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BARRA - Quando Criacionismo e Evolucionismo Tornam-se Indistintos
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p. 4-22CONTEXTO & EDUCAO Editora Uniju Ano 26 n 86 Jul./Dez. 2011
Quando Criacionismo e Evolucionismo Tornam-se Indistintos: lies a partir da crtica de David Hume s explicaes da natureza em sua totalidade
Eduardo Salles O. Barra1
Resumo
O artigo analisa o ambicioso projeto de Richard Dawkins em Deus, um delrio (2007) compreendendo-o como uma tentativa talvez indita de confrontar as teses criacionistas no seu prprio domnio, qual seja, o domnio das questes metafsicas ou cosmolgicas. Assim compreendido o embate entre criacionismo e evolucionismo, possvel levantar dvidas sobre o alinhamento preferencial do filsofo David Hume (1711-1776) com os defensores do evolucionismo. Seria a crtica de Hume ao tesmo tambm uma pea em defesa do atesmo la Dawkins? Espera-se, ao final deste artigo, mostrar que as possveis respostas a essa pergunta devem ser predominantemente negativas.
Palavras-chave: Richard Dawkins. Cincia e metafsica. Religio natural.
WhEn CREatiOniSm and EvOlutiOniSm BECOmE indiStinCt: lessons from the criticism of david hume to the explanations of nature in its entirety
abstract
The article analyse the ambitious project of Richard Dawkins in The God Delusion (2006) as a try perhaps unprecedented to confront the arguments creationists in their own domain, namely the field of metaphysical or cosmological questions. Thus understood the conflict between creationism and evolutionism, it is possible to raise questions about the preferred alignment of philosopher David Hume (1711-1776) with the proponents of evolutionism. Humes criticism would be to theism also a piece in defense of atheism la Dawkins? It is claimed at the end of this paper to point that the possible answers to this question must be predominantly negative.
Keywords: Richard Dawkins. Science and metaphysics. Religion natural.
1 Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paran. [email protected]
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Quando CriaCionismo e evoluCionismo Tornam-se indisTinTos
5Ano 26 n 86 Jul./Dez. 2011
Diante do enorme volume do que j se escreveu sobre a polmica entre
evolucionismo e criacionismo, creio que somente se deva retornar ao assunto
se houver algo realmente indito a ser dito a respeito. Infelizmente, num certo
sentido, esse no o caso deste artigo. O prprio ttulo faz meno ao eminente
filsofo David Hume (1711-1776) que, mesmo tendo vivido pelo menos meio
sculo antes de Darwin e da polmica desencadeada pelas ideias desse ltimo,
tem reiteradamente seu nome associado a essa discusso e sua filosofia inces-
santemente interpretada como uma forma ancestral do evolucionismo darwinista.
Talvez, portanto, tampouco a esse respeito, haja ainda o que se acrescentar ao que
j foi dito e redito tantas vezes por tantos outros autores anteriores a mim.
O que pretendo dizer aqui na expectativa de a encontrar o meu gro
de ineditismo foi em parte motivado pela leitura do livro do clebre divulga-
dor da cincia britnico Richard Dawkins, intitulado Deus, um delrio (2007).
Dawkins no esconde que o seu objetivo cortar o mal pela raiz: debelar o
criacionismo banindo definitivamente a hiptese sobre a qual se estrutura,
qual seja, a existncia de Deus. Nada direi neste artigo que ou corrobore ou
refute to radical e ambicioso objetivo de Dawkins. O que despertou a minha
ateno no seu argumento foi o fato de ele colocar uma teoria cientfica o
evolucionismo darwiniano a servio de uma tarefa tipicamente no cientfica,
que, nesse caso, seria a derrocada da hiptese da existncia de Deus. Em vista
desse fato, todavia, interessa-me mais o modo como o seu argumento central foi
construdo. Suponho haver a novidades relevantes tanto no modo de confrontar
as diferenas entre darwinismo e criacionismo quanto no recurso s crticas
de Hume ao ltimo, com o intuito de articular a defesa do primeiro. Na maior
parte deste artigo dedicarei minhas consideraes a esse segundo aspecto. No
mnimo, o ambicioso projeto de Dawkins levanta uma dvida razovel sobre o
alinhamento preferencial de Hume com os defensores do evolucionismo. Seria
a crtica de Hume ao tesmo tambm uma pea em defesa do atesmo? Espero,
ao final deste artigo, mostrar que as possveis respostas a essa pergunta devem
ser predominantemente negativas.
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Antes, porm, de entrar diretamente na anlise comparativa dos ar-
gumentos de Dawkins e de Hume, quero considerar brevemente o primeiro
aspecto apontado anteriormente, que diz respeito ao conflito entre criacionismo
e evolucionismo. Para deixar clara a minha posio desde o incio, devo dizer
que considero a abordagem de Dawkins o resultado de adotar certo tratamento
que no faz distino entre criacionismo e evolucionismo, presumindo que haja
um campo comum s pretenses de ambos, no qual poderiam ser finalmente
comparadas e mensuradas suas distintas virtudes (se elas de fato existirem). No
caso especfico de Dawkins talvez uma real novidade nesse tema , o campo
comum escolhido no pertence imediatamente ao campo das cincias, mas ao
da religio e da teologia. O mais frequente, no entanto, fazer o inverso, isto ,
confrontar criacionismo e evolucionismo no campo que no pertence propria-
mente teologia, mas sim s cincias.
Essa ltima posio nitidamente assumida por aqueles que pretendem
qualificar as doutrinas criacionistas como pseudocientficas. Esse tipo de ataque
ao criacionismo foi, em parte, motivado pelas tentativas recentes dos defensores
da doutrina do design inteligente de obter das autoridades educacionais a auto-
rizao para ensinar nas escolas as doutrinas criacionistas ao lado das demais
explicaes cientficas sobretudo aquelas evolucionistas para a origem da
vida e do universo. Os crticos dessa orientao educacional insistiram no carter
no cientfico ou at mesmo anticientfico do criacionismo, com o intuito de
evidenciar a sua completa externalidade e incompatibilidade com o ambiente
escolar.2 Quero deixar claro que no compartilho desse ponto de vista. Tenho
2 Para dar um exemplo dessa posio, ouamos o que escreveu recentemente a professora de filosofia francesa Veronique Le Ru a propsito do design inteligente: os partidrios desse movimento instrumentalizam, no a cincia, mas uma falsa cincia a doutrina criacionista para servir aos seus interesses de propaganda. () De pronto, eles procuram fazer crer que a teoria darwinista no uma teoria cientfica, mas uma hiptese equivalente e concorrente com a hiptese criacionista. Ao proceder assim, eles procuram no somente elevar uma doutrina ideolgica ao patamar de uma cincia, mas tambm rebaixar uma cincia (aquela da evoluo) ao patamar de uma hiptese (Le Ru, 2010, p. 111).
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particular simpatia pelo que disse o filsofo norte-americano Philip Kitcher
sobre os equvocos cometidos por aqueles que nunca se cansam de entoar o
mantra da testabilidade.
A cincia testvel; logo, nenhuma doutrina criacionista pode ser
cientfica. Nisso consiste o mantra da testabilidade e o seu uso triunfante contra
as doutrinas religiosas travestidas de teorias cientficas. A meu ver, ambos devem
ser recusados por projetar muito mais sombra que luz sobre o problema que se
deseja ver esclarecido,3 pois os que assim pensam agem como se ignorassem que
outrora o criacionismo fora parte integrante de algumas das mais bem-sucedidas
teorias cientficas de ento.
O design inteligente tem razes profundas na histria da cosmologia, das cincias da terra e da vida. Geraes de cientistas brilhantes e devotos acre-ditaram firmemente que suas pesquisas complementavam as palavras do Criador reveladas pelas sagradas escrituras, que estavam trazendo luz essas palavras ao decifrarem o livro da Natureza. Das especulaes de Newton sobre o significado do seu sistema do mundo aos registros feitos por missionrios sobre a fauna e a flora de seus domnios paroquiais, existe um corpo enorme de trabalhos de filosofia natural aquilo que hoje chamamos de cincia, embora aquele termo no fosse ento empregado nesse mesmo sentido que foram orientados pelo design inteligente...
um equvoco histrico grave, portanto, considerar que o criacionismo
seja apenas uma superstio anticientfica. Kitcher recorda que na prpria A Ori-
gem das Espcies h fortes indcios do reconhecimento da cientificidade do cria-
cionismo aquilo que Darwin chamou de hiptese da criao independente.4
3 H muitos anos bem antes de conhecer os elaborados argumentos Kitcher para esse propsito escrevi algo bastante rudimentar no mesmo sentido. Ver Barra (2002).
4 Bem-entendido, todavia, esse reconhecimento no vem acompanhado de qualquer defesa gene-ralizada da explicao criacionista. O reconhecimento ocorre num contexto muito especfico, no qual Darwin confronta os limites de sua teoria para explicar, alm da manuteno da variao encontrada na natureza, tambm a origem dessa variao. As condies para propor uma expli-cao no criacionista para essa origem somente surgiram no sculo 20, quando os experimentos de Mendel foram associados evoluo darwiniana. (Agradeo a um dos pareceristas annimos desta publicao por haver me chamado a ateno para esse aspecto.)
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Diante disso, Kitcher prope outra estratgia para enfrentar as pretenses dos
defensores do design inteligente: No h lugar para o design inteligente nas
aulas de biologia porque uma cincia refutada, uma cincia morta (dead
science). Ora, a nica motivao pedaggica possvel para o ensino de uma
cincia morta se o seu estudo contiver algum valor para a compreenso de
outras cincias vivas. Pode-se admitir, por exemplo, que se deve ainda estudar
a mecnica newtoniana apesar de ela ser uma cincia falsa e morta se isso
representar de fato um ganho pedaggico para o aprendizado da relatividade
e da mecnica quntica. Para mostrar que o design inteligente nada tem a ver
com as aulas de biologia, ser preciso argumentar que a admisso dessa cincia
morta somente pode ocorrer por uma motivao religiosa (Kitcher, 2007, p.
12). Abdica-se, assim, de qualquer diferena de natureza entre criacionismo e
evolucionismo, e a questo da admisso do ensino do primeiro nas escolas passa
a ser considerada uma questo de motivao e, portanto, de poltica educacional
e cultural algo a ser decidido em amplos debates democrticos, no apenas
com base nos vereditos de cientistas, de filsofos e de telogos.
Dito isso, posso agora enunciar um ponto importante para a compreenso
do que vir a seguir: o criacionismo ser aqui encarado como uma doutrina que,
se no chega a ser uma cincia propriamente dita, possui total afinidade com os
seus padres e as suas metas. Mesmo que se exija que uma cincia seja test-
vel, o criacionismo poder satisfazer esse critrio. Afinal, somente foi possvel
mostrar, a partir de Darwin, que a hiptese da criao independente era falsa
porque essa hiptese era, ela mesma, testvel. Mesmo quando se adota critrios
menos rgidos que a testabilidade, no seria razovel supor que a expanso das
pesquisas empricas francamente corroboradoras do evolucionismo no teve
um papel decisivo no abandono do criacionismo. Exceto, portanto, pelo fato de
que uma esteja morta e outra, viva, criacionismo e evolucionismo em nada se
distinguem por suas credenciais cientficas.
Por outro lado, no entanto, essa indistino pode admitir um sentido
reverso. O que deveramos pensar de uma tentativa de estender o alcance das
teses evolucionistas a tal ponto que elas pudessem confrontar no apenas as pre-
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tenses das doutrinas religiosas com repercusses no seu campo cientfico, mas
toda e qualquer pretenso feita com base em motivaes religiosas, at mesmo
aquela que lhes fosse mais fundamental, como seria o caso da prpria crena
na existncia de Deus? Procurarei mostrar que algo bem prximo a isso uma
espcie de contraparte do criacionismo cientfico ou um certo evolucionismo
religioso ou, talvez, ainda melhor, metafsico ou cosmolgico justamente o
que ocorre quando o evolucionismo invocado para explicar aquilo que ocorre
na Natureza tomada em sua totalidade, para empregar a sugestiva expresso
de Hume, que discutiremos detalhadamente adiante.
Procurarei mostrar, em particular, que as posies e os argumentos de
Dawkins em Deus, um delrio so exemplos desse tipo de extenso do evolu-
cionismo a uma esfera extracientfica ou metafsica. Embora, todavia, minha
orientao neste artigo seja francamente favorvel ao ponto de vista evolucio-
nista em prejuzo do seu rival criacionista quando se confrontam no campo
eminentemente cientfico , no farei aqui uma apologia as suas inegveis
virtudes. Pelo contrrio, terei atingido plenamente a minha meta se conseguir
convencer os meus pacientes leitores de que certas defesas metafsicas do evo-
lucionismo podem querer promover muito mais as suas fragilidades do que as
suas virtudes.
O darwinismo a servio da derrocada da religio
O argumento central de Deus, um delrio apresentado no captulo 4,
intitulado Por que quase com certeza Deus no existe, no qual o autor resume
do seguinte modo o seu intento:
Se o argumento deste captulo for aceito, a premissa factual da religio a Hiptese de que Deus Existe fica indefensvel. Deus, quase com certeza, no existe. Essa a principal concluso do livro at agora (Dawkins, 2007, p. 214).
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A essa altura do seu argumento geral, portanto, Dawkins supe no ter
apresentado ainda razes suficientes para tornar indefensvel a hiptese da
existncia de Deus. O argumento que se segue ter justamente essa misso. Por
se tratar de um argumento negativo destinado a provar a indefensabilidade
da referida hiptese , ele no ser guiado por uma tese positiva nem ter um
carter construtivo, assumindo assim as feies de um argumento por reduo
ao absurdo, que consiste em enredar os argumentos contrrios tese que se
deseja provar em contradies insuperveis.
Para essa finalidade, Dawkins elege o argumento da improbabilidade,
que se baseia na seguinte ttica do Boeing 747: a probabilidade de a vida
ter surgido na Terra no maior que a chance de um furaco, ao passar por um
ferro-velho, ter a sorte de construir um Boeing 747 (Dawkins, 2007, p. 155).
O argumento visa, em primeiro lugar, a afastar a possibilidade de que a vida
tenha surgido ao acaso, posto que as chances de se constituir um cavalo ou um
avestruz plenamente funcionais misturando, aleatoriamente, suas partes, so to
nulas quanto s relativas ao surgimento do Boeing 747 naquelas circunstncias.
Isso, no entanto, no tudo que se deseja provar com tal ttica. Normalmente
os defensores do criacionismo compreendem que no surgir ao acaso seja
sinnimo de surgir pela deliberao de um ser sobrenatural. Eis, portanto, o
ponto de chegada quando se adota aquela ttica:
Por mais estatisticamente improvvel que for a entidade que se queira
explicar atravs da invocao de um designer, o prprio designer tem de
ser no mnimo to improvvel quanto ela. Deus o Boeing 747 Definitivo
[ultimate] (p. 156).
Dito de outro modo, qualquer entidade capaz de projetar uma coisa to
improvvel quanto o universo ou qualquer um dos seus pequenos arranjos (da
articulao de um minsculo sapo ao complexo conjunto da floresta amaznica),
teria de ser ainda mais improvvel que as suas criaes.
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Dawkins insiste que o darwinismo pode oferecer uma alternativa a essa
extrapolao indevida da ttica do Boeing 747. O entendimento profundo do
darwinismo nos ensina a desconfiar da afirmao fcil de que o design a nica
alternativa para o acaso, e nos ensina a buscar rampas gradativas de uma comple-
xidade que aumente lentamente. E ele prprio complementa esse diagnstico
com a observao de que essa desconfiana poderia ter surgido mesmo antes
de Darwin, por intermdio de filsofos que compreenderam que a improbabi-
lidade da vida no significa que ela necessariamente tenha sido projetada, mas
no conseguiram imaginar qual seria a alternativa (Dawkins, 2007, p. 156). O
exemplo aqui oferecido de filsofo que alcanou tal compreenso interessa-me
diretamente: ningum menos que o escocs David Hume, que se converte assim
em uma espcie de precursor de Darwin. Ao final deste captulo, para atestar a
fora que pretende imprimir a essa observao, Dawkins recorre s seguintes
observaes de Daniel Dennett, em seu Darwins Dangerous Idea (1995): [a
ttica do Boeing 747 Definitivo ] uma refutao irrefutvel, to devastadora
hoje como quando Filo a usou para derrotar Cleantes nos Dilogos de Hume,
dois sculos antes (apud Dawkins, 2007, p. 212).
Filo e Cleantes so os dois principais personagens concebidos por Hume
para representar as posies sobre a origem da ordem natural que ele contrape
em seus Dilogos. Antes, porm, de entrarmos propriamente no contedo das
teses confrontadas nos Dilogos, vale resumir em trs pontos os primrdios das
teses darwinistas atribudos a Hume por Dawkins: (i) a vida no surgiu ao acaso;
(ii) a suposio de um desgnio sobrenatural no o nico modo de explicar a
complexidade da vida; (iii) a hiptese de que Deus existe indefensvel. O que
evidente, mesmo numa inspeo superficial dessas trs afirmaes, o fato de
que a tese (iii) no ter uma associao imediata com as duas anteriores, que, ao
contrrio, tm entre si uma afinidade notria. Nas sees a seguir, procurarei
avaliar se esse conjunto de teses se enquadra de fato ao escopo das expectativas
de Hume com os seus Dilogos, para que fique patente a sua virtual indisposio
tanto em afirmar quanto em refutar a tese (iii).
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O suposto protodarwinismo de Hume
O programa crtico e especulativo que Hume cumpre nos Dilogos tem
como meta escrutinar o argumento do desgnio, na sua poca meados do
sculo 17, na Gr-Bretanha sustentado pela teologia natural e pelas filosofias
testas de matriz newtoniana e destinado a provar, a um s tempo, a existncia
de uma Divindade e a sua semelhana com a mente e a inteligncia humanas
(Hume, 1992, p. 31). Devo adiantar que Hume praticamente no ter o que
contestar acerca da primeira parte daquilo que se pretende provar com o argu-
mento do desgnio, a saber, a existncia de uma Divindade. Os problemas por
ele identificados concentram-se na segunda parte, isto , a pretenso de que
haja semelhanas entre a natureza desse ser sobrenatural, a cuja ao se atribui
a criao do mundo, e a mente e a inteligncia humanas. Dito de outro modo, o
ponto problemtico desse tipo de argumento teolgico no , para Hume, a sua
concluso de que existe uma causa do universo que designamos Deus, mas a
pretenso de que a natureza desse Ser Supremo possa ser pensada em analogia
ou semelhana com as perfeies humanas (Hume, 1992, p. 30), quais sejam,
sabedoria, pensamento, desgnio e conhecimento.
A esse respeito, Hume observa que da aplicao correta das regras da
analogia o mtodo de raciocnio tacitamente admitido e empregado no
argumento do desgnio se segue que a ordem, o arranjo ou o ajustamento
das causas finais no constituem por si ss a prova de um desgnio, pois por
tudo que nos dado saber a priori, a matria pode conter originalmente em si
mesma a fonte ou o mvel da ordem, do mesmo modo que a mente os contm
(Hume, 1992, p. 29; os itlicos so meus). A concluso de que a ordem do mundo
possa ter sido estabelecida do mesmo modo tanto pela mente sobrenatural (mas
pensada em analogia com a mente humana) quanto pela prpria matria, decorre
do fato de que no se pode provar que a ordem pertence mais essencialmente
a uma que a outra. Teremos oportunidade de retornar essa linha de raciocnio
adiante. Por ora, vejamos melhor como o texto de Hume se organiza e como
ele concebe os personagens que tomaram parte no dilogo.
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Os personagens dos Dilogos so trs: Demea, Cleantes e Filo. O con-
dutor das discusses Demea, que representa o homem de esprito aberto e
disposto a ouvir e considerar os argumentos apresentados por ambos os lados
em disputa. A disputa protagonizada por Cleantes, que representa os tericos
do desgnio, e Filo, que desempenha o papel do ctico, embora possa no cor-
responder a todos os esteretipos nem manejar com a desenvoltura desejada os
tropos tradicionais do ceticismo filosfico.5
De qualquer modo, o ceticismo de Filo , sem sombra de dvida, o
assunto central dos Dilogos. A esse respeito, o mais importante observar
que os desafios cticos de Filo ao argumento do desgnio no so dirigidos
sustentao de qualquer tese oposta a esse piedoso argumento como poderia
ser a tese (iii) de Dawkins, que afirma a insustentabilidade da existncia de
Deus. Os desafios de Filo repetem uma consagrada estratgia argumentativa
ctica, constituda pela tentativa de promover a polifonia (ou a diaphonia),
isto , a multiplicidade dos discursos e das razes, com o intuito de favorecer
a percepo da igual fora (isosthneia) das partes em conflito. Sendo assim,
o objetivo da tese protodarwiniana de Hume (por tudo que nos dado saber a
priori, a matria pode conter originalmente em si mesma a fonte ou o mvel da
ordem, do mesmo modo que a mente os contm) no exatamente provar a
insustentabilidade da hiptese da existncia de Deus, mas revelar a isosthneia
dos discursos opostos sobre a fonte e a causa da ordem universal. Essa tese,
portanto, no favorece nem aqueles que defendem que a ordem seja inerente
matria (os protodarwinianos, tais como seriam os atestas e epicuristas do tempo
de Hume) nem aqueles que defendem que a ordem seja inerente apenas mente
e ao pensamento (os criacionistas e defensores do argumento do desgnio).
Desse modo, por meio do seu mais evidente porta-voz, Filo, Hume re-
vela todas as suas ressalvas aos poderes conferidos a essa frgil faculdade da
razo. Ele, no entanto, o faz sobretudo quando se trata de um tipo de pretenso
5 Para uma apresentao bastante completa e compreensiva dos padres argumentativos da tradio do ceticismo filosfico, ver Porchat (1994).
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bem determinada, qual seja, quando se quer por meio da razo decidir acerca
da origem dos mundos ou rastrear sua histria de eternidade em eternidade.
Quando se trata de dvidas sobre tpicos to elevados, to abstratos, to dis-
tantes da vida e da experincia cotidianas, a lio de Filo jamais confi-las
debilidade, cegueira e estreiteza da razo humana. No restante dos Dilogos,
Hume passar em revista a um nmero considervel de sistemas cosmognicos
rivais religiosos ou no, materialistas ou no, racionalistas ou no, animistas ou
no com o objetivo no de recusar seu assentimento a qualquer um deles, mas
de revelar o carter indecidvel da pergunta que todos a seu modo se esforam
por responder e, ento, recomendar que uma suspenso do juzo , para ns, o
nico recurso razovel nestes casos (Hume, 1992, p. 113).
O ceticismo de Hume
Filo aponta, basicamente, dois problemas no argumento criacionista de
Cleantes: (i) a suposio de uma dualidade irreconcilivel entre a ordem das
ideias e a ordem das coisas e (ii) a pretenso de transferir para o todo uma
concluso acerca das partes (Hume, 1992, p. 38). Vejamos em maiores detalhes
como ambos os problemas emergem no argumento de Cleantes.
O criacionismo de Cleantes surge de um gnero de raciocnio ao qual Filo
pouco ou nada teria a se opor, desde que contido dentro dos limites anteriormente
apontados. O raciocnio em questo a analogia entre a arte do arquiteto e o
plano da criao: a casa construda segundo um plano que o arquiteto concebeu
em pensamento e o universo que, da mesma forma, deve ter surgido segundo
um plano concebido pela mente divina. Sobre tal raciocnio analgico, o prprio
Cleantes observa:
no de modo algum necessrio aos testas provar a semelhana entre os trabalhos da Natureza e da arte, pois essa similaridade a auto-evidente e inegvel () A matria a mesma, a forma igual; que mais preciso para exibir uma analogia entre suas causas e para comprovar que todas as coisas se originaram de uma inteno e propsito divinos? (Hume, 1992, p. 49).
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Disso, ento, se segue que por mais que se insista em raciocnios ardi-
losos, um mundo ordenado, bem como uma linguagem coerente e articulada,
continuaro a ser aceitos como uma prova incontestvel de desgnio e inteno
(Hume, 1992, p. 51; os itlicos so meus).
A rplica ctica de Filo ao argumento criacionista de Cleantes consiste,
basicamente, em perguntar por que o pensamento e a ordem das ideias, isto
, uma parte to nfima da Natureza deveria constituir uma regra para outra
parte da Natureza remotamente situada em relao primeira? Por que deveria
constituir uma regra para o todo? Uma nfima parte pode prover a regra para o
universo? (Hume, 1992, p. 40). O que Filo definitivamente se recusa a admitir
que as operaes de uma parte nos capacitem a concluir acertadamente
sobre a origem do todo, especialmente se se tratar dessa diminuta agitao
do crebro que denominamos pensamento (Hume, 1992, p. 38; os itlicos
so meus).
O ceticismo de Filo, todavia, vai mais longe e se arma de recursos
argumentativos ainda mais poderoso quando deixa de atacar diretamente o
sistema criacionista de Cleantes e faz a apologia do sistema materialista, no
com o simples objetivo de expressar sua adeso a esse ltimo, mas, conforme
dissemos antes, para mostrar que ambos se equivalem quando pretendem que
as operaes de uma parte nos capacitem a concluir acertadamente sobre a
origem do todo. Vejamos, ento, o ceticismo de Filo em ao.
Admite-se que certas partes do mundo material se dispem de maneira
ordenada por si mesmas, pois disso temos experincia na gerao e crescimento
vegetativo nos seres vivos. Tambm temos experincia de ideias que se dispem
em ordem por si mesmas. Assim, ento, como no caso anterior, isso ocorre sem
nenhuma causa conhecida. Admite-se, pois, que tanto o mundo material
quanto o mundo mental ou universo de idias so governados por princpios
semelhantes e dependentes, em suas operaes de um sortimento de causas
(Hume, 1992, p. 63). Por que, no entanto, deveramos pensar que a ordem
mais essencial a um do que ao outro? E, se ela requer em ambos os casos [isto
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, no mundo material e no mundo mental] uma causa, que estaremos ganhando
com nosso sistema, ao buscar a origem do universo de objetos em um universo
similar de idias? (Hume, 1992, p. 65).
Note-se que desse modo Filo no contesta de forma alguma a suposio
de haver uma ordem na natureza que afastaria definitivamente a suspeita de que
a vida teria surgido ao acaso. E ele o faz admitindo a concluso obtida pelo
mtodo de raciocnio que o prprio Cleantes diz utilizar (o que observamos
nas partes podemos inferir em relao ao todo). Por esse mtodo, sabemos
que h uma ordem dos seres naturais e que tudo certamente est governado
por leis fixas e inviolveis, de tal modo que em qualquer hiptese, ctica ou
religiosa, o acaso no pode ter lugar (Hume, 1992, p. 88; os itlicos so meus).
Resta saber, ento, a origem ou a fonte dessa ordem incontestvel.
Eis-nos diante do problema que Hume julga insolvel um genuno
limite, o limite mais evidente do conhecimento humano, o limite alm do qual o
raciocnio analgico de Cleantes perde toda a sua validade. Sem dvida natural
que se atribua a ordem que observamos nos nossos pensamentos razo, bem
como a ordem que observamos nos seres vivos gerao ou como dizemos,
depois de Darwin, seleo natural. Ao empregar tais termos, todavia, no
implica que conhecemos ou que podemos vir a conhecer o modo de operar dos
princpios ou mecanismos que eles nomeiam. Nas palavras de Hume, razo e
gerao so meras indicaes de certos poderes e atividades mentais, cujos
efeitos conhecemos, mas cuja essncia nos incompreensvel. Dessa consta-
tao, Hume conclui numa direo que contraria frontalmente as pretenses
mais ambiciosas de Dawkins com o seu darwinismo triunfante: nenhum desses
princpios, mais do que o outro, se destaca o suficiente de modo a ser tomado
como um padro para a Natureza em sua totalidade (Hume, 1992, p. 95; os
itlicos so meus).6
6 Para uma defesa da leitura proposta por Dawkins e Dennett dos argumentos de Hume nos Di-logos, ver Silva (2006). Com base em esclarecedoras anlises dos argumentos de Hume, Silva sustenta que eles constituem uma antecipao de uma idia central em Darwin; ou seja, Hume no estava simplesmente demonstrando que o argumento do desgnio era um argumento estru-
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No se pode, portanto, saber se o princpio ordenador inerente e origi-
nrio encontra-se no pensamento ou na matria. Sendo assim, a nica possibi-
lidade de decidir em favor do sistema religioso defendido por Cleantes ou, na
hiptese inversa, contra ele e a favor do sistema materialista seria provando
a priori que a ordem est inseparavelmente ligada, por sua prpria natureza, ao
pensamento; e que ela, por si mesma ou com base em princpios fundamentais
desconhecidos, no pode jamais ser inerente matria (Hume, 1992, p. 98).
Ora, Cleantes no pode fornecer a prova requerida, assim como o materialista
tampouco pode oferecer a contraprova. A indecidibilidade da questo, contudo,
no significa que o argumento ficar inconcluso, isto , que no haja ao menos
uma concluso slida e construtiva a ser retirada dessa longa cadeia de razes.
O que Hume parece querer ver conclusivamente estabelecido : todos os sis-
temas metafsicos ou religiosos se equivalem quando pretendem afirmar teses
sobre a origem ou a causa da ordem natural como um todo, na medida em que
nada mais tm a exibir a seu favor do que um tipo de argumentao analgica,
e jamais podem provar que a ordem esteja mais intrinsecamente vinculada aos
seus princpios prediletos (seja a matria, seja o pensamento, seja o desgnio,
seja, enfim, qual for) que aqueles que mais agradariam aos seus adversrios.
O darwinismo metafsico de Dawkins
Podemos agora retornar as consideraes de Dawkins sobre Hume
e revis-las luz do exame do argumento supra. Vimos que, para Dawkins,
filsofos como Hume compreenderam que a improbabilidade da vida no
justificaria arriscar um argumento do tipo Boeing 747 Definitivo. Certamente
turalmente desqualificado ou mesmo paroquial: de fato, Hume estava a propor uma alternativa (Silva, 2006, p. 122-123). Em comunicao pessoal, Silva informou-me que atualmente tenderia a ler o argumento de outro modo. Ele me sugere a leitura do artigo de Marques (2005). Nesse artigo, Marques objetiva mostrar que tudo o que a intrigante hiptese epicrio-materialista de Filo (ou Hume) provou que possvel conceber que a ordem e a funcionalidade do mundo tenham surgido sem a interveno de uma inteligncia e um desgnio, mas ela no , por si s, capaz de infundir a mnima plausibilidade a essa suposio, a ponto de levar-nos a acreditar nela ou mesmo abalar seriamente a hiptese contrria de Cleantes (Marques, 2005, p. 143).
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o ataque de Hume ao argumento de Cleantes foi motivado por sua suspeita de
que se tratava de um exemplo desse ltimo tipo de argumento: explicar algo
de grande complexidade (a ordem natural) recorrendo a um princpio ou razo
ainda mais complexa e, portanto, ainda mais inexplicvel (a inteligncia e o
desgnio com os quais foi criada). Dawkins ainda diz mais a respeito de Hume.
Ele acusa sua pouca imaginao para encontrar uma alternativa explicao
da ordem natural com base na inteligncia e no desgnio de uma mente so-
brenatural. Tal alternativa somente estaria disponvel cerca de 83 anos aps a
morte de Hume e exatos 80 anos aps a publicao dos Dilogos com a
publicao de A Origem das Espcies, em 1859. Resta saber, contudo, se Hume
enxergaria no darwinismo algo como uma autntica alternativa ao criacionismo
de Cleantes. Vamos conceder a Dawkins que assim teria ocorrido e que, por-
tanto, o que faltou a Hume foi mesmo imaginao para conceber mecanismos
causais como a seleo natural antes de Darwin e convert-los numa autntica
alternativa hiptese religiosa defendida por Cleantes. Ora, se assim o fosse e
se a minha anlise acima do argumento dos Dilogos estiver correta, teramos
que o protodarwinismo de Hume no se distinguiria da hiptese materialista e,
sendo assim, deveria sucumbir juntamente com o criacionismo defendido por
Cleantes diante da concluso de que nenhum desses princpios, mais do que
o outro, se destaca o suficiente de modo a ser tomado como um padro para a
Natureza em sua totalidade (Hume, 1992, p. 95; os itlicos so meus).
Isso sugere que o darwinismo de Dawkins (e Dennett) est muito alm
do darwinismo como uma mera teoria cientfica ou biolgica. O evolucionismo
reivindicado por Dawkins est muito alm daquele que se presta a oferecer ex-
plicaes deste ou daquele conjunto de acontecimentos naturais (por exemplo,
a extino e o surgimento de determinadas espcies, a datao da formao do
nosso planeta, etc.). Dawkins recorre doutrina de Darwin para algo bem mais
ambicioso, a saber, mostrar que a hiptese de que Deus existe indefensvel.
Para satisfazer essa finalidade, creio que Dawkins tem de converter o darwinismo
num exemplo daquilo que Hume chamou de um padro para a Natureza em
sua totalidade e, desse modo, ele instaura uma verso metafsica dessa teoria.
O darwinismo metafsico de Dawkins lhe permite, finalmente, enfrentar seus
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Quando CriaCionismo e evoluCionismo Tornam-se indisTinTos
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adversrios criacionistas no seu prprio campo de jogo, o campo daqueles que
pretendem estabelecer um padro para [ajuizar, teorizar, etc. sobre] a Natureza
em sua totalidade. No o campo que o prprio criacionista demarcou para si,
mas foi o que lhe restou quando se viu obrigado a recuar em suas pretenses de
rivalizar com os seus adversrios no domnio especfico da cincia.
Parece-me que a lio de Hume para o persistente conflito entre cria-
cionismo e evolucionismo diametralmente outra. Ele adverte que o conflito
seria solvel apenas se fosse possvel provar a priori que a ordem est insepara-
velmente ligada, por sua prpria natureza, ao pensamento ou matria. Provar
a priori aqui significa provar no por meio de analogias ou generalizaes
empricas tal como nossas melhores teorias cientficas so ou podero ser um
dia sustentadas , significa sim provar com necessidade absoluta tal como se
faz com um teorema matemtico ou lgico, cuja concluso deve ser necessria,
no meramente provvel. Ora, isso parece ser humanamente impossvel um
famoso filsofo norte-americano advertiu certa vez que o impasse humeano
o impasse humano (Quine, 1980, p. 158). Resta, portanto, advertir que o
conflito, a fim de que se torne solvel, seja encarado de um ponto de vista ima-
nente e emprico, no qual esteja em jogo os mritos relativos de duas hipteses
heursticas a inspirarem programas de pesquisa na explicao dos mecanismos
e estruturas subjacentes ordem verificada em parcelas mais ou menos amplas,
mas de qualquer modo ainda limitadas aos eventos naturais.
Dentro desses limites, Hume jamais arguiu sobre a legitimidade de ad-
mitir uma ordem dos seres naturais ou de leis fixas e inviolveis, a ponto de
ser imperioso admitir que o acaso no pode ter lugar. Dentro desses limites,
conforme advertiu Kitcher (2007), no faz sentido excluir o criacionismo do
domnio das cincias ou recus-lo por ser anticientfico afinal, foi nesses limites
que o criacionismo se revelou falso e foi de fato refutado, to logo se soube
que a Terra surgiu h mais de 4,5 bilhes de anos, que a vida no se dispersou
pela Terra a partir de um nico ramo de ancestralidade comum, que as espcies
naturais surgem umas das outras por mecanismos naturais bem-delineados
pela seleo natural, etc.. Enfim, dentro desses limites, e somente dentro deles,
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concordo com Dawkins que David Hume teria aderido sem restrio s ideias
de Charles Darwin, provavelmente tambm em virtude de cultivar uma grande
admirao pela monumental capacidade de Darwin de imaginar uma genuna
alternativa cientfica s explicaes criacionistas.
Hume, todavia, dificilmente se colocaria a favor de alar a teoria da-
rwiniana condio de alternativa metafsica ou cosmolgica s explicaes
criacionistas. Muitos dos que hoje militam em favor da necessidade (e da pos-
sibilidade) de argumentar cientificamente () contra o criacionismo, militam
ao mesmo tempo em favor de uma certa concepo acerca das credenciais
epistemolgicas da cincia, segundo a qual nada do que realmente tem valor
cognitivo pode ser colocado acima ou aqum do escrutnio crtico das prticas
cientficas. O alvo dessa concepo fcil de antever: lanar desconfiana so-
bre as tentativas de conciliar cincia e religio e, consequentemente, enfatizar
o carter real e incontornvel desse conflito. A meu ver, nada mais justo; em
particular, quando essas tentativas ocorrem no contexto do ensino de cincias.
Encerrarei, ento, essa discusso, com mais algumas rpidas palavras sobre a
relao entre o ensino de cincias e a relativa neutralidade metafsica ou cos-
molgica que advogo para a cincia.
da maior relevncia alertar aos educadores para o engodo de certas
tentativas de igualar as credenciais epistmicas das explicaes criacionistas e
as das evolucionistas, com base na alegao de que a cincia no nem pode
ser a nica forma possvel de conhecimento nem a mais profunda. Por outro
lado, compreensvel que educadores se vejam acuados diante da utilizao
inescrupulosa e sem critrio da associao inevitvel entre evolucionismo e
atesmo. Enfim, porm,se h uma lio que os educadores devem depreender
do teatro filosfico protagonizado pelos personagens de Hume, ela no poderia
ser outra seno que, quando se trata de determinar um padro para a Natureza
em sua totalidade, isto , quando se trata de especular sobre questes meta-
fsicas ou cosmolgicas, a cincia pode sempre nos oferecer um bom comeo
e talvez as melhores ocasies, mas ela jamais poder dar a palavra final de
resto, quem a poder dar?
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Retornamos, assim, ao campo das motivaes de que falava Kitcher.
A minha desconfiana que, ao desonerarmos nossa imagem da cincia do
compromisso estrito com uma metafsica particular, nos colocamos em melhor
condies de compreender como seus padres e suas escolhas so em grande
medida orientados por valores. Isso decorre diretamente do que diz Lacey a
propsito da adeso incondicional da cincia a uma metafsica particular:
No penso, como fazem os empiristas, que a cincia esteja comprometida (...) com qualquer metafsica geral (). A cincia procede mediante estrat-gias de restrio e seleo, cujas fontes no necessitam estar na metafsica, mas podem estar, como venho argumentando, nos valores. Minha sugesto que esto sempre nos valores e que qualquer pretenso de que a cincia esteja essencialmente vinculada a uma metafsica particular dissimula sua vinculao real aos valores (Lacey, 1998, p. 131).
Orientar o ensino das cincias segundo os parmetros metafsicos deri-
vados, seja do criacionismo seja do evolucionismo, no uma escolha, creio eu,
que se possa fazer sob orientao exclusiva dos cnones dos mtodos cientficos.
Trata-se, notoriamente, de uma escolha feita com base em valores. Insistir na
estratgia de argumentar cientificamente () contra o criacionismo, alm
de incuo para os fins a que se destina, pode ter como consequncia colateral
indesejvel a ocultao dos valores e da sua importncia estrutural tanto para
as prticas religiosas quanto para as prticas cientficas, mas, sobretudo para a
educao cientfica.
Referncias
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Agradecimento: agradeo a Marcos Rodrigues da Silva e Marlia Cortes que, cuida-dosamente, leram uma verso prvia deste artigo e fizeram valiosos comentrios e sugestes.