVEDO, Elciene; et al. (org.). Trabalhadores na cidade: cotidiano e

cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas:

Editora da UNICAMP, 2009. xxiii

. Discurso do orador o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo – 1868. Op.

Cit. p. 434.

Page 210: Baixar Revista Dia-Logos 2013

O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da memória de

Eusébio de Queirós

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 211

xxiv

. ELIAS, Nobert. A Solidão dos Moribundos: seguido de envelhecer e

morrer. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

p. 63. xxv

. Idem. xxvi

. CEZAR, Temístocles. Op. Cit. p. 75. Cf. também: GUIMARÃES, Manoel

Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico

Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”. Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, 1988, nº 1, p. 5-27. xxvii

. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade

contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. Arfuch desdobra o

valor do biográfico em heróico, cotidiano, fábula. xxviii

. Cf. Para uma impressão de como repercute a Lei do Ventre Livre, por

exemplo, confira SANTOS, Prezalindo Lery. O Pantheon fluminense.

Esboços biographicos. Rio de Janeiro, Typ. G. Leuzinger & Filhos. 1880.

pp. (295-302).; para a abolição, veja a notícia biográfica publicada na

edição do jornal do commercio de 25 outubro de 1888.

Page 211: Baixar Revista Dia-Logos 2013

212

A criação da Ancine e as instituições de cinema no

Brasil a partir das legislações que as criaram

William Geraldo Cavalari Barbosa

A ANCINE foi criada a partir da Medida Provisória 2.228-1 de 6 de

setembro de 2001, assinada pelo Presidente Fernando Henrique

Cardoso em fins do seu segundo mandato. A MP foi ápice das

discussões que entremearam o meio cinematográfico brasileiro na

década de 1990 e em 2000, sobretudo as que resultaram do 3º.

Congresso Brasileiro de Cinema. A criação da Agência, como já

mencionado anteriormente, foi uma proposição do Grupo Executivo

para o Desenvolvimento da Indústria do Cinema (GEDIC).

O GEDIC, formado logo após o fim do 3º. CBC, propôs

mudanças significativas na estrutura de concessão de incentivos

fiscais, sobretudo no que tange à fiscalização, às taxações e aos

encaminhamentos dos projetos apresentados. Essas funções

estavam a cargo, até então, da Secretaria do Audiovisual, vinculada

ao Ministério da Cultura, acusada pelo meio cinematográfico como

ineficiente e com pouco peso institucional. Era necessário um órgão

forte que garantisse a sobrevivência da atividade no Brasil.

As propostas foram baseadas na situação em que se

encontrava o cinema nacional naquele período – de um lado estava o

processo de retomada e, de outro, a crise do modelo de captação

inaugurado pelas Leis Rouanet e do Audiovisual. No entanto, o

histórico de atuação do Estado e os problemas enfrentados pelo

Brasil em termos de cinema não foram desprezados, tanto para

refutar práticas fracassadas como para restabelecer medidas

importantes que, porventura, foram paralisadas.

Page 212: Baixar Revista Dia-Logos 2013

A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das

legislações que as criaram

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 213

Entretanto, um dado merece destaque: o modelo escolhido

para o gerenciamento do setor, qual seja o de Agência. No âmbito do

governo de Fernando Henrique Cardoso, outras agências foram

criadas, como a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e

a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Embora elas sejam

do mesmo tipo, tais instituições tiveram desdobramentos diferentes,

pois, no caso do cinema, não se tratava de um serviço público

essencial antes gerido por empresas estatais, então privatizadas,

mas uma atividade que se constitui como indústria em processo de

desenvolvimento e que tem como um de seus objetivos, o de

promover a cultura nacional e a língua portuguesa.

Reforça essa constatação o fato de que a Agência é herdeira

de um problema que se arrastava por décadas e que incide

exatamente na manutenção da atividade cinematográfica do país e

no seu fortalecimento, freado pela concorrência internacional e por

medidas de “desmantelamento” do arcabouço legal e institucional da

cultura e do audiovisual. Nesse sentido, far-se-á nesse momento um

percurso histórico através das medidas legais primordiais para este

setor em diferentes períodos da História do Brasil. O objetivo é

estabelecer um comparativo identificando rupturas e permanências

de modelos e formas de intervenção do Estado no audiovisual. Como

a Agência Nacional de Cinema se constituiu como uma instituição

fomentadora, reguladora e fiscalizadora do setor audiovisual,

optou-se pelos dispositivos legais que correspondessem a

instituições congêneres.

O INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo

O Decreto nº. 20.301 de 2 de janeiro de 1946 aprovou o regimento do

Instituto Nacional de Cinema Educativo. Ele havia sido criado em

1936, em meio ao governo de Getúlio Vargas, e expressa a ideia

clara de cinema “especialmente como processo auxiliar de ensino e

Page 213: Baixar Revista Dia-Logos 2013

William Geraldo Cavalari Barbosa

214 ISSN 1414-9109

ainda como meio de educação em geral (Art. 1º. do Regimento).

Tanto é verdade que o órgão estava vinculado ao Ministério da

Educação e Saúde.

O INCE era responsável pela edição de filmes educativos,

discos para a documentação artística e cultural do país e assistência

técnica à iniciativa particular desde que sua produção tenha fins

educativos. Para tanto, a própria instituição deveria manter uma

filmoteca e publicaria uma revista como forma de dar vazão à

sua atividade.

O Instituto contava, para manter seu funcionamento, com

Serviço de Orientação Educacional, Serviço de Técnica

Cinematográfica e Serviço Auxiliar. Na estrutura administrativa,

existia um diretor a quem estariam subordinados os chefes dos

serviços. Estava prevista a criação, por parte do diretor e aprovada

pelo Ministro, de uma Comissão Consultiva “composta por cientistas

e artistas de reconhecida autoridade, à qual serão submetidos,

sempre que necessários, os projetos dos filmes a serem editados ou

os originais concluídos” (Art. 5º. do Regimento).

Entre suas competências estava a de estudar os filmes a

serem editados, pesquisar a demanda nas escolas, censurar filmes a

serem adquiridos pelo Instituto, traduções de artigos especializados,

emissão de pareceres, execução dos trabalhos de filmagem,

execução das cópias, fazer a manutenção dos aparelhos de

propriedade do Instituto, zelar pela conservação dos originais, entre

outras. Sua atuação se dava, sobretudo, como fica expresso no

Regimento, na produção e no gerenciamento de materiais educativos.

O INC – Instituto Nacional de Cinema

O INC foi criado em 1966 e teve seu Regulamento aprovado e

publicado em 15 de fevereiro de 1967 pelo decreto nº. 60.220. Nesse

momento, já existia o Ministério da Educação e Cultura, ao qual o

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A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das

legislações que as criaram

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 215

Instituto estava subordinado. Ele tinha funções mais abrangentes que

o INCE, já que suas funções não residiam exclusivamente no aspecto

educativo do cinema e muito menos se concentrava na produção

direta de filmes, ao contrário, envolvia importação, distribuição,

etc. (Art. 1º.).

O Regulamento deixa claro que o objetivo é fomentar uma

atividade que se alça ao status de industrial. Era preciso formular e

executar uma política governamental para o desenvolvimento da

indústria cinematográfica brasileira, inclusive promovendo-a no

exterior. Além disso, a regulação da importação de filmes

estrangeiros fica ao seu encargo, o que demonstra a preocupação

com a concorrência estrangeira.

Parece insignificante mencionar a passagem da noção de

cinema auxiliar da educação para atividade industrial na década de

1960. Ou mesmo, parece um contrassenso, já que anos antes os

grandes estúdios como Cinédia e a Atlântida já viam a produção

cinematográfica sob a ótica do audiovisual. Contudo, o que se

percebe aqui não é uma mudança na perspectiva no interior da

indústria em si, mas, especificamente, uma alteração da interferência

governamental nas questões de cinema: de gerenciadora de

produções educativas, passou a formular políticas voltadas a uma

atividade pretensamente industrial.

Essa alteração carrega em si uma série de consequências,

entre as quais a conexão do poder público com a iniciativa privada, já

que o Estado se associaria aos produtores independentes. Além

disso, a interferência em áreas como a da distribuição e a da exibição

tem como consequência a ingerência sobre o mercado, o que, por

vezes, se faz conflituosamente. Trazer para o âmbito governamental

tais questões indica a necessidade de fazer frente aos interesses dos

grandes conglomerados internacionais que já nesse momento

abarcavam parcela substancial do mercado exibidor no Brasil.

Page 215: Baixar Revista Dia-Logos 2013

William Geraldo Cavalari Barbosa

216 ISSN 1414-9109

Além das citadas, outras funções estão previstas no

regulamento, tais como: regular condições de locação de filmes

estrangeiros; formular política nacional de preços de ingressos;

conceder financiamento e prêmios a filmes nacionais, manter um

registro de produtores, distribuidores e exibidores e seus

estabelecimentos; aprovar a concessão de estímulos a projetos de

desenvolvimento da indústria cinematográfica; selecionar filmes para

participar de certames internacionais; estabelecer normas de co-

produção com outros países; regulamentar a realização de produções

estrangeiras no país; fiscalizar o cumprimento de leis e regulamento

da atividade; aplicar multas e outras penalidades; e, por último, uma

herança do INCE que é produzir e adquirir filmes educativos ou

culturais sem finalidade lucrativa.

O que pode ser destacado dessa descrição de atividades é a

abrangência das ações previstas para o INC, muito maior que o

INCE. Este, por sua vez, foi incorporado, segundo o Art. 42 do

Regulamento, ao INC juntamente com o Grupo Executivo da Indústria

Cinematográfica, do Ministério da Indústria e Comércio. Pode-se,

inclusive, inferir que as duas instituições se diferenciam na sua

própria substância, já que a da década de 1930 se voltava a um

aspecto do setor, enquanto que o Instituto criado em 1966 tocava

diretamente no campo cinematográfico como um todo.

A estrutura organizacional do INC revela dois aspectos

importantes a considerar. Primeiro, a preocupação em estabelecer

um órgão interministerial, o que significava o reconhecimento de que

a área do cinema era complexa e abrangia diversos segmentos da

economia e da política do país, inclusive relações exteriores. De outro

lado, vale ressaltar a falta de representatividade da própria área, já

que a instituição, no seu Conselho Deliberativo, não contava com

membros da produção, distribuição e exibição, por exemplo.

A representatividade dos segmentos da área do cinema se

limita ao Conselho Consultivo, composto de representantes dos

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A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das

legislações que as criaram

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 217

produtores, distribuidores, exibidores, crítica e diretores. As suas

decisões seriam tomadas sob a forma de indicações ao Conselho

Deliberativo. Sua função é, basicamente, elaborar propostas de

matérias submetidas ao Conselho Deliberativo, e nas reuniões

destes, manifestar-se, facultativamente, sem direito a voto, sobre

assuntos que dissessem respeito ao segmento que representavam.

Quando se observa o organograma do INC, podemos

perceber, além da preocupação com o cinema educativo, o foco no

fomento à produção. Sabe-se, no entanto, que um dos grandes

problemas do cinema nacional é a capacidade de distribuição,

mesmo quando se considera a década em que o regulamento foi

formulado. O pouco espaço dado no regulamentoi e as omissões

sobre critérios e possibilidades de vinculação com empresas

estrangeiras são indícios desse aparente “desinteresse”

Embora poucos anos depois, em 1969, o INC tenha as suas

funções esvaziadas com a criação da EMBRAFILME S. A. e, mais

tarde, incorporado a ela, a concepção do Instituto demonstra que,

nesse período, houve uma forte inclinação para a capacidade

industrial do cinema no Brasil. Além disso, a formação de um

conselho interministerial e a abrangência de atuação do órgão são

indícios de uma mudança de postura, mesmo que, na prática, as

funções não tenham sido totalmente implementadas.

A EMBRAFILME S. A. – Empresa Brasileiro de Filmes

A EMBRAFILME, sociedade de economia mista de direito privado

vinculada ao Ministério da Educação e Cultura, foi criada em 1969,

pelo Decreto-Lei nº. 862. O objetivo inicial era difundir a produção

nacional. Para tanto foi criada como uma empresa de capital

aberto com o foco na lucratividade, dada a capacidade de

distribuição, e, como órgão de cooperação do INC, poderia executar

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William Geraldo Cavalari Barbosa

218 ISSN 1414-9109

atividades de comercialização de filmes, tornando a atividade

essencialmente industrial.

A EMBRAFILME se caracterizou por iniciar suas atividades já

com a previsão de um capital da empresa, além de elencar outras

fontes de recursos, inclusive as provenientes da comercialização de

películas. O Diretor-Geral, responsável pelo gerenciamento desses

recursos e da empresa como um todo teria mandato de quatro anos

podendo ser reconduzido e nomeado pelo Presidente da República.

Em 1975 as atribuições da empresa se ampliaram, pois pela

Lei nº.6.281 de 9 de dezembro de 1975 foi extinto o INC. A maior

parte das atribuições do último passaram para a EMBRAFILME. Esse

processo de esvaziamento já vinha ocorrendo desde 1969, mas se

concretizou nessa data.

O parágrafo primeiro do Art. 2º da Lei acrescenta novidades

importantes, que vão na contramão da constituição do INC: a

participação de três representantes de setores da atividade

cinematográfica para integrar o órgão a ser criado juntamente com

aqueles indicados pelo Poder Executivo.

Quando se observa a Lei que a criou, é possível concluir que o

escopo de ações a que Empresa Brasileira de Filmes estava

comprometida ia desde as questões de fomento e exibição das

produções nacionais até a formação profissional e a pesquisa

científica concernente ao cinema.

Com o Decreto nº. 77.299, de 16 de março de 1976, foi criado

o CONCINE – Conselho Nacional de Cinema, órgão já previsto na Lei

que criou a EMBRAFILME. Subordinado diretamente ao Ministro de

Estado de Educação e Cultura, ele era de orientação normativa e de

fiscalização das atividades relacionadas ao cinema.

Entre suas competências estava a formulação de uma política

de desenvolvimento do cinema nacional; baixar normas reguladoras

de importação e exportação de filmes; formular a política nacional de

preços e ingressos; estabelecer normas de coprodução; regular as

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A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das

legislações que as criaram

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 219

condições de realização de produções estrangeiras no país;

estabelecer normas de registro de produtores, distribuidores e

exibidores, além de laboratórios de som e imagem; fixar o número de

dias de exibição obrigatória de filmes nacionais e a exibição

compulsória; dispor sobre a forma de concessão pela EMBRAFILME

de prêmios e incentivos a filmes brasileiros; conceder o certificado de

produto brasileiro; e, por fim, estabelecer normas sobre a contribuição

para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional. Fazia

parte de suas competências, ainda, fiscalizar o cumprimento de leis e

regulamentos relacionados à cinematografia em território nacional,

assim como aplicar multas e sansões, o que poderá ser feito em

colaboração com a EMBRAFILME.

A estrutura inaugurada pela criação do CONCINE e pela

ampliação da atuação da EMBRAFILME denota uma preocupação

não só com a produção fílmica, mas a distribuição e a exibição, para

que sejam geradas receitas e o cinema brasileiro possa gerar

dividendos. Diferentemente do INC, os órgãos, além de

representantes dos ministérios, sobretudo o MEC, são compostos por

representantes do setor objeto das normatizações legais. Quanto à

composição administrativa, inaugura-se, nessa área, a diretoria

composta por mais de um membro, com mandatos previstos em lei.

Pode-se inferir que uma relativa autonomia é concedida ao setor, a

despeito de todas elas terem sido criadas no Regime Militar. É claro

que não podemos levar essa autonomização às últimas

consequências, já que o foco nas questões culturais, que não era

exclusividade do cinema, fazia parte de um projeto político com

objetivos bem específicos.

A EMBRAFILME passou por uma forte crise na década de

1980 ao que se somou a crise política e financeira do próprio país. A

atividade cinematográfica ficou, então, em um rigoroso ostracismo,

situação agravada pela dissolução definitiva da empresa em 1990,

durante o governo Collor. O cinema só terá um breve fôlego com

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William Geraldo Cavalari Barbosa

220 ISSN 1414-9109

a promulgação das leis Rouanet e do Audiovisual, em 1991 e

1993 respectivamente.

A ANCINE – Agência Nacional de Cinema

Enfim chega-se à Medida Provisória 2.228-1 que criou a Agência

Nacional de Cinema – ANCINE, publicada em 6 de setembro de

2001, durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso,

resultado dos estudos do GEDIC.

Além da criação da Agência, a MP 2.228-1/01 (ANEXO C) criou

o Conselho Superior de Cinema, instituiu o Programa de Apoio ao

Desenvolvimento do Cinema Nacional (PRODECINE), autorizou a

criação dos FUNCINES – Fundos de Financiamento da Indústria

Cinematográfica Nacional, além de alterar as regras para a cobrança

da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica

Nacional (CONDECINE). A MP sofreu sucessivas alterações e

inclusões, sobretudo em 2006, com a Lei nº. 11.437, que altera, entre

outras coisas, a destinação de recursos provenientes de projetos não

executados ou arrecadações da própria ANCINE para o Fundo

Nacional da Cultura (FNC), alocado em uma categoria específica

denominada Fundo Setorial do Audiovisual.

Além das definições setoriais das quais o Capítulo I da MP

trata, o Capítulo II estabelece princípios gerais da política nacional de

cinema: promoção da cultura nacional e da língua portuguesa

mediante estímulo a indústria cinematográfica e ao audiovisual

nacional; garantia da presença do produto brasileiro nos diversos

segmentos de mercado; programação e distribuição de obras

audiovisuais nos meios eletrônicos de comunicação de massa; e

respeito ao direito autoral.

Embora, à primeira vista, pareça não haver muita novidade nos

itens da política nacional de cinema, duas coisas chamam a atenção.

A primeira delas refere-se a menção, no inciso I do Art. 2º., à indústria

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A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das

legislações que as criaram

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 221

cinematográfica e audiovisual nacional. O que pode ser considerado

uma repetição guarda um significado profundo: a alteração da

perspectiva empregada no tratamento do setor no país. Em outras

palavras, não havia como dissociar a produção de cinema dos outros

segmentos do mercado audiovisual – como confirma o inciso II do

mesmo artigo, ao estabelecer a garantia da presença de obras

cinematográficas e videofonográficas nacionais nos diversos

segmentos de mercado – quando se pretende construir uma indústria

autossustentável, que precisa variar suas fontes de recursos.

A segunda questão a ser destacada é a menção, no inciso III,

dos diversos meios de comunicação de massa, o que ampliaria o

campo de atuação das distribuidoras, abrindo um amplo canal de

escoamento da produção cinematográfica nacional. Em suma, a

diferença marcante dessa política de cinema que está posta na

legislação é a preocupação com o mercado, mais especificamente,

com a presença do nacional no mercado exibidor, seja ele salas de

cinema propriamente ditas, festivais nacionais e internacionais, vídeo,

meio digital ou TV. Tal ênfase denota a necessidade de se pensar um

cinema que se pague, efetivamente, no curso de algumas décadas.

No capítulo que versa sobre o Conselho Superior de Cinema,

órgão integrante da Casa Civil da Presidência da República, formado

pelos ministros de Estado da Justiça, Relações Exteriores,

Fazenda, Cultura, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e

pela própria Casa Civil, além de representantes da indústria

cinematográfica e videofonográfica nacional, fica claro que entre as

suas competências está a aprovação de políticas e diretrizes visando

a autossustentabilidade do setor.

O Capítulo IV, que cria a ANCINE, agência de fomento,

regulação e fiscalização da indústria cinematográfica e

videofonográficaii, reforça essa inclinação para a diversificação do

mercado. O inciso III do Art. 6º. expressa o objetivo de aumentar a

competitividade da indústria de cinema por meio do fomento não só à

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William Geraldo Cavalari Barbosa

222 ISSN 1414-9109

produção, mas à distribuição e à exibição. O seguinte propõe a

sustentabilidade associada ao aumento da produção e da exibição.

Embora a insistência no aspecto mercadológico e a

autossustentabilidade sejam temáticas recorrentes nos objetivos da

Agência, os incisos citados resumem de maneira contundente o

conteúdo principal da política a ser implantada: a competitividade e a

autossustentabilidade propiciadas por uma política pública efetiva

encampada por um órgão de atuação ampla, responsável pela

articulação das diversas variáveis que compõem o ramo da produção

fílmica no Brasil e no exterior e seus canais de distribuição e exibição.

O rol de competências da ANCINE é bastante amplo, mas

podemos destacar algumas de suas principais atribuições que se

relacionam a três aspectos primordiais: regulação, fiscalização e

fomento. É de responsabilidade dela fiscalizar o cumprimento da

legislação, aplicar multas e sanções, regular as atividades de

fomento, coordenar atividades e ações governamentais referentes à

indústria cinematográfica e videofonográfica, articular-se com os

órgão competentes do entes federados para a execução de suas

atividades finalísticas, gerir programas e mecanismos de fomento,

estabelecer critérios para a aplicação de recursos de fomento e

financiamento do setor, aprovar e controlar projetos de toda ordem

referentes ao cinema nacionaliii feitos com recursos públicos e

incentivos fiscais, além de gerir um sistema de informações para o

monitoramento das atividades da indústria cinematográfica e

videofonográfica no que diz respeito à produção, distribuição,

exibição e difusão. A própria estrutura da diretoria denota uma

preocupação com a continuidade das políticas, já que o colegiado foi

composto por quatro diretores com mandatos não coincidentes,

sendo um deles Diretor-Presidente.

Vale destacar que a Medida Provisória guarda em si um

prognóstico para a autossustentabilidade do cinema nacional já que

seu Art. 55º. estabeleceu um prazo de vinte anos, a contar de 2001,

Page 222: Baixar Revista Dia-Logos 2013

A criação da Ancine e as instituições de cinema no Brasil a partir das

legislações que as criaram

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 223

para a exibição de obras cinematográficas brasileiras por um número

de dias fixado por regulamento. Isso nos permite inferir que após

esse período não haverá necessidade de estabelecer cotas de tela

para o filme brasileiro já que ele será comercialmente viável no

mercado exibidor, medida que se estende a empresas de distribuição.

No Art. 57º. abriu-se a possibilidade de se estabelecer cotas de

veiculação em outros segmentos além do distribuidor e exibidor,

como a TV, por exemplo. Embora o assunto seja polêmico, e até

mesmo por esse motivo, a MP abre essa possibilidade sem, no

entanto, apresentar detalhes.

A medida legal ainda autorizou a transferência para a ANCINE

dos acervos técnico e patrimonial, além das obrigações e os direitos

da Divisão de Registro da Secretaria para o Desenvolvimento do

Audiovisual, ligado ao MinC. Todos os processos, dessa forma,

elaborados a partir de mecanismos de incentivos presentes nas Leis

Rouanet e do Audiovisual passariam para as mãos da Agência.

Mais do que uma política cultural, então, o que se viu na

primeira década do século XXI foi a formatação de uma “política

pública”iv voltada para o audiovisual. Ela se valeu da constatação de

que a produção era uma das etapas, apenas, e que a distribuição e

exibição deveriam ser consideradas. Além disso, a concorrência

desleal não poderia ser enfrentada apenas pela instituição de cotas

de tela, mas pela melhoria na qualidade dos produtos oferecidos, no

aprimoramento técnico, na construção de novos espaços de exibição

e na restauração dos já existentes. E, por fim, considerando a TV e

outras mídias como elementos necessários para se pensar uma

indústria autossustentável.

Notas e referências

Mestre em História. Secretaria Municipal de Educação/ PMCG/ Campo

Grande – MS. Contato: [email protected]

Page 223: Baixar Revista Dia-Logos 2013

William Geraldo Cavalari Barbosa

224 ISSN 1414-9109

i A distribuição é tratada no Capítulo IX do Regulamento e fala sobre a

contratação de distribuição de filmes nacionais a partir de percentagens

máximas fixadas pelo INC e ressalta a necessidade de registro para

validação dos contratos. O capítulo é composto de apenas um artigo e

dois parágrafos. ii A menção à indústria videofonográfica reforça a ideia de ampliação do

mercado exibidor, não limitando-se às salas de exibição. iii Isso significa projetos de co-produção, produção, distribuição, exibição e

infra-estrutura técnica. iv “[...] a formulação de uma política pública é a formulação, no caso pelo

governo federal, de uma série de decisões articuladas e fundamentadas

que se transformam em programas e práticas institucionais [...]”

(FALCÃO, 1984, p. 24).

Page 224: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 225

Resumos | Abstracts

O tinteiro, o piano e o tabuleiro: a amizade de Arthur Napoleão e

Machado de Assis

Alexandre Raicevich de Medeiros

Resumo:

Nessa comunicação que é segmento de uma pesquisa em

andamento sobre a sociabilidade musical no Rio de Janeiro do fim do

século XIX, pretendemos discutir como as trajetórias do pianista

português Arthur Napoleão (1843-1925) e do escritor Machado de

Assis (1839-1908), se entrecruzaram devido a existência de pontos

em comum, como a paixão pela música, o xadrez, e a poesia; e

vieram a criar um profundo sentimento de afeto e admiração entre

essas duas importantes personalidades da história sociocultural

carioca.

Palavras-chave: Sociabilidade, Personalidades, Cultura.

Abstract:

In this communication, which is a segment of the ongoing research on

the musical sociability in Rio de Janeiro in the late 19th century, we

intend to discuss how the trajectories of the Portuguese pianist Arthur

Napoleon (1843-1925) and the writer Machado de Assis (1839-1908),

if got due to the existence of points in common, such as the passion

for music, chess, and poetry; and later came to create a deep sense

of affection and admiration between these two important personalities

of socio-cultural history.

Keywords: Sociability, Personalities, Culture.

Page 225: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Resumos | Abstracts

226 ISSN 1414-9109

Mort, tu l’es déjà – a figura da morte e o espaço da

literatura em Maurice Blanchot

Aline Magalhães Pinto

Resumo:

O artigo propõe uma análise do ensaio La Littérature et Le droit à la

mort de Maurice Blanchot. Imerso num cenário em que definir a

posição da literatura e das artes é uma questão de importância

política, Blanchot lança, a partir de uma interpretação sobre a ação

revolucionária e sobre a filosofia hegeliana, uma maneira de

compreender a tradição literária da Alta modernidade.

Palavras-chave: Maurice Blanchot, Teoria e crítica literária, Pós-

guerra francês.

Abstract:

The article proposes an analysis of the critical essay La Littérature et

Le droit à la mort de Maurice Blanchot. The French author, immersed

in a scenario in which define the position of literature and the arts is a

matter of political importance, presents a way of understanding the

literary tradition of high modernity based on an interpretation of

revolutionary action and the Hegelian philosophy.

Keywords: Maurice Blanchot, Literary theory and criticism, Postwar

French.

Page 226: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Resumos e abstracts

227

Escola Nova e a Literatura Infantil na Formação de Professores:

o caso do Instituto de Educação do Distrito Federal (1935-1937)

Aline Santos Costa

Resumo:

Este artigo apresenta um estudo sobre a disciplina Literatura Infantil,

criada no Instituto de Educação do Distrito Federal, na década de

1930. A criação dessa disciplina está ligada ao processo chamado de

'Escolarização da Literatura Infantil', que no Brasil já ocorria desde o

início do século XX. Contudo, foi possível perceber que a criação

dessa disciplina faz parte de um projeto mais amplo, implementado

pelo movimento da Escola Nova de difusão de uma nova relação com

a leitura e com a literatura.

Palavras-chaves: Literatura Infantil, Escola Nova, Formação de

professores.

Abstract:

This paper presents a study on the subject Children's Literature,

founded the Institute of Education of the Federal District, in the 1930s.

The creation of this discipline is linked to the process called 'Schooling

of Children's Literature', which has already occurred in Brazil since the

early twentieth century. However, it was revealed that the creation of

this discipline is part of a larger project, implemented by the New

School movement diffusion of a new relationship with reading and of

the literature.

Keywords: Children's Literature, New School, Teacher.

Page 227: Baixar Revista Dia-Logos 2013

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228 ISSN 1414-9109

“O Povo e o Trono” e a iniciação de Joaquim Nabuco

na vida política

Amanda Muzzi Gomes

Resumo:

Neste artigo analisamos O Povo e o Trono, opúsculo publicado por

Joaquim Nabuco em 1869 e escrito no final do ano anterior, quando

ele participou das reuniões do Centro Liberal, agremiação política

criada, entre outros líderes da dissidência progressista, pelo seu pai,

o senador e conselheiro Nabuco de Araújo. Defendemos que, apesar

de praticamente desprezado pelos seus principais biógrafos e pela

historiografia, O povo e o trono foi o texto de iniciação de Nabuco na

vida política.

Palavras-chave: Joaquim Nabuco, “O povo e o trono”, Brasil Império.

Abstract:

In this article we analyze “O Povo e o trono”, pamphlet published by

Joaquim Nabuco in 1869 and written at previous year. In that time,

Nabuco participated in the meetings of Centro Liberal, political

association created by his father, Senator and counselor Nabuco de

Araújo, and other leaders of progressive dissent. We argue that the

text “O povo e o trono”, although virtually ignored by their main

biographers and by historiography, was the initiation of Nabuco in

political life.

Keywords: Joaquim Nabuco, “O povo e o trono”, Brazil Empire.

Page 228: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Resumos e abstracts

229

Artes Plásticas e Política: uma análise das trajetórias de Carlos

Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro na década de 1960

Andrea Siqueira D’Alessandri Forti

Resumo:

A pesquisa tem como objetivo analisar as trajetórias, artísticas e

políticas, de Carlos Zilio, Renato da Silveira e Sérgio Ferro nas

décadas de 1960 e 1970, tendo como foco a relação destes artistas

plásticos com as esquerdas armadas. Utilizo as categorias de “campo

de possibilidades” de Jacques Revel, conceito que indica a

historicidade das escolhas individuais, e de “trajetória” tal como é

entendida por Pierre Bourdieu, procurando relacionar a trajetória

individual com as interações sociais.

Palavras-chave: Ditadura militar, Trajetória, Artista plástico.

Abstract:

The research aims to analyze the political and artistic trajectories of

Carlos Zilio, Renato da Silveira and Sérgio Ferro during the sixties

and seventies, focusing on the connection between these visual

artists and the left-wing politics. I used two categories: “space of

possibilities” of Jacques Revel which analyzes the presence of history

in individual choices, and “social trajectory” which is understood by

Pierre Bourdieu, in order to connect the individual trajectory and the

social interaction.

Keywords: Military dictatorship, Social trajectory, Visual artist.

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230 ISSN 1414-9109

Aspectos indumentários e imaginário social no

Rio de Janeiro do início do oitocentos

Camila Borges da Silva

Resumo:

A indumentária é um importante elemento de entendimento da

sociedade. O objetivo do trabalho é analisar como, após a

transferência da corte portuguesa para o Brasil, é possível perceber

um processo simultâneo de aceleração da temporalidade, através da

maior penetração da moda europeia no Rio de Janeiro, e de

permanência de um imaginário de Antigo Regime, devido à

manutenção de práticas indumentárias como uniformes e ordens

honoríficas.

Palavras-chave: Moda, Indumentária, Antigo Regime.

Abstract:

The clothing is an important element for understanding society. The

objective of this study is to examine how, after the transfer of the

Portuguese Court to Brazil, it is possible to see a simultaneous

process of acceleration of the time through the presence of European

fashion in Rio de Janeiro, and the maintenance of an imaginary of Old

Regime due to clothing practices such as uniforms and honorary

orders.

Keywords: Fashion, Clothing, Old Regime.

Page 230: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Resumos e abstracts

231

Reflexões sobre exílio: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido

Desirree dos Reis Santos

Resumo:

Esta pesquisa insere-se na análise das experiências exilares da

segunda metade do século XX, onde ditaduras latino-americanas

ocuparam o cenário político e promoveram a saída de milhares de

vozes dissidentes. Entendendo o exílio como a possibilidade de

mudanças nos projetos políticos e culturais, enfocaremos a trajetória

do dramaturgo Augusto Boal nos anos 1970. Para pensar como a

condição de exilado influenciou suas propostas de teatro engajado,

analisaremos o Teatro do Oprimido (1976), criação resultante das

descobertas coletivas durante o exílio.

Palavras-chave: Augusto Boal, Exílio, Teatro engajado.

Abstract:

This research is inserted in the analysis of exile’s experiences in the

second half of the twentieth century, when Latin Americans

dictatorships have occupied the political scene and promoted the

departure of thousands of dissenting voices. Considering the exile as

the possibility of changes in political projects and culturals, we will

focus on the trajectory of the dramatist Augusto Boal during the

1970s. In order to think how the condition of exile influenced their

proposed engaged theater, we will analyze the Theatre of the

Oppressed (1976), creation resultant of collectives discoveries during

the exile.

Keywords: Augusto Boal, Exile, Engaged theater.

Page 231: Baixar Revista Dia-Logos 2013

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232 ISSN 1414-9109

Estudo inicial das ideias de Joaquim Antônio Pinto Junior e José

Joaquim Machado de Oliveira sobre os aldeamentos da província

de São Paulo

Gabriela Piai de Assis

Resumo:

Este artigo abrange notas iniciais sobre a política indigenista

principalmente na Província de São Paulo e suas relações com a

escrita da história a partir dos documentos “Notícia Raciocinada sobre

as aldêas de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo

até à actualidade”, de José Joaquim Machado de Oliveira, de 1846 e

“Memoria sobre cathechese e civilização dos indigenas da provincia

de S. Paulo” de Joaquim Antônio Pinto Junior, de 1862.

Palavras-chave: Política Indigenista, Diretoria Geral dos Índios de SP,

Segundo Reinado.

Abstract:

The paper encompasses early notes on the indigenist policy

especially in the Province of São Paulo and its relationship with the

writing of History based on the documents “Notícia Raciocinada sobre

as aldêas de índios da província de S. Paulo, desde o seu começo

até à actualidade”, by José Joaquim Machado de Oliveira, from 1846,

and “Memoria sobre cathechese e civilização dos indigenas da

provincia de S. Paulo”, by Joaquim Antônio Pinto Junior, from 1862.

Keywords: Indigenist Policy, Diretoria Geral dos Índios de SP,

Second Reign.

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Resumos e abstracts

233

As gravuras moralizantes de Hogarth: polidez e

civilidade na Inglaterra setecentista

Laila Luna Liano de León

Resumo:

O trabalho se baseia nas gravuras de William Hogarth com temática

moralizante no período de 1720-1764, destacando o seu intuito

pedagógico e a discussão dos valores, na Inglaterra setecentista, em

pleno desenvolvimento de uma sociedade comercial e do

pensamento ilustrado. As “críticas” imagens de Hogarth demonstram

um novo código de maneiras e costumes, relacionados às classes

médias em ascensão, de polidez, sociabilidade e civilidade, inserido

num momento de enorme preocupação com a corrupção tanto do

governo quanto da sociedade.

Palavras-chave: Inglaterra, William Hogarth, Moralidade.

Abstract:

The paper is based on the engravings of William Hogarth with a

moralizing theme published between 1720-1764, highlighting his

pedagogical purpose and the discussion of values at eighteenth

century England, in full development of a commercial society and

enlightened thought. The “critical” images of Hogarth show a new

code of manners and costumes, related to the arising middle classes,

of politeness, sociability and civility, at a time of great concern with

corruption both in government and in society.

Keywords: England, William Hogarth, Morality.

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234 ISSN 1414-9109

Lideranças indígenas e liberalidades régias: expansão e limites

da justiça distributiva no Império português

O caso emblemático de Araribóia

Marcello Felipe Duarte

Resumo:

O enobrecimento das lideranças indígenas na América portuguesa,

viabilizado pelo requerimento de mercês régias, configurou-se como

uma estratégia importante no processo de consolidação do domínio

português no ultramar, principalmente, nos dois primeiros séculos de

nossa colonização. É a partir desse contexto histórico que

procuramos pôr em relevo a trajetória de Arariboia, posteriormente

batizado com o nome cristão de Martim Afonso de Souza, líder

indígena, que se aliou aos portugueses na luta contra franceses e

tamoios pela conquista da Guanabara.

Palavras-chave: Lideranças indígenas, Mercês régias, Araribóia.

Abstract:

The ennoblement of indigenous leaders in Portuguese America, made

possible by the application of royal favors, configured as an important

strategy in the process of consolidation of the Portuguese domain

overseas, mainly in the first two centuries of our colonization. It is from

this historical context that we will highlight the trajectory of Arariboia,

later baptized with the christian name Martim Afonso de Souza,

indigenous leader, who has joined the portugueses in the fight against

the french and tamoios, in the conquest of Guanabara.

Keywords: Indigenous leaders, Royal favors, Araribóia.

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Resumos e abstracts

235

A atuação do Ministério Público na vigência da Lei do Ventre

Livre na Província do Rio de Janeiro (1871-1888)

Maristela Santana

Resumo:

No Brasil Império, ao Promotor Público fora atribuída a função de

“fiscal da lei”. No contexto da promulgação da “Lei do Ventre Livre”

(1871), encontramos nos atos normativos que disciplinam e conferem

aplicabilidade à mesma, referências ao promotor como um dos

agentes públicos responsáveis pelo cumprimento de determinados

direitos de escravos, libertandos e libertos. Nessa perspectiva,

defendemos que a Lei constitui o marco da atuação do Ministério

Público brasileiro na área cível, até então com atribuições restritas à

área penal.

Palavras-chave: Brasil Império, Justiça, Lei do Ventre Livre.

Abstract:

In Brazil Empire, to the Public Attorney was assigned the role of "law

supervisor". In the context of the promulgation of the "Law of the Free

Womb" (1871), we find in the normative acts that discipline and confer

applicability of the same, references to the Public Attorney as one of

the officials responsible for compliance with some rights of slaves,

freed men and slaves in the emancipation process. In this

perspective, we argue that the Act is the landmark work of Brazilian

Public Ministry in the civil area, until then with powers restricted to the

area of criminal law.

Keywords: Brazil Empire, Justice, Law of the Free Womb.

Page 235: Baixar Revista Dia-Logos 2013

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236 ISSN 1414-9109

Em busca da festa perdida: samba versus cotidiano nas canções

de Chico Buarque

Priscila Gomes Correa

Resumo:

Na obra de Chico Buarque é constante a referencia ao samba como

instrumento basilar para a instauração do tempo da festa/carnaval,

que surge como o extraordinário do cotidiano; a festa se defronta com

um cotidiano maçante, aparecendo como foco de esperança. A

abordagem da canção Olê Olá permitirá a identificação das principais

referencias que nortearam a reflexão do artista sobre o tempo/lugar

da festa na sociedade contemporânea, apontando para um debate

mais amplo sobre o potencial transformador da música.

Palavras-chave: Festa, Cotidiano, Chico Buarque.

Abstract:

In the work of Chico Buarque it is constant the references to samba as

a basic tool for establishing the time of the feast / carnival, which

appears as the extraordinary of daily life, the feast faces a dull routine,

appearing as a beacon of hope. The approach of the song Olê Olá will

allow identifying the major references that guided the artist's reflection

on the time / place of the feast in contemporary society, pointing to a

broader debate about the transformative potential of music.

Keywords: Feast, Daily Life, Chico Buarque.

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Resumos e abstracts

237

O Carnaval de Ouro Preto: Mercado e Tradição (1980-2011)

Sarah Teixeira Soutto Mayor

Resumo:

Este artigo objetiva analisar as principais transformações do carnaval

de Ouro Preto (MG), entre os anos de 1980 e 2011, relacionadas ao

mercado e à ideia de tradição. Por meio da análise de jornais,

conclui-se que o discurso da tradição serviu como elo entre um

passado global que se consolidava na festa e a história que a

legitimava, sendo essencial para as mudanças observadas,

justamente pela imutabilidade conferida ao passado e por certo

consenso de que tradição não se discute.

Palavras-chave: Carnaval, Mercado, Tradição.

Abstract:

This article pretends to analyze the main changes of Ouro Preto’s

(MG) carnival, between the years 1980 and 2011, related to the

market and the idea of tradition. Through the analysis of newspapers,

concluded that the discourse of tradition served as a link between a

past that was consolidated in the global celebration and the history

that legitimized and is essential for the changes observed, the

immutability just conferred the past and a certain consensus that

tradition is not discussed.

Keywords: Carnival, Market, Tradition.

Page 237: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Resumos | Abstracts

238 ISSN 1414-9109

O valor do biográfico no Brasil do século XIX e a construção da

memória de Eusébio de Queirós

Welinton Serafim da Silva

Resumo:

Este artigo tem o objetivo de analisar alguns aspectos normativos dos

relatos biográficos oitocentistas, buscando entender sua relevância e

especificidade na construção da memória do estadista Eusébio de

Queirós Coutinho Mattoso Camara. Como fontes, utilizaremos dois

relatos biográficos sobre a personagem em questão: um fragmento

da Galeria dos Brasileiros Ilustres, organizada por Sébastien Sisson,

e o necrológio de Queirós, composto por Joaquim Manoel de Macedo

na função de orador oficial do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro.

Palavras-chave: Eusébio de Queirós, Biografia, Século XIX.

Abstract:

This article aims to analyze some normative aspects of biographical

accounts nineteenth century, seeking to understand their relevance

and specificity in the construction of memory the statesman Eusébio

de Queiros Coutinho Mattoso Camara. As sources, we use two

biographical accounts about the character in question: a fragment of

the Galeria dos Brasileiros Ilustres, organized by Sébastien Sisson,

and the necrologio of Queiroz, composed by Joaquim Manoel de

Macedo as valedictorian of the Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro.

Keywords: Eusébio de Queiros, Biography, Nineteenth Century.

Page 238: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Resumos e abstracts

239

A Criação da Ancine e as Instituições de Cinema no Brasil a

partir das legislações que as criaram

William Geraldo Cavalari Barbosa

Resumo:

O cinema nacional, com poucas exceções, ao longo do século XX, se

tornou possível graças aos incentivos governamentais e as

legislações que deram origem a estes. Além disso, algumas dessas

leis foram responsáveis pela criação de instituições governamentais

que geriram a indústria cinematográfica do país. A mais recente é a

ANCINE – Agência Nacional de Cinema. O objetivo deste trabalho é

analisar o processo de criação dessa agência a partir da legislação,

comparando-a com outras instituições de cinema do passado.

Palavras-chave: Indústria Cinematográfica, ANCINE, Regulação.

Abstract:

The national cinema, with few exceptions, throughout the twentieth

century, became possible thanks to government incentives and

legislation that gave rise to these. Moreover, some of these laws were

responsible for the creation of government institutions that managed

the country's film industry. The latest is the ANCINE – Agência

Nacional de Cinema. The objective of this paper is to analyze the

process of creating this agency from the legislation, comparing it to

other institutions of cinema past.

Keywords: Film Industry, ANCINE, Regulation.

Page 239: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.7, novembro de 2013 240

Normas editoriais

1. Só serão aceitos artigos de pós-graduandos e pós-graduados que

tenham sido aceitos, apresentados e entregues de acordo com as

regras estipuladas pela Semana de História Política da UERJ.

2. Será feita uma seleção entre os artigos enviados para a Semana de

História Política, onde os contemplados terão seus textos publicados

na Revista Dia-Logos. Os trabalhos serão apreciados por dois

pareceristas, que poderão solicitar modificações nos artigos aceitos.

Havendo disparidade nos pareceres, os artigos serão encaminhados

a um terceiro parecerista. Será garantido o anonimato de autores e

pareceristas no processo de avaliação dos artigos. O Conselho

Editorial compromete a não enviar artigos de orientandos para

orientadores e direcionar os artigos de acordo com a especialidade

do parecerista.

3. Os trabalhos devem ser enviados em arquivo digital para o e-mail da

Semana de História Política divulgado no endereço eletrônico

www.semanahistoriauerj.net, no qual deve conter título do trabalho,

nome completo do autor, títulação, vínculo institucional, identificação

do orientador (a), e-mail, telefone e endereço completo para

correspondência. Também deve ser enviado duas cópias impressas

em papel que não exibirão os dados de identificação do autor,

para o endereço: Semana de História Política, Programa de Pós-

Graduação em História/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 9º

andar, bloco F, sala 9.037, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, CEP:

20550-900.

4. Os artigos devem ter a extensão máxima de dez laudas, digitados

na fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e margens de

2,5cm. As notas devem ser colocadas, numeradas, no final do texto.

O arquivo deverá ser enviado no formato word. A revista não publica

bibliografias.

5. Os artigos devem ser encaminhados de resumos (em português e

inglês), com no máximo oitenta palavras e três palavras-chave (em

português e em inglês). Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de

alguma instituição esta deverá ser mencionada.

Page 240: Baixar Revista Dia-Logos 2013

Resumos e abstracts

241 ISSN 1414-9109

6. As citações com mais de três linhas deverão respeitar tabulação a

3,5cm da margem esquerdas, corpo 10, espaço simples. As citações

com menos de três linhas deverão estar incorporadas, com aspas,

ao texto.

7. As notas devem ser colocadas no final do artigo, com a seguinte

apresentação:

7.1. SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico. Tradução. Edição.

Cidade: Editora, ano, p.

7.2. SOBRENOME, Nome. “Título do capítulo ou parte do livro”. In:

Título do livro em itálico. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano,

p.

7.3. SOBRENOME, Nome. “Título do artigo”. In: Título do periódico em

itálico, cidade, vol. (fascículo, nº): 00-00, ano, p.

8. O número de artigos em cada edição será definido pelo Conselho

Consultivo e pelo Conselho Editorial de acordo com a

disponibilidade de verbas.

9. Os dados e conceitos emitidos nos artigos são de única e exclusiva

responsabilidade dos autores. Os direitos autorais sobre os originais

publicados são automaticamente cedidos à revista, ficando a mesma

autorizada a republicá-la em diferentes mídias.

10. Cada autor receberá gratuitamente três exemplares do número da

revista com o seu artigo.

11. Um mesmo autor não poderá publicar em duas edições

consecutivas da revista.

12. Os autores serão notificados da aceitação dos artigos.

13. Serão desclassificados automaticamente aqueles artigos que não se

adequarem às normas de publicação, incluindo os artigos cujos

autores não se apresentaram na Semana de História Política

(proponente de comunicação faltoso).