Barcelos Neto - A Ceramica Wauja

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, So Paulo, 15-16: 000-000, 2005-2006.

A CERMICA WAUJA: ETNOCLASSIFICAO, MATRIAS-PRIMAS E PROCESSOS TCNICOS*Aristteles Barcelos Neto**

BARCELOS NETO, A. A cermica wauja: etnoclassificao, matrias-primas e processos tcnicos. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, So Paulo, 15-16: 000-000, 2005-2006.

RESUMO: A cermica wauja a mais elaborada classe de artefatos do sistema de objetos do Alto Xingu. Seus tipos variam desde minsculas panelinhas at enormes panelas com 115 cm de dimetro. Este artigo descreve o sistema nativo de classificao da cermica e seu padro geral de fabricao, atentando para os detalhes que distinguem as qualidades tcnica e esttica das panelas conforme as percepes wauja.

UNITERMOS: ndios Wauja Cermica Alto Xingu.

Desde a penltima dcada do sculo XIX, quando teve incio o colecionamento etnogrfico no Alto Xingu, a cermica wauja tem sido a classe de artefatos mais coletada. Desde as duas ltimas dcadas, somam-se a essa antiga dispora de objetos milhares de panelinhas que os Wauja1 produzem especialmente para as lojas de artesanato indgena. Contudo, o que se

sabe sobre a cermica wauja no corresponde sua impressionante disperso pelo mundo. Esse enorme volume de artefatos cermicos bastante variado dos pontos de vista formal, esttico e das economias simblicas em que eles se inscrevem. O objetivo desse artigo oferecer alguns subsdios etnogrficos para compreender essa heterogeneidade.

(*) Quero registrar minha gratido aos Wauja, em especial a Atamai, Itsautaku, Aulahu, Kamo, Yanahin, Kuratu e Hukai. Meus trabalhos de campo foram financiados pelo Governo do Estado da Bahia e pelo Funpesquisa/UFSC (ano de 1998), pelo Museu Nacional de Etnologia (ano 2000), pela FAPESP (anos de 2001, 2002, 2004 e 2005) e pelo Muse du quai Branly (ano de 2005). A CAPES e a FAPESP concederam-me bolsas de estudos em diferentes etapas da pesquisa. Agradeo a Lux Vidal, Maria Rosrio Borges, Pedro Agostinho, Maria Rosrio Carvalho, Michael Heckenberger, Rafael Bastos, Carlos Fausto e Bruna Franchetto os incentivos para o desenvolvimento das minhas pesquisas no Alto Xingu. (**) Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. Ps-doutorando [email protected] (1) O leitor encontrar na literatura etnolgica o termo Waur, que o etnnimo difundido desde a primeira publicao sobre o Alto Xingu (Steinen 1886). Optei grafar

Wauja por este ser o etnnimo auto-atribudo. Os Wauja so um povo de lngua arawak que, h mais de um sculo, habita as proximidades da margem direita do baixo rio Batovi, na regio ocidental da bacia dos formadores do rio Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil Central. No entanto, a histria dos Wauja no Alto Xingu bem mais antiga, pesquisas arqueolgicas recentes apontam a chegada dos seus ancestrais regio por volta do sculo IX d.C. (Heckenberger 2001). Desde o sculo XVIII teve incio nessa regio a formao de um sistema social multitnico que integra, alm dos Wauja, outros nove grupos de diferentes filiaes lingsticas Mehinako e Yawalapti (Arawak); Kuikuro, Kalapalo, Matipu e Nahukw (Carib); Kamayur (Tupi-Guarani), Aweti (Tupi) e Trumai (de lngua isolada). Os Wauja somam uma populao de aproximadamente 380 pessoas, das quais 330 residem em uma aldeia circular com o sistema de praa central e casa das flautas.

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Diferentes aspectos da cermica wauja foram descritos por Lima (1950), Schultz (1972), Coelho (1981), Hartmann (1986), Myakaki (1978), Heckenberger (1996) e Barcelos Neto (2000).2 Nenhuma dessas contribuies e nem mesmo o conjunto delas so exaustivos. Alis, a cermica wauja um objeto de estudo que est longe de atingir a exausto. Nesse sentido, importante mencionar que a profundidade temporal de 1000 anos da cermica arawak no Alto Xingu (Heckenberger 1996 e 2001) um desafio apenas preliminarmente enfrentado. Ademais, deve-se considerar a complexa circunscrio da cermica em temas cosmolgicos, sociopolticos e estticos (Barcelos Neto 2004a, 2004b, 2004c). Concentrei o escopo deste artigo em aspectos tecno-formais. Todavia, apesar de a tcnica de fabricao ser uma s por modelagem3 , os resultados finais tm significativas variaes. Isso se deve s habilidades desenvolvidas por cada ceramista. Alguns deles esforam-se durante vrios anos seguidos para aperfeioar sua tcnica. Do ponto de vista wauja, so as diferenas no resultado fabril que interessam, pois elas implicam na durabilidade da pea e no seu uso como pagamento ritual peas de m qualidade no podem ter esse destino.

Alguns aspectos sociais da produo cermica A arte oleira wauja corresponde mais elaborada classe de artefatos do sistema de objetos do Alto Xingu. Seus tipos variam desde minsculas panelinhas que cabem na palma de uma mo at enormes panelas de 115 cm de dimetro. Quando destinadas aos rituais, as panelas so recobertas

(2) Nesse artigo, abordei apenas aspectos mito-cosmolgicos relativos cermica. Segundo a viso perspectivista/ animista que os Wauja possuem da sua cultura material, as panelas ligam-se ontologicamente a seres nohumanos (apapaatai e yerupoho), cuja agncia patolgica consubstancia-se diretamente na argila e demais matrias-primas usadas na fabricao e pintura da cermica. Em Barcelos Neto (2001), o leitor encontrar uma descrio do esquema de classificao dos seres nohumanos a partir das interpretaes visuais que os xams fazem da mito-cosmologia wauja. (3) Como descrevo a seguir, os Wauja no utilizam a tcnica de acordelamento, to difundida em outras regies da Amaznia (Silva 2000).

com pinturas cuidadosas e refinadas que afirmam a eficcia esttica que esses objetos devem ter em tais contextos. A cermica wauja suporte pedaggico durante a recluso pubertria das meninas, de brincadeiras infantis, de traduo de imagens onricas dos xams, de prestgios poltico e econmico, somados ao seu carter de objeto de luxo, e de afirmao identitria na trama xinguana e extra-xinguana. A tradicional reunio diria que os homens fazem em frente casa das flautas (kuwakuho), ao anoitecer, um evento excepcional para o etnlogo tentar entender os fatos do dia e saber o que poder ocorrer nos dias seguintes. Vrios assuntos entram em pauta, mas nem todos indivduos participam diretamente ou opinam nas conversas. Com certa freqncia participei dessas reunies. Num dia em particular, no incio da minha temporada de campo de 1998, o chefe Atamai transmitiu recados recebidos pelo rdio: encomendas de panelas feitas pelos Kamayur e por outras aldeias do norte do Parque Indgena do Xingu, avisos de que alguns Yawalapti e Mehinako visitariam a aldeia para buscar panelas anteriormente encomendadas e a cobrana de uma panela nuki por um senhor Kuikuro, que a esperava ansiosamente, pois sua nuki de cozinhar o caldo venenoso da mandioca tinha se quebrado, semanas antes. Os Wauja ficaram por alguns minutos comentando sobre os recados e discutindo sobre o despacho das encomendas. Nessa mesma reunio, perguntei a um dos meus informantes qual era a importncia das panelas para os Wauja. Sem pensar muito ele respondeu: panela nossa vida. No dia seguinte, abordei o assunto das encomendas de panelas com o meu anfitrio, o chefe Atamai, rapidamente ele comeou a falar dos ceramistas que ele julgava mais competentes e da importncia das panelas: panela escola mesmo. Panela escola do Waur. Para os Wauja, a panela um tipo de escola estratgica no complexo jogo das identidades tnicas no Xingu e no panorama do contato com a sociedade nacional. As panelas so uma metfora da identidade Wauja. O aprendizado da modelagem ensina os Wauja a serem Wauja. Esse discurso pode ser observado em vrios contextos, seja quando os Wauja oferecem exegeses mticas ou quando valorizam suas exmias habilidades como ceramistas. Conta esse povo de lngua arawak que, h muito tempo, todos os tipos de artefatos cermicos

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chegaram navegando e cantando sobre o dorso de uma grande cobra-canoa chamada Kamalu Hai.4 Nessa ocasio, a cobra ofereceu-lhes a viso primordial desses artefatos, o que conseqentemente lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira da cobra-canoa. Alm disso, antes de ir embora para o oceano, Kamalu Hai defecou enormes depsitos de argila ao longo do mdio e baixo rio Batovi, para que os Wauja pudessem fazer sua prpria cermica. Os Wauja afirmam que a Kamalu Hai apareceu apenas para eles, por isso nenhum outro povo do Alto Xingu sabe fazer cermica.5 Na aldeia Wauja, toda casa tem um ou mais ceramistas. Aproximadamente 60% da populao adulta fabricam ou tm, pelo menos, conhecimento dos processos tcnicos de fabricao da cermica e de sua pintura. Nalgumas casas, h at cinco ceramistas ativos. Ao fazer o levantamento de cada unidade residencial de produo cermica, notei que os ceramistas considerados, pelos Wauja, os mais competentes e mais produtivos concentravamse nas mesmas unidades residenciais ou tinham laos de parentesco consangneo. A investigao das genealogias dos ceramistas aponta para o fato de que nesse grupo arawak a transmisso dos conhecimentos artsticos mais sofisticados tendem a associar-se s altas linhagens de chefia. Desse modo, a escola da panela tende a acompanhar as hierarquias internas wauja. Mesmo tendo muitos ceramistas de ambos os gneros na aldeia Wauja, apenas alguns so, de fato, considerados exmios. Os melhores em atividade agrupam-se respectivamente em dois ncleos de parentelas consangneas. O aprendizado da cermica comea na recluso pubertria, que funciona como a primeira escola da panela. Noto que essa escola s operativa dentro do grupo de substncia do aprendiz, pois ningum sai do seu grupo de substncia para ficar recluso em outro grupo. Em geral so as meninas que

aprendem cermica na recluso pubertria. Os homens, por sua vez, aprendem/comeam a fazer cermica depois dos trinta e cinco anos, porm, desde a adolescncia participam de uma ou outra etapa da coleta e processamento de matrias-primas. A transmisso de conhecimentos artsticos especficos durante a puberdade e adolescncia de uma pessoa restringe-se s relaes de natureza consangnea mais imediata, e isso no vlido apenas para o aprendizado da cermica: os poucos aprendizes de msicas de flautas sagradas Kawok tambm so da parentela consangnea do seu professor. Entre os Wauja, nenhum tipo de conhecimento artstico difundido indistintamente, ele tende a ser reproduzido dentro do mesmo grupo de substncia ou no mximo dentro da mesma parentela consangnea do seu conhecedor. Desse modo, de se esperar concentraes de indivduos talentosos, ou incompetentes tambm, de acordo com esta segmentao do conhecimento. No entanto, isso no garante que todos os aprendizes de um determinado grupo conservaro o conhecimento e a destreza em certas artes. Existem os ceramistas que modelam bem, mas que desenham relativamente mal, os que modelam e desenham bem, e os que so incompetentes em ambas as tcnicas. No entanto, h alguns homens que desenham bem, mas que no sabem modelar. Aparentemente, seria impreciso afirmar que a modelagem uma arte mais feminina e o desenho ornamental mais masculino, visto que ambos os gneros dominam tanto uma tcnica quanto a outra. Contudo, num panorama mais amplo da cultura material, o desenho ornamental mais masculino na medida em que os homens produzem uma diversidade muito maior de artefatos ornamentados, alm de terem uma pintura corporal mais complexa que a feminina. H uma lista extensa de artefatos de cultura material que apenas os homens sabem (ou podem) fazer: a composio de desenhos ornamentais no tranado , por exemplo, uma arte exclusivamente de conhecimento masculino.

(4) Vide texto completo da narrativa mtica em Barcelos Neto (2000 e 2002). (5) H tambm ceramistas na aldeia mehinako, porm, os Wauja afirmam que se trata de pessoas de ascendncia wauja e que, alm disso, os poucos Mehinako que sabem fazer cermica teriam aprendido com os Wauja residentes em sua aldeia. Essas afirmaes conferem com os dados que obtive em 1998, 2000, 2001, 2002 e 2004 sobre emigraes temporrias de famlias ceramistas wauja para a aldeia mehinako.

Etnoclassificao Os artefatos cermicos wauja extrapolam uma classificao enquanto equipamento meramente domstico. Muito do que produzido atualmente destina-se ao mercado de artesanato indgena, em especial as panelas zoomorfas. H tambm uma

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panela (yanapo) usada exclusivamente no ritual de iniciao masculina (Pohok) e vrios artefatos feitos com interesses puramente estticos ou ldicos. Imagens onricas dos xams podem, por exemplo, orientar a forma de uma panela, a qual muitas vezes no integrar o equipamento domstico de nenhuma casa, trata-se nada mais do que um objeto de deleite. A panela-arara (kajujutokana, Fig. 1) e a imagem do veado-monstro (kautkum opotalapitsi) so exemplares da traduo plstica para a cermica de sonhos do xam visionrio-divinatrio (yakap) Itsautaku.6 Alm das propriedades utilitrias e formais que informam o sistema de classificao da cermica, agregam-se aquelas de carter cosmolgico. Uma

e graves, sendo os primeiros cantados pelas panelas menores e os segundos pelas maiores. A chegada mtica das panelas d-se como uma dramatizao musical da sua natureza fsico-formal, a escala tonal correspondendo sua escala dimensional, a qual por sua vez est ligada s propriedades utilitrias de cada panela. Porm, importante mencionar que a ligao entre essas escalas no feita de uma maneira taxonmica. O som prprio de cada panela percebido com leves batidas em seu fundo externo, a ressonncia permite ao Wauja examinar a boa ou m consistncia da manufatura. Alm disso, procede-se a verificao ocular e ttil do polimento e de possveis fissuras ocorridas durante a queima da panela. O canto mtico das panelas um ndice de sua forma. Na atualidade, esse canto transformado num modo mico de perceber a qualidade dos objetos cermicos, portanto no devendo ser confundido como um modo classificatrio dos mesmos. As listas abaixo obedecem aos critrios nativos que classificam a cermica por classe e dentro de cada classe por tamanho decrescente. Existem cinco classes (kamalupo, makula, hj, tsaktsak e panelas zoomorfas) e outros cinco tipos de artefatos cermicos isolados, ou seja, no agrupveis em nenhuma das classes acima. 1. Kamalupo

Fig. 1 Panela-arara fabricada por Itsautaku Wauja a partir de um sonho xamnico.

abordagem mais detalhada da relao entre a cosmologia e o sistema visual j foi realizada alhures (Barcelos Neto 2002 e 2004a: cap. 5). A mitologia wauja aponta uma relao curiosa entre as propriedades formais e sonoro-musicais dos objetos cermicos, a qual merece aqui algumas consideraes. Conta um mito que todos os tipos de artefatos cermicos chegaram originalmente navegando sobre o dorso de uma grande cobra chamada Kamalu Hai. As panelas7 chegaram cantando o nome de Kamalu Hai numa escala de tons agudos

(6) Vide Barcelos Neto (2002) para uma etnografia desse processo de produo artstica a partir do sonho e do transe. (7) No presente contexto, este termo inclui tambm os torradores de beiju.

Kamalupo (Figs. 2 e 8) a classe de panelas de borda extrovertida e lbio arredondado geralmente empregada no processamento da mandioca e no armazenamento de alimentos. As grandes dimenses da base externa das kamalupo (algumas chegam a 115 cm de dimetro, como a kamalupo weke) permitem a elaborao de composies grficas complexas com motivos variados, algo raro de ser encontrado em panelas com dimetro externo inferior a 60 cm. A altura externa das kamalupo varia entre 35 e 58 cm. O dimetro da base externa a medida de maior variao de 60 a 115 cm. H oito tipos de kamalupo, os quais no so determinados pelo uso e sim pela relao entre altura e dimetro externos. Porm, importante esclarecer que o dimetro da base externa e a altura das paredes externas so os ndices que qualificam as potencialidades de uso das kamalupo. Ou seja, so as dimenses que determinam os usos e no os usos que determinam o tipo.

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dimenses reduzidas limitam o seu uso a armazenar e a servir alimentos lquidos de consumo rpido. Esses trs tipos de panelas tiveram sua fabricao drasticamente reduzida aps a invaso dos caldeires de alumnio (Tabela 1). 2. Makula Makula (Fig. 3) a classe de panelas de uso diverso com borda extrovertida e lbio plano, formando uma espcie de disco. Algumas so to grandes quanto as kamalupo, com o detalhe de que podem ter maior altura e/ou menor espessura das paredes e bordas. A altura mdia das panelas makula varia entre 20 e 40 cm (Tabela 2). 3. Hj Hj (Fig. 4) a classe de artefatos cermicos correspondente ao torrador de beiju, um dos

Fig. 2 Panela kamalupo weke.

As kamalupo possuem uma sub-lasse representada por trs tipos de panelas (Heitein, Nunukatsi e Nunukatsiti) cujo dimetro da base exterior mede entre 30 e 60 cm e a altura das paredes externas no superior a 35 cm. Suas

TABELA 1 Nome da panela 1.1 1.2 Kamalupo weke Usos Cozinhar caldo venenoso da mandioca, armazenar polvilho, farinha e gua Dimenses mdias do dimetro da base 90 a 115 cm 80 a 95 cm

Kamalupo ahpupuku (ou majatpo) Cozinhar caldo venenoso da mandioca, armazenar polvilho, farinha e gua, espremer e lavar a massa da mandioca. Nuki Ralar mandioca, cozinhar caldo venenoso da mandioca, pequi e sementes de urucum Cozinhar caldo venenoso da mandioca, espremer e lavar a massa da mandioca Cozinhar caldo venenoso da mandioca, espremer e lavar a massa da mandioca Cozinhar caldo venenoso da mandioca Espremer e lavar a massa da mandioca Ralar mandioca Transportar gua Armazenar e servir mingau Armazenar e servir mingau

1.3

65 a 80 cm

1.4 1.5 1.6 1.7 1.8 1.9

Kamalupo mayayapo Kamalupo tapapuku Kamalupo kurisepun Misapo Witsopo Heitein

65 a 80 cm 65 a 80 cm 65 a 80 cm 60 a 70 cm 60 a 70 cm 55 a 60 cm 40 a 55 cm 30 a 40 cm

1.10 Nunukatsi 1.11 Nunukatsiti

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poucos objetos do equipamento domstico que continua insubstituvel pela tecnologia de artefatos de metal. O hj possui pequenas bordas extrovertidas e lbios suavemente arredondados. Juntamente com as kamalupo de grandes dimenses, o hj o artefato cermico mais apreciado pelos Wauja. Considerado absolutamente indispensvel, o hj ocupa o centro da casa, o ponto entre as portas frontal e traseira e os dois postes centrais de sustentao do teto (Tabela 3).

Fig. 3 Panela makula weke.

Fig. 4 Torrador de beiju.

TABELA 2 Nome da panela 2.1 Makula weke Usos Dimenses mdias do dimetro da base 75 a 85 cm

Cozinhar grandes quantidades de peixe, sementes de urucum e pequi, espremer e lavar a massa da mandioca, cozinhar caldo venenoso da mandioca na falta de uma nuki Cozinhar peixe

2.2 2.2 2.3 2.4 2.5

Makula tapapuku

70 a 75 cm 65 a 70 cm 45 a 65 cm 20 a 45 cm 10 a 20 cm

Makula tapapukuti Cozinhar peixe Makula Makulati Makulatitsi Cozinhar peixe, torrar farinha Panela pequena usada para comer peixe individualmente, normalmente pertence a homens adultos casados Panela muito pequena usada para comer peixe individualmente, normalmente pertence a crianas epr-adolescentes

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TABELA 3 Nome do artefato 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 Hj weke Hj ahponapuku Usos Torrar beijus muito grandes, em geral aqueles servidos durante as festas inter-aldes Torrar beijus grandes Dimenses mdias do dimetro da base 90 a 105 cm 80 a 90 cm 65 a 80 cm 45 a 65 cm 35 a 45 cm

Hj ahponapukuti Torrar beijus para unidades familiares de 10 a 12 pessoas Hj ahkapuku Hjti Torrar beijus para unidades familiares de 7 a 9 pessoas Torrar beijus pequenos

4. Tsaktsak As panelas tsaktask so conhecidas por terem no interior bolinhas de cermica que as tornam semelhantes a um chocalho. Possuem, invariavelmente, bordas extrovertidas e lbios arredondados. Sua fabricao tambm foi amplamente reduzida aps o ingresso de caldeires de alumnio (Tabela 4). 5. Panelas zoomorfas Esta a classe de artefatos cermicos que apresenta a maior diversidade de formas. So as nicas panelas que possuem borda direta. No h nenhuma prescrio formal para a modelagem dessas panelas. possvel encontrar panelas-morcego com borda direta ou extrovertida, e panelas-pssaro com lbio arredondado ou plano. A combinao de formas bastante livre. As bordas podem receber apndices a formar cabeas, patas, antenas, asas, braos, pernas, ferres e rabos.

possvel encontrar pernas ou ps aplicados na base, e cabeas nas extremidades opostas de uma mesma panela a formar um apapaatai bicfalo. Nas panelas zoomorfas representado um nmero muito extenso de animais (Figs. 1 e 5), inclusive aqueles conhecidos aps o contato com os brancos, como cachorros, gatos, galinhas, vacas e animais nativos de outros continentes que os ndios conhecem em zoolgicos. A modelagem desses animais estrangeiros no freqente. Algumas panelas inspiradas em dinossauros vistos em filmes exibidos na televiso fizeram sucesso entre os Wauja tanto como brinquedo infantil quanto como recipiente para servir alimentos. Os animais dos ecossistemas xinguanos so os preferidos para modelagem. Em 1998 e 2000, identifiquei a representao de 47 espcies de animais nativos na cermica, conforme a lista da Tabela 5. As dimenses das panelas zoomorfas variam enormemente: h algumas que cabem na palma de uma mo (Fig. 6) e outras to grandes que servem

TABELA 4 Nome da panela 4.1 4.2 4.3 4.4 Tsaktsak weke Tsaktsak Tsaktsakti Tsaktsaktitsi Usos Servir mingau de pequi e mandioca Servir mingau de pequi e mandioca Destinada ao mercado de artesanato indgena Destinada ao mercado de artesanato indgena Dimenses mdias do dimetro da base 45 a 50 cm 25 a 45 cm 15 a 25 cm 5 a 15 cm

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TABELA 5 Wauja Awajatualu Aluwa Atapoja Autu Awaulu Eyusi Ewejo Ikixuno Ixeho Iyumu Kkya Kajujuto Kajutukalu Kyakya Kujupoja Kulukulusi Kumesi Kup Malula Mei Mepelesi Outala Paho Puixa Sakalu Talapi Talau Teme Teme okupala Tikau Tulupi Tupatu Ulako Ulupu-kum Yak Yalatu Yanumaka kapala Yanumaka yalaki Yapu Yasiyul Yuluma Yuma Yut Waj Wapi Wejeje Weu Portugus Urubu Morcego Vespa Queixada Raposa R Ariranha Abelha Capivara Mutum Gaivota Arara Sapo-cururu Coruja Gavio-real Pssaro grande, parece urubu, come minhoca Beija-flor Carrapato Tatu-canastra Formigo Sanguessuga Ona parda Macaco-prego Matrinch Papagaio Peixe-pato Pssaro parecido com tapa-tapa Anta Carrapato de anta ou Carrapato estrela Parece r Peixe pintado Peixe Peixe-eltrico Urubu-rei Jacar Caranguejo Ona pintada Ona pintada negra Arraia Parece pato, s que mergulha Piranha Pirarara Veado campeiro Pssaro Peixe cachorra Parece r, mas menor Escaravelho Latim Coragyps atratus foetens Chiroptera spp. Espcie no identificada Tayassu pecari pecari Dusicyom velutus Pipa pipa Pteronura brasiliensis Apis mellifera Hydrochoerus hydrochaeris Crax fasciolata Larus maculipennis Anodorhynchus sp. Bufo marinus Bubu virginianus nacurutu Harpya harpya Espcie no identificada Trochilidae sp. Gnero Amblyomma Priodontes giganteus Espcie no identificada Hirudrus medicinalis Felis pardalis Cebus apella Characidae sp. Amazona aestiva Espcie no identificada Espcie no identificada Tapirus terrestris Gnero Amblyomma Espcie no identificada Pseudoplatystoma corruscans Espcie no identificada Electrophorus electricus Sarcorramphus papa Caiman crocodilus Trichodactylus fluviatilis Panthera onca Panthera onca Elipisurus strongylopterus Espcie no identificada Pygocentrus sp. Phractocephalus sp. Ozotocerus bezoarticus Espcie no identificada Raphiodon sp. Espcie no identificada Espcie no identificada

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Fig. 5 Panelinha-sanguessuga.

para cozinhar um peixe-cachorra inteiro, como a itsakana8 (panela-canoa). No conjunto de panelas que a literatura xinguana denomina zoomorfa h trs que no so animais: uma delas a itsakana, que, como o prprio nome diz, uma panelacanoa, ou seja, um modelo reduzido de uma canoa. As duas outras excees so a iyukana (panela-gente) e a yerupohokana (outro tipo de panela-gente). O uso quotidiano das panelas zoomorfas resume-se basicamente em servir alimentos cozidos e guardar pimenta, sal, restos de comida e pequenos objetos, como linhas, agulhas, pinas, miangas etc.. As panelas zoomorfas tm um carter ldico inquestionvel, que adquire maior salincia entre aquelas destinadas s crianas: elas so panelasbrinquedos. Tais objetos so de uso individual, cercado de muito cime. Toda criana tem sua prpria panelinha zoomorfa, que normalmente presenteada logo que ela aprende a comer sozinha. Muitas crianas atam cordes em suas panelas e as arrastam como se fossem carros e tratores. Quando os adolescentes saem da recluso no comem mais em panelinhas, seu peixe servido sobre um pedao de beiju, jovens do sexo masculino s voltaro a ter seu peixe servido em panelinhas quando se casarem. 6. Outros artefatos cermicos (Tabela 6) Na Festa do Pequi ritual sazonal realizado entre outubro e dezembro, quando essa fruta madura e comea a cair das rvores so fabricados pequenos objetos com a forma dos rgo

Fig. 6 Apayupi Wauja mostra miniaturas de panelas.

genitais masculinos e femininos. Eles so usados em uma brincadeira ritual na qual homens e mulheres trocam insultos e lanam contra si os pequenos genitais de cermica. A violncia com que esses objetos so usados os torna extremamente efmeros.

Matrias-primas e processos tcnicos A fabricao e pintura da cermica entre os Wauja so ofcios que demandam um nmero pequeno de matrias-primas submetidas a processos tcnicos bastante especializados, resultando numa cermica de alto padro tcnico. A argila escura (kamalu yalaki) e o espongirio lacustre akukutai (usado como anti-plstico aps um processo de secagem e queima) so as matrias-primas que compem a pasta de modelagem. A coleta desses dois materiais ocorre no perodo da baixa mxima dos rios e lagoas, que

(8) O sufixo kana refere-se forma cncava ou oca de qualquer objeto, kanati a sua forma diminutiva.

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TABELA 6 Nome do artefato 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5 Ulukati Munutai Kohojujuto Mutsukuri Yanapo Usos Dimenses mdias

Pote com tampa usado para armazenamento de gua Dimetro: 35 a 40cm; Altura: 60 a 70 cm Panela usada no ritual iniciao masculina (Pohok) Dimetro: 20 a 30 cm; Altura: 20 a 25 cm Socador de pimenta cilndrico Bases cnicas de apoio para as panelas e torradores de beiju Comprimento: 12 a 16 cm Dimetro: 10 e 16 cm; Altura: 12 a 22 cm

Fragmentos da base das kamalupo e dos torradores Por serem fragmentos de quebrados usados na montagem dos fornos de formas circulares, suas dimencasca de rvore para a queima da cermica ses so muito variadas e irregulares. Em geral, medem de 50 a 90 cm de comprimento

corresponde aos meses de agosto e setembro. O perodo de maior produo cermica entre os meses de novembro e maro, os quais marcam a estao das chuvas. Certas quantidades de argila e anti-plstico podem ficar guardadas por vrios meses nas casas, sendo usadas na medida em que se faz necessria a fabricao de uma nova panela, seja por encomenda, ou para substituir alguma pea que por acaso se quebrou. O processo de fabricao de uma panela passa por oito a dez etapas a depender do artefato que se objetiva fazer. Para a obteno da argila e do espongirio lacustre akukutai necessrio mergulhar nos pontos do rio e da lagoa onde existem os depsitos. Como os mesmos encontram-se relativamente distantes, preciso que a carga seja transportada de canoa e carregada at a aldeia em cestos do tipo mayapalu ou em bacias de alumnio. Para transformar o akukutai em anti-plstico, o mesmo deve secar ao sol por uns cinco dias e depois passar por um processo de queima numa fogueira de gravetos, que o tornar um p ocre, passando ento a ser chamado de akukupe,9 que

(9) No possvel afirmar que o akukupe seja o mesmo cauixi amplamente descrito por arquelogos nas indstrias pr-coloniais da Amaznia, pois seria necessria a identificao botnica do espongirio utilizado pelos Wauja e a sua comparao com os componentes do cauixi.

de fato a matria-prima usada como anti-plstico entre os Wauja. Antes de iniciar a modelagem de uma pea, o ceramista limpar a argila de impurezas, como eventuais gravetos, pedacinhos de madeira e cascas de frutos e moluscos. importante notar que no h detritos lticos na argila usada pelos Wauja. O trabalho de limpeza simples e rpido, pois ele no exaustivo, ademais, durante o processo de modelagem pode-se aprimorar a limpeza. Um ceramista wauja no limpa antecipadamente toda a argila que armazena em sua casa ao longo de uma estao de coleta, mas apenas a quantidade necessria para modelar a pea que ele deseja. Por outro lado, todo o akukutai coletado logo queimado e o p resultante (akukupe) cuidadosamente guardado em fardos protegidos contra umidade. As reservas domsticas de akukupe so to valiosas quanto as de argila. Os Wauja dizem que a mistura correta de argila e akukupe para obteno da pasta de modelagem percebida antes pelo tato do que pela viso. Com a mistura de akukupe, a plasticidade da argila pura (fria por definio) torna-se quente, ou seja, adquire a plasticidade ideal para a modelagem. A adio de akukupe argila no deve ser excessiva, pois com o passar dos dias a pea modelada poder ressecar e endurecer muito rapidamente, expondo micro-rachaduras, que comprometero a integridade da pea. Por outro lado, se a quantidade de akukupe adicionada for inferior ao necess-

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rio, a panela no suportar a presso durante as fases de raspagem e lixamento. A resistncia de uma panela ou torrador depende, em grande parte, da dosagem correta de akukupe. As vasilhas de cermica so sempre iniciadas pelo fundo a partir de um pedao homogneo de argila temperada que achatado e esparramado para os lados at se obter o dimetro e a espessura pretendidos. Pedaos menores de argila so sucessivamente adicionados de baixo para cima at se modelar a lateral, que executada com movimentos sinuosos e sincronizados que configuram a lateral tradicionalmente ondulada (Fig. 7). Em seguida, modela-se uma borda extrovertida com lbio arredondado ou plano a depender do tipo de panela que o ceramista resolveu modelar.

Fig. 7 Mulher wauja fabricando uma panela nuki.

Caso ele esteja modelando uma panela zoomorfa, os apliques que caracterizaro o animal podero ser adicionados posteriormente, mas se a

panela zoomorfa for muito pequena, ou se est sendo feita sem requintes, o ceramista modelar de uma s vez a panelinha, puxando das bordas as formas zoomorfas que ele escolher. Terminada a modelagem, a pea vai para o sol. Dependendo do seu tamanho, ela poder ficar vrios dias secando, e se o ceramista no tiver pressa de terminar a pea, a mesma poder permanecer por algumas semanas num canto da casa ou do rancho oleiro. Entre abril e maio de 1998, durante minhas freqentes visitas a uma das principais unidades domsticas de produo de cermica, eu sempre via uma kamalupo weke recm-sada da secagem, que nunca tinha sua concluso avanada. Quando deixei a aldeia wauja, a pea continuava como eu a tinha visto dois meses antes. Mas quando se tem pressa, uma panela kamalupo weke pode ser totalmente concluda em, no mnimo, duas semanas de intenso trabalho. O resultado da modelagem sempre uma pea grossa, com excesso de pasta, que depois da secagem ao sol passar por, pelo menos, uma dezena de raspagens e lixamentos at atingir a textura e espessura ideais. Para a raspagem usa-se tradicionalmente as conchas de um molusco bivalve chamada ulu, ou uluti (a mesma concha, porm de menor tamanho), a ulu tambm usada para descascar mandioca. O uso dessas conchas hoje restrito, pois desde algumas dcadas elas foram substitudas por colheres no processo de raspagem da cermica, e por tampas de latas de manteiga no processo de descascar mandioca. As conchas tm menos eficincia tcnica nos dois processos devido necessidade de afi-las com freqncia, pois dependendo da dureza da superfcie a ser raspada o fio de sua lmina quebra-se em diferentes pontos, chegando s vezes a provocar leves sulcos na superfcie da pea. O trabalho de raspagem pode levar horas ou, a depender do tamanho da pea, at uma semana, nesse caso ele pode ser executado por mais de uma pessoa. Todo o excesso de pasta que foi retirado no processo de raspagem guardado para ser reutilizado. Normalmente, em casas onde a produo grande, essas raspas de argila ressecada ficam acumuladas em bacias de alumnio ou panelas inacabadas. O lixamento o processo seguinte raspagem. Aqui tambm a eficincia tcnica de outros materiais substituiu quase que totalmente o kausepse, uma folha de textura relativamente fina, que era um dos poucos materiais conhecido como lixa. Atualmente

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usam-se lixas industriais de vrias texturas base de areia, cola e papel ou lonita. O kausepse empregado na fase final de lixamento, mas isso s se o ceramista no tiver a mo uma lixa industrial de textura fina. Comea-se sempre pela lixa mais grossa, passando ento para lixas com texturas que diminuem gradativamente. Assim como as raspas de argila, o p que resulta desse trabalho guardado para reaproveitamento. O ltimo processo antes da queima consiste em alisar a pea com uma pedrinha redonda (Fig. 8), que constantemente molhada com o sumo de uma casca de rvore chamada yapita. A qualidade final das peas depende muito dos processos de lixamento e alisamento. O torrador de beiju, por exemplo, no pode ter a superfcie interna rugosa, pois o beiju poder grudar, deitando fora toda uma laboriosa dedicao culinria. Peas com aspecto rugoso ou com texturas grossas e salientes, alm de serem inadequadas ao trabalho domstico, no correspondem ao padro esttico desejado pelos Wauja.

Fig. 8 Ulus Wauja alisa uma panela nuki.

A queima da cermica realizada ao ar livre, no interior de uma estrutura cnica, feita de cascas de rvore (ajata, espcie no-identificada) distribudas uniformemente e recobertas com kohojujuto (pedaos de panelas quebradas). A estrutura de queima varia entre 60 cm e 100 cm de altura. A necessidade de o calor atingir de modo mais ou menos homogneo a totalidade das peas impe limites s dimenses das estruturas de queima. Assim, o nmero de peas a ser queimado

numa nica estrutura sempre corresponde exigncia tcnica da distribuio homognea de calor. Numa nica estrutura de queima podem ser acondicionados artefatos cermicos de diversos tamanhos. Nesse caso, as kamalupo e makula so colocadas em posio invertida, e em cima, em baixo e/ou em suas laterais distribuem-se as panelinhas zoomorfas. Em uma estrutura de queima feita apenas para panelinhas, as maiores ficam em baixo e a menores em cima. Tais estruturas comportam apenas uma kamalupo ou uma makula por queima. A queima dura de trs a quatro horas, a depender do tamanho do forno. No auge da liberao de calor, as peas ficam vermelhas como brasa, atingindo temperaturas superiores a 450 graus centgrados. Lentamente, a ajata vai virando cinza e as peas, que antes da queima eram acinzentadas, adquirem um tom ocre muito claro (biscoito). Considera-se que a queima terminou apenas quando as peas esto frias, ou seja, em condio para pintura. A queima da cermica wauja tem apenas uma exceo, que a da panela tsaktsak. Por ter a parte inferior oca, ela no pode ser submetida s altas temperaturas de queima com ajata, pois o fundo estouraria durante a queima, a soluo tcnica para o caso especfico da tsaktsak uma queima branda e demorada numa fogueira de gravetos. A ltima etapa do processo de produo cermica a pintura, que pode ser executada segundo quatro tcnicas variveis de acordo com as tintas empregadas. Uma delas, a yuri, feita com fuligem e com um aglutinante vegetal extrado da madeira de uma rvore homnima. Para a obteno da tinta, a madeira de yuri deve ser raspada e macerada com gua e fuligem at se obter um lquido espesso, no sendo necessria sua queima. A tinta pode ser aplicada diretamente sobre as superfcies interna e externa, alis, tintas pretas, como a yuri so empregadas tanto na decorao externa com motivos grficos quanto no enegrecimento interno das peas. Em algumas casas, vi ceramistas guardarem o preparado de yuri por vrias semanas; e se ele secar basta adicionar gua. A tinta yuri proporciona um brilho leve e uma pigmentao intensa pea, mas tem pouca durabilidade, pois se descasca quando exposta ao sol ou se acondicionada em ambientes muito midos. A yuri tambm empregada na pintura de artefatos de madeira como

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remos, mscaras, ps de beiju, desenterradores e raladores de mandioca, e no enegrecimento da fibra wixato (taquarinha), usada para fabricao de cestos cargueiros. A muat a outra tinta usada na pintura de motivos grficos e no enegrecimento do interior das panelas e torradores de beiju. Seu uso, porm, exclusivo na cermica, e emprega uma tcnica um pouco mais laboriosa que a anterior. Muat um pigmento vegetal extrado da casca de uma rvore homnima. Depois de macerada a casca e diluda em gua, a tinta est pronta. Com um pincel de algodo fino o pintor desenha os motivos sobre a superfcie e cobre uniformemente o interior e a borda da pea com muat, que logo absorvida pela superfcie seca e porosa da pea. A pintura apresenta ento uma colorao marrom muito clara. Para o escurecimento e a fixao da pintura com muat, a pea deve ser submetida a um aquecimento numa pequena fogueira de sap, s assim a cor negra, caracterstica dos motivos grficos e do interior das panelas, pode sobressairse e fixar-se de vez. O topepe um pigmento mineral de cor avermelhada encontrado nas lagoas e nos rios da regio, sendo empregado cru apenas no exterior das panelas, geralmente visando produzir campos avermelhados para contrastar com campos decorados com motivos grficos pintados com as tcnicas do yuri e do muat . Diferentemente dessas tcnicas, ele passado na pea crua, sendo apenas atravs da queima que a cor avermelhada do topepe fixa-se definitivamente, demonstrando ser dentre todos os pigmentos o mais durvel. A pintura vermelha com topepe feita esfregando um pequeno pedao do mineral umedecido na rea escolhida. Por no serem empregados pincis na pintura com o topepe, a limitao na composio com motivos grficos tradicionais nesse tipo de tcnica grande, pois sem pincis impossvel executar os pequenos detalhes caractersticos dos motivos. Dentre todos os artefatos de cermica wauja que pude analisar isso contando com centenas de peas pertencentes a vrios museus (Barcelos Neto 1999) , a tcnica de pintura com topepe tem sido empregada na composio dos motivos grficos yetulaga naku (campo do jogo da bola de mangaba), puku tiwi (crculo grande) e uwi onapula (caminho de cobra, motivo sinuoso

tambm conhecido como kassukup), alm do motivo mohja-mona, que corresponde aos campos avermelhados num ou noutro pequeno detalhe das panelas zoomorfas. Uma caracterstica importante que no h sobreposio de tcnicas de pintura: sobre o mohja-mona no se emprega nenhum outro motivo, ou seja, numa superfcie pintada com topepe no se pinta com yuri ou muat. Alm do topepe, emprega-se outro pigmento vermelho, o yuku (urucum) que extrado a partir do cozimento das sementes da rvore bixa orellana. O urucum usado na pintura, ou melhor, na uno do exterior de peas de mdias e pequenas dimenses, em especial as panelas zoomorfas. Nessa tcnica, ao invs dos tradicionais pincis de algodo, empregam-se apenas as palmas da mo untadas de urucum. Somados destreza do pintor, os pincis de algodo so instrumentos de preciso, meios perfeitos para a pintura da cermica, tanto que os Wauja desprezam os pincis industriais, porque os mesmos tm cerdas flexveis e o cabo rgido o que acaba dificultando ou borrando as peas. Os pincis de algodo tm cabos levemente flexveis e pontas macias e firmes, permitindo o mesmo deslizar de modo suave sobre as superfcies porosas das panelas. A espessura do pincel pode ser aumentada ou diminuda a depender da quantidade de algodo enrolado na ponta. O resultado da pintura com pincel de algodo sempre satisfatrio quando a proporo entre a espessura do pincel e os traos do desenho equilibrada. Esses pincis de algodo so usados na pintura da grande maioria dos artefatos wauja. Tendo durabilidade efmera e sendo de fcil confeco, tais pincis so constantemente substitudos a cada sesso de pintura. Todos os processos tcnicos envolvidos na olaria wauja so tambm processos estticos. A beleza dos artefatos alcanada ao fim desses processos no apenas um ndice de sua eficcia tcnica, mas tambm social (Barcelos Neto 2004a, 2004b, 2004c). Nesse sentido, a cermica wauja corresponde quilo que Alfred Gell (1992) chamou de tecnologia do encantamento. Sua capacidade de encantamento , do ponto de vista da cosmologia wauja, o atributo que confirma a sua posio hbrida entre o mundo dos humanos e o mundo dos seres sobrenaturais.

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BARCELOS NETO, A. Wauja Ceramics: Ethnoclassification, Materials and Manufacturing Processes. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, So Paulo, 15-16: 000-000, 2005-2006.

ABSTRACT: The Wauja ceramics is the most elaborate class of artifacts in the Upper Xingu system of objects. Their types varies from very little recipients to 115 cm diameter bowls. This article describes the native classificatory system of the ceramics and its general pattern of fabrication focusing on Wauja perceptions of the technical and aesthetic qualities of the bowls.

UNITERMS: Wauja Indians Ceramics Upper Xingu Cultural Area.

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