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TEXTOS Outros O MEDO COMO ORIGEM DA RAZÃO EM ADORNO E HORKHEIMER: o papel de Nietzsche na Dialética do Esclarecimento Márcio Benchimol Barros Assim como Habermas em O Discurso Filosófico da Modernidade, também Albrecht Wellmer em seu artigo Adorno, Advogado do não-Idêntico [1] interpreta a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer como um empreendimento filosófico ao mesmo tempo corajoso e arriscado no qual de pontos-de-vista anti-iluministas de determinados pensadores seriam utilizados criticamente no sentido de uma radicalização do esclarecimento, agora voltado sobre si mesmo. Asim, filosofias que a tradição marxista costumava considerar como exemplos do conservadorismo e decadência burgueses são integradas em uma continuação do próprio impulso da crítica ideológica de inspiração marxista. Em especial, ambos procuram demonstrar a influência de Nietzsche na elaboração da obra. Habermas e Wellmer também estão de acordo quanto ao que constitui o essencial desta influência: a tese do entrosamento profundo entre razão e dominação, pensado não como meramente exterior ou contingente, mas como constitutivo da razão. Habermas, no texto citado, aponta Nietzsche como o precursor desta tese, a qual conduziria à destruição de todas as possibilidades de distinção entre pretensões de validade e pretensões de poder. Por seu turno, Wellmer considera a identificação entre razão e dominação na Dialética do Esclarecimento como resultado de uma leitura de Marx por Adorno e Horkheimer através da ótica de uma crítica do conhecimento,...com os olhos de Nietzsche e Kant.., bem como de uma leitura materialista de Kant [2]. Wellmer chama a atenção para a origem nietzscheana da …tese central de Adorno e Horkheimer, a tese da unidade da racionalidades formal e instrumental no pensamento conceitual… [3], a qual permitiria a referida leitura de Marx. Tendo em vista a utilização que faremos, no decorrer do texto, das noções de racionalidade formal e racionalidade instrumental, tais como são conceituadas por Wellmer, reproduzimos abaixo as descrições de ambas presentes em Adorno, Advogado do não-Idêntico: A racionalidade formal se exterioriza como impulso à constituição de contextos de saberes, explicações e atividades sistematicamente unificados e isentos de contradição. [4] Já a racionalidade instrumental é descrita no seguinte período: A tese propriamente forte de Adorno e Horkheimer, porém, é a de que a racionalidade formal é, em última análise, equivalente (gleichbedeutend) à racionalidade instrumental, ou seja, equivalente a uma racionalidade “coisificante” ("verdinglichende"), cuja meta é o controle de processos naturais e sociais. [5] A atenção e profundidade com que Habermas e Wellmer tratam a tese de Adorno e Horkheimer a respeito do que constitui a essência do esclarecimento – a saber, a dominação – tem entretanto como contrapartida o fato de qua ambos deixem intacta a tese apresentada pelos autores acerca da origem do esclarecimento. ANTIVALOR - Artigos http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/debate_de_11.html 1 de 8 01/06/2009 22:50

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O MEDO COMO ORIGEM DA RAZÃO EM ADORNO EHORKHEIMER: o papel de Nietzsche na Dialética do Esclarecimento

Márcio Benchimol Barros

Assim como Habermas em O Discurso Filosófico da Modernidade, também Albrecht Wellmer emseu artigo Adorno, Advogado do não-Idêntico [1] interpreta a Dialética do Esclarecimento de Adorno eHorkheimer como um empreendimento filosófico ao mesmo tempo corajoso e arriscado noqual de pontos-de-vista anti-iluministas de determinados pensadores seriam utilizadoscriticamente no sentido de uma radicalização do esclarecimento, agora voltado sobre si mesmo.Asim, filosofias que a tradição marxista costumava considerar como exemplos doconservadorismo e decadência burgueses são integradas em uma continuação do próprioimpulso da crítica ideológica de inspiração marxista. Em especial, ambos procuram demonstrara influência de Nietzsche na elaboração da obra. Habermas e Wellmer também estão de acordo quanto ao que constitui o essencial destainfluência: a tese do entrosamento profundo entre razão e dominação, pensado não comomeramente exterior ou contingente, mas como constitutivo da razão. Habermas, no textocitado, aponta Nietzsche como o precursor desta tese, a qual conduziria à destruição de todasas possibilidades de distinção entre pretensões de validade e pretensões de poder. Por seuturno, Wellmer considera a identificação entre razão e dominação na Dialética do Esclarecimentocomo resultado de uma leitura de Marx por Adorno e Horkheimer através da ótica de umacrítica do conhecimento,...com os olhos de Nietzsche e Kant.., bem como de uma leitura materialistade Kant [2]. Wellmer chama a atenção para a origem nietzscheana da …tese central de Adorno eHorkheimer, a tese da unidade da racionalidades formal e instrumental no pensamento conceitual… [3], aqual permitiria a referida leitura de Marx. Tendo em vista a utilização que faremos, no decorrer do texto, das noções deracionalidade formal e racionalidade instrumental, tais como são conceituadas por Wellmer,reproduzimos abaixo as descrições de ambas presentes em Adorno, Advogado do não-Idêntico:

A racionalidade formal se exterioriza como impulso à constituição de contextos desaberes, explicações e atividades sistematicamente unificados e isentos de contradição. [4]

Já a racionalidade instrumental é descrita no seguinte período:A tese propriamente forte de Adorno e Horkheimer, porém, é a de que a racionalidadeformal é, em última análise, equivalente (gleichbedeutend) à racionalidadeinstrumental, ou seja, equivalente a uma racionalidade “coisificante”("verdinglichende"), cuja meta é o controle de processos naturais e sociais. [5]

A atenção e profundidade com que Habermas e Wellmer tratam a tese de Adorno eHorkheimer a respeito do que constitui a essência do esclarecimento – a saber, a dominação –tem entretanto como contrapartida o fato de qua ambos deixem intacta a tese apresentadapelos autores acerca da origem do esclarecimento.

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Essa origem, como também da própria razão, é indicada claramente já na frase inicialdo texto O Conceito de Esclarecimento:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguidosempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-lo na posição de senhores [6].

O esclarecimento tem origem no sentimento do medo, e como reação a este sentimento.Seu objetivo primordial é antes de tudo livrar os homens do medo. É, de fato, apenas comomeio que a dominação também aparece nesta sentença de abertura, da qual o seguinte trechopode ser lido como uma confirmação e um desenvolvimento:

Do medo o homem presume estar livre quando não há mais nada de desconhecido. É issoque determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animadoao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento éa radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiroproduto, nada mais é que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar defora, porque a simples idéia do "fora" é a verdadeira fonte da angústia... [7]

Aqui, não somente a eliminação do medo aparece como determinante de toda atrajetória do esclarecimento, mas o esclarecimento, é, ele mesmo, identificado ao medo [8] . Osentido desta última formulação, mais forte que as anteriores, é o de que o esclarecimento,mesmo em sua forma mais acabada, continua sendo resultado e expressão do medo, sendoexatamente este o motivo pelo qual ele jamais chega a atingir seu objetivo. Ora, a tese que faz do medo a origem do pensar racional nos parece revelar um outroaspecto da influência nitzscheana na Dialética do Esclarecimento, o qual não foi desenvolvido porHabermas e Wellmer. No que se segue, procuraremos explicitar os motivos pelos quais nosacreditamos autorizados a levantar tal hipótese. Comecemos pois por perguntar qual o sentido do conceito de medo tal como ele apareceem Dialética do Esclarecimento. Um sentido certamente presente neste conceito é o do medo antea todos aqueles processos e forças naturais – seja antropomorfizados pelo animismo, sejaapreendidos pelo pensamento científico esclarecido – que permanecem ainda não dominados,incontroláveis e imprevisíveis. O medo diante de tudo o que ainda não se curvou ao domíniotécnico do homem e que o faz, por isso mesmo, sentir-se indefeso, pois se apresenta comoameaça à conservação da vida humana em geral. É como reação a este sentimento que Adornoe Horkheimer procuram estabelecer a gênese e a necessidade de uma racionalidadeinstrumental voltada para a dominação da natureza. Quanto ao problema da gênese do aspecto formal da razão no pensamento de Adornoe Horkheimer, vimos que Wellmer procura compreender o impulso à construção de sistemasunitários e internamente consistentes como decorrente do caráter instrumental daracionalidade. A tese que lhe permite estabelecer tal dependência é aquela na qual a Dialética doEsclarecimento atribui já ao próprio conceito uma natureza instrumental, tese essa na qualWellmer identifica uma origem nitzscheana [9]. Assim, unindo a argumentação de Wellmer à tese do medo como origem da razão,chagaríamos à seguinte explicação para o surgimento da racionalidade formal: O medo àsforças hostis da natureza torna necessária a dominação; esta necessidade, por seu turno, gera o

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conceito como instrumento de dominação; e o princípio da não contradição, contido naessência do pensar conceitual, engendra o impulso à lógica e à sistematização. Embora não haja como discutir a pertinência da análise de Wellmer a este respeito,acreditamos poder encontrar na Dialética do Esclarecimento uma segunda componente doconceito de medo a partir da qual é possível pensar de uma maneira alternativa, na referida obra,a gênese da racionalidade formal. Esta segunda via não está, como se verá, em contradição comaquela exposta acima, mas possui para nós o interesse especial de pôr em relevo aquele aspectoda influência nietzscheana na Dialética do Esclarecimento que estamos procurando indicar. A componente do conceito de medo à qual nos referimos se encontra apresentada noseguinte trecho:

...Concretiza-se assim o mais antigo medo, o medo da perda do próprio nome. Para acivilização, a vida no estado natural puro, a vida animal e vegetativa, constituía o perigoabsoluto. Um após o outro, os comportamentos mimético, mítico e metafísico foramconsiderados como eras superadas, de tal sorte que a idéia de recair neles era associada aopavor de que o eu revertesse à mera natureza, da qual se havia alienado com esforçoindizível e que por isso mesmo infundia nele indizível terror [10].

Trata-se aqui não mais do medo do indivíduo ante ao que ameaça a sua sobrevivência,mas do medo da dissolução dos limites da individualidade, da identificação imediata com anatureza e da regressão a estágios mais primitivos, o qual é exponenciado pela poderosasedução que esta mesma identificação com a natureza representa para o indivíduo:

O esforço para manter a coesão do ego marca-o em todas as suas fases, e a tentação deperdê-lo jamais deixou de acompanhar a determinação cega de conservá-lo… O medo deperder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida … estáirmanado a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a civilização [11].

Este mesmo medo está presente em muitas das interpretações dadas pela Dialética doEsclarecimento paras as aventuras de Ulisses. A sedução das sereias, dizem os autores, é a de sedeixar perder no que passou [12], e quem prova da comida dos lotófagos, sucumbe como os que escutamas sereias ou como os que foram tocados pela varinha de Circe...A única ameaça é o esquecimento e a destruiçãoda vontade [13]. Depois de ter logrado Polifemo, Ulisses precisa declarar seu nome e sua origemao ciclope, pois teme que, por ter-se declarado ninguém, volte a ser ninguém caso não restauresua identidade [14]. A magia de Circe …desintegra o eu que volta a cair em seu poder e assim se vêrebaixado a uma espécie biológica mais antiga [15]. Neste ponto, a linha de nossa argumentação impõe-nos uma dupla tarefa: é preciso, porum lado, explicitar que relação pode haver entre o medo da dissolução da individualidade e osurgimento de uma racionalidade formal; e, por outro, indicar de que maneira tal relação podeser índice de influência nietzscheana na Dialética do Esclarecimento. Ora, não vemos melhor caminho para o cumprimento destes objetivos do querecordarmos as teses de O Nascimento da Tragédia, nas quais a tendência lógica e sistemática seencontra paradigmaticamente relacionada ao medo da supressão da distância entre indivíduo enatureza. Em sua primeira obra, com efeito, Nietzsche faz o êxtase dionisíaco consistir na

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anulação dos limites da individualidade e na identificação imediata com a natureza. O supremoprazer provocado por esta identificação e a irresistível sedução que ela por isso mesmo exerceconstituem temível ameaça ao princípio de individuação (principium individuationis), entendido – emuma variação da reinterpretação schopenhaueriana deste terminus escolástico – como o impulsofundamental pelo qual a vida tende a abandonar sua unidade primordial para fixar-se emunidades viventes mais ou menos estáveis e permanentes, ou seja, em indivíduos. O pavorexperimentado pelo indivíduo ante a eminência da dissolução dos limites que o separam danatureza e a revelação extática da unidade profunda de todos os viventes não é senão aexpressão da profunda contradição existente entre a tendência dionisíaca e aquele princípiovital essencial. É esta contradição o que termina por gerar aquela poderosa força cultural queconhecemos como espírito apolíneo, o qual, como expressão do principio de individuação na cultura,destina-se a conter o avanço da tendência dionisíaca. Em O Nascimento da Tragédia podemosacompanhar como o impulso apolíneo helênico, a fim de alcançar este objetivo, cria amitologia grega, com todo o seu panteão de divindades olímpicas, e a arte escultórica clássica,na qual estas divindades são representadas; vemos ainda como faz vir à luz o esplendor daarquitetura dórica e finalmente o drama clássico, que, irmanado à música dionisíaca, instaurafinalmente na Tragédia ática um equilíbrio de forças entre Apolo e Dionísio. Mas este equilíbrio acaba por revelar-se precário e momentâneo, pois ainda quando aTragédia vivia seu auge, o princípio de individuação – abandonando o âmbito apolíneo, no interiordo qual se movera até então – obtém, por meio da filosofia socrático-platônica, a vitória finalsobre a tendência dionisíaca. É esta filosofia que entroniza pela primeira vez o conceito, alógica e o impulso à construção de sistemas, inaugurando assim o espírito científico, nova forçacultural que haveria de dominar os rumos da civilização ocidental. A partir de então asobriedade da razão e a exigência de absoluta coerência interna, clareza e transparência de umpensar que busca constantemente a mais perfeita auto-consciência são os elementos quebanirão definitivamente as tendências extáticas e orgiásticas do horizonte grego, velando assimpela estrita observância dos limites entre indivíduo e natureza. Ora, se nos dispomos a traçar uma analogia entre a descrição nietzscheana da atuaçãodo princípio de individuação na cultura – através do espírito apolíneo e da tendência socrática-científica – e a imagem da evolução do esclarecimento traçada por Adorno e Horkheimercertamente teremos ocasião de perceber alguns claros pontos de contato. Pois o processo peloqual o indivíduo se emancipou da natureza, e com isso forjou para si uma identidade rígida eunitária é elemento essencial na descrição da trajetória do esclarecimento realizada pelosautores frankfurtianos. De fato, se o conteúdo essencial da mimesis é a identificação com a natureza, o processopelo qual ela é substituída pela ratio, que é o seu outro, pode ser descrito como o processo dedistanciamento do sujeito em relação à natureza. A noção de distanciamento e interposição estáimplícita na própria noção de instrumento, e portanto, do conceito enquanto instrumento:

É verdade que a representação é só um instrumento. Pensando, os homens distanciam-seda natureza a fim de torná-la presente de modo a ser dominada…Pois o pensamento setorna ilusório sempre que tenta renegar sua função separadora, de distanciamento e

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objetivação [16].

Este distanciamento é descrito por Adorno e Horkheimer como o processo no qualsimultâneamente a natureza é liberada de toda antropomorfização mítica e o sujeito de tudo oque ele tem de natureza. O esclarecimento, ao mesmo tempo em que elimina a identificaçãomítica do inanimado ao animado, identifica o animado ao inanimado, de onde resulta a atrofiatanto do sujeito quanto da natureza:

É à identidade do espírito e a seu correlato, à unidade da natureza, que sucumbem asmúltiplas qualidades. A natureza desqualificada torna-se a matéria caótica para umasimples classificação, e o eu todo-poderoso torna-se o mero ter, a identidade abstrata [17].

Como o eu idêntico só se constitui por oposição à natureza da qual ele se distancia, osconceitos de eu e de natureza determinam-se e limitam-se reciprocamente. As exigências deunidade e identidade do sujeito pressupõem que o objeto se submeta também à unidade e àidentidade. Ao eu penso transcendental corresponde como seu correlato necessário umarealidade que, segundo a expressão de Wellmer, compõe-se … de fenômenos interligados causalmentesegundo leis, e isto quer dizer: uma realidade como objeto de um conhecimento possível das ciências naturais.[18]. Trata-se de uma realidade na qual tudo é a priori passível de ser subsumido pelascategorias fixas do entendimento. Todo ente é exemplar de uma espécie e todo evento é umcaso especial e repetição de uma lei eterna. A conseqüência imediata deste conceito de natureza é o ideal do sistema que procuraabranger num todo coerente a extensão inteira da realidade, afirmando ao mesmo tempo alógica formal como esquema da calculabilidade do mundo:

De antemão o esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pelaunidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e qualquer coisa [19].

Poderíamos então concluir que é a preocupação com preservação da unidade e daidentidade do sujeito o que torna indispensável o projeto iluminista do enquadramento de todoo real pelo pensar lógico e sistemático; e é para atingir este objetivo que o esclarecimentoinstaura um tribunal permanente contra tudo aquilo que parece oferecer resistência a um talenquadramento. O que não se deixa enquadrar pelo sistema e deduzir pela lógica é aquilo queainda não caiu sob o poder do pensamento conceitual, e, por isso mesmo, é algo que ainda nãose submeteu às condições únicas pelas quais pode haver a separação entre sujeito e objeto.Precisamente isto, o incomensurável, ou, como dirá Adorno posteriormente, o não-idêntico, é o quenão pode ser tolerado pelo esclarecimento, pois ele vê aí uma sobrevivência do tempo em queo eu não havia se emancipado da natureza e um sinal de que a emancipação ainda não secompletou de todo. Aí o esclarecimento reconhece uma região do espírito esclarecido na qualainda pode subsistir o medo mais antigo, do qual ele sempre quis livrar os homens, o daconfusão entre os limites do individuo e da natureza. O esclarecimento só pode estarseguro de ter vencido definitivamente o medo quando o esquema da deductibilidade universaltiver compreendido sem resto todo o real, e sua grande astúcia é declarar este projeto como járealizado de antemão, pelo menos em potência. Este é o sentido, de acordo com nossa

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interpretação, das expressões de Adorno e Horkheimer segundo as quais o homem presumeestar livre do medo quando não há mais nada de desconhecido, e nada mais pode ficar fora,uma vez que a própria idéia do fora é a verdadeira fonte da angústia. Neste sentido, expressãofora significaria aqui aquela região exterior ao círculo delimitado pelo saber científicoesclarecido, a qual o esclarecimento declara nula a priori. E é justamente por ser estabelecida apriori que a pura imanência do positivismo – ou seja, a identificação da realidade com aquiloque pode ser apreendido pela matemática e a eliminação de toda a transcendência – assume ocaráter de tabu assinalado por Adorno e Horkheimer.

Se são aceitas as linhas gerais da aproximação por nós intentada entre a Dialética doEsclarecimento e O Nascimento da Tragédia, seria possível estendê-la ainda de modo a estabeleceruma relação entre a tese nietzscheana que faz a criação da mitologia e da religião consistir emuma reação ao perigo representado à civilização pela tendência dionisíaca e a tese frankfurtianaque afirma terem os deuses como nome as vozes petrificadas do medo [20], e, portanto, que aquilocom o que o esclarecimento historicamente se bate já é esclarecimento. Da mesma forma,poder-se-ia ver uma influência nietzscheana na tese segundo a qual o produto derradeiro doesclarecimento, a mimese ao inanimado, é exatamente o oposto do seu objetivo original, ouseja, a preservação da vida. Pois em Nietzsche, de fato, o impulso à lógica e ao conceito, assimcomo o impulso apolíneo, tem como finalidade tornar possível a vida, na medida em que estapressupõe a constituição de uma subjetividade idêntica e estável. No entanto, a hipostasiaçãoinexorável deste impulso resulta na atrofia da vida através da anulação paulatina do elementoinstintivo dionisíaco, que é o substrato vital dos sujeitos cujas vidas deviam ser preservadas.

Mas faremos mais justiça ao pensamento frankfurtiano se concluirmos estas linhascom a ressalva de que embora seja possível encontrar muitos pontos de contato entre aDialética do Esclarecimento e a filosofia nietzscheana, não se pode pretender ver na obra deAdorno e Horkheimer uma simples adesão àquela filosofia. A Dialética do Esclarecimento sabe sepreservar da sedução nietzscheana e utiliza conscientemente Nietzsche em um esforço decontinuação da melhor tradição do materialismo histórico, e na perspectiva dodesmascaramento da falsidade contida nas formas de pensamento engendradas pela práticasocial. Se muito se pode dizer a respeito da influência de Nietzsche na referida obra, outrotanto se pode afirmar sobre a influência do pensamento marxista, e muito de sua importânciase deve à própria originalidade dos autores. E um dos traços mais marcantes destaoriginalidade é certamente a combinação inusitada e, para muitos improvável, conseguida poreles entre duas das filosofias que mais definiram os caminhos do pensamento no nosso século. BIBLIOGRAFIA: Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, J. Zahar Editor, 1985

Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung. Gesammelte Schriften, Bd.3, Frankfurt,Suhrkamp,1984.

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Wellmer, Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen, in: Zur Dialektik von Modernen und Post-Modernen,Vernunftkritik nach Adorno, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1885

Nietzsche, Die Geburt der Tragödie, Berlin- New York, W. de Gruyter, 1972 Habermas, The Philosophical Discourse of Modernity, Cambridge, Polity Press, 1992 Gagnebin, Jeanne Marie, Do Conceito de Razão em Adorno.

Notas

[1] Wellmer, Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen, in: Zur Dialektik von Modernen und Post-Modernen,Vernunftkritik nach Adorno, Frankfurt, Suhrkamp, 1885.

[2] Wellmer, op. cit. p141 [3] …die zentrale These Adornos und Horkheimers, die These von der einheit von formaler und instrumentellerrationalität im begrifflichen Denken… . Idem, p142. [4] Formale Rationalität äubert sich als impuls zur Herstellung systematisch vereinheitlichter undwiederspruchsfreier Wissens-Erklärungs-und Handlungszusammenhänge. Wellmer, p141. [5] Die eigentlich schwierige These von Adorno und Horkheimer ist nun dab formale Rationalität letztlichmit instrumenteller Rationalität gleichbedeutend ist, das heibt, einer "verdinglichenden" Rationalität, die aufKontrolle und Manipulation natürlicher und sozialer Prozesse abzielt. Idem, p142

[6] Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, J. Zahar Editor, 1985-p19.

[7] Idem, p29

[8] No original de Adorno e Horkheimer encontramos: ...Aufklärung ist die radikal gewordene,mytische Angst… (Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung. Gesammelte Schriften, Bd.3,Frankfurt, Suhrkamp,1984). Em sua excelente versão portuguesa de Dialetik der Aufklärung, oprof. Guido de Almeida traduz esta sentença – como se vê no trecho citado logo acima – por…O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica… De nossa parte proporíamos a seguintetradução: …Esclarecimento é o medo mítico tornado radical…, que, além de se aproximar mais dooriginal dá maior visibilidade à identificação entre esclarecimento e medo.

[9] Wellmer, p148

[10] Adorno e Horkheimer, p42

[11] Idem, p44-45

[12] Idem, p43

[13] Idem, p67

[14] Idem, p71

[15] Idem, p72

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[16] Idem, p49-50

[17] Idem, p24

[18] … eine Wirklichkeit gesetzmäbig kausal miteinander verknüpfter Phänomene, und das heibtWirklichkeit als Gegenstand einer möglichen naturwissenschaftlichen Erkenntnis. Wellmer, p143

[19] Adorno e Horkheimer, p22

[20] Idem, p29

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