Barbosa Empresariado Fabril e Desenvolvimento Econômico (Tese - Agnaldo de S. Barbosa)

292
A GNALDO DE S OUSA B ARBOSA E MPRESÁRIO F ABRIL E D ESENVOLVIMENTO E CONÔMICO EMPREENDEDORES, IDEOLOGIA E CAPITAL NA INDÚSTRIA DO CALÇADO (FRANCA, 1920-1990) Araraquara Faculdade de Ciências e Letras — UNESP 2004

description

Marxismo

Transcript of Barbosa Empresariado Fabril e Desenvolvimento Econômico (Tese - Agnaldo de S. Barbosa)

AGNALDODESOUS ABARBOS A EMPRESRIO FABRIL E DESENVOLVIMENTOECONMICO EMPREENDEDORES, IDEOLOGIA E CAPITAL NA INDSTRIA DO CALADO (FRANCA, 1920- 1990) Araraquara Facul dadedeCi nci aseLetrasUNESP 2004 1AgnaldodeSousaBarbosa EMPRESRIO FABRIL E DESENVOLVIMENTOECONMICO EMPREENDEDORES, IDEOLOGIA E CAPITAL NA INDSTRIA DO CALADO (FRANCA, 1920- 1990) TeseapresentadaaoProgramadePs-Graduao em Sociologia da Faculdade de CinciaseLetrasdaUNESP/Campusde Araraquara,comorequisitoparcialparaa obtenodottulodeDoutorem Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Jos Antonio Segatto Araraquara Facul dadedeCi nci aseLetrasUNESP 2004 2AgnaldodeSousaBarbosa EMPRESRIO FABRIL E DESENVOLVIMENTOECONMICO EMPREENDEDORES,I DEOLOGI AEC API TALNAI NDSTRI ADOC AL ADO (FRANC A,1920- 1990) Teseaprovadaem03.05.2004comorequisitoparcialparaaobteno do ttulo de Doutor no Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Faculdade de Cincias e Letras da UNESP/Campus de Araraquara. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Jos Antonio Segatto (Presidente) Prof. Dr. Flvio Azevedo Marques de Saes (FEA/USP) Prof. Dr. Oswaldo Mrio Serra Truzzi (CCET/UFSCar) Prof. Dr. Alberto Aggio (FHDSS/UNESP-Franca) Prof. Dr. Jorge Lobo Miglioli (FCL/UNESP-Araraquara) iii . ivAGRADECIMENTOS Nos quatro anos em que foi realizada a pesquisa que deu origem a este livro tive a satisfao de contar com o apoio de diversas pessoas e instituies.Em primeiro lugar agradeo a FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo), que me apoiounoperodododoutorado,aceitouaco-ediodestetrabalhoe,atualmente, financiaasuacontinuaodentrodoProgramadeApoioaJovensPesquisadoresem CentrosEmergentes.DefernciaespecialdeveserfeitatambmaoprofessorJos AntonioSegatto,aquemsouimensamentegratopelaconfianadepositadadesdeos primeirospassosdoprojetoquedeuorigempesquisa,pelaorientaolcidaepelo dilogo aberto e construtivo.AosprofessoresJorgeLoboMiglioli,AlbertoAggio,FlvioSaeseOswaldo Truzziagradeopelasoportunassugestesemsuasargiesnadefesadatese,que contriburamsobremaneiraparaoaprimoramentodoprodutofinaldestetrabalho.Ao Prof.Miglioliagradeoparticularmenteporseuempenhopessoalparaapublicaoda tese. A Wilson Suzigan, professor da UNICAMP, e a Antonio Luiz M. C. Costa, editor da revistaCartaCapital,meumuitoobrigadopelaspreciosasindicaesbibliogrficase sugestes no que diz respeito converso e atualizao de valores monetrios em moeda estrangeira. Agradeo aos empresrios Geraldo Ribeiro Filho, Jlio Csar M. Jacometi, Jorge FlixDonadellieOswaldoSbiodeMello,queadespeitodeseusinmerosafazeres muitogentilmentemereceberamparaarealizaodasentrevistas.Tambmsougratoa IvnioBatista,secretrio-executivodoSindicatodasIndstriasdeCaladosdeFranca, queentretantasatribuiesencontrouespaoemsuaagendaparamereceber.Deigual vmodo,agradeoaZdenekPracuch,umdosgrandesnomesdaindstriacaladista brasileira nas ltimas quatro dcadas, que solcitamente se disps a me conceder entrevistaem uma de suas j raras viagens a Franca, me dando a honra de compartilhar de seu vasto conhecimento.TenhoaindaumadvidadegratidoimpagvelcomGilbertoNaldi, consultor internacional, que me recebeu para uma srie de entrevistas em sua casa e com quemaprendimuitssimosobreaindstriadocaladonoBrasilenomundo.Idias importantes deste livro surgiram de nossas conversas, alm de uma grata amizade. AgradeoaoprofessorJosChiachiriFilho,diretordoArquivoHistrico MunicipaldeFrancanoperodoemqueapesquisafoirealizada,pelasinmerase frutferasconversas,nasquaispudeusufruirtantodeseuprofundoconhecimento histricoearquivstico,quantodeseuinesgotvelsensodehumor.Suassugestes certamente tiveram peso decisivo em muitos dos rumos tomados pela pesquisa. Estendo aindameusagradecimentosssuasauxiliares, Maria Consuelo de Figueiredo, Maria Ins Paulino,MeireSalmazoGranero,GrazielaAlvesCorraeMariadasGraasF.Primon, pela presteza com que sempre me distinguiram, assim como pelo descontrado ambiente de trabalho que me proporcionaram durante todo o tempo em que l estive pesquisando. SouimensamentegratotambmaMariaMargaridaBorgesPansani,diretorado Museu Histrico Municipal. Se mostrou sempre disposta a colocar o acervo do Museu serviodestetrabalhoe,domesmomodo,a serviodapesquisano sentido mais amplo possvel. Registro aqui, ademais, meu reconhecimento por ter conduzido a transformao da instituio que dirige em um centro de referncia em documentao como poucos no pas. Agradeo, da mesma forma, ao funcionrio Daniel Saturno Gomes, sobretudo pela sua contribuio na parte iconogrfica da investigao. viMeussincerosagradecimentosaSilvanaCristinaL.CurcieMariadeLourdes Ferro, respectivamente diretora e bibliotecria-chefe da biblioteca da UNESP/Franca, por terem me franqueado a utilizao do acervo sobre o qual so responsveis, expediente que meajudousobremaneira,hajavistaadistnciaquemeseparoudabibliotecadocampus deAraraquara,onderealizavameudoutorado.AgradeotambmaBeneditaStellaC. Jacinto,daSeodeDocumentaoeInformaodoIPT/Franca,pelasolicitudeem disponibilizaraliteraturatcnicarelacionadaaosetorcaladista.Sougratoaindaaos funcionrios do Cartrio do 1o. Ofcio de Franca, especialmente a Cristina e ao Sr. Lus, pelagentilezaeatenosempredispensadas.AClederJosColares,ficaaquimeus agradecimentos por sua infinita pacincia no ensino da lngua inglesa e por seu constante auxlio na traduo desse idioma. AValdirGeraldoFerreira,ThasdeFtimaVazeSabrinaAparecidaVaz, agradeo pelo auxlio profissional em diferentes fases da pesquisa. Mais do que auxiliares, tornaram-setambmamigos.MeumuitoobrigadotambmaRogrioNaquesFaleiros, pelas discusses profcuas e por ter gentilmente me cedido os originais de sua dissertao demestradoantesqueamesmaviesseaestardisponvelnabibliotecalocal.AJonas RafaeldosSantos,cujagrataamizadesurgiudurantearealizaodapesquisa,agradeo por suas sugestes sempre pertinentes e pela discusso de muitas idias presentes no livro. Por terem se disposto a ouvir e a discutir as opinies aqui expressadas ainda em sua faseembrionria, agradeo tambm a Ricardo Alexandre Ferreira e Alessandra David, amigos que fiz nos encontros cotidianos no Arquivo Histrico Municipal.Atrscompanheirosdelongadata,umagradecimentoespecial.AAlexandre MarquesMendesagradeopeloapoiodadodesdeoinciodapesquisa,pelasinmeras sugestesepelotrabalhoemconjuntoemdiversasoportunidades.AFransrgioFollis viiagradeopelapacincianadiscussodostemasaquipropostosepelaincansvel disposioemajudaremqualquerocasio.AMarcoAntonioBrandoagradeopela disposioemouvirasidiasaquidesenvolvidas,sobretudonoquedizrespeitoaos aspectos tericos, e pelo companheirismo sempre. Aosdafamlia,faltam-mepalavrasparaagradec-los.Aosmeuspais,Joo BarbosaeMariaHelenadeSouzaBarbosa,agradeopeloapoioincondicionalepelo auxlionaspequenasegrandesquestesdodia-a-dianesteperodoatribulado.Aomeu irmo Srgio de Souza Barbosa, agradeo pelo precioso apoio cotidiano nos assuntos de informtica e pela elaborao dos softwares utilizados no processamento da base de dados; semasuaajuda,certamentemuitasdasinformaesaquipresentesnoexistiriam. minha cunhada Celeste Aparecida Pereira Barbosa, agradeo pelo empenho e pacincia na transcriodasentrevistas.AomeucunhadoHelderdaSilvaVerssimo,agradeopelos incontveisesclarecimentosnoquedizrespeitopartetcnicadaindstriadocalado, que muito contriburam para o meu entendimento das especificidades do setor.Por fim, expresso minha gratido queles que mais de perto sentiram os prs e os contras da realizao deste trabalho. Simone, minha eterna gratido pelo carinho, pela compreenso, pela renncia, pela tolerncia, pelo auxlio em diversas tarefas da pesquisa, enfim, pela dedicao sem igual durante todo o tempo. Bem, quem um dia ir dizer que noexisterazonascoisasfeitaspelocorao?AotaloeJlia,meumuitoobrigado pelasalegresebarulhentasvisitas(consentidasouno)aoescritrio,pelossorrisos marotos,pelobrilhonosolhos,pelasbrincadeirasforadehora,pelosaltospaposnas caminhadas sem destino ou sentados no meio-fio, coisas sem as quais a vida nos ltimos anos no teria a menor graa. viii Enquanto o no-burgus vi aj a pel o mundo,fel i z de vi ver,de contempl ar,de refl eti r,o burgus passa seu tempo organi zando,cul ti vando,i nstrui ndo-se.Aquel e sonha,este conta e cal cul a.WernerSombart ix LISTA DE ILUSTRAES pgina FIGURAS FIGURAS 1 E 2 Anncios: Sapataria Palermo e Calados Jaguar..........................................80 FOTOGRAFIAS FOTO 1Costura do sapato modelo mocassim na Samello............................................ 69 FOTO 2Costura manual do cabedal ao solado na Opananken Antistress....................... 69 FOTO 3Pesponto do calado na fbrica da Mello.............................................................. 70 FOTO 4Pesponto do calado na fbrica modelo instalada na Couromoda 2003.......... 70 FOTO 5Seo de corte do calado na fbrica da Mello..................................................... 71 FOTO 6Seo de corte de corte do calado na fbrica da Opananken Antistress......... 71 FOTO 7Carlos Pacheco de Macedo..................................................................................... 107FOTO 8Calados Jaguar......................................................................................................... 107FOTO 9 Calados Samello....................................................................................................... 107FOTO 10Calados Samello....................................................................................................... 107FOTO 11Miguel Sbio de Mello.............................................................................................. 107FOTO 12Antonio Lopes de Mello.......................................................................................... 108FOTO 13Calados Mello........................................................................................................... 108FOTO 14Calados Spessoto...................................................................................................... 108FOTO 15Pedro Spessoto.......................................................................................................... 108FOTO 16Herclio Baptista Avellar.......................................................................................... 109FOTO 17Calados Peixe............................................................................................................ 109FOTO 18Joo Palermo............................................................................................................. 109FOTO 19Filial da United Shoe Machinery Company em Franca....................................... 119FOTO 20Mar de carretas na Samello................................................................................... 180FOTO 21Mar de carretas na Calados Mello..................................................................... 181FOTO 22Mar de carretas na Calados Peixe...................................................................... 181xFOTO 23Wilson Sbio de Mello recebendo a Ordem do Mrito do Trabalhodas mos do Ministro do Trabalho Murillo Macedo .......................................... 266 LISTA DE GRFICOS, TABELAS E MAPAS pgina GRFICOS GRFICO 1Cafeicultores e plantaes entre 1901 e 1920..............................................29 GRFICO 2Porcentagem das lavouras com at 10 mil ps de caf na Alta Mogiana .. 30 GRFICO 3Capital inicial das empresas caladistas registradas entre 1900 e 1940...... 52 GRFICO 4Capital inicial das empresas caladistas registradas entre 1900 e 1969...... 56 GRFICO 5Representatividadeporfaixadecapitaldasempresascaladistas registradas entre 1900 e 1969........................................................................... 57 GRFICO 6Riqueza dos empresrios do calado por faixa de patrimnio................... 91 GRFICO 7Prazo mdio dos financiamentos indstria do calado (1967-1980)...... 130GRFICO 8Taxamdiadejurosanualdosfinanciamentosindstriadocalado (1967-1980)......................................................................................................... 130GRFICO 9Valores mdios dos financiamentos concedidos indstria docalado (1967-1980) .......................................................................................... 131GRFICO 10Evoluo do valor das exportaes realizadas pela indstria decalados de Franca (1984-2000) ...................................................................... 204GRFICO 11Evoluodovolumedasexportaesrealizadaspelaindstriade calados de Franca (1981-2000)...................................................................... 204GRFICO 12Evoluo do volume e valores de exportaes da indstria decalados brasileira (1981-2000) ........................................................................ 205GRFICO 13Evoluo das vendas da indstria de calados de Franca nomercado interno (1984 a 2000) ........................................................................ 205GRFICO 14Aquisio de propriedades rurais por industriais caladistas (1930-1979).210GRFICO 15Empresrios caladistas filiados a partidos polticos entre 1945 e 1964... 220 TABELAS TABELA 1Nmero de cafeeiros nos principais municpios da regio.........................32 xiTABELA 2Quadro demonstrativo das maiores empresas caladistas deFranca em 1945.................................................................................................. 62 pgina TABELA 3Quadro demonstrativo das maiores empresas caladistas deFranca em 1959.................................................................................................. 63TABELA 4Nacionalidade dos empresrios caladistas (por amostragemde 50 inventrios) .............................................................................................. 78TABELA 5Evoluo dos financiamentos indstria do calado em Franca(1967-1980)......................................................................................................... 129 MAPA MAPA 1Estrada dos Goiazes.......................................................................................... 18 xii LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADOTADAS ABICALADOSAssociao Brasileira da Indstria de Calados ACIFAssociao da Indstria e Comrcio de Franca AHMUFArquivo Histrico Municipal de Franca BADESPBanco de Desenvolvimento do Estado de So Paulo BIDBanco Interamericano de Desenvolvimento BNDEBanco Nacional de Desenvolvimento Econmico CACEXCarteira de Comrcio Exterior do Banco do Brasil CAD/CAMComputer Aided Desing/Computer Aided Manufacturing CDIConselho de Desenvolvimento Industrial CEXIMCarteira de Exportao e Importao do Banco do Brasil CIESPCentro das Indstrias do Estado de So Paulo CFCEConselho Federal de Comrcio Exterior CNIConfederao Nacional da Indstria CREAICarteira de Crdito Agrcola e Industrial do Banco do Brasil CTEFConselho Tcnico de Economia e Finanas FIESPFederao das Indstrias do Estado de So Paulo FRANCALFeira do Couro e do Calado de Franca GEITECGrupo Executivo da Indstria Txtil e Couros IBGEInstituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IPTInstituto de Pesquisas Tecnolgicas MHMMuseu Histrico Municipal de Franca PAEGPrograma de Ao Econmica do Governo PNDPlano Nacional de Desenvolvimento PMDBPartido do Movimento Democrtico Brasileiro PRPPartido Republicano Paulista PSDPartido Social Democrtico PSPPartido Social Progressista PTBPartido Trabalhista Brasileiro PTNPartido Trabalhista Nacional xiiiSICFSindicato das Indstrias de Calados de Franca UDNUnio Democrtica Nacional USMCUnited Shoe Machinery Company Sumrio AGRADECIMENTOS...............................................................................................................ivLISTA DE ILUSTRAES......................................................................................................ixLISTA DE GRFICOS, TABELAS E MAPAS....................................................................xLISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADOTADAS....................................................xii INTRODUO...........................................................................................................................1 PRI MEI RAPARTE: AFORMAO............................................................. 8APRESENTAO......................................................................................................................9CAPTULO 1 CAF E INDSTRIA: RECORRNCIA INEVITVEL...................121.1. Reminiscncias: a pecuria e a tradio coureira.................................................161.2. A influncia da cafeicultura: alcance e limites.....................................................22 CAPTULO 2 AS ORIGENS DO EMPRESARIADO.................................................... 462.1. O predomnio do pequeno capital........................................................................492.2. Uma burguesia de ps descalos (?)..................................................................72Apndice iconogrfico Empresrios e empresas: os pioneiros............................105 CAPTULO 3 OS EMPRESRIOS E O PROBLEMA DO CRDITO......................106 S EGUNDAPARTE: AOEI DEOLOGI A........................................... 130 APRESENTAO...................................................................................................................... 131CAPTULO 4 A ATUAO DA BURGUESIA INDUSTRIAL BRASILEIRA: UM BALANO DAS INTERPRETAES .......................................... 133 152xivCAPTULO 5 A TICA ECONMICA DO EMPRESARIADO ...............................5.1. Empreendedores e empreendedorismo...............................................................1565.2. Empreendedorismo em contramarcha................................................................. 180CAPTULO 6 POLTICA, IDEOLOGIA E ORGANIZAO DE CLASSE: OS INTERESSES EMPRESARIAIS E SUAS REPRESENTAES... 2066.1. Poltica, ideologia e organizao de classe entre 1920 e 1964...........................207Par t i doe as s oc i a ode c l as s e nadi f us odai de ol ogi ados i ndus t r i ai s . . . .2136.2. Poltica, ideologia e organizao de classe entre 1964 e 1990...........................241Aas c e ns opol t i c adoe mpr e s ar i adoe ar e l a oc omor e gi me mi l i t ar. . . .243Novos t e mpos , ve l hopr agmat i s mo....................................................................... 257 CONSIDERAES FINAIS....................................................................................................264 REFERNCIAS...........................................................................................................................266 1Introduo Apesardet odososesf or os, ahi st ri aea anl i sehi st ri c o- c onc ret adai ndust ri al i za o brasi l ei raai ndaest oporserf ei t as. Def at o,t emoshoj e, i nf el i zment e, mai si nt erpret a oe general i za odoqueapesqui saemp ri c a real i zadapermi t i ri a. J os de Souza Martins A reflexo apresentada na epgrafe que inicia esta introduo faz parte de um texto escrito por J os de Souza Martins h mais de vinte e cinco anos1. Por mais que tenham avanado as discusses acerca do tema da industrializao e das origens do empresariado industrial no Brasil, passado um quarto de sculo o contedo crtico de talponderaonoperdeutotalmentearazodeser.Nocasodadinmicade industrializao de So Paulo, por exemplo, a idia de um processo de surgimento e expanso da estrutura fabril baseado no binmio caf/indstria continua sendo, como naessnciadacrticadeMartins,oreferencialpredominanteparaamaioriados estudos realizados. O problema no se situa, certamente, na validade explicativa da interpretao,masnasuaaplicaodeformaquaseexclusivanaanlisedosmais diversos processos de industrializao que tiveram lugar no territrio paulista ao longo 1Taltexto,intituladoOcafeagnesedaindustrializaoemSoPaulo,foipublicadooriginalmente em:Contexto,n.3,SoPaulo,Hucitec,julhode1977.Posteriormente,foirepublicadocomoumdos captulos do clssico O Cativeiro da Terra (primeira edio datada de 1979). 2do sculo XX. Neste aspecto, o risco de que a evidncia emprica venha a sucumbir fora de uma teoria j consagrada uma possibilidade que muitas vezes se comprova na prtica, numa patente subverso da mxima apregoada por Giovanni Sartori (1982), segundo a qual a lgica no pode substituir a evidncia.Osresultadoscontroversoscausadospelageneralizaoexcessivanose restringem,obviamente,prevalnciadaabordagemdaquestopeloprismada vinculaodosprimrdiosdaindstriaacumulaodecapitaisadvindosdo complexo cafeeiro. A viso corrente de que no pas a atividade fabril no conheceu os estgiosdoartesanatoedamanufatura,tendoemvistaacaractersticatardiado capitalismobrasileiro,queimpsagrandeindstriacomopadronecessrios exignciasdomomentohistricoemqueemergiuaindstrianacional,contribuiu igualmenteparagerardistoresqueumaobservaoempricamaisrigorosa desautorizaria.Noquedizrespeitoaumdosatorescentraisdoprocessode modernizao,oempresariado,oexpedientedageneralizaofoiresponsvelpela difuso de uma definio do comportamento e da ideologia empresarial que mais se destacava por dizer o que essa classe noera, em perspectiva comparada ao de suas congneres nos pases de capitalismo avanado, que em traduzir o significado da conduta de suas diferentes fraes diante de determinadas condies reais de atuao. Nestesentido,aoladodeinterpretaesextremamentenegativas,queatribuemao conjuntodaburguesiaindustrialbrasileirapredicadoscomoamentalidadepr-capitalista,anemiaempreendedora,fragilidade/passividadepolticaedeficincia organizativa, figuram outras de carter mais otimista nas quais, ao mesmo tempo em 3que se nega a viso anterior, subsiste ainda a idia geral de uma classe com pouca habilidade para atuar pela via poltico-partidria e ideologicamente imatura. Nointuitoderealizarumaanlisebalizadapeloscaminhosindicadospelo substratoemprico,apresentamosnopresentelivroumaperspectivadetrabalhona qualnosepartedeumaexplicaoestabelecidaaprioriparaacompreensodo objetodeestudo,masdaconstruodeumintensodilogocomadocumentao, procedimento que orientou as opes tericas a serem feitas. A pesquisa desenvolvida, que tem como objetivo central a investigao acerca da formao social, ideologia e atuao econmico-poltica do empresariado caladista no cluster industrial de Franca (SP), buscou alicerce em um corpus documental tanto farto quanto diversificado, com o fim de construir uma interpretao que mais se aproximasse da experincia concreta dessegruposocial,enoemmeraconjecturadepensamentobaseadaem generalizaes tericas. O recorte temporal considerado o compreendido entre 1920 e 1990, perodo que marca uma trajetria de emergncia, consolidao e crise crnica do setor caladista em nvel local. Nestaempreitada,entreasfontespesquisadasconstamlivrosderegistro comercial,inventrios,financiamentosindustriais,falncias,processoscriminais (especialmenteosreferentesusura),hipotecasehabilitaesdecrdito,almde jornaiserevistaslocaisedecirculaonacional,revistasespecializadasdosetore entrevistas com empresrios e executivos ligados ao segmento. A pesquisa dos livros deRegistrodeFirmasComerciaisdoCartriodoRegistroGeraldeHipotecase AnexosdeFrancatornoupossvelolevantamentodosnomesdeempresase empresrios entre 1900 e 1969. A pesquisa dos inventrios cumpriu o propsito de 4vislumbraranaturezadocapitalindustrialqueestevenabasedosurgimentoe posteriorevoluodoparquefabrillocal,permitindo,mediantemanuseiodedados empricosconsistentes,traarumesboodasorigensdaburguesiadocaladoem Franca.Asinformaesresultantesdapesquisadosinventriosserviramaindas reflexes pertinentes apreenso do padro de conduta econmica do empresariado e tambm ao entendimento das formas de financiamento indstria local. Buscou-se a investigaonoapenasdosinventriosrelacionadosaosindustriaisemsi,mas tambmdaquelesreferentesaosseusascendentes(paiseemalgunscasosavs);a inteno da pesquisa de inventrios desta ltima natureza foi tentar verificar, sempre que houve documentos disponveis, a evoluo do capital e do patrimnio familiar dos empresrios, assim como obter informaes mais precisas sobre sua origem social. Na pesquisa dos processos de falncias, assim como dos documentos auxiliares ao seu entendimento,buscou-seapreendernodiscursodosfalidosedosperitosque examinaram os processos, elementos que subsidiasse a tarefa de averiguar a origem do capitaldasempresas,aorigemsocialdosindustriais,asformasdecondutados empresrios e as formas de organizao das fbricas, entre os aspectos mais relevantes. A pesquisa dos financiamentos industriais permitiu verificar o momento histrico em que os industriais locais passaram a ter acesso regular ao crdito oficial, assim como o perodo em que esse processo teve o seu fluxo intensificado, quais foram as principais agnciasdeconcessodecrdito,quaisosprazoseosjurosmdiosdesses financiamentos,quaisosprincipaisdestinosdadosaosfinanciamentosequais empresasusufrurammaioresbenefcios.Osdemaisdocumentoscartoriais 5pesquisados cumpriram o importante papel de auxiliar o entendimento da dinmica expressada pelas fontes comentadas acima.importanteressaltarquetivemosnasfontesdaimprensaoprincipal substratodocumentalsreflexessobreopensamentoeaodoempresariado caladista, haja vista no haver disponibilidade de fontes originadas nas instituies s quais esse grupo social esteve vinculado. As atividades de empresas e empresrios e os principaisproblemasepleitosdaindstriacaladistadeFrancaforamfartamente noticiadospelaimprensalocal,assimcomosemostrourecorrenteapublicaode documentos produzidos pelas entidades de classe, a reproduo de leis, projetos de leis e relaes de componentes dos diretrios municipais dos partidos polticos. Por meio dasfontesdaimprensa,foipossvelaapreensododiscursoedasvinculaes polticas de empresrios industriais, assim como o conhecimento de suas opinies a respeito de questes do setor caladista e tambm quanto a problemas nacionais mais abrangentes. De igual forma, notcias veiculadas e documentos publicados nos jornais forneceu pesquisa subsdios valiosos acerca da organizao empresarial e das formas delutadogruposocialemnvellocal.Estasfontespossibilitaram,tambm,a apreensodaaomodernizadoradosempreendedoresemseusnegcios.Na realizaodasentrevistas,buscamoscomplementosinformaesobtidaspor intermdio da imprensa, alm de um entendimento bsico acerca da dinmica concreta de funcionamento e organizao da indstria do calado em Franca e no pas. Talsubstratoempricofoicrucialparaqueconsegussemosresponderaos questionamentosinerentesaotematraandoumcaminhonahistria,enosua margem. A opo foi por ter a teoria como instrumento, no como fundamento. Para 6uma melhor organizao da discusso o livro foi dividido em duas partes. Na Primeira Parte,procuramosrespondersperguntasacercadaformaodoempresariado caladista, enquanto na Segunda Parte a discusso est assentada nos questionamentos referentesideologiaeatuaoeconmico-polticadosindustriais.Oprimeiro captulo trata da influncia da cafeicultura e seus limites na explicao do surgimento da indstria do calado no municpio de Franca; em linhas gerais, indaga-se se seria possvelpensarnaburguesiacafeeiracomomatrizdoempresariadocaladistaou mesmoseoscapitaisdocafrepresentaramfontedefinanciamentodiretoe/ou indireto para esse grupo social. No segundo captulo a problemtica analisada a das origens sociais do empresariado; neste aspecto, a interrogao recai sobre a seguinte questo:levando-seemcontaadinmicadocapitalismobrasileironasprimeiras dcadasdosculoXX,foipossvel,nessaindstria,aconversodeartesos,ex-operrios e pequenos comerciantes condio do patronato?J o terceiro captulo, o ltimodaPrimeiraParte,propeareflexoacercadanaturezadoscanaisde financiamento indstria do calado, procurando identificar a origem dos recursos que deram alento ao funcionamento das fbricas ao longo do perodo estudado. O quarto captuloiniciaaSegundaPartedolivrotrazendoumbalanodasprincipais interpretaes acerca da atuao e do pensamento da burguesia industrial brasileira; pretende-se, com isso, oferecer um painel com as principais abordagens que tiveram lugar nas Cincias Sociais do pas desde a dcada de 1940 at os nossos dias que sirva de referencial para as reflexes de base emprica dos dois captulos finais. No quinto captulo, a nfase incide sobre o comportamento econmico do empresariado caladista; neste caso, as principais perguntas a serem respondidas so: pode-se dizer 7que esse grupo social apresentou uma conduta empreendedora? Pode-se atribuir ao seu comportamentocaractersticasdeumaticaeconmicaracional?Porfim,osexto captulo trata da atuao poltica, ideologia e organizao de classe dos industriais do calado;oobjetivodetaldiscussoindagarseoethospolticoapresentadopelo empresariado local corresponde ao mesmo padro negativo imputado pela literatura especializada ao conjunto da burguesia brasileira.Naspginasqueseguem,asrespostasaosquestionamentosacima mencionadostornarampossveldelinearoperfildeumafraoburguesacom caractersticas prprias, portadora de uma historicidade particular, assim como o de muitas outras cujas histrias ainda esto por serem escritas. Nesse empreendimento, teve papel fundamental o esforo de procurar compreender as especificidades de um processodeindustrializaoquecontouigualmentecomtraossingulares,muitas vezes bastante distintos daqueles apresentados pelas generalizaes sobre o tema. P R I ME I R A P A R T E AFORMAO 9 Apresentao Pensar as condies que tornaram possvel o surgimento da indstria do calado no municpio paulista de Franca, tendo como substrato a reflexo acerca da formao do empresariado que protagonizou esse processo, so as questes primordiais que orientam as discusses presentes na primeira parte deste livro. A indstria caladista local constitui omaiorplofabricantedecaladosmasculinosdopas,abrigandoatualmentecercade 400fbricas,comproduoanualemtornode30milhesdepares(6%daproduo nacional)evaloresdeexportaoquechegaramaUS$97,5milhesem20026%do faturamento total das exportaes brasileiras de calados naquele ano. Podemos destacar, tambm,que11%damo-de-obraempregadahojenessesegmentofabriltrabalhanas fbricas localizadas em Franca2.Vale lembrar, entretanto, que a indstria caladista local foi ainda mais imponente eexpressivanosanos80,momentoquemarcaoaugedosetoremFranca.Noanode 1984, por exemplo, em que foram exportados mais da metade dos 32 milhes de pares de calados(11,6%daproduonacional)fabricadosnomunicpio,ofaturamentocomas vendas para o exterior atingiu a marca de US$ 164,5 milhes, o equivalente a 15% do total dasexportaesbrasileirasdecalados3.Taisnmerosadquiremmaiorrelevnciase considerarmos o papel crucial assumido pela atividade exportadora na agenda econmica do pas no perodo; empenhados em captar divisas em moeda estrangeira, com o fim de garantir o necessrio equilbrio em face do balano de pagamentos, os governos militares 2 Informaes baseadas em ABICALADOS (2002). 3 Informaes baseadas em GORINI (2000). 10procuraram,pormeiosinstitucionaisosmaisdiversos,impulsionarasvendasbrasileiras nomercadoexterno.Emtrabalhodesenvolvidonadcadade1970,HlioNogueirada Cruzassimdescreveaimportnciaassumidapelaindstriacaladista:estesetorda economia brasileira tem adquirido crescente relevo devido crescente gerao de divisas, queatenuaosgravesproblemasdenossaBalanadePagamentos(1976,p.2).Deste modo, no foi sem razo que o parque industrial de Franca tornou-se objeto de inmeros estudos,bemcomodeinvulgaratenodispensadapelaimprensaerepresentantesdo poder poltico, sobretudo, no seu perodo de maior destaque, entre as dcadas de 1970 e 19804.Interessa-nosaqui,portanto,indagaraorigemdocapitalquefinanciouos primeirospassosdaconstituiodesseparquefabril,quesetornoutoimportanteno contextoeconmiconacionaldosanos70e80eaindamantmposiodesignificativa proeminncia nos dias atuais, no obstante o reconhecido declnio derivado da gradativa perdadecompetitividadenomercadointernacionalapartirdosanos90.Interessa-nos, sobretudo,averiguaraorigemdosatoresresponsveispelaemergncialocaldessa indstria,queomesmoqueperguntar:quaisasrazesdoempresariadodocaladoem Franca?Estassoperguntasbsicasqueprocuraremosrespondernodesenrolardesta primeiraparte.Comisso,pretendemosapresentarnoesbasilaresacercadas caractersticas essenciais desse empresariado para, na segunda parte do livro, analisarmos suas formas de ao e pensamento. 4Dadcadade1970atosnossosdias,algumasdezenasdetrabalhosacadmicosforamescritos estudandodeformaexclusivaouparcialaindstriadocaladoemFrancaemseuperododemaior xito.DentreosdemaiorexpressocitamosCRUZ(1976),REIS(1992),REIS(1994),OLIVEIRA (1996), CASTRO (1997), SILVA (1998), TOSI (1998), GORINI (2000), SUZIGAN (2000), PICCININI (2001). 11Chamamosaatenoparaofatodeque,porrazesqueseexplicitaromais claramentenodecorrerdotexto,optamosporrestringirnossoobjetodeanliseao empresariadoligadofabricaodocaladopropriamentedito.Duranteapesquisa pudemosperceberqueoscurtumeseosdemaissegmentosfabrisquesurgiramcomo apndicedessesetor,empenhadosnaproduodecomponentesparacaladoscomo soladosdeborracha,palmilhas,frmaseprodutosqumicos,entreoutros,apresentam nvel tecnolgico e estruturao produtiva distintos em relao indstria do calado; por isso,nessesoutrosramosaformaodecapitais,osurgimentodeempreendedoreseos interessesempresariaisnoraroacabaramporassumircontornosdiferenciados5.Sendo assim,comoosfabricantesdecaladossonossoprincipalfocodeinteresseintelectual, porconstituremoncleocentrale,porconseguinte,maisrepresentativodo empresariadolocal,decidimosexcluirdenossaspreocupaesossignatriosdasoutras indstriasqueorbitamemtornodasfbricasdecalados,adespeitodaexistnciade importantes empresas e empresrios a elas vinculados. 5Senaindstriadesoladosdeborrachaatecnologiamaisavanadaeomaiornveldeautomao determinamadiferenaentreovolumedecapitaisempregadosemcomparaocomaindstriado calado,nocasodoscurtumesosinteressesespecficosdosetorquedoatnicaprincipalda distino: historicamente freqente o conflito entre as fbricas de calados e os curtumes em virtude da exportaodocouroemestadosemi-acabado(wet-blue),procedimentoquetornaescassaepor extenso mais cara no mercado nacional a principal matria-prima do setor caladista. 12Captulo 1 Caf e indstria: recorrncia inevitvel certamenteinevitvelarelaoentreosprimrdiosdaindustrializaono Brasileaacumulaodecapitaisadvindadaeconomiacafeeira.Emvirtudedaprpria importncia desta discusso, este livro tem na relao entre a cafeicultura e indstria a sua problemticainicial,asertratada neste primeiro captulo. Entretanto, como se ver, no nosfurtamosapercorrercaminhosdistintosdostrilhadospelosautoresaquidiscutidos quando a interpretao do processo histrico assim o exigiu.Desde a dcada de 1940, tornou-se praticamente consensual na bibliografia sobre otemadaindustrializaooestabelecimentodevnculosinescapveisentrecafe indstria,noraroconcebendo,porextenso,aburguesiacafeeiracomoamatrizda burguesiaindustrialbrasileira.Emobrasdosanos40e50,autoresdeestudosquese tornaramclssicos,comoCaioPradoJr.eCelsoFurtado,jtratavamaquestodando significativanfaserelaoentrecafeiculturaeindstria6.Porm,foiemumtextode Fernando Henrique Cardoso, escrito em 1960, que tal abordagem ganhou contorno mais abrangenteeadquiriuostatusdeinterpretaohegemnicanombitodaliteratura acadmica.EmCondiessociaisdaindustrializao:ocasodeSoPaulo,Cardoso props, de forma pioneira, uma explicao da industrializao brasileira que ultrapassava oterrenodasconsideraesmeramenteeconmicasacercadesseprocesso.Conforme argumenta,qualquerquefossearealidadeinvestigada,umestudosobreotemadeveria suportambm,comorequisitobsico,aexistnciadecertograudedesenvolvimento 6 As referncias, nestes casos so PRADO Jr. (1993), cuja primeira edio datada de 1943, e FURTADO (2000), editado pela primeira vez em 1959. 13capitalista e, mais especificamente, supor a pr-existncia de uma economia mercantil, oquelogicamenteimplicariaemconceberaexistnciadeumgraurelativamente desenvolvidodadivisosocialdotrabalhonasociedadeemquesto(1969,p.188)7. Seguindo essa linha de raciocnio, Cardoso observa que a transformao do regime social de produo que possibilitou o advento da atividade industrial no pas ocorreu no bojo da expansocafeeirarumoaooestepaulista,resultandonaintensificaodaorganizao capitalistadavidaeconmica.Nointeriordesseprocesso,trsconstataesmerecem destaque:1)asubstituiodotrabalhoescravopelamo-de-obralivrecontribuiuparao surgimentodeumaestruturamercantilgeneralizada;2)aracionalizaodaempresa econmicacafeeiraforouaconversodosantigossenhoresemempresriosde mentalidadecapitalista;e3)ofinanciamentoecirculaodaproduocafeeiraexigiram empreendimentosdeinfra-estrutura(bancos,ferrovias,portos,estradas,etc.)queforam essenciais para o posterior estabelecimento da indstria. Emoutrosestudosderefernciadosanos60,70einciodos80,autorescomo OctvioIanni(1963),WarrenDean(1971),MariadaConceioTavares(1972),Wilson Cano (1998)8, Srgio Silva (1976), Jos de Souza Martins (1986)9 e Joo Manuel Cardoso de Mello (1984)10, entre os mais importantes, assumiram e aprofundaram, ainda que com algumas variaes, a perspectiva do capital cafeeiro como ncleo dinamizador da indstria nopas11.NaanlisedeWilsonCano,porexemplo,ocaftemumsignificadoamplo, assumindo o papel de elemento que orienta a economia interna e externamente e cria as 7 Tal texto foi publicado originalmente na Revista Brasiliense, n. 28, So Paulo, maro-abril/1960. Utilizamos aqui a referncia de sua publicao no livro Mudanas Sociais na Amrica Latina, de 1969. 8Aprimeiraediodatadade1977.Foioriginalmenteapresentadoem1975comotesede doutoramento. 9 A primeira edio datada de 1979. 10 Originalmente apresentado como tese de doutoramento em 1975. 11Mesmoautoresqueenfatizaramopapeldoimigrantecomoelementofundamentalnaformaoda burguesiaindustrialbrasileira,comoSilva(1976)eDean(1971),reservaramposiodedestaqueaos bares do caf como a matriz dessa classe. 14condiesparaaintensificaodoprocessodedesenvolvimentocapitalista.Segundo afirma esse autor: O caf, como atividade nuclear do complexo cafeeiro, possibilitou efetivamente o processo de acumulao de capital durante todo o perodo anterior crise de 1930.Istosedeveu,nosaoaltonvelderendaporelegerado,mas, principalmente,porseroelementodiretoreindutordadinmicade acumulaodocomplexo,determinandoinclusivegrandepartedacapacidade para importar da economia brasileira no perodo. Aogerarcapacidadeparaimportar,ocafresolviaseuproblemafundamental queeraodasubsistnciadesuamo-de-obra,atendiasexignciasdo consumodeseuscapitalistas,snecessidadesdeinsumosedebensdecapital paraaexpansodaeconomia,bemcomoindicavaemqueoEstadopodia ampliar seu endividamento externo (CANO, 1998, p. 136). Partindodosmesmospressupostos,JooManuelCardosodeMelloargumenta ainda que foi o vazamento de excedentes de capital da cafeicultura para outros negcios que permitiu a maior parte das inverses na atividade industrial a partir das duas dcadas finaisdosculoXIX.Conformeressaltaoautor,oslucrosgeradospelocomplexo cafeeironoencontravamespaonessemesmoncleoprodutivoparaasuaplena reaplicao12; desta forma,haviaumvazamentodocapitalmonetriodocomplexoexportadorcafeeiro porqueaacumulaofinanceirasobrepassavaaspossibilidadesdeacumulao produtiva.Bastava,portanto,queosprojetosindustriaisassegurassemuma rentabilidadepositiva,garantindoareproduoglobaldoslucros,paraquese transformassem em decises de investir (MELLO, 1984, p. 144). Em face deste quadro interpretativo, a constatao de que a burguesia industrial tevesuaorigemsobretudonograndecapitalcafeeirofoiumaconseqncianatural13.A 12SegundoMello(1984,p.143),trsrazesemespecialcontriburamparaodirecionamentodos excedentesdocapitalcafeeiroparaaatividadeindustrial:1)oritmodeincorporaodeterrasest adstritoadeterminadasexignciasnaturais,comotempodedesmatamento,pocadeplantio,etc.;2)a acumulaoprodutiva,umavezplantadoocaf,emgrandemedidanatural;e3)asdespesascoma remuneraodaforadetrabalhoreduzem-se,entreoplantioeprimeiracolheita,praticamenteao pagamento da carpa; no o encontravam, do mesmo modo, nas casas importadoras, porque a capacidade de importar cresceu, seguramente, menos que as margens de lucro, transformando a produo industrial interna na nica aplicao rentvel para os lucros comerciais excedentes.13Entenda-secomograndecapitalcafeeiroafraodaburguesiacafeeirasignatriadeinverses financeirasqueultrapassavamoslimitesdalavoura,multiplicando-seeminvestimentosnocomrcio (armazns,casasdeexportaoeimportao),ferrovias,exploraodeserviospblicos(gua,luz, 15concepo segundo a qual a diversificao dos investimentos e a complexidade alcanada nagestodosnegciostransformarammuitoshomensdocafemindustriais proeminentes,encontrouecoemexemploscomoosdeAntoniodaSilvaPradoeElias PachecoJordo(VidrariaSantaMarina),AntoniodeLacerdaFranco(TecelagemJapy), AntoniolvaresPenteado(Cia.PaulistadeAniagens),AugustodeSouzaQueiroz(Cia. MecnicaeImportadora),GabrielSilvaDias(CompanhiaMcHardy),almdemuitos outros.WarrenDeanchegoumesmoaafirmarqueaquasetotalidadedosempresrios brasileirosveiodaeliterural.Eacrescenta:Porvoltade1930nohaviaumnico fabricantenascidonoBrasil,originriodaclasseinferioroudaclassemdia,emuito poucos surgiram depois (DEAN, 1971, p. 54). inegvelapertinnciadasanlisesquevinculamaindustrializaobrasileira dinamizaodosexcedenteseconmicosdacafeicultura.Entretanto,pensamosquetal relaoeconmicanodevaserassumidadeantemocomoanicaexplicaoparaos processosdedesenvolvimentoindustrialquetiveramlugar,sobretudoemterritrio paulista,entreoltimoquarteldosculoXIXeasprimeirasdcadasdosculoXX.As facilidadessedutorasdeumateoriaprontaeacabadapodem,porcerto,desestimularo pesquisadorairalm.Nocasodenossoobjetodeestudo,acreditamosquefatorestais comoaformaohistrico-econmicadomunicpioeasespecificidadesdotipode indstria em questo, somados observao rigorosa das variaes locais de desempenho dacafeicultura,devamserconsideradosetambmadmitidoscomodeterminantesna tarefadecompreenderaemergnciadaatividadefabril.Emnossoesforodepesquisa, percebemosqueodesvendamentodasorigensdoempresariadodocaladoemFranca

transporte),bancoseindstrias.Paraumadefiniodograndecapitalcafeeiro,verSILVA(1976). Para uma anlise detalhada da dinmica do grande capital cafeeiro e sua hegemonia econmica e poltica em face dos interesses da lavoura ver PERISSINOTTO (1991, Vol I, especialmente o Captulo 1). 16exigiapermearcaminhosqueultrapassavamasfronteirasdocapitalcafeeiro,elemento queisoladoseriainsuficienteparaexplicarosurgimentodeumaindstriaperifrica,de baixssimonveltecnolgicoecomfortesvnculoscomoartesanatodocouro,e capitaneada por homens de parcos capitais.Coerentemente com o acima enunciado, julgamos que uma breve reflexo acerca daformaodomunicpiodeFrancasejaoprimeiroelementoalanarluzsobres origens da indstria do calado local. 1.1. Reminiscncias: a pecuria e a tradio coureira Francaestlocalizadaemumaregiohistoricamentevoltadapecuria,oque, porconseguinte,proporcionouaabundnciadocouronessasparagens.Deacordocom Caio Prado Jr., desde fins do sculo XVIII, (...) os criadores mineiros comeam a descer a Mantiqueira, indo estabelecer-se em So Paulo, na regio que flanqueia a serra a oeste, de Franca a Mojimirim (PRADO Jr., 2000, p. 199, grifo nosso). Segundo o historiador, excluindoosCamposGerais(Paran),entopertencentesaSoPaulo,estaregio queapresentamaioresrebanhosdegadovacumdaprovncianorecenseamento de 1835 (2000, p. 212, nota 32, grifo nosso). No Rio Grande do Sul, conforme assinala LgiaGomesCarneiroemseuestudoacercadaorigemdaindstriacoureiro-caladista gacha, a tradio de criao do gado vacum,que no estado remonta s misses jesuticas chegadas no incio do sculo XVII, teve influncia decisiva no aparecimento primeiro da indstria curtumeira, nas primeiras dcadas do sculo XIX e, posteriormente, da indstria docalado,emfinsdomesmosculo.Antesdosurgimentodaatividadefabril propriamente dita, o trabalho de tratamento do couro e o artesanato desta matria-prima 17jhmuitoestavadifundido,atmesmoentreosndiosdasreduesjesuticas (CARNEIRO, 1986).Uma condio histrica em especial, entre outras de menor relevo, possibilitou o estabelecimentodeummercadoconsumidorparaosprodutosderivadosda transformaodamatria-primaoriginadadaatividadecriatria,assimcomoo escoamento para Franca de couros vindos de outras regies: a Vila Franca do Imperador foi um dos principais entrepostos da chamada Estrada dos Goiases, importante rota de comrcioqueligavaacapitaldaprovnciadeSoPauloaossertesdeGoiseMato Grosso14.Poressaestradalevava-segado,courossalgadosecereaisparaosulafimde serem trocados, sobretudo, por sal e artigos manufaturados; a importncia do entreposto francano nesse caminho pode ser medida pela prpria identificao do sal comercializado nas transaes ao longo da Estrada dos Goiases como sal da Franca15. 14DeacordocomJosAntonioCorreaLages,oroteirodoentodenominadoCaminhodosGoiazes buscava sempre as partes mais altas, preferencialmente prximas s cabeceiras dos ribeires para facilitar astravessias,correndorentelinhadefronteiraqueconsolidoumaistardecomacapitaniadeMinas Gerais.(...)Oseutranscursofacilitadoporumatopografiasuavequenooferecenenhumobstculo srio.Asaltitudesnoultrapassam700metros,apenasentreoSapucaeoRioGrandeatingem1.000 metros.(...)Ocaminhoeraoprincipaleixodepenetraoparaointeriorpossibilitando,almdo comrcio, a penetrao da justia e da administrao naqueles vastos sertes (LAGES, 1995, pp. 22-23).15 O sal extrado diretamente da gua e que entrava pela Estrada dos Goiases ficou conhecido como sal de Franca em diferena do que era extrado da superfcie da terra. O comrcio do sal foi durante muito tempoimportantepararegioeosinteressesemdisputanestaatividadeseestenderammuitoalmdas fronteiras locais. Em 1887/1888, por exemplo, a Cia. Paulista de Estradas de Ferro e a Cia. Mogiana de Estradas de Ferro e Navegao, esta ltima detentora da concesso para o transporte ferrovirio na regio, entraram em conflito em razo da competio pelo mercado do sal. Segundo Hilrio Domingues Netto,aPaulistanoanode1887acusouainterfernciadaMogiananosnegciosdosalqueera comercializado com o interior, alegando que aquela empresa havia reduzido o frete do produto para lhe fazerconcorrncia,motivodainflexonegativadacurvadotrfegode1887para1888.Reagindo,a diretoriadaPaulistamandoureduzirosfretesnasestaesdePitangueirasePontal,porm,asduas empresasentraramemumacordo,eaPaulistaacabounoalterandoovalordesuastarifas(2001,p. 146). 18Mapa 1 Estrada dos Goiases Odinamismoeadiversidadedasatividadesque,pormeiodastrocasinter-regionais,movimentavamaeconomiafrancananosculoXIXpodemserconfirmados nos escritos de Daniel Pedro Mller, que em 1838 ressaltava: concomitantemente com a agropecuria, o comrcio do sal e gneros diversos praticados na estrada dos Goyases, daFrancaaimportnciadegrandeentrepostocomercial(MLLER,1923apud OLIVEIRA, 1997, p. 57). Llio Luiz Oliveira argumenta que, apesar de serem comuns as afirmaesdequeasatividadesvoltadasparaoabastecimentonotenhammerecidodo Estadoumapolticaespecfica,houvepelomenosalgumreconhecimentodasua importncia,bemcomodarepresentatividadedeFrancanessecontexto.Trechosdeum memorialdosecretriodogovernodeSoPaulo,CoutinhoSouzaChichorro,ao governador da Provncia, Conde de Palma, datado de 1814, ilustram tal assertiva: 19Distandoaquelafreguesia[Franca]79lguasdestacidade[SoPaulo]e90do PortodeSantos,oseucomrciosdeveconsistiremgadosegnerosde fbricas, aquelas porque se movem a si mesmos e estes porque so gneros de muito valor (OLIVEIRA, 1997, pp. 53-54). Nomesmosentido,umcomentriodeEmliaViottidaCostaacercado abastecimento da zona de Campinas, que a partir da dcada de 1860 se firmava como rea deexpansodaeconomiacafeeira,tornando-setambmimportantecentromercantil, revelaqueFrancaocupavaumlugarsignificativonocomrciointer-regional.Segundo Costa, o grande fluxo de mercadorias chegadas a Campinas de comarcas distantes, seja da Provncia de So Paulo, seja de Minas Gerais, se tornou uma constante:Estaslheenviavamseusprodutos:algodo,toucinho,feijo,queijo,que,da, eram distribudos. S de Franca chegavam, naquela poca, de quinhentos asetecentosvagesqueeramremetidosparaSantoseRiodeJaneiro, em carretas e tropas de mulas (1998, p. 66, grifo nosso). Poroutrolado,paraatenderasnecessidadesdostropeirosemercadoresque transitavam pela afamada Estrada dos Goiases, um dos mais importantes caminhos de boiadas16,osartesoslocais,desdeadcadade1820,jproduziamarreios,sapatesde atanado17,sandlias,coberturasparacarrosdebois,bainhasparafacas,lombinhos18, silhes19,badanas20 e canastras, entre outros artigos de couro21. Certamente, foi o fluxo intenso de couros por esta estrada que estimulou o surgimento de curtumes em Franca j 16SegundoogegrafoPierreDeffontaines,passavaporaavelhaestradaqueserviadetransporteao gado que descia de Minas para ser engordado nesta zona de erva; as fazendas so sobretudo invernadas, isto,estaesdeengordaparaosrebanhosquechegamdaszonaspioneirasdonorteedooeste;o caminhodeFranca,chamadoestradafrancana,aindaumdosmaisimportantescaminhosdeboiadas. (1945, p. 19). 17 Couro curtido em tanino, matria extrado da casca do barbatimo. 18 Acessrio que substitui a sela comum, o selim e o serigote. 19Selacomestriboapenasdeumdosladoseumarosemicircularapropriadoparaassenhoras cavalgarem de saia. 20 Pele macia e lavrada que se coloca sobre o coxinilho. 21DeacordocomDalvaMarleneChiocaRinaldi,porvoltade1824jexistiamemFrancaartesosdo couro, como os Prado, os Gonalves e os Vale, especializados na manufatura destes artigos (1987, p. 11). Foramextradosdessaobraosesclarecimentosacercadosartigosdecouroproduzidospelosartesos locais mencionados nas quatro notas anteriores. 20na dcada de 1880. Em 1886, o padre Alonso Ferreira de Carvalho, fabriqueiro da igreja matriz22,montouumpequenocurtumeCurtumeCubatoque,segundoDalvaM. ChiocaRinaldi,destinava-seaoaproveitamentodocouroquechegavacomtropeiros vindosdeMinas,GoiseMatoGrosso,amarradosemfardosnoslombosdosburros (CHIOCA,1987,p.12).Vinteanosapsafundaodeseuprimeirocurtume,vendido em1890,Pe.Alonsofundoutambm,em1906,oCurtumeProgresso.Comosever maisadiante,vendidopelopadreaCarlosPachecodeMacedoem1917,oCurtume Progresso,totalmenteremodeladoemodernizadoapsasuavenda,traduziu-senum marcoparaaindstriadocouroedocaladolocal.Almdafacilidadenaobteno regulardecouros,outrosdoismotivospodemtercontribudoparaainstalaodos curtumesemFranca:aexistnciadeguaem abundncia em virtude dos diversos rios e crregosquecircundamaregioeafortepresenademadeirasricasemtanino, substncia utilizada no curtimento do couro23. Tambmimportanteparaofuturodosetorcoureiro-caladistaemFrancafoio surgimentodoCurtumeEliasMotta,em1908,apsacompraemodernizaodo Curtume Cubato por Elias Motta, um ex-aprendiz de seleiro e sapateiro na dcada de 1890quenosanos20veioaseconstituiremimportantecapitalistalocal24.Ocapitalda 22Ofabriqueiro,ouaquelequecuidadaFbricadaIgreja,oresponsvelpelaadministraodo patrimniodaigreja,zelandopelosbensquepertencemdeterminadaparquia.SegundoJlioCsar Bentivoglio, eram uma espcie de contadores, encarregados de gerenciar rendas da parquia, efetuando compras,pagamentos,contratosdeaforamentos,tudosobasupervisoeconsentimentodovigrio geral. No podiam dispor de quaisquer bens da Igreja sem comunicar e receber autorizao do bispado (1997, pp. 106-107). 23SegundoMariadaConceioMartinsRibeiro,nessasmesmasterrassoencontradosdiversos indivduosvegetaisdosquaisoprincipal,peloseuvalorindustrial,obarba-timo,usadodesdeos tempos mais antigos no preparo dos couros (1941, p. 139). 24 Ao que tudo indica, pela anlise do inventrio da esposa de Elias Motta, seu capital advinha de aluguis de imveis na cidade de So Paulo e Franca. Em 1925, cerca de um tero do patrimnio de Elias Motta, avaliadoemmaisde576contosderis,eraconstitudoporimveisresidenciais,sobretudoemSo Paulo; outro um tero compunha-se do curtume e duplicatas a receber relacionadas ao movimento deste eorestantedeumapequenapropriedaderuraledvidasativas,presumivelmentereferentesa emprstimos por ele concedidos (Inventrio de Maria Seraphica Motta, 1925). 21empresa no momento de sua fundao, cinco contos de ris, demonstra que, poca, no se tratava de um empreendimento de grande porte. Em 1912, Motta passou alguns meses noRioGrandedoSul,estadoondeaindstriacoureirajseencontravabastante desenvolvida, a fim de estudar e se capacitar no que diz respeito ao trato do couro; no ano seguinte, instalou em Franca o que viria a ser o segundo curtume mecanizado do estado de So Paulo o primeiro havia sido o gua Branca, na Capital (CHIOCA, 1987, pp. 14-15).Osucessodainiciativafoitamanhoqueem1917EliasMottaestabeleceufilialem SoPaulo,quefuncionavacomodepsitoedistribuidoradosseusprodutos,inclusive calados,quetambmpassaraafabricar;talempreendimentoevidenciaqueosnegcios do curtume j na dcada de 1910 extrapolavam os limites do mercado local e regional.TantonocasodoCurtumeEliasMotta,quantodoremodeladoCurtume Progresso,importantequeseretenhaofatodequeoaparecimentodecurtumes modernos e mecanizados representou um avano tcnico considervel no que diz respeito produodecourosdemaiorqualidade,colocandodisposiodosfabricanteslocais matria-primaapropriadaparaofabricodesapatosmaisrefinados,oquemuito possivelmentelhesabriuasportasdemercadosmaispromissores,sobretudonosnovos centrosurbanosquesedesenvolviam.Aoquetudoindicatambm,apossibilidadede contarcommatria-primafartaeprxima25eapresenamarcantedoscurtumes,desde finsdosculoXIX,influramdecisivamentenaafirmao,emFranca,deumatradio manufatureiravinculadaaobeneficiamentodocouroefabricaodecalados.Se pensarmosnosignificativopreodosfretesnomomentodesurgimentodaindstria 25DoscourosutilizadosnoscurtumesdeFranca,49,71% provinham do prprio municpio e de cidades prximas,comoBarretos,Orlndia,Cravinhos,Pedregulho,Ituverava,IgarapavaeSoJoaquimda Barra;outros48,02%provinhamdeMinasGerais(sobretudodeUberabaeUberlndia,noTringulo Mineiro) e de Gois (NASCIMENTO & MOREIRA, 1943, Seo Indstria e Comrcio, p. III). 22coureiro-caladistalocal,obarateamentodoproduto,derivadodaarticulao representadapelaobtenodamatria-primaeseubeneficiamentonomesmoespao geogrficoondeseoperavaasuatransformaoemmercadoriaacabada(nocaso,o sapato),podesertambmumdosfatoresaexplicaraboareceptividadedocalado francano no mercado a partir dos anos 20/30. Comosepdedepreenderatomomento,aeconomialocaljapresentava caractersticasquefavoreceramoaparecimentodoartesanatoemanufaturadocouro antesmesmodaemergnciadalavouracafeeiracomoatividadehegemnicano municpio, cujo perodo de maior vitalidade pode ser situado entre 1890 e 1920. Passamos agora reflexo acerca dos efeitos do surgimento da cultura do caf para o setor fabril em questo. 1.2. A influncia da cafeicultura: alcance e limites Primeiramente,norestadvidadequeoscapitaisdacafeiculturacontriburam para ampliar o mercado consumidor local para as atividades ligadas ao couro. Traduzindo aatraoexercidapelocaf,umaplantaquedemandavaumacrescentequantidadede braos para o seu cultivo e manuteno, a populao do municpio cresceu 341,32% entre 1886 e 1920, passando de 10.040 para 44.308 habitantes (TOSI, 1998). Entre 1920 e 1930, passoua55.715habitantes,crescendo26%.Oaumentodapopulaolevou,domesmo modo, expanso dos negcios relacionados ao couro e ao calado. Em 1901 existiam em Franca dois curtumes, uma fbrica de calado e quatorze oficinas de sapateiro (TOSI, pp. 126-128). Conforme pudemos constatar na pesquisa dos livros de registro de empresas do CartriodoRegistroGeraldeHipotecaseAnexos,de1901at1920foramregistrados 23mais oito curtumes e quatro fbricas de calados no municpio, alm de onze oficinas de sapateiroque,certamente,tambmfabricavamsapatosporencomenda.Entre1920e 1930, foram dezesseis as fbricas registradas, mais dez curtumes e cerca de uma dezena de oficinas. Dos44.308habitantesqueFrancacontavaem1920,6.193eramimigrantes, especialmenteitalianos(2.889)eespanhis(2.281),perfazendo21,35%dapopulaototal(FALEIROS,2002).Noobstanteagrandemaioriadestesestrangeirosteremse encaminhadoparaocampo,paraotrabalhonoscafezais,acrescentepresenade imigrantesematividadesurbanas,facilmenteobservvelemdocumentosapartirdefins do sculo XIX,denota que o caf exerceu tambm o papel de elemento de atrao de um expressivocontingentedemo-de-obraqualificadaqueserviuemergnciaou aperfeioamentodediversasindstrias26.Conformeveremosnosegundocaptulodeste livro,aparticipaodoimigrante,particularmentedositalianos,foidecisivaparaa evoluodaindstriadocaladoemFranca.Dasprincipaisempresasquemarcarama consolidao da cidade como um plo caladista importante, quase todas foram iniciadas poritalianosoufilhosdeitalianosque,commodestoscapitais,deramapartidapara construodeempreendimentosquesefirmariamgradativamenteaolongodealgumas dcadas.Paraquenosefaainjustiaprivilegiandoapenasacontribuioitaliana,cabe mencionar que o maior grupo empresarial caladista local teve origem na iniciativa de um sapateirofilhodeespanhis,nacionalidaderepresentantedosegundomaiorcontingente de estrangeiros em terras francanas. Aeconomiacafeeirapropiciouaindaoincrementodavidaurbanaeo 26 Alm dos curtumes e das fbricas de calados, nas duas primeiras dcadas do sculo XX Franca contava tambm com fbricas de cervejas, cigarros, fsforos e macarro, entre outras de menor expresso. Para uma descrio destas outras indstrias, ver TOSI (1998, especialmente o captulo 4). 24aparelhamentoinfra-estrutural,aexemplodainstalaoderedeeltricaede abastecimentodeguaeesgoto,necessriosaosurgimentoeevoluodasfbricas.Por umlado,evidentearadicalidadedestastransformaes.Umbomexemplopodeser observadonoimpactocausadopelainstalaodaferroviaem1887;almdefacilitaro escoamentodasmercadoriasproduzidaslocalmente,oquepossibilitouacrescente exportao de alimentos e a transposio das fronteiras locais para os couros, calados (sobretudosapates)eselasmanufaturadosemFranca,contribuitambmparaa expanso do ncleo urbano original, que acabou se polarizando entre o bairro onde surgiu a estao ferroviria e o centro da cidade27. Outro exemplo a remodelao da cidade por partedopoderpblicoapartirdaltimadcadadosculoXIX;questescomoa racionalizaodoespao,higienizaoeembelezamento,materializaram-sena preocupaocomoplanejamentoefuncionalidadedotraadourbano,naimposio legislativadaassepsianoshbitosdapopulaoeamultiplicaodepraasejardins, imprimindoamarcadeumasociedadequesemodernizavaapassoslargosnooutrora denominadoBeloArraialdoSertodoCapimMimoso28.AimponnciadoTeatroSanta Maria, construdo em 1913 e remodelado em 1924, com capacidade para 1.400 pessoas, e do Hotel Francano, inaugurado em 1929, ajudaram a dar um toque de glamour a esta era de hegemonia do caf 29. 27Paraumavisoabrangentedoimpactodaferrovianavidaeconmicalocal,verTOSI(1998, especialmenteoscaptulos2e3).Paraumaanliseacercadaquestodapolarizaodaurbeemdois centros hegemnicos, ver FOLLIS (1998). 28ParaumaanlisedetalhadadaevoluourbanadeFrancanoperododehegemoniadaeconomia cafeeira, ver FOLLIS (1999). 29Noobstanteserumdosmaioresempreendimentosfinanciadospormembrosdaelitecafeeirade Franca,oHotelFrancanosurgiuumtantotardiamente,seconsiderarmosqueomomentomais dinmicodacafeiculturalocalseencerranoincionadcadade1920.Emsuasmemrias,ojornalista PauloDuartecitaumcomentrioacercadaprecariedadedoshotisfrancanosfeitoem1910aseupai por Joo Antunes de Arajo Pinheiro, representante local na Cmara Federal, quando este o convenceu a aceitar sociedade para a instalao do Hotel So Rafael: o sr. Sabe que a Franca no possui um hotel decente,osdoisprincipaisexistentesnoestoaltura(1976,vol.1,p.218).Em1923,aimprensa 25Entretanto,noquedizrespeitoadeterminadosaspectosdainfra-estrutura urbana,julgamosserprudenteconsideraraintensidadedetaismudanascomcerto critrio.Oserviodeenergiaeltrica,porexemplo,vitalatividadeindustrial,permaneceuprecrioatmeadosdosculoXX.Em1907,ojornalTribunadaFrancadenunciavaopreoexorbitante[pagopor]umaluzruime,oquemaisgrave,inconstante (TribunadaFranca,11.04.1907,p.1,grifonosso).Damesmaforma,emdiversasoutras ocasiesindustriaislocaisforamimprensaouaostribunaisreclamardoinstvel fornecimentodeenergiaeltrica30.Quantoiluminaoeltrica,aprimeiratentativade dotar Franca deste servio se deu em 1901, no entanto, fracassada. At 1904 a iluminao pblicacontinuouaserfeitapormeiodelampiesquerosene,passandoeletricidade emabrildaqueleano,quandoaCia.PaulistadeEletricidade,sediadaemLimeira, inaugurou tal melhoramento; conforme ressaltado pela imprensa, o servio da companhia, almdecaroaoscofrespblicos,erade pssima qualidade (FOLLIS, 1999). Apenas em fins de 1909, vencidos os efeitos da crise de 1898/1906, bastante sentida pela cafeicultura em Franca (FALEIROS, 2002), que investidores locais se associaram e fundaram a Cia. FrancanadeEletricidade,passando,apartirdoanoseguinte,afornecerserviosde eletricidadeeiluminaodeformaumpoucomaisestvel;em1912,amesmaempresa adquiriu tambm a concesso dos servios telefnicos. Com efeito, de acordo com Follis (1999),aquestodaenergiaedailuminaofoitnicaconstantedeprotestoseabaixo-assinadosdoscidadosfrancanosentreasdcadasde1910e1930e,peloquesepode depreenderdaopiniomanifestadaem1913peloTribunadaFranca,atelefonialocal

aindachamavaaatenoparaanecessidadedeumhoteldegrandeportenacidade,assinalandoque Ribeiro Preto e at mesmo cidades menores que Franca, como Bebedouro, possuam hotis de grandes dimenses (O Alfinete, 19.04.1923). 30 Ver, por exemplo, as aes pblicas movidas por diversos industriais contra a companhia de eletricidade localem1933easnotciaspublicadas,em1945e1946,acercadereuniesdeempresriosfrancanos paratratardaquestodofornecimentodeenergiaeltrica(RegistroGeraldeTtulos,DocumentoseOutros Papis, B-4, docs. 732, 748, 769, 772 e 912; O Francano, 07.09.1945, p. 1 e 01.09.1946, p. 1). 26tambmnosofreumelhorassignificativasnoperodo:sabidodetodosoestado deplorvelemquesempretivemosesteramodeserviotonecessrio(Tribunada Franca, 30.08.1913, p. 1). SegundoFollis,oabastecimentodeguaeraigualmenteprecriopoca, constituindo-senoprincipalproblemadeFrancanoperodoentre1890e1940. Conforme observa este autor, at fins dos anos 30, bairros j bastante povoados estavam no s desprovidos de rede de esgoto como de gua encanada (1999, p. 123), inclusive o Bairro da Estao, que disputava com o centro da cidade o status de ncleo urbano mais prspero e habitat das elites, abrigando grandes estabelecimentos comerciais, escritrios de agenciamento de caf, armazns e indstrias, empreendimentos atrados pela proximidade da ferrovia; at 1938 o Bairro da Estao possua rede de esgotos em apenas uma rua (Dr. JorgeTibiri)eabastecimentodeguabastantedeficiente.Noquedizrespeitoaum dos aspectos estticos cruciais da urbe, Follis salienta que at o incio da dcada de 1920 asruasdeFrancapermaneceramsemnenhumtipodecalamento,sendoqueas principais ruas da rea central da cidade, onde residia a maioria dos membros das classes abastadas,comearamasercaladasapenasem1923(1999,p.132).Comosev,tal paisagem parece distante do cenrio de uma belle poque caipira financiada pelos capitais da cafeicultura. Um aspecto a mais a ser destacado como fruto da implantao da lavoura cafeeira no municpio foi a monetarizao da economia por ela propiciada. As negociaes de caf e o pagamento de salrios aos colonos em moeda corrente contriburam para a expanso da circulao de capital nas transaes de compra e venda, estimulando ainda, com isso, o incremento do comrcio e da indstria: ao favorecer a demanda por bens de consumo, a ampliaodomeiocirculanteincentivouainversoemempreendimentososmais 27variados.Onmerodearmaznsdesecosemolhados,porexemplo,cresceu surpreendentementeentre1877e1912,passandode25a138chegandoaser190em 1901. Fbricas de calados, cerveja, licores, cigarros, sorvetes, alm de tipografias, olarias, serrariasemuitosoutrosnegciosespecializados,surgiramparaatenderademandade umapopulaoquecadavezmaispassavaaternodinheirooseuprincipalmeiode troca31. O surgimento de casas bancrias, como a de Chrysgono de Castro, fundada em 1893,ecasacomerciais,comoaCasaHyginoCaleiroeaCasaGuerner,onde emprstimosajuros,descontodettuloseordensdepagamentoeramcomuns32, confirmam a maior intensidade do fluxo de capitais a partir da emergncia da cafeicultura. Todavia,tambmnesteaspectofaz-senecessriotomarodevidocuidadode interpretaoparaquenovenhaasesuperestimaradimensolocaldesseprocessode expansodacirculaodecapitais,noatentandoparaosseusbvioslimites.Em primeiro lugar, importante lembrar que a instalao de bancos comerciais em Franca foi bastantetardiaesefezdemodoprecrio.DeacordocomMariadaConceioMartins Ribeiro,apenasem1912foiinstaladooBancodeCusteioRural,sendoesseoprimeiro estabelecimento desse gnero a aparecer naqueles sertes. Segundo Ribeiro, este banco fracassou,porm,commuitarapidez,falindoem1919.Somenteem1921quefoi instalado o Banco Comercial de do Estado de S. Paulo e ano e pouco depois o Banco do Brasil(1941,p.152).Nomesmosentido,Faleiroschamaaatenoparaofatodeque, noestudodosbancospaulistasrealizadosporFlvioSaes33,nenhumaCasaBancria 31Paraumquadrodescritivodosestabelecimentoscomerciaiseindustriais,assimcomodasocupaese profisses em Franca nos anos de 1872/1877, 1901, 1911 e 1912, ver TOSI (1998, pp. 126-128). 32 Este tipo de procedimento era comum nas grandes casas comerciais da poca. Segundo Flvio Saes, as formasprimitivasdeemprstimosdedinheiroacompanhamosprimeirosestgiosdodesenvolvimento comercialedacirculaomonetria.Alis,nopoucasvezescomercianteeusurrioconfundem-sena mesma pessoa at que haja certa especializao tpica do capital (SAES, 1986, p. 61).33 A referncia bibliogrfica aqui a mesma da nota anterior. 28francana foi considerada em seu texto, denotando que no cenrio dos Bancos do Interior osdeFrancanoalcanavammaiordestaque(2002,p.158).Osefeitosdessarealidade so descritos pelo jornal Tribuna da Franca em 1919:sabidoportodosqueopequenocomrcio,aindstriaemesmoos proprietriosagrcolas,acham-seprivadosdoauxliobancriodosgrandes institutosdecrdito,eassimabandonados,soforadosarecorreraocrdito particular,sujeitando-seaosjurosonzenriosde5%emesmo10%aoms, com grave dano para o seu progresso nos ramos da atividade (Tribuna da Franca, 25.05.1919, p. 1). Deoutraparte,caberessaltarumacondioquejulgamosfundamentalparao entendimentodadinmicadacafeiculturaedeseuscapitaisemFranca:aobservao criteriosadaespecificidadedaestruturafundirialocal,assimcomodapouca expressividadedalavouracafeeiradomunicpioemcomparaocomoutroscentros produtoresdereconhecidaimportncianaregio,comoRibeiroPretoeSoSimo34. SeriaumgraveequvocopensaremFrancacomoumacidadeondeaagricultura restringiu-semonoculturacafeeiraparaaexportaoassentadaemgrandes propriedades,oumesmoondeocapitalcafeeiroatingiuvultuosasdimensesefez dezenasdegrandesfortunas,disseminando-seporatividadesasmaisvariadascomo bancos, ferrovias e indstrias, entre outros. Uma breve reflexo sobre o tema revela muito mais uma economia marcada pela escassez de capital e pelo baixo nvel de acumulao da incontestvelmaioriadeseuselementosativos,queumasociedadecaracterizadapela opulncia dos homens do caf ou pela magnitude dos smbolos dessa hegemonia, como aconteceu em outros centros produtores a exemplo de Ribeiro Preto. 34 Ribeiro Preto passou a ser o centro da zona cafeeira paulista a partir das duas dcadas finais do sculo XIXatadcadade1920,representandoaexpansodaproduodochamadoOesteVelho(regiesde Campinas,LimeiraeRioClaro)paraoOesteNovo,quegeograficamentecorrespondeaonordesteeao norte paulista. Na regio de Ribeiro Preto estavam estabelecidos alguns dos maiores fazendeiros de caf doperodo,comoFranciscoSchimidt(com7.885.154cafeeiros),MartinhoPrado(com2.112.700)e Henrique Dumont (com 1.500.000) (MONBEIG, 1984). 29Em Franca sempre predominou a pequena propriedade. De acordo com Faleiros, mesmocomaformaoeodesenvolvimentodacafeiculturanoseverificaum processo mais amplo de concentrao de terras, muito pelo contrrio, por mais paradoxal quepossaparecer,quantomaisavanamosnotempomaisaspequenaspropriedadesse impemcomoconformaodominante(2002,p.4).ConformeassinalaFaleirosem recenteestudo,portodoosculoXIXpredominavammodestoscriadoresdegadoe lavradores de pequenas culturas de alimentos (2002, p. 4); e quando o caf se estabelece como cultura principalno se verifica no espao em questo um processo mais amplo de concentrao de terras e capitais que desalojam os pequenos fazendeiros e impe o latifndio eotrabalholivrecomorealidades.Ocaf,desdelogo,nasceestreitamente ligado s pequenas posses (2002, p. 21) . NoGrfico1podemosobservarapredominnciadapequenapropriedade cafeeira nas lavouras do municpio nas duas primeiras dcadas do sculo XX: Grf i c o1Caf ei c ul t oresepl ant a esent re1901e1920 C a f e i c u l t o r e s e p l a n t a e s e n t r e 1 9 0 1 e 1 9 2 08%46%13%12%8%7%6%menos de 1.000 psde 1.000 a 5.000 psde 5.001 a 10.000 psde 10.001 a 20.000 psde 20.001 a 40.000 psde 40.001 a 100.000 psmai s de 100.000 psFonte: FALEIROS (2002, p. 67). Note-se que mais de dois teros dos cafeicultores locais possuam lavouras com at 10 mil ps de caf, sendo que quase a metade situava-se na faixa dos mil a cinco mil 30cafeeiros. Se compararmos estes nmeros com os de alguns dos principais municpios da chamadaAltaMogiana,veremosqueemFrancaseencontravaamaiormdiade pequenosprodutoresdaregio(Grfico2)35. Onmeromdiodecafeeirospor propriedade em Franca evidencia igualmente a modesta magnitude das plantaes locais. Enquanto em Ribeiro Preto a mdia de 152.480 ps por propriedade, em Franca essa mdia de 20.382 quase 7,5 vezes menor. Em localidades como Cravinhos e Serra Azul o nmero mdio de ps de caf plantados por propriedade ultrapassa a casa dos 100 mil; emSoSimo,Sertozinho,SoJoaquimdaBarra,OrlndiaeJardinpolisamdiafica entre 50 e 100 mil (BACELLAR, 1999). Grf i c o2Porc ent agemdasl avourasc omat 10mi l psdec af naAl t aMogi ana Alta Mogiana: porcentagem das lavouras com at 10 mil ps de caf67,00% 61% 55,90% 53,40% 50,20% 48,80% 46,20% 40% 39,70% 38,70%8% 31,70% 41,10%0%10%20%30%40%50%60%70%80%Serra AzulCravinhosBatataisPedregulhoFranca Fonte: Baseado em BACELLAR (1999, p. 132). 35 Os principais ncleos urbanos da regio nordeste de So Paulo, servida pela via frrea da Cia. Mogiana e por isso chamada de Alta Mogiana, eram as cidades de Ribeiro Preto, Altinpolis, Batatais, Brodsqui, Cajuru,Cravinhos,Franca,Guar,Igarapava,Ituverava,Jardinpolis,Nuporanga,Orlndia,Patrocnio doSapuca,Pedregulho,SantaRosadeViterbo,SantoAntoniodaAlegria,SoJoaquimdaBarra,So Simo, Serra Azul e Sertozinho. 31Aprepondernciadapequenapropriedadee,porconseguinte,dapequena lavouracafeeira,serefletiunonveldeacumulaodosproprietrios,assimcomona dinmica de circulao de capitais. Analisando 835 inventrios de proprietrios entre 1901 e1920,FaleirosrevelaqueemFrancaagrandemaioriadosdetentoresdebensderaiz (imveisdequalquernatureza)situava-senafaixacujopatrimnioperfaziaentreume cinco contos de ris, sendo que a segunda faixa de maior destaque seria a de menos de umcontoderis;osrepresentantesdessasduasfaixas,quasesemprepequenos lavradoresqueviviamdapoliculturaoudominifndiocafeeiro,compunhammaisda metade do total de inventrios pesquisados (2002, p. 139). Faleiros nos chama a ateno aindaparaofatodequeessespequenosproprietriospossuampoucosrecursosem formadedinheiro,sendoesteumtipodebemquesomava,emnvellocal,menosde 10%detodaariquezaacumulada.Noporacaso,oautoracusaumcenriodebaixa monetarizaoemtermosconcretos,existindoalgumaspoupanas,todavia,diminutas em relao s outras formas de riqueza presentes (2002, p. 140)36. Prevalecendo em Franca o minifndio, as pequenas plantaes de caf e o baixo nvel de acumulao, o municpio ocupou uma posio residual no interior do complexo cafeeiro.Adespeitodeestarlocalizadaemumaregioqueassumiuadianteirada produodecafnopasapartirdadcadade1890,tendoemRibeiroPretooseu ncleo principal, Franca teve importncia secundria se considerarmos o volume de caf produzidoporoutraslocalidadesdonordestepaulista. No havia em Franca produtores de expresso: em 1902, com a cafeicultura j consolidada, entre 294 produtores apenas 4 36TalanliseseencontraemumtpicodotrabalhosugestivamenteintituladoInventrios:ODomnio da Pobreza. Para este autor, ainda que os dados pesquisados denotem uma baixa monetarizao, no se podeafirmarqueacategoriadinheiroestavadetodoausente.Conformeobserva,oprpriofatodeas safras futuras de caf serem caracterizadas nos inventrios como dinheiro revela que se tratava de uma economia monetarizada. 32possuam mais de 100 mil ps de caf; o maior produtor, Joo de Faria, era proprietrio de185milcafeeiros.Da,Bacellardizerque, naAltaMogiana,seconsideradossomente os20maioresproprietriosdepsdecafpormunicpio,tem-seconfirmadaagrande concentrao da lavoura cafeeira em Ribeiro Preto, seguida por Sertozinho, So Simo, Cravinhos e Orlndia, onde estavam situados os maiores complexos cafeeiros, com mais de500milps(1999,pp.128-129).Em1924,apenasAndrMartinsAndradepossua mais de meio milho de cafeeiros em Franca, com 567 mil ps de caf plantados. Mesmo sendoFrancaosegundomunicpiomaisimportantedaregio,alavouracafeeiralocal apresenta nmeros menos expressivos que os de cidades como Sertozinho e So Simo e, em alguns anos, Cravinhos e Batatais. Vejamos a seguir: Tabel a1Nmerodecafeei rosnospri nci pai smuni c pi osdaregi o Ps de caf em produo, por safra Municpio1914-19151919-19201924-1925 FrancaRibeiro Preto 7.380.98031.394.36511.727.80031.394.36512.000.00031.395.000Sertozinho14.750.000 15.620.000 15.620.000So Simo 14.520.000 22.000.000 18.600.000Cravinhos11.289.000 11.289.000 10.786.000Batatais7.454.750 9.737.200 6.831.000Fonte: Baseado em BACELLAR (1999, p. 125). Outrosnmerossaltamaosolhosecontribuemparareforarnossoargumento acerca da posio residual ocupada por Franca na zona cafeeira do nordeste paulista. Em 1912,enquantotodososprodutoreslocaiscontavamcom7.380.980cafeeiros, produzindo 626.024 arrobas, um nico produtor ribeiro-pretano diga-se de passagem, 33omaiorsuperavaestamarca:FranciscoSchimidt,proprietriode7.885.154cafeeiros, produziu naquele ano 700.000 arrobas (BACELLAR, 1999; TOSI, 1998; GARCIA, 1997). Quando comparamos Franca com o municpio de So Carlos, uma das ltimas fronteiras do chamado Oeste Velho, constatamos o mesmo contraste. Em 1902, momento em que a cafeicultura local comeava adentrar seu melhor perodo, o nmero de cafeeiros plantados era da ordem de 4.222.500. Na mesma poca, o nmero de ps de caf plantados em So Carlos alcanava 25 milhes. Em 1909, um dos melhores momentos da produo cafeeira local,ototalproduzidochegavaa794.560arrobas;nomesmoano,oscafeeirosdeSo Carlos,emplenadecadncia,produziramquaseodobro:1.501.472arrobas(TRUZZI, 2000). significativo desta posio residual ocupada por Franca no complexo cafeeiro o fato de a cidade ter sido ameaada a ficar de fora dos planos da Cia. Mogiana de Estradas deFerroeNavegaonomomentoemqueaempresatevequesedecidirsobreo percurso mais adequado para a linha tronco do prolongamento entre o municpio de Casa Branca e o rio Grande, na divisa de So Paulo com Minas Gerais, tendo como destino a partirdaalocalidademineiradeUberaba.Indiferenteaoqueoscronistasdapoca chamavamdecaminhonaturaldaMogianaparachegaraorioGrande,passandopor So Simo, Cajuru, Altinpolis, Batatais e Franca, Martinho Prado Jnior lanou em 1882 umasriedeartigosnojornalAProvnciadeSoPaulodefendendoamudanado traadodaferrovia,quedeveria,segundoseuentendimento,passarporRibeiroPreto rumoaUberaba,deixandoFrancaeBatataisdireitadalinhatronco.Sabe-seque MartinicoPrado,comoerachamado,foiumdosprincipaisrepresentantesdogrande capitalcafeeiroemSoPauloetinhainteresseseconmicosnaregio,ondechegoua possuir posteriormente, em Ribeiro Preto e circunvizinhanas, quase trs milhes e meio 34de ps de caf. Depois de muitos estudos e debates, em 1887 a ferrovia chegou a Franca, tendo sido inaugurada em Ribeiro Preto em 1882. Com efeito, o que se pode depreender dapolmicageradaemtornodestaquestoqueFranca,comobemlembraFaleiros, apesar da volumosa populao, no reunia condies e potencialidades de atrair por suas prpriasforasostrilhosdaMogiana(2002,p.57);conformeargumentaoautor,a recusainicialdesecolocaracidadecomoumdostrajetosdoscaminhosferropodeser explicada pelo modo de insero do municpio no complexo cafeeiro: a predominncia da pequena e mdia propriedade, (...) a no existncia de terra roxa (...) e todo um conjunto populacional voltado a outras atividades de certa formaapresentariamresistnciaimplantaodocafnosmoldesatento aplicados, e os administradores que definiam os prolongamentos [das ferrovias] sabiam disso. Isso com certeza foi significativo (2002, p. 59). Diantedadiscussoempreendidaataquiacercadacafeiculturaeseus desdobramentos em Franca, podemos presumir que o nmero de representantes daquilo quepodemoschamardegrandecapitalcafeeiro,ouseja,signatriosdeinvestimentosque ultrapassavamoslimitesdalavoura,estendendo-seaocomrcio,bancos,ferroviase concesso de servios pblicos, no foi grande. Segundo Renato Monseff Perissinoto,essegrandecapital,emboradiversificado,temumcarterpredominantemente mercantilepodeserdefinidocomoumaburguesiacomercial.acamada superiordaburguesiacafeeira.(...)Naeconomiacafeeiradapoca,osmaiores produtoresdecaf,osmaioresfazendeiros,faziamparte[dessa]camada superior da burguesia cafeeira (PERISSINOTO, 1991, pp. 25-26). EmFranca,poucossooselementosdacafeiculturaquepoderamosdestacar nestacategoriae,mesmoassim,seusinvestimentosnoextrapolaramaconstituiode casasbancriasdeinflunciaapenaslocalecasascomerciaisquetinhamaatribuiode emprestardinheiroedescontarttulos.ChrysgonodeCastro,umdosdezmaiores cafeicultoresdoperodo,com90milcafeeiroseproprietriodeumacasabancria fundadaem1893,certamenteumdosmaisimportantesrepresentantesdestegrande 35capitalquevaialmdasfronteirasdasplantaespropriamenteditas.JosGuernerde Almeida, proprietrio da Casa Guerner e de 160 mil cafeeiros, e Hygino Caleiro, dono de casacomercialcomseunomeepossuidorde130milpsdecafnoinciodosculo, tambmfiguramentreosnomesmaisproeminentesdestacategoriadecapital (FALEIROS,2002).ModestinoGomesumcasointeressantederepresentantedo capitalcafeeiroqueprimeiroinvestiunaindstriaedepoisseimiscuiunosnegciosdo caf;antesdeseestabelecercomocomissriodecafecereaisem1929,Gomesfoi proprietrio de fbrica de arreios fundada em 1920 e tambm de curtume de considervel porte com capital de 150 contos entre 1927 e 1929 (Registro de Firmas Comerciais; Revista Comrcio da Franca, 01.05.1956, p. 22). No entanto, a atividade de capitalista de Modestino Gomesseiniciouantesdesuarelaocomacafeicultura;seunomecompealistados maiorescredoresnafalnciadoCurtumeProgresso(1926),tendosidoeleumdos sndicosdoprocesso.Aforaestasfiguras,poucasoutrassedestacam,sendoque importantes nomes do setor cafeeiro em Franca tinham exclusivamente na lavoura o seu principal negcio. De acordo com diversos autores que estudaram direta ou indiretamente a relao entrecafeindstria,foiograndecapitalcafeeiroque,emgrandemedida,financiouo surgimentodaindstriaemSoPaulo.Essecapital,cujaessnciapredominantemente mercantil e financeira, buscou ao mximo a diversificao de suas inverses, encontrando naindstriaumadasformasrentveisparaareproduodosrecursosquetinhasua origemprimeiranacafeicultura37.Senoconjuntodaindstriapaulistatemosinmeros 37 Conforme observa Srgio Silva, os grandes capitais isto , a camada superior da burguesia cafeeira definiam fundamentalmente uma burguesia comercial. Os mdios capitais isto , a camada inferior da burguesiacafeeiradefiniamsobretudoumaburguesiaagrria,cujafraqueza(resultantedofraco desenvolvimentodocapitalismoaonveldeproduo)aaproximavadeumasimplesclassede proprietrios de terra (1976, p. 61). 36exemplos da presena do grande capital cafeeiro na atividade fabril, como os de Antonio daSilvaPrado(VidrariaSantaMarina),AntonioPereiraIgncio(FbricadeTecidos Votorantin)eoutrosjmencionadosnoinciodestecaptulo,emFrancano encontramosindciosdequeestecapitaltenhaparticipadodosurgimentodaprincipal indstria local, ou seja, a do calado. Entre os provveis representantes do grande capital cafeeirolocalnoencontramosnenhumquetenhainvestidonaindstriadocaladoat meados dos anos 50, quando o setor comea a se consolidar em Franca. Tampouconospareceterhavidoinvestimentosdiretosdecafeicultoresdeuma forma geral nesta atividade. Realizando o cruzamento dos nomes de proprietrios das 562 indstriasdecaladoscadastradasentre1900e1969noslivrosdeRegistrodeFirmas Comerciais do Cartrio de Registro Geral de Hipotecas e Anexos de Franca com diversas listas de cafeicultores publicadas em almanaques e em monografias de rgos pblicos das quatro primeiras dcadas do sculo XX, no encontramos nenhum nome comum s duas atividades38. Na pesquisa com inventrios o mesmo ocorreu.Aoquetudoindica,emrazodesuasmodestaspossesagrandemaioriados cafeicultoresnopossuacondiesdeinvestiremoutraatividade,eaospoucos representantes locais do grande capital cafeeiro no parecia atrativo o risco da inverso de recursosemumaindstriaperifricacomoadecalados,emgrandemedidaainda artesanal,demo-de-obraintensiva,adisputarmercadocomumgrandenmerode oficinasmantidasporartesosdocouro.Reforaoargumentodequepareceterhavido resistnciadosdetentoresdocapitalindstriadocaladoofatodequealguns cafeicultoresinvestiramemcurtumes,atividadefabrilquedopontodevistatecnolgico poderiaserclassificadapoca,segundoWilsonCano,comointermediria,em 38TaislistasdecafeicultoresforamconsultadasemFRANCO(1902,p.177-84),NASCIMENTO& MOREIRA (1943, Seo Agrcola; p. 2), TOSI (1998,Vol. II, Anexos IV e V) e FALEIROS (2002). 37contraste com a fabricao de calados, classificada no grupo das de tecnologia simples (CANO,1998)39.Nomesdecafeicultorescomo os de Osrio de Paula Marques40, Joo CaetanoAlves41edocomissriodecafModestinoGomes42aparecemnosregistrosde curtumes.Damesmaforma,AntonioTorresPenedoFilho43,filhodeumdosmaiores cafeicultoresdaregionosanos30,aparececomosciodeumagrandeindstriade soladosdeborrachavulcanizadaem1944;sabe-sequeonveldemecanizaotambm nessaindstriamuitomaiorquenaindstriadocalado.OswaldoSbiodeMello salienta que o investimento de proprietrios rurais na fabricao do calado propriamente ditosedeuapenasapartirdaconsolidaodosetornosanos50,porcertoestimulados pelo significativo xito obtido por diversas empresas locais no perodo (MELLO, 2001). Combasenasreflexesdesenvolvidasacima,pensamosserpossvelasseverar queoempresariadocaladistadeFrancanotemvnculosdeorigemcomaburguesia cafeeira,nosendoestaclasseasuamatrizsocial.Conformediscutiremosnosegundo captulodolivro,oquepoderamoschamardeumaburguesiadocaladooriginou-sedo pequenocapitaldeproprietriosdeoficinasedemodestoscomerciantesqueiniciaram 39Oscurtumeseramumaatividadequeexigiainvestimentosbemmaioresqueaindstriadocalado, sendoqueemFranca,deacordocomnossolevantamento,amdiadecapitalinvertidonesses estabelecimentos ultrapassava em cerca de trs vezes o das fbricas de sapatos. 40 Proprietrio de 8 mil ps de caf recebidos em herana em 1916, conforme inventrio do mesmo ano. Foitambmco-proprietriodecurtumeregistradoem1920comcapitalde20:000$000eumdostrs sciosdecurtumeregistradanomesmoanocomcapitalde150:000$000.(InventriodeJoaquimdePaula Marques, 1916). 41Proprietriode10milpsdecaf.Foitambmco-proprietriodecurtumeregistradoem1908com capital de 10:000$000. 42NoobstantesituarmosModestinoGomescomorepresentantedograndecapitalcafeeiro,seunome temgrandeidentificaocomaindstriacurtumeira,setornoqualparticipoudegrandes empreendimentosdesdeosanos20atfinsdadcadade1960.Foiscio do Curtume Unio, scio-proprietrio do Curtume Della Torre, em conjunto com seu genro Antonio Della Torre, e tambm do S.Barros&Cia.,emconjuntocomseufilhoSebastioLeonedeMelloBarros(RegistrodeFirmas Comerciais; Revista Comrcio da Franca, 01.05.1956, p. 22). 43 O pai de Antonio T. P. Filho, Antonio Torres Penedo, foi proprietrio de 300 mil ps de caf, deixados em herana conforme meao em inventrio de 1944. Penedo Filho foi um dos trs scios da indstria de solados para calados Borracha Manaus, fundada em 1953 (Inventrio de Magnani Cesira Torres, 1944). 38seusnegciostendoasuaprpriaforadetrabalhocomoelementofundamentaldo empreendimento.Presumimosquepequenas poupanas e/ou emprstimos de familiares como foi comprovado pelas fontes em alguns casos tenha sido o ponto de partida das empresas. Analisando a origem dos investimentos nas empresas industriais paulistas, Luiz CarlosBresserPereira(2002)tambmrelativizaaimportnciadocapitalcafeeiroparao surgimentodaatividadefabrilemSoPaulo;segundoconstata,emmaisde3/4das empresas os fundos iniciais que financiaram o surgimento do negcio vieram do prprio empresrio ou da famlia.Demaneirageralparecenoterhavidomaioresvinculaesentreocapital cafeeiro e a indstria do calado. Grandes fbricas do Rio de Janeiro e So Paulo, como a Cathiard & Alaphillippe (RJ), Bordallo & Cia. (SP), So Paulo Alpargatas (SP)e Calados Clark(SP),foramconstitudascomcapitalestrangeiro:asduasprimeirastinhamorigem francesaeasduasltimasinglesa.ParaoutrascomoaLameiroMarciano&Cia.(RJ), FerreiraSouto&Cia.(RJ)eCoelhodaRocha&Cia.(SP),decapitalnacional,no encontramosindciosdessaligao.NaMiguelMelillo&Cia.,terceiramaiorfbricade caladospaulistananadcadade1910,nota-seapresenadeumagenteeconmico recorrentenaindstriadeFranca:oimigranteitaliano;epeloquesepodeinferirda observao da lista das principais empresas da cidade de So Paulo em 1928, neste ncleo este seria o nexo mais comum quando o assunto a fabricao de calados44. No que diz respeito ao interior paulista, pouco se sabe sobre as suas fbricas de calados; todavia, se 44 Em So Paulo, alm da fbrica de Miguel Mellilo outras grandes empresas do setor tiveram origem no empreendimento de italianos ou de pessoas de origem italiana, como a Ernesto Luchetta, Domingos Marelli&Cia.,DAcontti&Borelli,E.Dedivitis&Bottoni,VicenteNapoli&Cia.e Scatamacchia&Cia.,almdeoutrasligadas a proprietrios de outras etnias. A relao dos principais fabricantesdecaladosdacidadedeSoPauloencontra-seemTOSI(1998,VolII,AnexoV).As demaisinformaessobreempresascaladistasbaseiam-seemSUZIGAN(1986,pp.176-190)e CARONE (2000, pp. 116-118). 39considerarmosossobrenomesdamesmalistaobservadaparaaCapital,confirma-sea relaoentreosetorestudadoeoelementoimigrante,sobretudoosoriundosda Pennsula Itlica. interessante destacar, ainda, que em importantes cidades do complexo cafeeiro,comoAraraquaraeSoCarlos,noexistiramindstriasdecalados,no obstante possurem curtumes45.Nas fbricas dos demais principais centros produtores como Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul, a ausncia do vnculo entre caf e indstria do calado evidente. Entreosgachos,comefeito,aorigemdaindstriacaladistapareceseaproximarmais do tipo de desenvolvimento inicial verificado em Franca.Segundo Lgia Gomes Carneiro, emboapartedasempresasdecaladosdaregiodoValedoRiodosSinos,noRio Grande do Sul, o capital adveio da acumulao feita por pequenos artesos, embora nem todososartesosconseguissemacumularosuficienteparacriaremindstrias;conforme observa,asmaioresfbricasdeveriamcontarcomcapitaisadvindosdeoutrasfontes principalmente do comrcio (CARNEIRO, 1986, p. 65). Quando pensamos no financiamento da atividade industrial pelo escoamento de excedentesdaacumulaocafeeiraquesetornamcapitaisdisponveisaocrditono mercado, o que Wilson Cano chama de mascaramento do capital cafeeiro chegamos a resultadosigualmentenegativosparaFranca46.Seestescapitaistomaramocaminhodo precrio sistema bancrio da poca, no chegaram s mos dos industriais do calado. conhecida e amplamente documentada a queixa dos fabricantes de calado locais quanto a inexistnciadecrditosuaatividadenaredebancriatradicional,situaoqueficou 45EmSoCarlosonmerodecurtumeschegavaquaseaduasdezenasnadcadade1910.Paraum quadrodemonstrativodaindstrianosmunicpiosdeAraraquaraeSoCarlos,verLORENZO(1979, pp. 147-150). 46 Cano salienta que a forma pela qual a intermediao financeira se apropriou de grande parte do capital cafeeiro mascarou a sua origem, no se dando conta de que os capitais industrial, financeiro e comercial so eles prprios, fundamentalmente, faces do capital cafeeiro (1998, p. 98). 40patentenainvestigaodefalnciaseinventrios,documentosnosquaisosprincipais credoressoosemprestadoresdedinheiroinformais,oschamadoscapitalistasou,mais vulgarmente, agiotas47. Malgrado alguns homens do caf terem se estabelecido tambm como capitalistas, no encontramos nas fontes pesquisadas elementos que pudessem nos levarconstataodequeocapitalcafeeirotenhafinanciadoaindstriapormeiode fundos captados na rede de transaes financeiras particulares agiotagem da economia local.Conformeveremoscommaioresdetalhes no terceiro captulo, os fornecedores de crditomaiscomumenteencontradosnospapisreferentesaosempresriosdocalado apresentamoutranaturezaeconmica:sogeralmentepequenoscomerciantes, profissionaisliberais,pessoasdepequenaspossesououtrosindustriaisque,porestarem estabelecidosaummaiortempo,seencontravamemmelhorsituaofinanceira.Pelo visto,easreflexesdosegundocaptulocorroboramestaidia,emvirtudedapequena expressodeseusnegcios,pelomenosemseusprimrdiososempresriosdocalado no usufruram de credibilidade suficiente para ganhar a confiana dos capitalistas de maior relevo. Entretanto,nesteaspectonossainterpretaosechocafrontalmentecomoutro importantetrabalhodesenvolvidoacercadaindstriadocaladodeFranca.EmCapitais noInterior:FrancaeaHistriadaIndstriaCoureiro-Caladista(1860-1945),suatesede doutoramento, Pedro Tosi sustenta que o capital industrial do setor coureiro-caladista de Francateveorigemnosexcedentesderendaagrcoladacafeicultura,beneficiando-sede umacertadisponibilidadededinheiro,que,ordinariamente,pdeservirdecapitalde 47EdgardCaronechamaaatenoparaofatodequeaescassezderecursosfinanceirospessoaisa tnicaquecaracterizaosistemabancrionoBrasil,duranteosculoXIXeocomeodosculoXX. Essa a caracterstica do funcionamento dos bancos, tanto os de origem estrangeira, como os nacionais. So,noentanto,osagiotasparticularesou,comosedenominam,oscapitalistasosqueemprestam dinheiro com juros de agiotagem (2000, p. 72). 41emprstimo(1998,p.209).Vemos,dessemodo,umainterpretaodoprocessode surgimento da indstria do calado local que reproduz em parte as anlises correntes. Se no caso dos curtumes houve mesmo algum vazamento para usar a expresso de Joo ManuelCardosodeMellodecapitaisdacafeiculturaparaaatividadefabril,nocaso especficodaindstriadocaladoissonoaconteceu;emesmoquandosetratado segmento curtumeiro, vimos que o surgimento dos primeiros estabelecimentos, como os dePadreAlonsoouEliasMotta,tiveramorigememcapitaisdeprocednciadistintado setor cafeeiro. Tosibaseiaseuargumentosobretudonoestudodedoiscasosespecficos,que foram os das empresas Calados Jaguar e Curtume Progresso, acerca das quais realiza longa anlise dos respectivos processos de falncia. A Calados Jaguar, primeira fbrica mecanizadaaseestabeleceremFranca,foi fundada em 1921 com capital de 150 contos deris,tendocomoprincipaissciosSamuelCarlosFerreiradosSantoseArnaldo PachecoFerreiradosSantos,genrosdeCarlosPachecodeMacedo,comerciantee fabricantedeselasecaladosquecomprouoCurtumeProgressoem1917ese empenhou na sua modernizao por meio de um aporte considervel de capital: de incio, em 1920, 400 contos de ris, perfazendo 800 contos no momento de sua concordata em