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    Baleia na Rede ISSN: 1808-8473

    Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura

    A cano brasileira em busca de utopias

    rica Ribeiro MAGI1

    Depois que o crtico Jos Ramos Tinhoro proclamou o fim da cano[1] dizendo

    que (...) hoje tudo coletivo, com recursos eletro-eletrnicos. Acabou essa cano que

    nasce contempornea do individualismo burgus, feita para voc cantar e outras

    pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra (...), escrever um ensaio que se

    prope a analisar o discurso social em canes contemporneas tornou-se um desafio

    maior. Ser que elas no nos dizem mais nada?

    Deixando o purismo de lado, nos propomos a analisar comparativamente trs

    canes lanadas nos ltimos anos. Nestas, o Sol como metfora oferece a pista da

    busca de seus narradores contrariando Tinhoro por alguma sada justamente contra

    o individualismo burgus, aqui tematizado na forma de angstia, de ausncia de novas

    utopias e at num determinado conformismo social.

    Se atualmente agrega-se cada vez mais recursos eletrnicos s canes, no

    significa que elas no sejam produzidas imanentemente sociedade, ao contrrio, como

    nos diz Roberto Schwarz (2001), os trabalhos artsticos registram de algum modo o

    processo social a que devem a sua existncia. Todo artista e sua obra se colocam no

    mundo a partir de um tempo e contexto social determinados. Para Norbert Elias (1995),

    analisar a conexo entre as obras produzidas pelo artista e sua sociedade pode ajudar a

    produzir um conhecimento que no se limita msica, ou mesmo arte, mas sobretudo

    sobre ns mesmos.

    Para pensar-nos nos ltimos anos, nos propomos a analisar as seguintes canes:

    Alagados, composta pela banda Paralamas do Sucesso (Bi Ribeiro, Herbert Vianna e

    Joo Barone), lanada no disco Selvagem? em 1986; Quando o Sol bater na janela do

    teu quarto, da banda Legio Urbana (Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo

    1 Graduanda em Cincias Sociais pela FFC/CM

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    Bonf) do disco As Quatro Estaes, de 1989, e finalmente Lugar ao Sol, lanada no

    disco 100% Charlie Brown Jr. - Abalando a sua Fbrica, de 2001, cuja autoria da

    antiga formao do grupo Charlie Brown Jr (Choro, Marco, Pelado e Champignon).

    O sol como metfora

    A cano Alagados tem como cenrio principal a cidade do Rio de Janeiro e em

    primeiro plano a vida dos moradores da favela. Segundo o narrador, os indivduos

    iniciam o dia desafiados pelo Sol que lhes mostra as agruras da realidade dos que vivem

    nesta cidade que tem braos abertos. Permeia a letra um dilogo entre o sonho,

    inspirado pela beleza natural da cidade, e o contraste com a vida que se leva:

    Todo dia O sol da manh vem e lhes desafia

    Traz do sonho pro mundo quem j no queria Palafitas, trapiches, farrapos

    Filhos da mesma agonia

    E a cidade Que tem braos abertos num carto-postal

    Com os punhos fechados da vida real Lhes nega oportunidades Mostra a face dura do mal

    Como a msica uma mistura entre rock e reggae, aspecto esttico que tornou os

    Paralamas do Sucesso originais no mbito do rock and roll brasileiro dos anos 80, o Rio

    de Janeiro posto ao lado da Jamaica, isto , alm de unidos pelos ritmos musicais,

    unem-se tambm pela dramtica situao social, a mesma agonia, de seus filhos.

    Trenchtown (Kingston Ocidental) uma cidade pobre da Jamaica que recebeu este

    nome porque foi construda em cima de um fosso por onde escoava o esgoto da velha

    Kingston. Foi onde Bob Marley cresceu e tornou-se msico. Ao lado de Trenchtown

    ficaria, na letra dos Paralamas do Sucesso, a Favela da Mar, na capital carioca.

    O mar que banha a cidade maravilhosa e a ilha de Bob Marley o mesmo que no

    desperta esperana nas palafitas e barracos mas que d alegria aos turistas e belas

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    imagens aos cartes-postais. O Sol para os indivduos moradores das periferias

    litorneas quem ilumina suas dificuldades a cada amanhecer. Segundo o narrador,

    estas pessoas insistem em levar as suas vidas movidos por unicamente por uma f:

    Alagados, Trenchtown, Favela da Mar A esperana no vem do mar

    Nem das antenas de tev A arte de viver da f

    S no se sabe f em qu

    Ao observar que as vidas dos absolutamente pobres se move pela f, o narrador

    sugere que estes no parecem ser os sujeitos que iro produzir um futuro melhor, ou

    seja, no se trata de uma f no futuro desta gente como atores de alguma mudana, tal

    como se acreditava nos anos 60 e 70. Naqueles anos, como analisa Marcelo Ridente

    (2000), o romantismo revolucionrio estava presente nas letras das canes mostrando

    que para os compositores da msica popular brasileira, e tambm para uma parcela da

    sociedade, o migrante recm chegado cidade e o campons concretizariam uma

    possvel transformao social. Em tempos de indstria cultural, de consumo acelerado

    as antenas de tev e do turismo no parece haver muita esperana no front.

    importante salientar que o narrador em Alagados um indivduo de fora da

    realidade da favela ou, como dizem os rappers cariocas, um sujeito do asfalto.

    Quando diz que preciso ser artista para viver da f, est fazendo uma crtica ao revelar

    nas entrelinhas que viver da f viver da espera por algo desconhecido, mas que

    possivelmente ser bom. Em contraposio a esse indivduo pobre dos anos 80 que tem

    f, o narrador mostra a sua prpria descrena e desencanto com relao ao presente, j

    que no ltimo verso fala a partir de si mesmo: S no se sabe f em qu. Esta

    desesperana a mais presente na sociedade brasileira da segunda metade da dcada de

    80: vai da famlia s instituies polticas.

    J em Quando o Sol Bater na Janela do teu Quarto, a angstia vivida na realidade

    escondida por um arranjo musical envolvente, ao som de violes e teclados tocados

    suave e tranqilamente sem pressa alguma. O tom que predomina na msica otimista,

    com alguns momentos de dor e sofrimento quando o ritmo torna-se intenso e rpido.

    Mas logo em seguida a calmaria retorna, porque a esperana num novo dia est em ns

    mesmos, para ento a cano terminar.

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    Quando o sol bater na janela do teu quarto Lembra e v que o caminho um s

    Por que esperar se podemos comear tudo de novo Agora mesmo

    A humanidade desumana Mas ainda temos chance O Sol nasce pra todos

    S no sabe quem no quer

    O Sol simboliza a esperana, ao contrrio em Alagados, onde evidencia as

    desigualdades em meio a beleza da cidade. Aqui o Sol lembra a cada amanhecer que o

    dia pode ser realmente novo.

    Comparar a letra e a sonoridade nos sugere um elemento social ambguo. O

    narrador sugere que poderamos ter realizado alguma coisa, porm no conseguimos e,

    em conseqncia, tudo o que estamos vivendo hoje dor. Ao contrrio da letra, a

    sonoridade quem expressa o otimismo, a calmaria que este sujeito que fala parece

    querer alcanar. As palavras no se tematizam esta angstia, cabe ao som e a forma de

    cantar esta sim, pouco otimista - transformar um sentimento social em matria

    artstica. Talvez pudssemos dizer que uma melodia suave fora o nico recurso

    encontrado pela banda em fins dos anos 80, aps esperanas e expectativas terem se

    transformado em desencanto, para revelar a tese de que o futuro incerto e pouco

    alentador.

    Em Alagados no existe referncias sociais concretas que apontem para uma

    mudana, o indivduo est to somente alimentado pela abstrao da f. Porm, na

    cano do Legio Urbana, a cada fracasso vivido no passado, canta-se em seguida

    vagarosamente o refro: Quando o sol bater na janela do teu quarto/ Lembra e v que

    o caminho um s, como uma referncia a um presente que tambm olha para o

    futuro:

    At bem pouco tempo atrs Poderamos mudar o mundo

    Quem roubou nossa coragem? Tudo dor

    E toda dor vem do desejo de no sentirmos dor

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    Quando o sol bater na janela do teu quarto Lembra e v que o caminho um s

    Possivelmente essa coragem viria da liberdade que se generalizava atravs da

    abertura poltica, do fim da censura e do sentimento comum entre as bandas nacionais

    de serem capazes de produzirem sua prpria msica independentemente de saberem ou

    no tocar uma guitarra.[2] . Agora estavam perplexos diante da impotncia social, o

    presente no mais lhes possibilitava esperanas concretas alm de suaves acordes ao

    violo. A utopia coletiva tinha malogrado e sobrava o indivduo e os seus desejos,

    sobretudo aquele de no sentir dor a prpria ou a do outro. Que roubou nossa utopia,

    poderia dizer o narrador em lugar de coragem. A coragem para a luta parecia perder o

    endereo naquele ano de 1989, quando a banda lana o disco.

    O narrador no oferece, ou melhor, desconhece o caminho mas indica a partir da

    rima entre sol e s que tanto o sol quanto o caminho so apenas um. s o que parece

    restar: uma conversa entre homem e natureza.