Barbosa Por Amor Ou Por Força

download Barbosa Por Amor Ou Por Força

of 283

Transcript of Barbosa Por Amor Ou Por Força

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO

    TESE DE DOUTORADO

    POR AMOR & POR FORA ROTINAS NA EDUCAO INFANTIL

    Maria Carmen Silveira Barbosa

    Prof. Dra. Ana Lcia Goulart de Faria

    COMISSO JULGADORA

    ___________________

    ___________________

    ___________________

    ___________________

    Campinas

    2000

  • 2

    CATALOGAO NA FONTE ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE EDUCAO/UNICAMP

    Barbosa, Maria Carmen Silveira. B144p Por amor & por fora : rotinas na Educao Infantil / Maria Carmen Silveira Barbosa. -- Campinas, SP : [s.n.], 2000. Orientador : Ana Lcia Goulart de Faria. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao.

    1. Creches. 2. Pr - escola. 3. Administrao do tempo. 4. *Educao infantil. 5. Pedagogia da infncia. I. Faria,

    Ana Lcia Goulart de. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

  • 3

    Olhar outra vez para os mecanismos

    e nossas instituies educacionais,

    questionar a verdade de nossos prprios

    e cultivados discursos,

    examinar aquilo que faz com que sejamos o que somos,

    tudo isso abre possibilidades de mudana.

    Jeniffer M. Gore

  • 4

    RESUMO

    A tese intitulada Por Amor & Por Fora: Rotinas na educao Infantil aborda a

    questo do uso das rotinas na educao infantil. Esta pesquisa procura verificar

    como as rotinas chegam ao campo educacional e tornam-se uma categoria

    pedaggica central na educao infantil. A rotina foi analisada como instrumento

    de controle do tempo, do espao, das atividades e dos materiais com a funo de

    padronizar e regulamentar a vida dos adultos e das crianas em creches e pr-

    escolas Os argumentos foram construdos a partir de distintas pesquisas:

    pesquisa bibliogrfica, de materiais empricos variados e pesquisa de campo em

    escolas para crianas pequenas (0 a 6 anos) no Brasil e no exterior. Finalmente

    constatou-se que as rotinas realizadas nas escolas de educao infantil esto em

    profunda relao com a construo da modernidade e que somente a partir de

    uma reflexo contextualizada que se poder ressignificar o seu uso.

    ABSTRACT

    The thesis untiled By Love and By Force: routines in early child education

    considers the use of routines in early child education. This work tries to verify how

    social routines come to day care center and kindergartens and then became a

    central pedagogic cathegory. The routine was analysed as an instrument in the

    control of time, space, activities and materials with the function of standadize and

    regulate the lives of adults and children in educational center for children. The

    arguments were constructed from a bibliografic research, several empiric materials

    and field research in scools for small children located in Brazil and abroad. Finally,

    we found out that the routines used in children education are deeply related to the

    building of modernity and that only by means of a contextualized reflection will we

    be able to give a new meaning to their use as a pedagogic cathegory in children

    education.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A escrita de uma tese, apesar de ser uma tarefa solitria e individual,

    apenas o momento de pr termo a um processo com muitos interlocutores:

    professores, amigos, colegas, livros, revistas, visitas, relatrios de observao,

    imagens, fotos, vdeos, enfim todas as experincias profissionais e pessoais que

    foram sendo constitudas ao longo dos anos.

    Este estudo, como no poderia deixar de ser, o fruto de uma construo

    histrica, tendo sido elaborado em um contexto poltico e social determinado.

    Contexto este no qual a luta poltica parece um pouco acanhada frente tentativa

    de nos fazer crer que no existem outros caminhos a serem percorridos:

    momento de profunda crise na educao e, em especial, nos dois

    setores em que atuo: na universidade pblica e na educao infantil;

    momento especial para os Cursos de Pedagogia que vem o seu

    espao como curso de formao de professores sendo retirado pela

    criao dos Institutos Normais Superiores;

    momento em que a implementao da nova Lei de Diretrizes e Bases

    da Educao Nacional modifica o cenrio das instituies que educam a

    pequena infncia, na medida em que as relaciona rea da educao,

    exigindo uma maior qualificao dos educadores e a elaborao de um

    projeto de educao infantil, mas, ao mesmo tempo, dificultando a

    execuo dessa proposta legal ao diminuir o financiamento da

    educao infantil;

    momento em que as polticas educacionais para a pequena infncia -

    como: o Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil, o

    Referencial Pedaggico Curricular para a Formao de Professores

    para a Educao Infantil e Sries Iniciais do Ensino Fundamental e as

    Polticas de Financiamento - esto sendo elaboradas de modo

    extremamente centralizado, burocrtico e, portanto, autoritrio.

    Apesar de todo esse quadro, encontrei em minha instituio de origem, a

    Faculdade de Educao da UFRGS, o estmulo, a solidariedade e o apoio dos

  • 6

    colegas para realizar o Curso de Doutorado, em tempo integral, contando tambm

    com a bolsa da Capes.

    A trajetria deste estudo iniciou-se a partir das reflexes e dos

    questionamentos sobre as prticas pedaggicas efetuadas no estgio das alunas

    do Curso de Pedagogia. Transformou-se em uma pergunta que foi sendo

    apurada, para ser apresentada como pr-projeto de pesquisa para a seleo no

    Programa de Ps-graduao da Faculdade de Educao da UNICAMP. Agradeo

    ao Departamento de Cincias Sociais Aplicadas Educao, que selecionou o

    projeto, e, em especial, professora Ana Lcia Goulart de Faria, que

    macunamicamente aceitou desafio de orientar este estudo.

    Para esta pesquisa foram muito importantes as disciplinas, as atividades

    orientadas1 as leituras, as reunies com a orientadora e as discusses tericas

    desenvolvidas em sala de aula. As reunies mensais do Grupo de Estudos em

    Educao Infantil, parte integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em

    Educao e Diferenciao Scio-Cultural (GEPEDISC), foram fundamentais para

    a reflexo crtica acerca das questes da educao infantil.

    Quero agradecer a Prof. Dra. Ana Lcia Goulart de Faria que apresentou-

    me, apaixonadamente, a bibliografia italiana sobre a educao infantil e teve a

    pacincia de ler e reler verses provisrias desse texto, levantar questes, abrir

    novos caminhos e batizar esse estudo.

    As conversas com professores, colegas, amigos e amigas da Faculdade de

    Educao da UFRGS tambm foram valiosas, principalmente os participantes do

    Grupo de Educao Infantil (GEIN), os quais me apoiaram nas discusses sobre

    o tema no perodo da qualificao e que proporcionaram-me, com sua presena e

    seu carinho, uma grande vontade de colaborar com a reflexo sobre a infncia e a

    educao infantil. Quero agradecer a Beatriz Vargas Dorneles que, mesmo no

    sendo da equipe, discutiu solidariamente partes desse trabalho.

    Agradeo aos amigos e colegas do Grupo de Educao Infantil da Anped,

    que, ao longo dos encontros anuais, vem me ensinando a complexidade do

    estudo e da pesquisa sobre a educao das crianas pequenas.

    1Gostaria de agradecer aos professores Moyss Kuhlmann Jr., Elisa Kossovitch, e Neusa M. Gusmo a disponibilidade para as atividades orientadas no ano de 1996.

  • 7

    Quero agradecer a presena inquieta e inquietante da Jucirema, colega

    muito especial do Curso de Ps-graduao em Educao da UNICAMP que, aos

    poucos, foi saindo do lugar de colega para ocupar o de amiga.

    Preciso tambm agradecer s instituies de Educao Infantil que

    permitiram o meu ingresso em seus espaos de trabalho para poder realizar as

    observaes. O convvio com os profissionais e as crianas auxiliou no

    redimensionamento da pesquisa e na reflexo do tema.

    A possibilidade de viajar para conhecer formas de organizao da rotina

    diria da educao infantil em outros pases deveu-se principalmente a Irene

    Balaguer diretora da Associao de Professores Rosa Sensat em Barcelona, que

    me propiciou o contato com instituies de educao infantil de Barcelona, Madrid

    e Granada; a Montse Osta que me abriu portas em Matar, tambm na Espanha;

    a Tonina e Anna Lia, que me receberam em Pistoia; a Petra, que me indicou

    escolas em Berlim; e a Jytte, que me mostrou interessantes prticas de formao

    de educadores e escolas de educao infantil na Dinamarca.

    Gostaria de agradecer, de modo especial, aos amigos Carminha e

    Domingos, que me deram a chance de ter uma experincia deliciosa de convvio

    em So Paulo. E a Jaqueline Moll, grande amiga, companheira de trabalho e

    parceira de conversas interminveis, que em todos os momentos tem estado

    presente com sua amizade e carinho.

    Agradeo a meus pais, Gerardo e Carmen, a minhas irms, cunhados e

    sobrinhos e a meu companheiro Rogrio a pacincia, o amor e o cuidado que

    dispensaram comigo. E, finalmente, o meu filho Antnio que, nos ltimos meses,

    tem confirmado a tese de Carmen Craidy de que os filhos so a mais radical

    experincia de vida.

  • 8

    SUMRIO

    RESUMO .........................................................................................................................4

    ABSTRACT.....................................................................................................................4

    AGRADECIMENTOS.....................................................................................................5

    1. PRA COMEO DE CONVERSA..........................................................................10

    1.1 A Educao Infantil no Brasil: Um Novo Campo de Estudos e Pesquisas .14

    1.2 Fazendo Pedagogia, Fazendo Cincia .............................................................19

    1.3 Construindo Pedagogias para a Pequena Infncia ........................................25

    1.4 Questes Centrais.................................................................................................27

    1.5 Caminhos Metodolgicos .....................................................................................30

    2. MAS O QUE SO MESMO AS ROTINAS? ......................................................40

    2.1 Rotina e/ou Cotidiano ...........................................................................................42

    2.2 Sobre o Conceito de Rotinas: as Rotinas Rotineiras.......................................47

    2.3 Sintetizando: Por que Rotinas? Porque Sim!....................................................52

    3. A CONSTITUIO SOCIAL DAS ROTINAS ....................................................54

    3.1 Rezando pelo Mesmo Catecismo.......................................................................55

    3.2 Os Outros: Crianas e Selvagens.......................................................................58

    3.3 Sob as Ordens das Leis ......................................................................................63

    3.4 Escolas e Fbricas: Na Marcha do Progresso .................................................72

    4. O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAO E DE ROTINIZAO DA

    EDUCAO DA INFNCIA ......................................................................................82

    4.1 Infncia, Infncias..................................................................................................83

    4.2 Creches, Jardins, Salas de Asilo... ....................................................................90

    4.3 Pontos de Alinhavo ...............................................................................................98

  • 9

    5. AS PEDAGOGIAS DAS ROTINAS ....................................................................102

    6. A ROTINA ENQUANTO CATEGORIA PEDAGGICA.................................132

    6.1. A Organizao do Ambiente .............................................................................135

    6.2 Os Usos do Tempo .............................................................................................155

    6.3 A Seleo e os Usos dos Materiais..................................................................174

    6.4 A Seleo e a Proposio das Atividades.......................................................188

    6.5 A Padronizao....................................................................................................200

    7. PEDAGOGIAS DA EDUCAO INFANTIL: DOS BINARISMOS

    COMPLEXIDADE.......................................................................................................... 213

    7.1 Pedagogias Antinmicas ....................................................................................216

    7.2 Pedagogias Implcitas e Pedagogias Explcitas ..........................................219

    8. PARA ENCERRAR ESTA CONVERSA...........................................................229

    9. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................237

    10. ANEXOS ...............................................................................................................257

    10.1 Concretizao das rotinas na educao infantil: modelos .........................257

    10.2 Fragmentos do dia-a-dia na educao infantil: palavras ............................266

    10.3 Representaes das rotinas na educao infantil: canes ......................268

    10.4 Fragmentos do dia-a-dia na educao infantil: textos.................................272

    10.5 Representaes das rotinas na educao infantil: imagens ......................282

  • 10

    1. PRA COMEO DE CONVERSA

    Tudo que podemos fazer quando decidimos estudar um assunto descrev-lo de uma maneira particular, que vem somar-se a outras descries possveis.

    Jurandir Freire Costa

    Apesar de estar localizada no incio, a apresentao tradicionalmente

    escrita no final dos trabalhos, e esta tese no pretende fugir regra. No momento

    de reler e no exerccio de pensar criticamente sobre o que produzi antes de

    entregar este texto, verifiquei que novas questes surgiram, outros caminhos

    abriram-se e pude, ento, observar algumas presenas e ausncias.

    Faltam temas que foram abandonados, faltam dados que foram excludos,

    faltam algumas idias que no foram lembradas a tempo, faltam outras que s

    agora so possveis de serem pensadas, pois as perguntas prvias j foram

    respondidas... Creio que a descoberta das faltas sempre acontece quando, depois

    de muitas voltas e revoltas, colocamos um ponto final em um texto. Foi por esse

    motivo que escolhi a citao que inicia o presente captulo e que enfatiza que esta

    tese apenas um dos modos de (re)descrever2 este tema sei que h muitos

    outros caminhos, mas foi por este que optei para construir o meu objeto de

    estudos. 3

    A questo que escolhi estudar foi a do nascimento e da consolidao de

    uma categoria pedaggica: a rotina na educao infantil. Um tema complexo, de

    difcil abordagem, pois no apresenta uma tradio de estudos e pesquisas no

    pas nem limites claros e definidos e, alm disso, est em interconexo com

    vrios outros temas. Apesar de sua amplitude, e talvez justamente em funo da

    mesma, um tema interessante, pois atravessa a teoria e a prtica da pedagogia

    da educao infantil.

    2O termo (re)descrever usado aqui no sentido empregado por Jurandir Freire Costa quando afirma que no existe uma nica verdade: trata-se apenas de redescries contnuas, de relatos e narrativas renovadas, a partir de perspectivas eticamente aceitveis, defensveis ou desejveis (1994, p.8) 3Nos itens 1.4 e 1.5 ser apresentado o problema de pesquisa e os caminhos metodolgicos utilizados para percorr-lo.

  • 11

    A idia de estudar as rotinas na educao infantil est vinculada de alguma

    forma a uma interrogao central, e profundamente autobiogrfica, que a da

    escolha entre os dois pontos mais distantes das propostas do ato de educar: a

    represso e a liberdade. No mestrado j havia me aproximado dessa temtica

    bipolar ao trabalhar com o confronto ou a possvel interseco entre as teorias

    liberais e escolanovistas de educao e um governo com polticas educacionais

    profundamente autoritrias. Porm, a reflexo sobre tal questo iniciou muito

    antes; ela j estava presente desde a minha prpria vida escolar.

    Nasci e cresci em uma famlia que tinha na educao dos filhos um valor e,

    desde pequena, freqentei o Jardim da Infncia. Tenho lembranas da escola das

    irms, da irm Virgnia (minha professora), dos bordados em cartolina, de brincar

    na caixa de areia e na casa de bonecas, das msicas, dos versinhos e dos

    momentos de oraes. Recordo-me, de um modo especial, de um grande painel

    que havia sido pintado na parede da parte coberta do ptio e que estimulava a

    minha imaginao sobre seus personagens e lugares. Nessa escola, havia

    tambm um bosque, o matinho, onde passevamos por um caminho que tinha

    casinhas com a via crucis, um lugar misterioso, o qual eu adorava e do qual,

    tinha, ao mesmo tempo, muito medo.

    Aos seis anos, fiz a pr-escola em uma escola pblica de Porto Alegre. A

    sala do Jardim ficava no poro de uma casa antiga e tinha mesas redondas,

    brinquedos, amiguinhas e as fugas. Esse era o fato mais emocionante do pr.

    Ns tnhamos um grupo, s de meninas, que pedia para ir ao banheiro e fugia

    para a frente da escola. Ns nos colocvamos entre os arbustos e as grades de

    ferro para observar o movimento da rua. A tia Valquria j sabia onde ir buscar-

    nos quando sumamos.

    Em 1968, comecei minha trajetria de aluna em escolas experimentais.

    Iniciei minha vida escolar no Instituto Educacional Joo XXIII, que havia sido

    fundado por professoras e era gerenciado conjuntamente com os pais dos alunos.

    Somente hoje, quando me lembro das coisas que fazamos e das experincias

    educativas que esto registradas na minha memria, que vejo o quanto essa

    escola tinha uma proposta avanada para a poca. Nunca tive livro didtico

    fizemos a nossa cartilha na 1a srie , sempre fiz trabalhos em grupo, tive aulas

    de teatro, bal, msica, laboratrio de matemtica e de cincias; fazamos

  • 12

    viagens, excurses, visitvamos exposies de arte, etc. Lembro-me com muito

    prazer desse perodo.

    Na 5a srie, fiz o exame para o Colgio de Aplicao da UFRGS, o qual

    freqentei at a 8a srie. O Aplicao marcou-me no pelas estratgias de ensino,

    afinal muitas delas j me eram familiares devido experincia na escola anterior

    mas pelas experincias sociais e culturais que me possibilitou.4

    Duas prticas culturais ficaram gravadas para mim. A primeira foi a da

    participao poltica, pois o colgio tinha cerca de 300 alunos e ficava no meio do

    Campus da Universidade. Tnhamos uma diretora que era vista como a Ditadora.

    Ns nos reunamos todas as segundas na CACA5 para discutir questes polticas

    e escolares com um grupo de representantes entre onze e dezoito anos, uma

    saudvel integrao entre idades. Durante a dcada de 70, vamos, desde as

    janelas e do ptio da escola, acontecer muitas coisas; podamos no

    compreender muito bem o que ocorria, mas essas foram imagens que instituram

    alguns sentidos para a nossa vida de estudante e cidado.

    A segunda grande aprendizagem foi a descoberta de diversas formas de

    expresso cultural: ouvamos msica na hora do recreio Mutantes, Caetano, Gil,

    Pink Floyd, Emerson, Lake and Palmer (o que, definitivamente, enlouquecia a

    direo) - promovamos pela CACA peas de teatro, mostras de cinema,

    publicvamos um jornal, etc. No meio da 8a srie, decidi encaminhar-me para um

    curso de segundo grau profissionalizante para ter, em pouco tempo, perspectiva

    de trabalho e independncia.

    No curso de magistrio, voltei a interessar-me pelas aulas, pelas prticas

    de miniestgio, e comecei a fazer trabalho voluntrio em teatro para crianas da

    FEBEM, acompanhar turmas de alfabetizao de adultos e outras atividades

    scio educativas. Em 1978, a educao infantil entrou na minha vida atravs de

    um Curso de Formao de Professores em Jardim de Infncia, o qual realizei

    curso no Servio de Treinamento de Professores do I. E. Joo XXIII, voltando,

    assim, s minhas origens pedaggicas e decidindo que seria Jardineira.

    4 Alm disso, em plena adolescncia, eu achava que esta histria de ir para o colgio, e ainda ter de ficar os dois turnos alguns dias da semana, era apenas uma grande chatice. 5Comunidade de Alunos do Colgio de Aplicao.

  • 13

    A leitura do artigo do Daniel Revah (1995) foi um reencontro com a minha

    prpria histria. Foi muito interessante ver como a minha trajetria pessoal, que

    me parecia to singular, estava permeada de contedos scio-histricos e era

    tecida de modo muito semelhante ao de vrios educadores daquela gerao.

    Como a minha escolha de vida alternativa e militncia poltica6 cruzava-se com as

    escolhas e as decises nas atividades profissionais.

    Esta constituio contracultural de ser, presente no modo de ser, de vestir

    e de escolher produtos culturais, acabou influenciando as minhas leituras

    pedaggicas. Meus autores preferidos eram Paulo Freire, Makarenko, Neill,

    Freud, Freinet, Piaget e outros autores marginais, na poca, aos cursos de

    formao de professores. Essa histria social e pessoal acabou por refletir-se

    permanentemente em minhas escolhas tericas e em minha prtica pedaggica.

    Segui o caminho de educadora: fui professora de escola pblica e privada (de

    jardim e sries iniciais), e atualmente trabalho como professora universitria e

    pesquisadora (iniciei como auxiliar de pesquisa e estou procurando qualificar-me

    nesta rea com o doutorado).

    No estudo que agora estou apresentando, senti-me sempre dividida entre o

    papel de pesquisadora e o de professora, j que papel de pesquisadora o de

    suscitar as idias e agit-las e a tarefa da professora o de tomar decises7.

    Creio que tal ambivalncia de papis influenciou profundamente o modo como me

    aproximei, constru o objeto de pesquisa e escolhi as formas para pesquis-lo.

    Como j havia afirmado anteriormente, a polarizao das idias e das

    prticas pedaggicas entre as repressoras e as libertadoras permeou a minha

    formao e o meu fazer pedaggico. Elas apareceram, e permanecem,

    desdobradas em mltiplas questes, como: Que tipo de currculo organizar para a

    educao infantil - um que privilegie a escolarizao ou a livre expresso? Como

    deve atuar o educador de crianas pequenas - deixando-as livres ou realizando

    intervenes? possvel educar sem uma rotina? necessria uma rotina para

    organizar a vida dos espaos educacionais? Seriam as novas propostas de rotina

    mais progressistas ou apenas um reformismo pragmtico e com intenes de

    6Participei, no final da dcada de 70 e no incio dos anos 80, do movimento estudantil, de grupos feministas, da Agapan - Associao Gacha de Proteo ao Ambiente Natural e da Coolmia -Cooperativa de produtores e consumidores de produtos naturais. 7Inspirei-me para esta reflexo no livro de memrias de Norberto Bobbio,

  • 14

    adaptao aos novos tempos? Pode-se discutir um projeto educativo com

    categorias universalizantes, mas no-homogeneizadoras, que tenham objetivos

    comuns, como o de tornar os diferentes capazes de entender-se e fazer as

    crianas entrarem no mundo existente sem deixar de ter o poder e o desejo de

    mudar esse mesmo mundo? As pedagogias normalizam, regulam,

    institucionalizam e violam as singularidades, mas como seria possvel (con)viver

    sem estar regulado socialmente?

    Freud dizia que a educao um impossvel.8.Penso que sim, pois a

    educao das crianas pequenas tem de, ao mesmo tempo, constituir-se de dois

    movimentos. Por um lado, socializar os novos sujeitos, engendrando eticamente

    virtudes como aquelas defendidas pela res pblica a justia, a liberdade, a

    solidariedade, a tolerncia, a igualdade, a coragem, a prudncia, sem cair numa

    educao moral conservadora; e, por outro, o de possibilitar a sociabilidade9 dos

    sujeitos, abrindo espao para a constituio de subjetividades livres, rebeldes,

    inconformadas.

    1.1 A Educao Infantil no Brasil: Um Novo Campo de Estudos e Pesquisas

    No Brasil, a partir do final da dcada de 70, a educao de crianas de

    zero a seis anos adquiriu um novo estatuto no campo das polticas e das teorias

    educacionais. Finalmente, a histrica luta por creches e pr-escolas, engendrada

    por diferentes movimentos sociais, tomou grandes propores, e os governos -

    primeiramente os de oposio ditadura militar e, posteriormente, aqueles que se

    instalaram ps-abertura poltica - realizaram investimentos para a ampliao do

    direito educao das crianas dessa faixa etria. Vrios projetos para educao

    das crianas pequenas10 foram desenvolvidos, principalmente atravs de aes,

    envolvendo diversos Ministrios e a Legio Brasileira de Assistncia.11

    8Para S. Freud existem trs atividades humanas que so impossveis de ser realizadas: governar, educar e psicanalisar. 9Para Baumann (1997) estes so os dois processos sociais bsicos. Um a socializao racional, condutiva, relacionada ao que ensinado; o outro, da sociabilidade que espontnea, singular, sendo formado pelas aprendizagens. Esses processos ocorrem contemporaneamente na construo dos sujeitos e esto em permanente conflito. 10O Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8.069/90) considera como criana a pessoa at os 12 anos de idade. A expresso crianas pequenas utilizada nesse texto para falar de crianas de

  • 15

    A Constituio Federal de 1988 representou um avano no que se refere

    aos direitos da infncia. Ela considera as crianas e os jovens como sujeitos de

    direitos e proclama a necessidade da oferta de atendimento em educao

    infantil12. Em seu artigo 7, inciso XXV, do Captulo dos Direitos e Garantias

    Individuais e Coletivas, ela assegura o direito ao atendimento gratuito aos

    meninos e s meninas, desde o nascimento at os seis anos, em creches e pr-

    escolas.

    Tambm a incluso da Educao Infantil na Lei de Diretrizes e Bases da

    Educao Nacional 9.394/96, como seo autnoma, foi uma importante resposta

    para as novas demandas e dinmicas da cultura e da sociedade e um passo

    importante para a valorizao da educao do assim chamado nvel de ensino.

    importante lembrar que, na nova LDB, a educao infantil est presente no

    captulo da Educao Bsica, isto , juntamente com o ensino fundamental e o

    ensino mdio, o que aponta para a necessidade de articulao e no de

    subordinao entre eles. Uma importante marca foi a diferenciao entre eles

    ocorrer pelo uso da palavra educao e no ensino, demonstrando uma viso

    mais ampla dos processos pedaggicos necessrios nessa faixa etria.

    Nos ltimos anos, o mesmo governo que apoiou a aprovao da lei, e que

    a divulga vem, contraditoriamente, criando polticas de financiamento da

    educao que no favorecem a ampliao e a qualificao da educao infantil,

    sendo esta secundarizada nos investimentos das verbas pblicas. Poderamos

    0 a 6 anos em contraposio a de crianas maiores entre 7 e 12 anos. Crianas pequenas, pequena infncia, pequenininhas so expresses oriundas da literatura italiana e adaptadas para o portugus. (Ver Prado, 1998, p.10). A pequena infncia abrange dois subgrupos: as crianas bem pequenas ou pequenininhas, de 0 a 3 anos que freqentam turmas de berrio e maternal, e as crianas maiores, de 4 a 6 anos, que freqentam o Jardim da Infncia e o Pr. 11Para maiores informaes sobre a expanso e o financiamento da educao de crianas de 0 a 6 anos no Brasil ver: Campos,1989; Campos,1993; Craidy,1989; Craidy,1997; Faria,1989; Rosemberg,1989; Ferrari,1980; Ferrari e Gaspary,1980; Ferreira,1988. 12A diversidade de instituies que atendem as crianas de 0 a 6 anos, no Brasil, faz com que se torne difcil encontrar uma regularidade entre o nome da instituio, a faixa etria atendida, a proposta de trabalho desenvolvida e a modalidade de funcionamento. Alguns autores procuraram explicitar tais diferenas e encontrar categorias estveis, mas no obtiveram sucesso. Neste trabalho, ser utilizado o padro da Lei de Diretrizes e Bases/1996,que define o nome da instituio de acordo com a faixa etria das crianas. Dessa forma, creche a instituio que atende crianas de 0 a 3 anos e pr-escola aquela que atende crianas de 4 a 6 anos. Na lei no est claro, mas creio que essa diviso advm da psicologia do desenvolvimento que diferencia entre a primeira e a segunda infncia. As expresses como Centro de Educao Infantil ou Escola Infantil, que no enfatizam a subdiviso desse perodo da educao das crianas pequenas e mantm uma unidade que a presente na realidade brasileira, ficaram excludas da lei. Pessoalmente, creio que estas so melhores, pois, no apontam para uma nova forma de desarticulao entre os pequenininhos e os pequenos.

  • 16

    citar, como exemplo, a ausncia da educao infantil nas verbas do Fundo

    Nacional para a Educao e tambm as polticas de formao docente que,

    apesar de afirmarem visar ao educador infantil, enfatizam a formao do

    educador do ensino fundamental.

    Alm das conquistas legais, a passagem em algumas cidades e estados

    brasileiros da responsabilidade, pelo o atendimento da populao de 0 a 6 anos

    da rea da sade e da assistncia social para a rea educacional demonstram

    uma nova concepo das necessidades e dos direitos das crianas.

    Acompanhando toda essa mudana legal e organizacional na Educao

    Infantil, e contribuindo com ela, corresponderam tambm investimentos em

    termos de pesquisas e publicaes no campo acadmico. Ao fazer um

    levantamento do acervo bibliogrfico dos livros da Biblioteca da Faculdade de

    Educao, da UFRGS, constatei que, nas dcadas de 60 e 70, grande parte dos

    livros correspondia a manuais gerais de pr-escola com predomnio de autores

    estrangeiros, enfocando atividades e formas de organizar a educao das

    crianas em turmas de jardim de infncia e pr-escola.

    O referencial terico destas abordagens metodolgicas eram os autores

    clssicos da educao infantil, tais como Froebel, Montessori, Decroly e outros.

    Tambm foi encontrada a presena de um acervo considervel de publicaes

    dirigidas s reas especificas do conhecimento e suas relaes com a educao

    pr-escolar ou das crianas pequenas, tais como psicomotricidade, msica,

    psicologia do pr-escolar, etc.

    J na dcada de 80, surgiu um maior nmero de autores nacionais e livros

    com nfase nas questes polticas da educao infantil que denunciavam a

    ausncia quantitativa de creches e pr-escolas e apontavam formas alternativas

    de atendimento, indicando a necessidade de criao de polticas pblicas para

    crianas pequenas. Muitos desses estudos foram produzidos na interseco entre

    a academia e os movimentos sociais de lutas pela creche como direito da mulher.

    A ampliao do nmero de programas de mestrado e doutorado no Brasil

  • 17

    apontam o surgimento de vrias teses e relatrios de pesquisas acadmicas que

    tratam desse tema13.

    Podemos observar que, na dcada de 90, a perspectiva modificou-se

    ampliando os estudos sobre a pr-escola e iniciando as pesquisas sobre a

    creche. Foram publicados livros que tratam da histria das crianas no Brasil,

    apresentadas teses sobre as instituies de atendimento s crianas pequenas e

    suas propostas educacionais e tambm outras publicaes sob forma de

    coletnea de artigos. Estas tratavam em especial de assuntos relacionados

    psicologia do desenvolvimento em uma perspectiva scio-histrica ou psicologia

    gentica, textos sobre a organizao curricular e as metodologias de ensino que

    geralmente aprofundam reas de conhecimento - linguagem, matemtica,

    cincias sociais e naturais e outros - isto , temas que j circulavam nos grupos

    de pesquisas e nas revistas especializadas chegam aos livros comerciais e de

    ampla divulgao.

    Muitas dessas novas publicaes consistem em programaes curriculares

    elaboradas por rgos estatais ou por organizaes no-governamentais.

    Professores e professoras publicaram relatos de experincias com reflexes

    advindas de suas aes cotidianas no trabalho com turmas de crianas em

    creches e pr-escolas e, em alguns casos, tambm de escolas de arte (Freire,

    1983; Haddad,1991; Machado,1991; Wajskop,1995).

    Rocha (1999), aps a anlise de um conjunto de trabalhos apresentados

    em diferentes reunies cientficas, nas reas das cincias humanas e sociais na

    dcada de 90 no Brasil, demonstra como essas reunies vm trazendo

    contribuies para a construo de uma Pedagogia da Educao Infantil. Para a

    autora, a produo analisada:

    revelou construes tericas, permitindo a identificao de um conjunto de regularidades e peculiaridades. As construes identificadas permitem afirmar a possibilidade e o nascimento de uma Pedagogia, com corpo, procedimentos e conceituaes prprias. Identifica-se, portanto, uma acumulao de conhecimentos sobre a educao infantil que tem origem em diferentes campos cientficos, que alm de resultarem em um produto de seu prprio campo, tm resultado em contribuies para a constituio de um campo particular no mbito da Pedagogia (...) (1998, p.160)

    13O Ncleo de Estudos em Educao de 0 a 6 anos da UFSC tem realizado trabalhos de investigao sobre as teses publicadas na rea e vem fazendo anlises das pesquisas recentes em Educao Infantil. Ver, em especial, Rocha (1999a).

  • 18

    Discutindo a relao entre a pesquisa na universidade e a educao das

    crianas pequenas, Ferreira (1988) apresenta como estava sendo produzida a

    pesquisa no campo da psicologia da educao e do desenvolvimento infantil na

    dcada de 80 e, em sua anlise, aponta como problemticos os seguintes

    aspectos: a) estudavam-se aspectos isolados do desenvolvimento infantil; b) eram

    feitas experincias em ambiente artificial (laboratrios) e c) trabalhava-se com

    uma concepo de criana ideal. A autora descreve neste artigo o processo de

    transformao pelo qual passa seu grupo de pesquisa14 em termos de introduo

    de novas metodologia de pesquisa e aprofundamento do compromisso social para

    que as mesmas pudessem adequar-se construo de conhecimentos sobre as

    necessidades educativas das crianas pequenas nas instituies de educao

    infantil brasileiras.

    A Bibliografia Anotada (BRASIL,MEC,1995), apresenta uma sntese dos

    textos sobre educao infantil publicados entre abril de 1980 e abril de 1995.

    Atravs dela, podemos observar que, durante esse perodo, temas como histria

    da educao e polticas pblicas esto presentes desde o incio da dcada de 80

    mesmo que com uma produo reduzida e apontam que o final dessa dcada

    d incio aos estudos sobre o cotidiano.

    Campos e Haddad (1992) confirmam esse percurso por meio de um estudo

    que mostra a trajetria dos artigos sobre educao infantil, publicados na revista

    Cadernos de Pesquisa, da Fundao Carlos Chagas, entre 1971 e 1991. As

    autoras observam que:

    a) na dcada de 70, os artigos publicados enfocavam as crianas em idade pr-

    escolar, e no a creche ou a pr-escola como instituio;

    b) as publicaes iniciam tratando o tema da pr-escola (principalmente como

    preparatria ao primeiro grau) para depois, apenas no final da dcada de 80,

    inclurem as creches;

    c) os artigos mostram a politizao papel do Estado, da sociedade civil e dos

    movimentos sociais dos temas de creche e pr-escola a partir dos anos 80;

    d) constatam, atravs de levantamento quantitativo, que houve uma ampliao do

    nmero de artigos publicados com essa temtica a partir da dcada de 70.

    14 Para conhecer essas mudanas conceituais ver vdeos, teses, artigos e livros publicados pelo CINDEDI da USP - Ribeiro Preto.

  • 19

    Como afirmam as autoras acima citadas ao refletir-se sobre a produo

    cientfica em educao infantil:

    Constata-se claramente que, na produo analisada, o conhecimento de prticas modernas de cuidado e educao da criana pequena ficou em segundo plano, sendo pouco debatidas e aprofundadas (...) as questes que incidem diretamente sobre a natureza das experincias vividas pelas crianas nas creches e pr-escolas. (1992, p.18)

    Tambm afirmam que a dcada de 90 exigia que a educao infantil

    redimensionasse seu papel e ampliasse o seu campo de pesquisa de forma a

    responder, multidisciplinarmente, s questes pedaggicas que a ela vm sendo

    colocadas.

    Esta tese de doutorado pretende inserir-se nessa perspectiva de pesquisa,

    isto , revisitar um aspecto pedaggico que est sendo utilizados no cuidado e na

    educao das crianas pequenas, procurando faz-lo de modo aprofundado e

    crtico. Construir, assim, um olhar acerca dos mecanismos presentes na

    Pedagogia da Educao Infantil, para perguntar-se sobre seu papel, seus

    objetivos e verificar como os mesmos, fazendo parte de uma prtica social, vm

    contribuindo para a produo e a reproduo das crianas, dos educadores, da

    cultura e da sociedade.

    1.2 Fazendo Pedagogia, Fazendo Cincia

    Escrever uma tese de doutorado que ser defendida no comeo do ano

    2000 um ato acadmico de extremo desconforto. Milenarismos parte, o

    momento histrico e cientfico em que vivemos causa muitos embaraos aos

    professores, intelectuais e pesquisadores que tm na educao no apenas um

    campo de estudos e investigao, mas tambm um compromisso com a melhoria

    da realidade social e educacional. Muitas das certezas que tnhamos at poucos

    anos atrs esto sendo revistas, e ainda estamos procurando, atravs da crtica,

    e da autocrtica e da busca de novos aportes, construir novos sentidos e

    caminhos para a nossa prtica poltica e profissional e para a construo de

    novos modos de fazer pesquisa e cincia.

  • 20

    O paradigma dominante de fazer cincia, que iniciou com a revoluo

    cientfica do sculo XVI, sendo consolidado nos sculos seguintes, e que tinha

    como modelo as cincias naturais, foi questionado e entrou em crise. Essa crise

    no apenas epistemolgica, mas tambm metodolgica, o modo como

    fazemos cincia e poltica, isto , como a cincia e a tecnologia so utilizadas.

    Como afirma Santos (1996a), estar em crise, no significa estar

    mergulhado em um irracionalismo, mas pode ser visto como uma nova aventura

    para apreender o mundo. A aventura da cincia est onde a razo entra em

    confronto com o imaginrio, com o esttico, com o no-racional, isto , com tudo

    aquilo que (des)conhecido, abrindo assim novos sentidos, caminhos e idias.

    Prigogine e Stengers (1996, p.28), ao refletirem sobre a cincia contempornea,

    afirmam que esta est em profunda transformao:

    Em vez da eternidade, a histria; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetrao, a espontaneidade e a auto-organizao; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evoluo; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.

    Na contemporaneidade, verifica-se o engendramento de uma concepo

    mais flexvel de cincia. Santos (1995) concordando com os autores acima

    citados, afirma que o novo paradigma para fazer a cincia demonstra que todo o

    conhecimento cientfico-natural tambm cientfico-social; que todo o

    conhecimento local e total; que todo o conhecimento autoconhecimento e, por

    fim, que todo o conhecimento cientfico visa a constituir-se em senso comum. Isto

    , a sua existncia pressupe a sua divulgao e democratizao, tornando-se

    acessvel todos.

    Toda essa nova compreenso da cincia advinda da reflexo sobre sua

    crise, que tem na dvida seu trao fundamental, extrapola as fronteiras do

    pensamento cientfico e impregna grande parte da razo crtica moderna,

    penetrando na vida de cada dia e na conscincia filosfica e constitui um aspecto

    existencial do mundo social contemporneo (Giddens, 1995, p.11).

    Seguindo as pistas de Mires (1996, p.9), vivemos hoje em um momento de

    profunda mudana nos modos de conhecer o mundo que est relacionada

  • 21

    transformao igualmente profunda nos modos de viver a vida em sociedade15.

    Essa transio que est ocorrendo do/no perodo denominado moderno est

    sendo configurada por mltiplas rupturas16 que acontecem simultaneamente em

    diferentes campos do fazer e do pensar humano, modificando a vida de uma

    maneira que nunca havia sido imaginada (ou sonhada), e as idias e teorias que

    tnhamos para entender o mundo no esto mais servindo para explic-lo.

    Neste estudo, a Modernidade pensada como o resultado de um

    processo de racionalizao experimentado pela civilizao ocidental, desde os

    fins do sculo XVIII (Adorno, Bruni e Cardoso, 1995, p.7). Em meados do sculo

    XX, tal processo comeou a ser questionado a partir de uma srie de novos

    fenmenos, processos e acontecimentos que provocaram um profundo

    questionamento e um repensar desse projeto (no concretizado inteiramente).

    Esse novo perodo que alguns autores denominam ps-modernidade prefiro,

    juntamente com Adorno, Bruni e Cardoso (op.cit.), denominar como

    contemporaneidade.

    Concordo com Hollanda (1992) quando afirma que o que se v entre esses

    dois projetos culturais e polticos denominados de modernidade e ps-

    modernidade uma constante negociao com os termos das vrias

    modernidades. Para a mesma autora, a ps-modernidade pode ser dividida em

    pelo menos dois grandes grupos: um ps-modernismo de reao, que seria

    conservador, e um de resistncia, que surge como uma contraprtica e preocupa-

    se com a desconstruo crtica da tradio17. dentro desse campo que procura

    situar-se este estudo.

    A complexidade do ato de produzir cientificamente torna-se muito maior

    quando o campo no qual pesquisamos, no caso a Pedagogia, no considerada

    uma cincia18. Neste trabalho de pesquisa, a Pedagogia compreendida como

    15 Esse autor procura compreender como a transio de paradigmas epistemolgicos nas cincias correspondem a momentos de transio de paradigmas societais. Tal transio da vida e da reflexo contempornea vem sendo chamado, de acordo com diferentes autores de alta modernidade, modernidade avanada, contemporaneidade ou ps-modernidade. 16 Essas rupturas, nem sempre planejadas, organizam-se como um todo a partir de diferentes eventos, como a revoluo sexual, a revoluo da microinformtica e outras que a princpio poderiam parecer isolados, mas conformam um novo todo. (Mirres, 1996, p.151). 17So autores que procuram fazer um ps-modernismo de resistncia ou inquietante: Harvey (1992), Santos (1995,1996a,1996b), Jameson (1994), Anderson (1999), Eagleton (1998). 18 Esse tema - da pedagogia ser ou no uma cincia - gera grandes polmicas e discusses calorosas, e no pretendo entrar com profundidade nesta discusso apenas procuro estabelecer o meu ponto de vista.

  • 22

    um campo de saber, como uma disciplina que pode ou no ser vista como cincia

    dependendo do conceito de cincia que for utilizado. Se, no comeo deste sculo,

    o conceito dominante de cincia era estrito e com caractersticas positivistas e

    hoje, com as novas concepes de cincia e com as redefinies de metodologia

    de pesquisa, os paradigmas de cientificidade ampliaram-se e torna-se muito mais

    fcil dar condies cientficas produo pedaggica.

    Definir a Pedagogia uma tarefa bastante complexa e, como registra

    Giroux (1996, p.206), preciso usar esse termo com respeitosa prudncia.

    Contudo penso que se faz necessrio explicitar os motivos que levam a classificar

    este estudo como situado no campo da Pedagogia da Educao Infantil e o qu,

    sinteticamente, ser entendido por esse campo de estudos neste trabalho.

    As teorias pedaggicas surgiram, ao longo da histria, de diversos modos.

    Algumas delas foram elaboradas por pensadores ou filsofos na tentativa de

    propor um modelo educacional a ser seguido, tendo em vista a formao das

    novas geraes e da sociedade do futuro. Outras surgiram acompanhando

    discursos polticos e/ou prticas polticas concretas e procurando pr em ao

    novas estratgias para a educao e a sociedade e modificando o devir dos seres

    humanos. Outras, ainda, procuraram responder a questes referentes

    compreenso e anlise das experincias prticas, de atos pedaggicos,

    desvendando a construo dos projetos pedaggicos, das suas influncias, de

    seus instrumentos didticos e modelos de gesto.

    Massa (apud Rocha,1999a) apresenta a pedagogia como tendo um

    estatuto especfico que tem como objeto os sistemas de ao inerentes s

    situaes educativas um objeto muito material que permite pedagogia se

    colocar como uma teoria de estrutura implcita experincia educativa.

    Neste texto, entendo que sempre onde est presente uma situao de

    produo de conhecimento, de saber, de aprendizagem, onde h uma prtica

    social e cultural de construo de conhecimentos h tambm uma Pedagogia.19

    A Pedagogia difere-se da teorizao pedaggica, pois implica tanto a

    reflexo acerca do mundo social, cultural e econmico como tambm estabelece

    um modo de fazer instrumental, sendo que esse segundo aspecto nem sempre

    est presente nas teorizaes educacionais. As pedagogias articulam os macro e

    19A pedagogia, por ser anterior a qualquer institucionalizao ou escolarizao, pode referir-se tanto educao formal e institucional como s experincias de educao informal.

  • 23

    os microdiscursos, fazendo uma, explcita ou no, ligao entre o contexto e os

    processos internos da produo de saberes. Tal aspecto instrumental o que

    neste trabalho denominado de didtica, e uma mesma pedagogia pode

    manifestar-se atravs de diferentes abordagens didticas.

    Nossa sociedade est permeada de discursos pedaggicos que realizam

    tarefas de controle ou regulao social, afirmando-se como verdades e estando

    em uma constante luta pelo poder20. Atravs desses diferentes discursos

    pedaggicos, grupos disputam permanentemente para influenciar os modos como

    os sujeitos so constitudos, selecionar os conhecimentos que devem ou no ser

    acessveis, quais as identidades pessoais e sociais que devem ou no ser

    formadas, etc. Tais disputas entre os discursos pedaggicos existem

    necessariamente, e estamos todos, com maior ou menor conscincia, tomados

    por esses textos, pois cada uma defende um ponto de vista que entra em choque

    com outros.

    Portanto, mais do que falar em Pedagogia no singular, importante pensar o

    termo no plural, pedagogias, pois elas so diversas e plurais. Geralmente, as

    pedagogias so acompanhadas de adjetivos que as qualificam como pedagogias

    tradicionais, crticas, libertadora, progressistas, libertrias, feministas e outras.

    O mapeamento dessas diferentes pedagogias faz-se necessrio no atual

    momento histrico, pois as teorizaes mais universalizantes acerca da educao

    tm-se mostrado ineficazes para responder s questes educativas

    permanentemente colocadas pelas sociedades e pelas culturas. Tambm

    importante lembrar que, se as subdivises das pedagogias podem, por um lado,

    ser manifestaes de fragmentao e de disputas, por outro, quando

    permanentemente relacionadas e recontextualizadas, auxiliam no

    aprofundamento das discusses e no avano dos conhecimentos. Aqui podemos

    lembrar que a luta das especificidades e das particularidades uma luta de poder

    para ocupar um espao mais valorizado no sentido da igualdade na diferena.

    A Pedagogia, como uma disciplina de fronteira, foi historicamente

    marginalizada, tendo o seu espao de saber por muito tempo subordinado ou

    reduzida a outros saberes. Segundo Giroux (1996, 1997), nos ltimos anos, a

    20 Popkewitz chega a afirmar que a pedagogia como parte do cenrio institucional, uma prtica da regulao social que deve disciplinar, administrar e criar capacidades sociais para o indivduo;

  • 24

    pedagogia vem realizando um esforo para tentar visibilizar sua complexidade e

    suas relaes com a poltica, o poder, o conhecimento, a histria, a tica e para

    deixar de ser apenas instrumental, pragmtica, empirista e condutista.

    Ao recusar reduzir (a pedagogia crtica) pratica da transmisso de conhecimentos e destrezas, o novo trabalho sobre pedagogia foi tratado como uma forma de produo poltica e cultural profundamente implicada na construo de conhecimentos, de subjetividades e das relaes sociais. (Giroux, 1997, p.15)

    Para Giruox, uma disciplina no algo previamente determinado, mas

    um campo que se vai constituindo pelas prticas, pelas pesquisas, pelos estudos

    que se realizam sobre ela e pelos aspectos sociais que esto profundamente

    integrados ao seu acontecer21. Esses estudos devem possuir uma produo

    rigorosa, tendo em vista a criao terica. Para o autor, uma pedagogia s pode

    ser constituda dentro de uma especificidade histrica e cultural - situada em um

    lugar e em um contexto -, pois as pedagogias crticas no surgem de universais,

    mas de prticas guiadas pela histria e pela tica. Sendo que a tica se converte

    em um compromisso continuado em que as prticas da vida cotidiana so

    investigadas em relao aos princpios da autonomia individual e vida

    democrtica. (Giroux, 1997, p.126).

    Para Cambi (1995, p.126), as caractersticas da pedagogia como a no-

    unicidade, o discurso aberto no-unvoco, os conflitos, o esfacelamento interno

    devem ser vistas como um carter de riqueza-singularidade-especificidade e no

    de marginalidade ou de inferioridade. E ainda afirma (Ibid.) que as pedagogias,

    quando atentas histria, sociedade e poltica, produzem uma cultura

    pedaggica - inquieta, incerta, anti-reducionista, metodologicamente plural -

    sendo dessa forma, capazes de formular uma reflexo sobre as questes

    educacionais e de indicar prospectivas. As pedagogias, quando crticas, sabem

    que so incapazes de apreender toda a complexidade e no se iludem em pensar

    ser uma verdade.

    As pedagogias tornam-se mais polticas quando propem a anlise e a

    crtica dos modos de fazer, das estratgias de trabalho, isto , quando observam

    e valorizam como os sujeitos aproximam-se, desmembram e utilizam o

    seja essa administrao chamada de pedagogia do desenvolvimento da criana, aprendizado, engenharia social ou reconstruo social (1997, p.237). 21 Rocha (1999a) fala de diferentes graus de acabamento das cincias.

  • 25

    conhecimento, assinalando que esses processos so to ou mais importantes do

    que os contedos envolvidos. Tambm faz parte dessa reviso das Pedagogias a

    discusso sobre as palavras pertencentes ao discurso pedaggico, como

    planejamento, avaliao, objetivos e outras que racionalizam os contedos

    pedaggicos, exercendo um profundo efeito na dinmica social, na constituio

    subjetiva, nos modos de configurar o mundo e nas possibilidades de se pensar a

    educao.

    Hoje, a Pedagogia vem enfrentando um srio e decisivo conflito, pois

    necessita responder s crescentes demandas da sociedade atual em que as

    situaes que envolvem o ensino e a aprendizagem so fundamentais j que

    este perodo histrico vem sendo denominado por diferentes estudiosos de

    sociedade da informao, do conhecimento, precisando, para isso, resolver a sua

    crise de identidade terica. preciso, portanto, um radical repensar, clareando

    sua funo social, poltica e cultural que compreenda seu carter complexo e

    ambguo e que oferea possibilidades de criar um status disciplinar e, quem sabe,

    cientfico.

    O presente estudo procura contribuir com uma leitura crtica de um dos

    principais componentes das Pedagogias da Educao Infantil - a Rotina - e, a

    partir da sua contextualizao e anlise, desmembrar e dissecar, esse dispositivo

    pedaggico, podendo assim, ao conhec-lo, ampliar e produzir novos sentidos

    para o mesmo.

    1.3 Construindo Pedagogias para a Pequena Infncia

    O campo da Pedagogia da Educao Infantil que emergiu, de forma

    sistemtica, nos sculos XVIII e XIX, iniciou sua trajetria vinculado filosofia e,

    posteriormente, distanciando-se desta, foi em grande parte absorvida pela

    psicologia, pela puericultura e pela assistncia social. Sua ampliao e seu

    aprofundamento ocorreram principalmente no final do sculo XIX, na medida em

    que grande parte das culturas ocidentais tornou a educao das crianas

    pequenas um tema de responsabilidade social e coletiva em contraponto viso

    de que a educao das crianas pequenas era apenas uma tarefa da esfera

    privada: a famlia.

  • 26

    As propostas pedaggicas para a Educao Infantil surgiram quando se

    tornou necessrio refletir sobre um determinado recorte da pedagogia, abordando

    as peculiaridades que esto presentes do campo da interveno educacional para

    a pequena infncia, isto , da educao institucionalizada de crianas de 0 a 6

    anos22.

    Muitas das temticas fundadoras das pedagogias da educao infantil nem

    sempre esto presentes em outros campos pedaggicos. Pode-se exemplificar a

    nfase que essa pedagogia d s relaes entre o cuidado, a educao, a

    nutrio, a higiene, o sono, as diferenas sociais, econmicas, culturais das

    diversas infncias, a relao com as famlias, as relaes entre adultos e crianas

    que no falam, no andam e necessitam estabelecer outras formas no-verbais

    ou no-convencionais de comunicao, as relaes entre adultos e crianas

    pequenas na esfera pblica, o brinquedo e o jogo, entre outros podendo dar conta

    das especificidades e das diferenciaes relativas educao e ao cuidado de

    crianas bem pequenas.

    Entretanto, alm das temticas acima citadas, preciso que as pedagogias

    da Educao Infantil mantenham uma constante reflexo acerca do contexto onde

    so produzidas, isto , dos temas gerais da cultura contempornea como aquelas

    relacionadas a gnero, cidadania, raa, relaes educativas com as

    comunidades, religio, classes sociais, globalizao e aquelas que influenciam de

    modo incisivo as questes ligadas educao da pequena infncia. tambm

    necessrio que se estabelea relaes destas com as outras grandes questes

    da pedagogia, como a ao educativa e o currculo verificando os efeitos que tais

    formas de engendrar e ver o mundo causam a um certo grupo de seres humanos

    que se encontram em uma faixa etria especfica, em um determinado tipo de

    instituio e em um certo contexto.

    Portanto, as pedagogias da educao infantil tm como centro de sua

    teorizao a educao das crianas pequenas, situando-a tanto em sua

    construo como um sujeito de relaes inserido em uma cultura, em uma

    sociedade, em uma economia e com formas especficas de pensar e de

    expressar-se como tambm com proposies instrumentais em relao aos

    aspectos internos ao funcionamento institucional e aos projetos educacionais, isto

    22 Neste trabalho, utilizo o termo instituio como referncia para espaos pblicos e coletivos de educao, e no aquela dada pela famlia, apesar de ela tambm ser uma instituio.

  • 27

    , seus aspectos didticos como, por exemplo, os programas, as estratgias, os

    objetivos, avaliao, a definio dos usos do tempo e do espao, sua

    organizao, suas prticas, seus discursos, enfim, sua rotina.

    As pedagogias da educao infantil, segundo Rocha (1999b), diferem-se

    das do Ensino Fundamental porque estas baseiam-se principalmente no ensino, e

    tm como objetivo central a transmisso do conhecimento, e como locus

    privilegiado a sala de aula, vendo a criana como um aluno. J a educao infantil

    constituda de relaes educativas entre crianas-crianas-adultos atravs da

    expresso, do afeto, da sexualidade, dos jogos, das brincadeiras, das linguagens,

    do movimento corporal, da fantasia, da nutrio, dos cuidados, dos projetos de

    estudos em um espao de convvio onde h respeito pelas relaes culturais,

    sociais e familiares.23

    As pedagogias da educao infantil tratam de um tipo de educao que em

    grande parte das sociedades no obrigatria, sendo apenas complementar

    das famlias. Esse tipo de tarefa pode ser desenvolvido em organizaes

    institucionais, diferenciadas como creches, jardins de infncia, ludotecas,

    bibliotecas infantis, etc... no tendo como nica alternativa a escola infantil, nem

    tendo como objetivo central os aspectos de transmisso cultural que tm sido o

    tema prioritrio no ensino obrigatrio.

    1.4 Questes Centrais

    Canta meu grilo, como preferires: mas eu sei que amanh, no alvorecer, vou embora daqui, por que se fico aqui, acontecer mim aquilo que acontece todos os meninos, isto , terei de ir para a escola e por amor ou por fora, terei de estudar; e eu, vou te dizer em confidncia, de estudar no tenho nenhuma vontade e me divirto mais perseguindo borboletas e subindo nas rvores para pegar os passarinhos nos ninhos.24

    23 Diferentemente de Rocha (1999b) acredito que a didtica no adequada apenas ao pedaggica no contexto escolar. Penso que, mesmo em estruturas no-formais de educao, estratgias didticas so utilizadas, podendo conceitos didticos, mais convencionais, serem ressignificados e recontextualizados e novos conceitos serem criados de acordo com as especificidades do espao pedaggico. 24 A expresso Por amor ou Por fora usada pelo na histria do Pinquio foi utilizada como ttulo de um livro organizado pela Comuna de Modena, sobre a histria da infncia nos sculos XIX e XX e tambm num texto de Ulivieri (1986).

  • 28

    Nesse dilogo com o grilo-falante pode-se ver o conflito vivido por Pinquio

    quanto a tornar-se ou no um ser humano. O fato de se tornar um menino implica

    em ser regulado socialmente, regulao esta que se dar por amor ou por fora.

    Pinquio consegue, com essa expresso, sintetizar aquilo que as pedagogias, e

    os pedagogos conhecem bem, que a tenso, o impasse, a ambigidade

    existente no ato pedaggico.

    De acordo com Philippe Aris (1978,1979) a infncia e os modos como a

    educamos tm, ao longo da histria, pendulado entre dois extremos que

    representam dois virtuais pilares sociais, a paparicao e a moralizao. Outros

    autores reafirmam a existncia desses extremos por meio de outras

    denominaes: Turner (1989) fala da oscilao entre as restries e os

    relaxamentos na conduta moral das crianas; Lerena (1983) fala sobre o grande

    impasse entre o reprimir e o liberar e Santos (1995,1996) fala da emancipao e

    da regulao. As pedagogias da Educao Infantil, como no poderia deixar de

    ser, tambm oscilaram entre tais extremos.

    Para esses estudiosos, as prticas discursivas sobre a educao das

    crianas nas famlias e nas instituies educacionais tm estado divididas entre

    dois grandes grupos. Por um lado, dando continuidade ao discurso religioso do

    pecado original e vendo as crianas como seres que devem ser controlados,

    esto as concepes hegemnicas que defendem uma educao com nfase na

    disciplina, na ordem, na conteno dos impulsos infantis como a forma

    privilegiada de interveno educacional. Por outro lado, dando seqncia a viso

    da inocncia intrnseca das crianas e a sua fragilidade, emergem discursos que

    criticam as formas rgidas de educao e que propem uma educao aberta e

    livre que no perturbe a natureza das crianas.

    Para Santos (1995, 1996b), ambos os paradigmas esto inscritos no

    projeto da modernidade e, citando Habermas, afirma que, at o presente

    momento histrico, a modernidade assentou-se na contradio entre a regulao

    e a emancipao, sendo que o pilar da regulao tem conseguido domar as

    incessantes energias emancipatrias. Epistemologicamente, o conhecimento

    como regulao obteve tambm a mais completa hegemonia sobre o paradigma

    do conhecimento como emancipao25.

    25 Santos exemplificando esses dois pontos extremos, demonstra que O conhecimento como regulao consiste numa trajetria entre um ponto de ignorncia designado caos e um ponto de

  • 29

    Segundo o mesmo autor, para poder alterar esse movimento, preciso

    reconhecer tal assimetria e procurar compreender seu funcionamento rompendo-

    a, reduzindo-a ou suprimindo-a e, dessa forma, mudando o paradigma. E lembra

    que a grande armadilha reside no:

    prprio objetivo de vincular o pilar da regulao ao pilar da emancipao e o de os vincular a ambos concretizao de objetivos prticos de racionalizao global da vida coletiva e da vida individual. (Santos,1995, p.78)

    O objetivo fundamental desta pesquisa indagar o que so as rotinas na

    pedagogia da educao infantil e verificar como essa prtica vincula-se aos dois

    plos acima apresentados - da regulao e emancipao ou da dominao e

    resistncia - tendo como estratgia a anlise do seu papel como instrumento de

    organizao institucional da pedagogia e de regulao das subjetividades.

    Esse objetivo pode ser desdobrado em cinco grandes questes:

    a) definir o que so rotinas na pedagogia da educao infantil, procurando

    suas origens e as relaes que guardam com o mundo exterior ao da educao e

    verificando, ainda, como essa prtica discursiva constituiu-se e consolidou-se na

    pedagogia da educao infantil;

    b) comparar e aprofundar as concepes sobre as diferentes infncias e a

    rotinizao que est presente nas atuais pedagogias da educao infantil e na

    prpria constituio das instituies de educao e cuidados de crianas

    pequenas. Verificar de que modo a rotina, como prtica, apesar de sua pouca

    visibilidade e teorizao, tornou-se um dos eixos centrais das pedagogias da

    educao infantil;

    c) dissecar a rotina enquanto categoria pedaggica atravs da explicitao

    dos seus elementos constitutivos, de suas configuraes internas, dos modos

    como so vividas e experenciadas nas escolas infantis de hoje, compreendendo

    assim por que ocupam cada vez mais um lugar de destaque nas teorias e nas

    prticas de interveno pedaggica. Isto , ver os modos como operam as rotinas

    enquanto instrumento de constituio e de normalizao de subjetividades

    (adultas e infantis) nas instituies de educao infantil e tambm como

    encaminham para a autonomia e independncia;

    conhecimento designado ordem. O conhecimento como emancipao consiste numa trajetria entre um ponto de ignorncia chamado colonialismo e um ponto de conhecimento chamado solidariedade. (1996b,p.24)

  • 30

    d) proceder anlise das rotinas, estabelecendo interseces com

    diversos campos do conhecimento, com o objetivo de possibilitar uma nova

    compreenso educacional, poltica e cultural.

    e) finalmente, refletir sobre as pedagogias da educao infantil apontando

    para as possveis ressignificaes das rotinas enquanto cotidiano das prticas

    educacionais.

    Essas so as questes s quais tentarei responder ao longo deste estudo.

    A contribuio que esta tese pretende dar ao campo de estudos e

    pesquisas da pedagogia da educao infantil o de refletir e questionar as

    rotinas, tendo como ponto de referncia as polticas de homogeneizao que

    esto sendo implementadas atravs de diferentes projetos educacionais na

    educao infantil, pois, ao comparar as rotinas de diferentes instituies26, foram

    encontradas, principalmente, similitudes e homogeneizaes, o que demonstra

    que na elaborao das rotinas muitas vezes, no esto sendo levadas em

    considerao nem a diversidade dos marcos tericos, nem a criana concreta

    com suas diferenas sociais, culturais, tnicas, religiosas, etrias, de classe e

    outras.

    Ao contrrio, a organizao da vida diria nas instituies padronizadas,

    quase uniforme, seguindo normalmente as grandes etapas da psicologia

    evolutiva, as macropolticas curriculares e as reformas de ensino, as posies

    hegemnicas sobre a formao de professores e a elaborao de produtos

    tecnolgicos de comunicao de massas que tm permeado as polticas

    educacionais atuais.

    1.5 Caminhos Metodolgicos

    De Certau acredita que fazer uma pesquisa como abrir um canteiro de

    obras: definir um mtodo, encontrar modelos para aplicar, descrever, comparar,

    diferenciar atividades de natureza subterrnea, efmeras, frgeis e

    circunstanciais, em suma, procurar, tateando elaborar uma cincia prtica do

    26 Ver no Anexo 1 alguns modelos de rotinas de diferentes projetos pedaggicos.

  • 31

    singular (1996, p.21). Para construir as aproximaes metodolgicas ao campo

    de pesquisa deste estudo, senti-me como que imergindo em um canteiro de

    obras, tentando estabelecer os contornos do terreno, escolher os materiais, fazer

    as fundaes que assegurem a estabilidade, ainda que parcial, do contedo,

    fazendo-o resistente e, de preferncia, compreensvel, til e bonito.

    A experincia de pesquisar em um universo familiar, na sociedade em que

    vivo, no meu ambiente de trabalho, tem dificultado o afastamento, ou melhor, o

    estranhamento com o objeto de pesquisa no sentido de desnaturalizar as prticas

    observadas. Tentei criar um modo estrangeiro de ver as rotinas nas creches e

    pr-escolas, mas, muitas vezes, isso no parece ser possvel. Tenho, como

    observadora, uma dificuldade muito grande em no estabelecer julgamentos, em

    no pensar em solues e em no prescrever alternativas - vcio de professora?

    Pode ser.

    Como professora de estgio e prtica de ensino, observo turmas de

    educao infantil h muitos anos com o objetivo de auxiliar as alunas a refletirem

    sobre suas prtica. A pedagogia um campo do conhecimento no qual a

    interveno e a prescrio so a tnica, e tal fato torna, quase impossvel a

    postura de investigadora, pois me sinto permeada pelos afetos, pelas prticas,

    pelas tradies e pela constituio profissional.

    As poucas referncias de estudos anteriores sobre o tema dificultaram sua

    delimitao e classificao. No pretendi, em nenhum momento, fazer um estudo

    usando uma metodologia clssica de pesquisa. Decidi, aps a leitura de Morin

    (1990), partir das questes que me havia proposto estudar e ir, gradativamente,

    formulando caminhos investigativos. Novos, no-clssicos, hbridos, diversos.

    Desse modo, esta pesquisa, apesar de contar com contedos histricos, no

    um estudo de histria da educao, no um estudo etnogrfico, embora

    trabalhe com alguns instrumentos da pesquisa antropolgica e esteja inspirada

    nela para o trabalho de campo.

    Tentaria descrev-la como um estudo que tem como subsdio para sua

    escrita materiais empricos de variadas origens, isto , uma bricolage, um

    mosaico formado de elementos empricos, como textos escritos, canes,

    entrevistas, fotos, relatos de observao que procurei organizar, tendo em vista

    responder s questes levantadas. Procurei propor algumas estratgias

    investigativas que facilitassem a construo do objeto, que pudessem responder

  • 32

    s questes levantadas e que, no momento de concluso, pudessem ser

    articuladas para a compreenso global do conhecimento constitudo.

    Acredito que a construo metodolgica de uma pesquisa esteja

    intrinsecamente ligada ao contedo abordado e ao percurso de aproximaes

    sucessivas realizadas pela pesquisadora.

    Um quadro terico a priori focaliza prematuramente a viso do pesquisador, levando-o a enfatizar determinados aspectos e a desconsiderar outros, muitas vezes igualmente relevantes no contexto estudado, mas que no se encaixam na teoria adotada. (...) [ necessrio] uma posio antropofgica que implica um conhecimento profundo do contexto focalizado, para que se possa avaliar se uma dada teoria ou no adequada - o que no exclui um esforo maior no sentido de procurarmos gerar nossas prprias teorias. (Alves-Mazotti,1992, p.56)

    Seguindo as indicaes de Howard Becker (1994), em seu importante

    estudo sobre a pesquisa nas cincias humanas, ele comenta sobre um modelo

    artesanal de cincia, no qual cada trabalhador produz teorias e os mtodos

    necessrios para o trabalho que est sendo feito (p.12). Para esse autor, o

    importante o pesquisador recompor, recriar ou at inventar mtodos capazes de

    resolver os problemas das pesquisas, fazendo assim a costura de diversos tipos

    de pesquisa e materiais disponveis e pblicos (op.cit., p. 22).

    Apresentarei a seguir algumas das estratgias utilizadas para a construo

    do campo de pesquisa. Iniciei este estudo com a construo de um inventrio

    sobre como as rotinas se manifestam e fiz um levantamento em materiais

    diversos, como livros, revistas, canes, visitas iniciais ao campo, os quais

    representam as rotinas, isto , mostram como as rotinas como se tornaram

    visveis na educao infantil, isto , constru algumas estratgias de aproximao

    emprica.27

    Na primeira etapa do processo de construo dessa pesquisa, procurei

    localizar historicamente a gnese da noo de Rotina nas sociedades ocidentais

    e no campo da pedagogia da educao infantil, ou seja, quais foram s condies

    histricas, polticas e culturais para a emergncia e o engendramento de tal

    prtica e as suas condies de legitimao. Esta parte do estudo foi feita por duas

    27 Foram consultados para o Anexo 1: Bosch (1963), Abramowicz;Wajskop (1995),Aranha (1993), Oliveira (1994), Frabboni (1990),Marinho (1967), Headley (1968), bi-Sber (1963), Nicolau (1986), Rizzo (1982), Evrard-Finquemont (1958), Groupe Maternel Ligeois (s.d.), Gunnarsson (1994),Bartolomeis (s.d.), Cear (s.d.), So Paulo (1990,1994) Lopez ; Homar (1948).

  • 33

    vias: a primeira foi a etimologia da palavra rotina, a construo de um conceito e a

    procura da histria social das rotinas.

    Para esse empreendimento, foi necessrio trabalhar em diferentes

    dicionrios e em textos clssicos da educao infantil. Procurei, ento,

    problematizar e construir conceitualmente a rotina como uma categoria

    pedaggica das pedagogias da educao infantil.

    E, logo aps, procurar a histria dos processos sociais para tentar entender

    as questes nas suas continuidades e rupturas e na sua amplitude nos diferentes

    campos. Foi o exerccio de construo de uma breve genealogia que no uma

    procura das causas, mas o encontro com os processos de constituio. Portanto

    a genealogia seria:

    um empreendimento para libertar da sujeio os saberes histricos, isto , torn-los capazes de oposio e de luta contra a coero de um discurso terico, unitrio, formal e cientfico.(Foucault,1982, p.172)

    De acordo com o mesmo autor, no texto Genealogia e poder, a

    genealogia uma ttica que faz com que saberes locais, fragmentrios, sejam

    ativados, tornando-se saberes libertos da sujeio e que emergem desta

    discursividade (op.cit, p.172). uma anlise explicativa que articula poderes e

    saberes em perodos de tempo amplos. Analisei, prioritariamente, as relaes

    entre as rotinas e a religio, as polticas do corpo, a legislao, o universo do

    capital e do trabalho e da escola. Essa parte da pesquisa foi feita atravs de

    pesquisa bibliogrfica na histria social. Uma breve incurso no campo da histria

    servir para contextualizar a produo e a afirmao das rotinas verificando como

    essa prtica cultural constituiu-se.

    A partir desse trabalho inicial com fontes histricas secundrias, organizei

    um captulo de reflexo sobre como a modernidade constituiu uma rotina para

    educar as crianas nas famlias e nas instituies para as crianas pequenas,

    como creches, jardins da infncia e pr-escolas.

    A segunda parte deste estudo trabalha principalmente com a discusso

    pedaggica das rotinas e tem como fontes a pesquisa sobre o conceito de rotina

    em textos histricos e contemporneos da educao infantil28 e o material

    28 Quero agradecer a Ana Lcia G. de Faria o acesso bibliografia italiana sobre histria da infncia e educao infantil.

  • 34

    levantado atravs de observaes feitas no cotidiano dos espaos educativos o

    Dirio de Campo, escrito nos anos de 1997 e 1998, a partir das observaes

    feitas em instituies brasileiras, e o Dirio de Viagem, escrito em 1998, durante

    uma viagem de estudos feita por alguns pases europeus.29

    A atrao por fazer um estudo de campo vem de uma paixo pela

    antropologia. Para mim, era importante mostrar que alguns atos que parecem

    sem objetivo, prticas inspidas, inodoras e incolores tm, sim, cor, cheiro e gosto.

    O que est ocorrendo que as mediaes feitas pelo lugar de onde observo

    parecem-me muito mais fortes do que a possibilidade de construir um

    estranhamento.

    Procurei desempenhar o papel de observador participante que, segundo

    Becker (1994, p.120) aquele que:

    coleta dados atravs da sua participao na vida cotidiana do grupo ou da organizao que estuda. Ele observa as pessoas que est estudando para ver as situaes com que elas se deparam normalmente e como se comportam frente a elas.

    A partir dessas observaes, procura registrar este:

    material to completamente quanto possvel por meio de relatos detalhados de aes, mapas de localizao das pessoas enquanto atuam e, claro, transcries literais das conversaes. (Becker, op. cit, p. 120)

    Juntamente com a pesquisa emprica foram emergindo novas questes e

    novos pontos de vista que no eram falados nas reunies, nos livros, na formao

    dos professores. Isto , aparecia o quanto as rotinas constrem a subjetividade

    das crianas e dos adultos das instituies de educao infantil.

    Assim que comecei a entrar nas creches e nas pr-escolas via,

    basicamente, a opresso (ativa ou passiva), a falta de respeito, a hierarquia e a

    normalizao tendo muita dificuldade em ver os atos de resistncia, em

    compreender os conflitos e as contradies presentes nas mesmas.

    A escolha das instituies observadas foi pragmtica: foram selecionadas

    aquelas que as autoridades locais consideraram representativas do sistema de

    Educao Infantil e a escola privada foi escolhida tendo em vista a sua proposta

    diferenciada. No caso das instituies estrangeiras, tambm educadores e

    29Os pases visitados foram: Espanha (Barcelona, Madri, Matar, Granada), na Itlia (Pistia), na Alemanha (Berlim) e Dinamarca . Em cada cidade visitada conheci duas escolas pblicas infantis.

  • 35

    pesquisadores abriram caminho para que as visitas se tornassem possveis. As

    observaes eram feitas acompanhando-se as jornadas das crianas nas

    escolas. No computei a incidncia de nenhum tipo de comportamento, no

    sendo feito nenhum questionrio ou utilizada estratgia de registro de

    observao. Apenas a escrita feita durante a prpria observao e a realizao de

    um Dirio de Campo ou Dirio de Viagens a partir do esboo sobre o observado.

    Tambm foram feitos registros fotogrficos30.

    Como as observaes no foram discutidas com os profissionais e muitas

    delas demonstram situaes problemticas, considerei que, pelo teor e objetivo

    da pesquisa, a identificao das instituies no seria fundamental. A natureza

    desse tipo de interveno o olhar de fora, passageiro pode congelar um

    determinado tipo de significado a uma ao observada e, ao tomar isso como

    uma verdade absoluta, pode ser interpretado como uma atitude pouco tica com

    as crianas, a instituio e os profissionais.

    Foram feitas algumas inseres no cotidiano de Escolas Infantis Brasileira.

    Primeiro, em duas escolas situadas na cidade gacha de Santa Cruz do Sul - uma

    pblica, A e uma privada, B - onde foram realizadas observaes de turno integral

    em diferentes turmas.31 O relato das observaes esto registrados no Dirio de

    Campo, dos anos de 1997 e 1998, e ofereceram dados para a discusso de

    algumas das questes da pesquisa. Com o intuito de aprofundar o estudo

    emprico, foi escolhida uma Escola Infantil da Rede Municipal de Educao de

    Porto Alegre/RS, para a coleta de dados. Nessas instituies, realizei

    observaes de turno integral e observaes em perodos parciais, acrescendo a

    estas entrevistas informais (semi-estruturadas) com os educadores e entrevistas

    com as crianas com o objetivo de obter uma maior riqueza de materiais.

    O uso da observao, do registro e de entrevistas informais foi inspirado,

    principalmente, pelos estudos etnogrficos, apesar da Psicologia e da Sociologia

    tambm utilizarem esses dois instrumentais como tcnicas de pesquisa e de

    coleta de dados. Sei que esse uso instrumental da Antropologia tem sido muito

    30 A viagem de estudos foi feita em outubro, novembro e dezembro de 1998. 31 Foram feitas duas observaes de turno integral, com duas turmas na creche pblica e trs turmas da escola privada. Nas escolas pblicas estrangeiras, geralmente acompanhei um dia inteiro das atividades em dois grupos de crianas: pequenos e maiores. 32 As imagens esto no Anexo 5 e foram feitas por uma desenhista a partir de descries feitas por mim.

  • 36

    criticado, pois os instrumentos so usados, muitas vezes, fora de um contexto

    terico. No caso desta pesquisa, a inteno no era fazer um estudo de caso

    aprofundando uma determinada situao, nem trabalhar com o que ocorre alm

    das rotinas, mas observar a existncia ou no das rotinas e como se d sua

    execuo no dia-a-dia das instituies de educao e cuidados. Creio que a

    pedagogia pode pedir emprestado esses instrumentais, tendo o cuidado de us-

    los com restries e com clareza acerca dos seus limites.

    A ida ao campo e a coleta do material emprico no tiveram o objetivo de

    realizar um estudo de aprofundado das rotinas em uma instituio. As questes

    que me fazia, enquanto pesquisadora, eram muito precisas, eram estritamente

    sobre a rotina, e as observaes de campo poderiam ajudar a respond-las. As

    observaes e entrevistas livres realizadas em escolas de outros pases nos

    meses de outubro, novembro e dezembro de 1998 sero utilizadas para

    contrapor, problematizar ou validar aquelas feitas no Brasil. O registro dessa

    viagem foi feito atravs de registro fotogrfico e de um Dirio de Viagem, em 1998

    . Como falei anteriormente utilizei, ainda, como material emprico situaes,

    palavras ou frases de livros e teses que tratam do tema, capturadas para

    exemplificar alguns significados importantes dos diferentes momentos da rotina

    na educao infantil.

    Alm disso, coletei algumas canes que auxiliam na organizao das

    rotinas, isto , canes que introduzem ou concluem um certo momento da rotina.

    Elas mostram o caminho adequado para a mudana de atividades, marcam as

    etapas e as transies entre os momentos de rotina. Tais imagens e canes

    foram coletadas, ao longo dos anos, em vrias creches e pr-escolas pblicas e

    privadas do RS e em livros sobre o tema. Foram tambm coletadas propostas de

    rotinas encontradas em livros e em documentos oficiais sobre o modo de construir

    rotinas adequadas como modelos criados por especialistas em diferentes

    momentos histricos e em diferentes lugares.

    As imagens32 que os educadores criam para poder representar as rotinas e

    que tm como objetivo a compreenso das mesmas pelas crianas podem variar

    de uma simples folha de papel mimeografado, colada atrs da porta com a

    32 As imagens esto no Anexo 5 e foram feitas por uma desenhista a partir de descries feitas por mim.

  • 37

    seqncia dos horrios e das atividades, at um complexo jogo de montar para as

    crianas organizarem, junto com a professora, as atividades que sero

    desenvolvidas ao longo do dia.

    Para Becker, a imagem mais adequada do empreendimento cientfico o de

    um mosaico no qual:

    Cada pea acrescentada num mosaico contribui um pouco para nossa compreenso do quadro como um todo. Quando muitas peas j foram colocadas, podemos ver, mais ou menos claramente, os objetos e as pessoas que esto no quadro, e sua relao uns com os outros. Diferentes fragmentos contribuem diferentemente para a nossa compreenso: alguns so teis por sua cor, outros porque realam contornos de um objeto. Nenhuma das peas tem uma funo maior a cumprir; se no tivermos sua contribuio, h ainda outras maneiras para chegarmos compreenso do todo.(op. cit., p.104 e 105)

    A construo do objeto de estudo realizou um percurso prprio, procurando

    responder s questes, e no foi feita empregando-se uma metodologia

    previamente definida. Algumas vezes, isto me pareceu um pouco problemtico,

    mas o uso de tcnicas diversas, a partir de pressupostos tericos definidos, tem

    sido uma forma interessante para descortinar as questes da rotina e para fazer a

    educao e a cincia de um modo mais elstico.

    Seria mais fcil optar por escrever este trabalho a partir do olhar de uma

    pesquisadora com muitas certezas, uma pesquisadora que tivesse um referencial

    terico nico e organizado como referncia e que procurasse, considerando tal

    referncia, fazer uma leitura de um aspecto da prtica. No quero seguir este

    caminho, ele no me satisfaz. O papel da pesquisa no o de simplificar -

    posicionando-se a favor ou contra - mas o de olhar a complexidade da realidade e

    procurar explic-la a partir de uma perspectiva.

    Para empreender esta aventura terico-prtica, muitas foram as leituras e

    releituras feitas. Para situar o objeto de pesquisa, procurei ter como interlocutores

    os dicionaristas que so generalistas e assim nos abrem muitas portas, muitos

    sentidos. Os dicionrios da rea das cincias humanas contriburam com o maior

    nmero de interlocutores.

    Na rea da histria, autores consagrados como Aris (1978,1986) e

    Norbert Elias (1980) foram fundamentais. Alm deles outros autores como os

    espanhis como Bajo e Betrn (1998) e Delgado (1998), e principalmente os

    italianos, juntamente com franceses, Becchi (1994) e Becchi & Julia

  • 38

    (1996a,1996b) e Catarsi (1983,1994) foram fontes privilegiadas para compreender

    a formao do conceito de infncia, a histria da educao infantil e das

    instituies para a educao das crianas pequenas.

    A histria e a sociologia do cotidiano foram trabalhadas a partir de Anthony

    Giddens (1995), Agnes Heller (s.d), Henri Lefebvre (1984) e Michel de Certau

    (1994,1996) e sua equipe de pesquisadores.

    A discusso entre modenidade(s) e ps-modernidade(s) que permeou o

    trabalho foi construda, prioritariamente, a partir de Santos (1996), Giddens

    (1991,1995), Adorno (1995), Harvey (1992), Jameson (1994), Hollanda (1992),

    Lyon (1998) entre outros.

    Na pedagogia, procurei primeiro revisitar os clssicos, entre eles Rousseau

    (1992,1994), Montessori (1937,1970,1994), Froebel (1989), Pestallozzi

    (1967,1988), Dewey (1959) e Freinet (1974). Procurei fazer, sempre que possvel,

    a leitura de textos originais dos autores. Em certos momentos, utilizei tambm

    textos escritos por estudiosos e intrpretes de suas obras. As Pedagogias Crticas

    tiveram como interlocutores privilegiados Giroux (1995,1996), Cambi (1995),

    Frago (1998), Rocha (1999a1999b) e Gore (1996).

    As questes da pedagogia da educao infantil foram discutidas a partir de

    autores brasileiros antigos e contemporneos. Escolhi tambm como

    interlocutores alguns autores italianos e espanhis como Mantovanni e Bondioli

    (1998), Tonucci (1988), Bartolomeis (s.d.), Becchi (1995), Bertolini (1996), Cambi

    (1995), Catarsi (1994), Bassedas (1999), Jimenz; Molina (1989) e outros.

    Na psicologia, apoiei-me na anlise scio-histrica e na psicanlise,

    procurando fazer uma releitura crtica de psicologia evolutiva atravs de Burmann

    (1998) e Figueiredo (1994).

    O dilogo com campos e posies tericas diversas foi complexo, exigindo

    a articulao entre os autores e a questo de pesquisa trabalhada. Alm do

    dilogo com tericos e suas teorias, tambm o dilogo com as pessoas que

    estavam presentes no campo de pesquisa - educadores, crianas,

    administradores e aquelas que acompanharam o desenrolar deste estudo -

    colaboraram para fazer-me compreender como operam os discursos e as prticas

    sociais de educao nas instituies de educao infantil.

    Como j vimos na apresentao dos caminhos metodolgicos, este

    trabalho est organizado em trs partes. A primeira procura fazer uma anlise

  • 39

    sobre o que so rotinas (captulo 2), a emergncia no campo social das rotinas

    pedaggicas (captulo 3) e o processo de rotinizao da infncia (captulo 4). A

    segunda parte, com um objetivo mais pedaggic