Bandeirantes e Pioneiros - Cap.2 - Ética e Economia

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Capítulo 2 do livro Bandeirantes e Pioneiros de Viana Moog]A indagação deflagradora deste livro, um marco do ensaísmo brasileiro, já prenuncia toda a sua pertinência e sua atualidade. Por dez anos, tempo de maturação desta análise comparativa entre os dois países, o autor buscou respostas, depois de vários períodos de permanência nos Estados Unidos, estudando sua história e observando seu cotidiano. A partir do próprio título, ele vai até as origens das duas nacionalidades para examinar as causas e as conseqüências de dois projetos distintos de ocupação européia do Novo Mundo - no Brasil, os bandeirantes e a exploração predatória das riquezas; nos Estados Unidos, os pioneiros e a colonização da terra distante como opção de vida.

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Psicologia na Universidade de Colmbia:~:Os cientistas no conhecem nenhuma rel.alo_entre. raa e psicQlogi,". 30

tiDepois de todos sses depoimentos, vamos ainda reconhecer que os nossos hbitos de convivncia tnica esto, biolgica ou socialmente, errados e que o progresso dos Estados Unidos com relao ao atraso relativo do Brasil e da Amrica Latina conseqncia de haver o anglo-saxo preservado na Amrica a sua pureza racial? Evidentemente, j no temos por que ceder neste ponto. Alm de no acreditarmos em dogmas da pureza racial, recusamo-nos a aceitar a interpretao das diferenas de civilizao nos vrios pases na base unilateral das diferenas tnicas. E porque assim pensamos . que hoje constitumos uma civilizao original, ~_~~s-,.>l~!ll'!l:e!l~e ..~riginal, a primeira. grande experin~!u.fetiva. realizd;t, llQ.Ocicle.nte,~a- cQeJQ~~f f~ernal, cordial. e crist de tdas as r~as. Em todo caso, uma coisa certa: no explicar as diferenas entre os Estados Unidos e o Brasil; como'-eiitre-os Estados UDidos e o Mxico ou os Estados Unidose a Argentina, a antropogeografia pode muito mais do que a etnografia.CAPTULO

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TICA E ECONOMIA

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KLINEBERG, Raza

y Psic(!)logia, Unesco, Paris, 1952, pg. 41.

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1OR IMPRESSIONANTES que sejam os fatres geofsicos no esclarecimento do problema ou dos problemas decorrentes da diferenciao das civilizaes norte-americana e brasileira, tais fatres - a orografia, a potamografia, a geologia, o clima - com tda a sua importnci, esto longe de determin-Ia totalmente. Nem podia ser de outra forma. ~ admitir o co.!!tr~rj()jJ:llportaria aceitar o homem_ e_as suas criaes-=- prgresso, cincias, artes, religies, filos-afias, culturas - como meros produtos ou subprodutos da geografia. No, positivamente no esta a posio adotvel em face do problema. Assim como no se deve aceitar a explicao das diferenas de civilizaes e culturas com fundamento na desigualdade das raas, no h por que aceitar as interpretaes fisicistas destas mesmas diferenas, na base unilincar e exclusiva das fras telricas. Nem o homem um subproduto da geografia - caso em que teria de ser sempre c invarivelmente escultor, quando psto ao p de regies ricas em mrmore e necessriamente mecnico e capaz de uma civilizao industrial, quando ao p de minas de carvo ou de petrleo, fatos ainda por comprovar - nem ?

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histria das civilizaes e das culturas, numa palavra, a Histria _ Universal, um mero prolongamento da natureza. Entre_nlItureza e histria_,--~!llretalos. que se rep'!te/ll.e j(}.tQ~.qll.e~sesucede~n,3 ~ ... -.-JE!~!~~~a_ abismal. _ .---.Mas, se a histria no apenas uma conseqncia do comportamento da raa branca em defesa de sua prpria pureza, como queria Gobineau, para quem era visvel a aproximao fatal do fim da civilizao pelo cruzamento das raas puras com os rebanhos humanos degenerados; se a histria no apenas uma conseqncia da geografia, como insinuava Ratzel, que ser ento? Ser progresso indefinido, como queria Spencer? Simples marcha dos povos, partindo do estado teolgico para chegar ao estado positivo, atravs do metafsico, como assegurava Augusto Comte? Tese, anttese e sntese, como sustentava Hegel? Simples estrutura do fator econmico, como juram os marxistas de mo estendida sbre O Capital, de Karl Marx?,-, .. _----

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dncia dos fenmenos, os mais complexos dependendo dos mais simples - conseguiu resistir. Enquant se )rl!tou das cincias fsicas, partindo do simples. par.ao compleJ{"-,-prlmeilo:a.m.lilemtica, depois a astronomia, depois a fsica, depois a qumica -. as coisas ainda andaram bem. Onde se complicaram foi no salto moro tal da qumica para a biologia e da biologia para a sociologia. Como se a diferena entre a biologia e a qumica, ou entre a biologia e a sociologia fsse gradualmente a mesma que a existente entre a fsica e a astronomia, a astronomia e a matemtica! Como se fsse possvel equiparar as formas de vida psquica e moral a fenmenos da natureza e estudar a sociedade,. a ..religio, a arte, como organismos vegetais e animais, e com mtodos tomados de emprstimo biologia! Dste momento em diante, bvio, a conformidade com a classificao comtiana no foi mais possvel. Assim como na biologia entra um elemento nvo que se chama vida, o qual nunca se acomodou inteiramente s leis da fsica e da qumica, na sociologia e na histria entram elementos que nunca entraram na mate. mtica e na natureza: paixes, vontade, inteligncia, moralidade. E, como anota Jos Honrio Rodrigues, interpretando o pensamento de Ernst Troeltsch. "Exati_~()~cJare.zll, lgica e..ca1culabilida4~-) ~()" J)r.ases as CIVI). fatalidadeuque toc0l! ._~_maio!,ia, carvo em Frana. A esta: onde at h lizaes, se no ficaram ancoradas no passado e no esprito feudal - Itlia, Portugal, Espanha - no puderam desenvolver-se e prosperar no mesmo ritmo das outras .J~()l?reza4e carvo na Frana, mas proximidade e fronteiras comuns com os pases ricos em carvo, equilbrio entre o esprito feudal e o industrial. . L, porm, onde aparece o carvo e depois o petrleo ao lado do ferro, aparece, via de regra, uma civilizao industrial, uma mentalidade industrial, com o conseqente aprimoramento da cincia e do esprito cientfico: Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos e, mais recentemente, a Unio das Repblicas Socialistas Soviticas. Em suma: para os marxistas, as diferenas entre a civilizao americana e a brasileira no decorrem nem da raa, nem somente da geografia, mas' dos fatres econmicos. So os fatres econmicos - o carvo principalmente32 - os verdadeiros determinantes do progresso dos Estados Unidos em progresso geom_ trica e o do Brasil em progresso aritmtica. (Raa, religio, educao, qualidade cultural das migraes explicavam apenas as' di.Jcrrencas um emprstimo de dinheiro, a propriedade da coisa emprestada passa ao tomador e a que ttulo h de o credor pedir pagamento a um homem que est agora simplesmente usando aquilo que seu? "Emprestar dinheiro por usura pecado grave, no porque seja proibido, pois antes proibido porque contra a justia natural" . !tI Pecunia pecuniam non parit. No de todo indiferente ao julgamento da posio da Idade Mdia em face dos fatres econmicos que esta doutrina provenha precisamente do dominicano Toms de Aquino e no de algum pensador augustiniano. Partindocl0s augustinianos, ..a condenao no teria a Il1esmafr, uma vez que stes-sempre-fraincntraa matria, os ,~entids . .PhlJ~ic:()~~_,n?__ ~~S)~1s: '~uaJe~l.i!l~i~ l1istorcaei:a-negar a natureza. Com Toms de Aquino era difele reivind!cava_.pa.ra rente. No se. opondo ao trans~dep.taEs.rno, (i-r'az drclt'-de'se'n-lirli~ atuais, ou aceitar que a histria se processe predominantemente em trno dstes fatres? Por que predominantemente? Ser possvel submeter a dosagens ou a um sistema de pesos e medidas as chamadas fras da fsica social? Haver possibilidade de reduzi-Ias a um denominador comum a fim de confront-Ias entre si? No. Neste caso no se pode falar nem em exclusividade, nem em predominncia, pois a cincia da exata hierarquizao dos fatres ainda est por aparecer. Impossvel, portanto, endossar as interpretaes mecanicista, ou geofsica, ou econmica, da histria. Histria vida e a vida, antes de ter causas, tem passado. Passado, presente e futuro. Origem e, quando se faz histria, motivos. O rro das interpretaes materialistas e fisicistas da histria est em ignorar as distines41

entre origem e causa e em transferir, por simples analogia, associao de idias ou imagens, a linguagem mecanicista das causas e efeitos, vlida no mundo fsico e inorgnico, para o mundo em que entra ste elemento nvo, imprevisvel e incontrolvel que se chama vida, sem levar em conta as distines entre os vrios tipos de causa. E onde h vida no h propriamente esgotar o conhecimento e as suas causas. Onde h vidaconvm repeti-Ia - no h unilateralidade de causas, mas concausas e passado. Da porque nunca se compreendero suficientemente os fatos sociais, as aes e as reaes humanas, sem recorrer aos seus antecedentes histricos, como o faziam, alis, os pensadores da Idade Mdia que, para explicar qualquer fato, remontavam sempre aos primeiros dias da criao. No princpio era o Verbo. ".):1iLh.istri'uno- fundo dos tempos e I1.~()__n-'--Quixote, catlico e cavaleiro andante,.'~c.qda uno es hijo de sus obras" .,S,egundo Calvino no h' tal. Deus eslhc os seus preferidos compietaii:iente' reveIl;'desuas" obras'e'dos" seus'merifosliUm:i6s. AIgUris-vem'prede~tiriad6s~salv?o .S~O os eleitos. Os demais esto consignados danao eterna, "por um justo e irrepreensvel, embora incompreensvel julgamento". Ao ver de Calvino, "Se no estamos realmente envergonhados do Evangelho, temos necessriamente de reconhecer o que ali est "Iaramente declarado: que Deus, por sua eterna boa vontade (pra a qual no h outra causa do que o seu prprio propsito), nomeou aqules que lhe agradavam para a salvao, rejeitando todos os demais" . 53 Em outros trmos: a fraternidade universal impossvel. "Aqules que acreditam no~erno'de-Deus Ucomlllgo' aSef completamente realizado num futuro perodo de justia social e verdade intelectual" - comenta Paul Tillich - "podem nunca ter abandonado a Igreja Protestante, mas no so protestantes no verdadeiro sentido do trmo". 54 Para. o. prt~stante calvinistaa fra~ o mundo est desde sempre dividido ternidade irrealizvel,prque. entre eleitos e condenados, entre puros e pecadores, cabendo am eleitos e purosdesobrir.os sinais. da.c{)11gel1a~()e se~regar ou eliminar os condenados .... Da j~stifica. e ac~ita:o,.como fatos naturais, a de~ sigualdaclc econmica, da doutrina da desigualdade das raas e, mais tarde, II aeitao de fras ocultas mais poderosas do que53o

Pf.priamente um reformador: foi um protestante. Protestante tambm 'foi Zwinglio que, insistindo na tese de que a propriedade privada se originava no pecado,' ao mesmo tempo que impreeava contra a hipoteca da terra e o penhor das colheitas, advertia os ricos de que no entrariam no reino dos cus. Reformador foi Calvino. Lutero, em assuntos econmicos, era um perfeito escolstico. To escolstieo que o seu protesto foi motivado pelo abuso na venda de indulgncias pela Igreja. Na luta entre a economia e a tica, luta que se prolongaria at nossos dias, Lutero foi apenas o primeiro momento: o ivisor das guas seria Cal vino . Com Calvil).o que a histria doutrinria 92

do capitalismo toma corpo e alento, com Calvino que os camelos comeam a passar pelo fundo da agulha. Da por diante, a partir do seu famoso Christianae Religionis Institutis e de suas famosas cartas,72 que esto para o catolicismo e a ordem medieval, como o O Capital, de Karl Marx, para o capitalismo e o mundo ocidental que a linha do cristianismo se bifurca em duas concepes completamente antinmicas: a catlica e a calvinista. Para comear, da teori'lcal~i!li~~a~aE~?c~.~inao, .el11_..?p~sio doutrina do livre arbtrio, surgiria o determinismo. E logo em seguida, tdas as demais' teorias a que o determinismo serviu de base. Da por diante nenhuma teoria ou filosofia deixaria de trazer a marca das concepes calvinistas. Estas estariam em Darwin como em Hobbes, em Locke como em Rousseau, em Ricardo como em Adam Smith, em Tocqucville como em Chamberlain, em Freud como em Karl Marx, em Montesquieu como em Ratzel. Em Preud a marca de Calvino est, como assinala Hilaire Belloc,':; no sentido da fatalidade. Em Karl Marx, no conceito de luta de classes, com o triunfo final do mais forte. Na antropogeografia de Ratzel e de Montesquieu, o sinal seria ainda e sempre o d~terminismo, a concepo de que o homem,' como o universo, governado por leis, tal como a natureza e que tudo quanto h que fazer surpreender estas leis e esgotar com elas os seus fenmenos. Se Deus onisciente c tudo prev, diriam logo os detcrminis tas, sabe de antemo o que vai acontecer e, portanto, a coisa ter de acontecer, porque le a prev. ()ra, se a coisa tem de aco.rJt~~~r, o indivduo no livre, ou, se livre e danado seu destino, Deus no ser onisciente. Em res!Josta, os escolstios explicam que. o argumento prevalece para os humanos que raciocinam em t-mosdc p1ss~do: presente c futuro e no em trmos de eternidade, onde no h pssfido c futuro, mas tudo, desde sempre. ,foi, e ser l'gora. Nestas condies, Deus prcv:, ou melhor, v as coisas aconte'l:das e por acontecer, porque elas de fato acontecem c no porque tenha determinado que elas aconteam. Dizer que as coisas acon;2 Calvino f':z pela primeira vez a defesa da lisura em carta a seu amigo Oecolampaehe. Esta carta marca o seu rompimento com a doutrina cannica no tocante esterilidade do dinheiro. ,;j Hilaire Bl:LLOC, Como l/con!cci Ia Reforml/, pg. 110. 93

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tecem porque Deus v ou prev equivaleria, em trmos humanos, a dizer que uma parede pintada de branco branca porque o homem assim a v, quando a verdade que o homem assim a v porque ela de fato hranca. Da mesma forma acontece com as aes humanas: o homem, que livEe, no vai. praticar determinada ao porque Deus v que le a vai praticar ou quer que le a praque; mas Deus, na sua oniscincia que muito mais do que prescincia ou vidncia - v que le a pratica porque le, de fato .elvremente, no plano da eternidade, j est praticando. A explicao, entretanto, no abrandou a dissidncia calvinista. Antes que isto acontecesse, oc.al~iI1~sI11o,eIll plena expanso, teria primeiro de esgotar .as suas possibilidades, eire as~:quai:s;:fiaturalmente, o capitalismo. Liberados os fatres econmicos e o apetite aquisitivo, provvelmente muito alm das prprias intenes de Calvino e Lutero, no houve mais cont-los. Largaram-se pelo mundo em busca de matrias-primas e mercados, no mais tremendo esprito competitivo. Debalde a Igreja tentaria conter a avalancha com a ContraReforma. O levante dos ricos contra os pobres, dos fortes contra os fracos, dos eleitos contra os condenados, avanara demais para recuar. Os excessos do clero secular, a simonia, o luxo, a ostentao, a cupidez, em nome de nenhum princpio, tinham ido muito longe para poder conter o apetite aquisitivo e de progresso que trazia agora o lbaro de uma nova .:imtrina. Agora os homens tm um fundamento moral - fundamento moral muito discutvel, por certo, mas fundamento moral em todo o caso - para sair cata de bens e competir e acumular riqu~zas. Os burgueses, os comerciantes, os artesos que o fim da Idade Mdia maltratara, pela ao de um clero que em conjunto deixava muito a desejar, no mais precisam procurar motivos morais para acumular riqueza~, pois a riqueza agradvel a Deus e constitui atestado de diligncia e de trabalho e quando no o resultado de trabalho e dilignda sempre sinal do agrado de Deus. O catlico faz retiro, recolhe-se aos conventos para melhor comunicar-se com Deus. O calvinista comunica-se com Deus dentro da cidade, na oficina, no tear, na fbrica, principalmente no banco, lidando misticamente com valres que simbolizam riqueza: aes, warrants, debntures. Segundo Santo Antonino, as riquezas foram feitas para o homem e no o homem para as riquezas. Para o calvinista, dado o valor carismtico que empresta riqueza, dir

se-ia que o homem feito para as riquezas e no as riquezas para o homem. Para o catlico, as grandes virtudes so as virtudes teologais. ~ara ~~~itafl9-,~_g1-'pr~glJl.LY.irt!l~S s". as .virt\J.; sres igualmcnte vivos e orgflliicos quc,c . e!Jar.llam culturas ,;cm. peneirar I) ;;(:g;,.do (ls slJas origens. hstora do Hr:lsiL :t bisturia dos ESl.adosUmdos, Portanto.;1.

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Em face do que nos reveJa a nvestgaao histrica, dcvem()'; ainda lI1sistir em explicar ~1S diEcrenas entre Brasil e Estados Umdos e os fenmenos sociais correspondentes, apenas em trmos de causa e efeito, de fatres puramente tnicos, ou puramente geogrficos ou apenas econmicos? Deve,mos e~;quecer as heranas culturais e religiosas dos dois pases, os fatres ticos, filosficos, psicolgicos, simbolgicos c estticos que constituram o fermento e o passado das duas culTUras, ou ento considerar todo sse acervo de contraste, e mais a circunstncia de haver sido o Brasil conquistado por um \ povo mediterrneo, catlico, barroco e latino e os Estados Unidos \ por um povo nrdico, anglo-saxo e protestante, como coisas abso \lutamente indiferentes ao processo daacllinulao de riqueza em74

;1 totalidade de uma e de outra,