Bases Do Autoritarismo Brasileiro - Simon Schwartzman

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    SIMON SCHWRTZMAN

    BASESDO AUTORITARISMO BRASILEIRO

    4 Edio

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    PUBLIT SOLUES EDITORIAISRua Miguel Lemos, 41 sala 605

    Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.071-000Telefone: (21) 2525-3936E-mail: [email protected] Eletrnico: www.publit.com.br

    Copyright 2007 por Simon SchwrtzmanTtulo Original: Bases do Autoritarismo Brasileiro

    EditorAndr Figueiredo

    Editorao EletrnicaLuciana Lima de Albuquerque

    S399 Schwartzman, SimonBases do autoritarismo brasileiro / Simon

    Schwartzman. 4. ed. - Rio de Janeiro : Publit SoluesEditoriais, 2007.

    290 p. : il. ; 21 cm.

    ISBNBibliografia

    1. Autoritarismo - Brasil. I. Ttulo

    CDU 321(81)CDD 321.9081

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    Sumrio

    Nota quarta edio ........................................................................ 7

    PREFCIO TERCEIRA EDIO ........................................ 9

    APRESENTAO ....................................................................... 35

    Captulo 1 ......................................................................................... 41DA TEORIA POLTICA REALIDADE HISTRICA

    1. A Crise das Teorias de Representao ........................... 422. Um Marco de Referncia: Capitalismo Ocidental ePatrimonialismo ..................................................................... 543. A Perspectiva Politica: Cooptao e Representao .... 584. A Poltica Como Fenmeno Espacial: as QuatroRegies .................................................................................... 645. Concluso: da Teoria Poltica Realidade Histrica ... 78

    Captulo 2 ......................................................................................... 85NEOPATRIMONIALISMO E A QUESTO DO ESTADO

    1. A Questo do Estado ....................................................... 862. Patrimonialismo e Feudalismo ........................................ 923. Neopatrimonialismo ......................................................... 974. Processos Polticos em Regimes Patrimoniais ............ 1035. Participao Poltica e Neopatrimonialismo ............... 107

    Capitulo 3 ....................................................................................... 113

    ORIGENS HISTRICAS: CENTRO E PERIFERIA SOBDOMINAO PORTUGUESA

    1. O Setor Pblico e o Setor Privado ............................... 114

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    2. Os Padres de Colonizao: Bandeirantes ePioneiros ............................................................................... 117

    3. A Trajetria de So Paulo e a Guerra DosEmboabas ............................................................................. 1194. A Integrao do Nordeste e a Guerra dos Mascates .. 1275. A Consolidao da Fronteira e a Formao doExrcito Nacional ................................................................ 131

    Capitulo 4 ....................................................................................... 137

    DEPENDNCIA, EXPANSO ECONMICA EPOLTICA PATRIMONIAL1. Dependncia e Expanso Econmica dos PasesNovos ................................................................................ 1382. Impulso Externo e Diferenciao Interna: Argentinae Austrlia ............................................................................. 1423.A Agricultura, a Indstria, o Movimento Operrio e o

    Estado: Crtica e Reviso de um Modelo deDesenvolvimento ................................................................ 1444. A Expanso do Caf: Iniciativa Privada e o PapelDo Estado ............................................................................ 1525. Sntese - Poder Oligrquico e DependnciaPatrimonial............................................................................ 164

    Captulo 5 ....................................................................................... 171DO IMPRIO REPBLICA: CENTRALIZAO,DESEQUILBRIOS REGIONAIS EDESCENTRALIZAO

    1. A Vida Poltica no Sculo XIX ..................................... 1722. De Provncias a Estados ................................................ 176

    3. Regionalismo e Centralizao no MovimentoRepublicano .......................................................................... 1794. A Base Regional do Militarismo: Rio Grande do Sul .... 1875. So Paulo e Minas Gerais .............................................. 192

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    6. A Revoluo de 1930- Fatos e Ideologias ................... 1997. A Nova Centralizao .................................................... 206

    Capitulo 6 ....................................................................................... 213A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA EM PERSPECTIVA

    1. Uma Perspectiva de Anlise .......................................... 2142. A Participao Poltica e o Sistema PartidrioAps 1945 ............................................................................. 2243. A Dinmica do Sistema: os Resultados Eleitorais ..... 229

    4. A Crise Do Sistema ........................................................ 2395. Concluses: o Sistema Eleitoral e a QuestoInstitucional .......................................................................... 246

    BIBLIOGRAFIA ......................................................................... 267

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    Nota quarta edio

    Esta nova edio de Bases do Autoritarismo Brasileiro, tornadadisponvel graas s novas tecnologias de informao e comuni-cao, reproduz integralmente o texto da edio original de 1982,que teve origem em minha tese de doutoramento junto ao De-partamento de Cincias Polticas da Universidade da Califrnia,

    Berkeley, em 1973, sob o ttulo de Regional Cleavages and PoliticalPatriominalism in Brazil, disponvel na Internet em http://www.schwartzman.org.br/simon/tese/contents.htm, e publicadainicialmente no Brasil como So Paulo e o Estado Nacional(DIFEL,1975). Ela reproduz, ainda, o prefcio terceira edio de 1988,que buscou colocar o livro, escrito no auge do regime militar, nocontexto do que se chamava ento a Nova Repblica.

    Mais de trinta anos percorridos, uma das principais proposi-es do livro pareceria ter se cumprido. O que procurei mostrarem 1973 era como a dinmica da vida poltica brasileira tinhatido sempre, como uma caracterstica central, a relativamarginalizao do centro econmico e mais organizado da so-ciedade civil no pas, localizado predominantemente em So

    Paulo, e o ncleo do poder central, muito mais fixado no eixoRio de Janeiro Braslia, em aliana com as oligarquias polticastradicionais dos estados mais pobres. Mais do que diferenas geo-grficas, que tm o seu luar, o que mais me importava eram asdiferentes formas de organizao e participao na vida econmi-ca, social e poltica que coexistiam e disputavam espao no pas.

    No prefcio de 1988 eu dizia que foi de So Paulo que surgiramas presses sociais mais fortes contra os poderes concentradosno Governo federal, tanto por parte de grupos empresariais quanto

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    pelo movimento sindical organizado; em So Paulo, em ltimaanlise, que se joga a possibilidade de constituio de um sistema

    poltico mais aberto e estvel, que possa dar ao processo de aber-tura uma base mais permanente.

    A partir de 1995, com os governos de Fernando HenriqueCardoso e Luiz Incio da Silva e as candidaturas presidenciais deJos Serra e Geraldo Alckmin, o centro de gravidade da polticabrasileira se transfere para So Paulo. Nas eleies de 1994 e 1998,a oposio entre PSDB e PT se aproximou bastante do que po-

    deramos descrever como a disputa entre dois partidos polticosmodernos, um com mais apoio nas classes mdias e noempresariado, outro com mais apoio nos sindicatos e movimen-tos sociais independentes. Desde ento, no entanto, os partidospolticos perderam substncia, o clientelismo se ampliou, osindicalismo e os movimentos sociais foram cooptados, e boa

    parte das antigas elites patrimonialistas mantiveram seu poder desempre, agora como meras cleptocracias. O perodo modernoda poltica brasileira teve flego curto, e poltica antiga est de-monstrando ter uma enorme inesperada de sobrevivncia e me-tamorfose. Fica para os leitores a pergunta de por qu isto assim,e o que podemos esperar para o futuro.

    Rio de Janeiro, julho de 2007.

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    PREFCIO TERCEIRA EDIO

    I

    Depois de vinte anos de regime militar, a Nova Repblica en-controu o Brasil profundamente transformado. Ele agora um paismuito mais urbanizado, industrializado e populoso do que nos anos60. Ao mesmo tempo, as condies sociais parecem ter piorado:

    aumentou a desigualdade da renda, a criminalidade urbana parecefora de controle, os problemas de sade pblica so crticos. Quantasdestas transformaes se devem ao regime poltico que imperou nasltimas dcadas? Quantas ocorreriam independentemente dele?

    A experincia do autoritarismo gerou muitas anlises e con-trovrsias a respeito de seu verdadeiro sentido. Teriam sido estes

    anos apenas um desagradvel acidente em um processo inelut-vel de desenvolvimento econmico, social e poltico, tal como asteorias do desenvolvimento dos anos 50 e 60 fariam supor? Ou,ao contrrio, teriam sido eles urna simples volta a um padrorecorrente e mais profundo da sociedade ou da cultura brasileira,por natureza autoritrias e incapazes de evoluir para uma ordemdemocrtica estvel? Como entender os anos de regime autorit-

    rio? possvel dizer que o Brasil parou em 1964, para sair, vinteanos depois, de um grande pesadelo? Ou ser que as transforma-es ocorridas nesses anos foram suficientemente amplas e pro-fundas, independentemente das intenes dos sucessivos gover-nos militares, para que seja impossvel pensar em um simplesretomo aos tempos pr-64? E como interpretar a atual situaoem que nos encontramos? Podemos supor que o padro de de-

    senvolvimento com desigualdade no passou de uma perversodos regimes militares, a ser corrigida agora que vivemos em umademocracia? Ou, ao contrrio, trata-se de uma caracterstica mais

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    permanente e profunda do autoritarismo brasileiro, e por istofadada a persistir, fazendo com que o prognstico de nossa

    incipiente democracia seja necessariamente pessimista? impossvel responder a estas questes neste nvel de genera-lidade. Para abord-las, necessrio ter um entendimento adequa-do de nosso passado social e poltico, das mudanas profundas queocorreram nas ltimas dcadas e das repercusses que esta baga-gem acumulada ainda tem na maneira pela qual nossa sociedade semove. Ao final deste trabalho no teremos ainda condies de sa-

    ber com segurana o que o futuro nos espera, mas teremos, pelomenos, urna idia mais clara sobre as questes que esto em jogo.

    Bases do autoritarismo brasileiro pretende ser uma contribuiopara este esforo. Sua verso inicial, com o ttulo So Paulo e oestado nacional, foi escrita e publicada no inicio dos anos 70, por-tanto em plena vigncia do AI-5 e nos anos mais duros do regi-

    me militar. A atual verso, republicada com simples correes dedetalhes, foi escrita no inicio dos anos 80, quando o processo deabertura poltica j se prenunciava como irreversvel. O interessecontnuo que o livro tem encontrado ao longo desses anos pare-ce confirmar que a temtica do autoritarismo brasileiro no umsimples fenmeno passageiro, mas tem razes profundas e impli-caes que no se desfazem por meros rearranjos institucionais.

    Reconhecer isto no significa supor que o Brasil padece de umestigma autoritrio congnito, parlo qual no existe salvao. Massignifica, isto sim, que este passado e suas conseqncias presen-tes tm que ser vistos de frente, para que tenhamos realmentechance de um futuro mais promissor.

    IIUma das teses centrais deste livro que o Brasil herdou um siste-

    ma poltico que no funciona como representante ou agente de

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    grupos ou classes sociais determinados, mas que tem uma din-mica prpria e independente, que s pode ser entendida se

    exarminarmos a histria da formao do Estado brasileiro. Estatese parece incompreensvel dentro de uma viso de corte mar-xista ou economicista convencional que tende a interpretar tudoo que ocorre em uma sociedade em termos de sua diviso declasses -, mas torna-se mais inteligvel em uma perspectivaweberiana, que distingue e trata de maneira diferenciada os siste-mas de classe, os sistemas de dominao poltica e os sistemas de

    privilgio social e status em uma sociedade. pela perspectivaweberiana que podemos ver que o Estado brasileiro tem comocaracterstica histrica predominante sua dimensoneopatrimonial, que uma forma de dominao poltica geradano processo de transio para a modernidade com o passivo deuma burocracia administrativa pesada e uma sociedade civil(classes sociais, grupos religiosos, tnicos, lingsticos, nobreza

    etc.) fraca e pouco articulada. O Brasil nunca teve uma nobrezadigna deste nome, a Igreja foi quase sempre submissa ao podercivil, os ricos geralmente dependeram dos favores do Estado e ospobres, de sua magnamidade. No se trata de afirmar que, noBrasil, o Estado tudo e a sociedade nada. O que se trata deentender os padres de relacionamento entre Estado e socieda-

    de, que no Brasil tem se caracterizado, atravs dos sculos, poruma burocracia estatal pesada, todo-poderosa, mas ineficiente epouco gil, e uma sociedade acovardada, submetida mas, por istomesmo, fugidia e freqentemente rebelde.

    Este padro de predomnio do Estado leva a que ele se cons-titua, historicamente, com duas caractersticas predominantes.Primeiro, por um sistema burocrtico e administrativo que deno-

    minamos, para seguir a tradio weberiana, de neopatrimonial, eque se caracteriza pela apropriao de funes, rgos e rendaspblicas por setores privados, que permanecem no entanto

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    subordinados e dependentes do poder central, formando aquiloque Raymundo Faoro chamou de estamento burocrtico. Quando

    este tipo de administrao se moderniza, e segmentos do antigoestamento burocrtico vo-se profissionalizando e burocratizan-do, surge uma segunda caracterstica do Estado brasileiro, que o despotismo burocrtico. Do imperador-sbio D. Pedro II aosmilitares da Escola Superior de Guerra, passando pelos positivistasdo Sul e tecnocratas do Estado Novo, nossos governantes tendema achar que tudo sabem, tudo podem, e no tm na realidade que

    dar muita ateno s formalidades da lei.

    III

    O jogo poltico que se desenvolve nestas condies consistemuito menos em um processo de representao de setores dasociedade junto ao Estado do que em uma negociao contnua

    entre o Estado neopatrimonial e todo tipo de setores sociais quan-to sua incluso ou excluso nas vias de acesso aos benefcios eprivilgios controlados pelo Estado. No uma negociao entreiguais: fora do poder no h salvao, dizia o velho polticomineiro. A poltica tanto mais importante quanto maior opoder do Estado e, e por isto, na tradio brasileira, todas asquestes - religiosas, econmicas, educacionais - passam semprepelo crivo do poder pblico. Esta negociao continua leva a v-rios tipos de soluo. Lideranas mais ativas so cooptadas pelosistema poltico, e colocadas a seu servio. O estamento burocrticobrasileiro permissivo, e incorpora com facilidade intelectuais,empresrios, lideres religiosos e dirigentes sindicais Quando acooptao se institucionaliza, ela assume, muitas vezes, caracte-

    rsticas corporativistas, que consistem na tentativa de organizaros grupos funcionais e de interesse em instituies supervisiona-das e controladas pelo Estado. por mecanismos corporativistas

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    que o Estado brasileiro tem buscado, desde pelo menos os anos 30com grau relativo de sucesso, enquadrar os sindicatos, as associa-

    es patronais e as profisses liberais, incluindo ai todo o sistemade ensino superior.

    O outro lado da cooptao a excluso, tanto dos processospolticos e decisrios quanto da eventual distribuio da riqueza so-cial. O Estado Novo, ao mesmo tempo em que tratava de organizare -cooptar o operariado urbano, exclua o campesinato de qualquerforma de acesso a seus benefcios. A excluso do campesinato

    somente o exemplo mais flagrante do processo de modernizaoconservadora que tem caracterizado o desenvolvimento brasileiro.O regime ps-64 tratou tambm de excluir os trabalhos urbanos osintelectuais e, em geral, as populaes das grandes cidades de umainfluncia mais significativa na vida poltica do pais. O sistemabicameral, em nome do principio federativo, sobre-representa no

    Senado os pequenos estados em detrimento das grandes concentra-es populacionais do centro-sul, e distores semelhantes tambmexistem para a Cmara de Deputados. um quadro que j vem daConstituio de 1946 e sobrevive ao regime militar.

    Alm de cooptar, enquadrar ou excluir pessoas e setores dasociedade, o Estado neocorporativista desenvolve uma atividadeeconmica que pode ser caracterizada como neomercantilista

    Como no mercantilismo dos velhos tempos, o Estado se intro-mete em empreendimentos econmicos de todo tipo, tem seusbancos, indstrias prprias e protegi das firmas de exportao ecomercializao de produtos primrios. Em parte, isto feitoatravs de suas prprias empresas; mais tradicionalmente, no en-tanto, a atividade neomercantilista se exerce pela distribuio de

    privilgios econmicos a grupos privados, nacionais ou interna-cionais, que estabelecem assim alianas de interesse com oestamento burocrtico.

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    A ltima caracterstica do Estado neocorporativista seu as-pecto plebiscitrio, ou populista. O que caracteriza o populismo

    a tentativa de estabelecer uma relao direta entre a lideranapoltica e a massa, o povo, sem a intermediao de grupossociais organizados O populismo plebiscitrio, como a experin-cia do fascismo europeu to bem demonstrou a outra cara doautoritarismo. A relao entre estas duas coisas, no entanto no simples. Nunca se investiu tanto em relaes pblicas e publici-dade no Brasil quanto nos anos de governo militar. Mas isto no

    foi suficiente para dar a este regime uma dimenso populista, quefoi, entretanto uma caracterstica marcante de certos momentosdo regime getulista. Existe alm disto uma diferena profundaentre o populismo plebiscitrio e o populismo de tipo fascista. Oprimeiro pouco mais do que um instrumento de legitimao dopoder, e, por isto, geralmente mantido dentro de limites con-venientes. O segundo, porm, utilizado para a prpria con-quista e manuteno do poder, uma situao cm que se tornadifcil cont-lo em seus limites. O Estado brasileiro convive bemcom o primeiro, mas tem horror s ameaas do segundo.

    IV

    Diante de um Estado com estas caractersticas, como se es-trutura a sociedade? Em parte, ela segue uma dinmica prpria,que no se explica nem se entende pelo que ocorre a nvel politico.O pais passou, da escravatura para o trabalho livre, por um pro-cesso dramtico de deslocamento populacional do campo paraas grandes cidades e de estimulo imigrao, desenvolveu umparque industrial de grandes propores nu regio centro-sul, e

    no se pode dizer que tudo isto ocorreu por de ciso ou intenodos governos, ainda que o Estado neopatrimonial tratasse sem-pre de influenciar ou condicionar estes processos. Do ponto de

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    vista poltico, no entanto, pode-se observar que a sociedade brasi-leira tende a ser, em geral, dependente do Estado para a obten-

    o de benefcios, sinecuras, autorizaes, empregos, regulamen-tos, subvenes. A outra face da dependncia a clandestinidade.Como o Estado pretende controlar tudo (sem, no entanto, con-segui-lo), comportamentos no regulados passam a ser vistoscomo ilegtimos, mas ao mesmo tempo aceitos de forma tcita econsensual: a economia Informal, o jogo do bicho, as religiespopulares, o contrabando, o poder privado em suas diversas ma-

    nifestaes, os sistemas familiares que se constituem margemdas normas e da moral estabelecida. Com Isto, a vida quotidianatende a ser desprovida de contedos ticos e normativos, umasituao endmica de anomia, cujas conseqncias ainda no fo-ram plenamente entendidas por nossos cientistas sociais.

    O caso da Igreja Catlica interessante como ilustrao destas

    relaes entre o Estado e a sociedade. O que a Igreja: Estadoou Sociedade? Na tradio portuguesa do padroado, transpostapara o Brasil, a Igreja parte do Estado, em uma simbiose naqual a religio cuidava dos ritos e da educao sem se intrometer,e na realidade legitimando o poder poltico constitudo sua re-velia. A elite poltica brasileira sempre foi muito mais racionalista,maom ou positivista do que propriamente catlica, e as vezes em

    que a Igreja disputou o poder com o Estado - como quando daQuesto Religiosa no sculo XIX a elite poltica reagiu com energia.

    Nas dcadas de 20 e 30 deste sculo a Igreja busca, pela pri-meira vez, se constituir em movimento social e intelectual aut-nomo e capaz de influenciar decisivamente a poltica do pas,agindo, assim, do lado da sociedade. Ela termina, no entanto,

    cooptada pelo regime varguista, que lhe entrega o Ministrio daEducao e lhe rouba, ao mesmo tempo, a bandeira do ensinoprivado, que s seria retomada, com timidez, no ps-guerra. O

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    carter semi-oficial, mas subalterno, da Igreja Catlica, contribuimuito para o formalismo e a pouca convico que caracteriza

    grande parte do catolicismo tradicional brasileiro, em contrastecom a intensidade das formas mais espontneas e clandestinasde religiosidade popular. A redescoberta da sociedade vitaliza osmovimentos de Ao Catlica nos anos 60, se prolonga noenvolvimento da Igreja com as questes de direitos humanos nosanos de autoritarismo militar e prossegue no envolvimento apa-rentemente irreversvel de setores Importantes da Igreja com os

    movimentos comunitrios do campo e das periferias urbanas. Umadas facetas importantes desta redescoberta a tentativa de incluirna vida social e comunitria um contedo tico e moral que setornara impossvel de estimular a partir da tradicional identifica-o entre a Igreja e a ordem poltica estabelecida. Os sucessos, asdificuldades e os conflitos internos que a Igreja vem experimen-tando neste processo refletem os dilemas da superao de umaordem poltica autoritria e hierrquica e sua superao por for-mas novas de organizao e participao social

    V

    O quadro esboado at aqui descreve, em linhas muito am-plas, a situao brasileira at o inicio da Segunda Repblica, emmeados do sculo XX, assim como alguns de seus desdobramen-tos mais visveis. A partir dai a sociedade brasileira entra em gran-des transformaes onde o que mais se evidencia um processode crescimento demogrfico acelerado que se faz acompanharda intensificao dos processos migratrios do campo para ascidades. A economia rural mais tradicional e decadente, com sua

    combinao perversa de minifndio-latifndio, vai-se esvazian-do aos poucos, sendo substituda pelas grandes lavouras mecani-zadas de exportao, pelas grandes extenses de criao de gado,

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    pela expanso de uma agricultura e pecuria de alta tecnologia evoltados ao mercado interno, e assim por diante. Os antigosmeeiros e posseiros vo perdendo suas razes, imigrando ou trans-formando-se em bias-frias ou assalariados das grandes planta-es de cana-de-acar e outras agroindstrias. um processointenso e violento, acompanhado do deslocamento forado dapopulao e por conflitos pela posse da terra. Com tudo isto, osproblemas brasileiros dependem hoje muito menos do que ocorreno campo do que o que ocorre nos centros urbanos. O esvaziamen-

    to do campo permite sua modernizao cada vez mais acelerada,a extenso do sistema previdencirio e da sindicalizao ao setorrural, e outras transformaes, fazem com que as diferenas entrecampo e cidade no Brasil tendam a se reduzir.

    A contrapartida do despovoamento do campo o inchamentodas cidades. A existncia de classes perigosas, setores popula-res que convivem com padres altos de violncia e ameaam asegurana fsica das classes mdias e altas, no chega a ser umanovidade no Brasil; ao contrrio, estas classes perigosas tmsido uma constante na histria do Rio de Janeiro, e constituemuma caracterstica central de uma sociedade baseada no predo-mnio de centros poltico-administrativos desprovidos de ade-quada estrutura de emprego industrial. No entanto, os processos

    demogrficos do ps-guerra acentuam este fenmeno e levamao surgimento de novas formas de organizao clandestina dassociedades urbanas, que vo das poderosas mquinas de poltica ur-bana ao crime organizado, passando por associaes locais de todotipo, e sem que as fronteiras entre elas se definam com clareza.

    O ps-guerra assinala, alm disto, o surgimento de uma clas-se mdia urbana significativa, que busca se proteger nas asas do

    emprego pblico ou na segurana das profisses liberais, mas sevolta tambm para as oportunidades comerciais e industriaisproporcionadas pelas grandes concentraes urbanas. Esta clas-

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    se mdia fora, aos poucos, a expanso do sistema educacional,particularmente de nvel mdio, que atendido pela iniciativa

    privada, e o de nvel superior, que inicialmente proporcionadode forma gratuita pelo Estado, passando depois a ser atendidotambm pela livre iniciativa. Consolida-se em alguns centros, almdisto, uma indstria voltada para o mercado interno, que serve debase a um crescente proletariado urbano. este ltimo o setorcapitalista por excelncia da sociedade brasileira, que, como sa-bemos, s incorpora uma pequena parte das populaes urbanas,

    e se concentra principalmente na regio de So Paulo. tambmnesta regio que surge, de forma mais marcada do que nunca nahistria do pas, um setor industrial internacionalizado.

    VI

    Estas transformaes tio intensas no poderiam deixar de

    colocar cm crise a relao de simbiose e dependncia que haviase estabelecido no passado entre o Estado brasileiro e a socieda-de civil. Entra em crise a administrao patrimonial clssica,formalista, pesada, ineficiente e voltada para a distribuio deemprego: e privilgios. O Estado agora chamado a gerir comeficincia grandes aglomerados urbanos, proporcionar infra-es-

    trutura a uma economia moderna em expanso, regular um siste-ma financeiro extremamente complexo, e assim por diante. Oantigo sistema corporativista, que implicava um pacto de conve-nincia mtua entre o Estado e alguns setores mais organizadosda sociedade, tambm entra em colapso: o nmero de partici-pantes aumenta, os recursos e privilgios a serem distribudosfigo crescem na mesma proporo. O neomercantilismo tam-

    bm sofre. Sua inerente ineficincia, os altos nveis de corrupo,tudo isto aceito e tolerado quando a economia se expande, e oque uns ganham no chega a ser necessariamente retirado de

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    outros. Porm, quando os recursos se tornam mais escassos, quan-do os mecanismos inflacionrios de financiamento do dispndiopblico colocam em risco a ordem econmica e social, aumentaa presso por maior eficincia, racionalidade e previsibilidade dasaes do governo.

    Um dos setores onde a crise se manifesta com mais clareza na previdncia social. O mito de que o sistema previdencirio bra-sileiro um dos mais avanados do mundo foi mantido por muitosanos graas excluso histrica das populaes rurais ou ligadas

    ao setor informal da economia de seus benefcios, e, tambm, gra-as excluso da juventude e da baixa expectativa de vida de todos,o que significa poucos velhos e poucas doenas degenerativas. Sassim foi possvel planejar um sistema previdencirio que aposentapessoas aos 45 ou 50 anos de idade e oferece atendimento mdicoilimitado. Ainda que exista, certamente, muito espao para o aumen-to da eficincia da previdncia social brasileira, pela racionalizaode custos, mudanas nas fontes de financiamento e nas formas deatendimento ao pblico, figo h dvida de que sua crise econmi-co-financeira extremamente grave, e dever levar a profundasrevises quanto maneira pela qual a sociedade brasileira espera,tradicionalmente, receber os benefcios do Estado.

    Entra em crise, finalmente, o sistema poltico de cooptao.

    A organizao de setores mais ativos da sociedade em corporaessubordinadas ao Estado um arranjo cmodo quando estascorporaes so relativamente fracas e pequenas, e o Estado temcondies de transferir para elas alguns privilgios e benefcios.Com o tempo, no entanto, estas corporaes crescem, aumentaseu poder de reivindicao, enquanto diminui progressivamentea capacidade que o Estado tem de atender a suas demandas. No

    perodo pr-64 o antigo Partido Trabalhista Brasileiro, que con-trolava tradicionalmente o Ministrio do Trabalho, perdeu aospoucos o controle do sistema sindical do pais, e parte da

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    radicalizao poltica havida naqueles anos se explica pelo esfor-o do PTB em no se alienar completamente da liderana sindi-

    cal que lhe escapava. Esta radicalizao do movimento sindicalcorporativizado fez com que as propostas de criao de umsindicalismo livre e desatrelado da tutela governamental (e dasvantagens do imposto sindical) nunca encontrassem maior apoionos meios sindicais brasileiros. Nos anos 80 so as corporaesde classe mdia funcionrios pblicos, professores, certas cate-gorias de profissionais liberais que desenvolvem padro seme-

    lhante de radicalizao.Em sntese, os mecanismos que haviam sido desenvolvidos

    no passado para garantir uma ordem poltica estvel se transfor-mam, com o correr do tempo, em fatores de instabilidade e per-plexidade. Como se adaptar aos novos tempos? Que formatosinstitucionais, legalmente definidos ou de fato, podem ser esta-

    belecidos para substituir os antigos, em um pacto social maisaberto e socialmente mais justo?

    VII

    A primeira reao crise foi, como todos sabemos, a repres-siva. Reprimiu-se, imediatamente, os direitos e as demandas por

    participao poltica e direito reivindicao organizada de inte-resses. No foi, desde logo, uma represso neutra e generalizada,mas que beneficiou uns em detrimento de outros. A histria dosvinte anos de governo militar mostra que, apesar de seu compro-misso genrico com o que se pode denominar genericamente desistema capitalista, houve suficientes variaes e contradiesque fazem com que esta expresso, em si mesma, explique muito

    pouco. Tentou-se, em um primeiro momento, um modelo de ra-cionalizao capitalista mais clssico e ortodoxo, com o aumentoda eficincia e a reduo do peso do Estado, criao de instituies

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    capitalistas modernas (mercados financeiros, Banco Central, gran-des conglomerados industriais e financeiros etc.), e internacionalizaoda economia. Se estas foram as linhas principais dos primeiros anosde regime militar, elas foram substitudas depois por outras maisajustadas a tradies do Estado brasileiro: crescimento do setor p-blico, lanamento de grandes projetos e programas sociais ambicio-sos, como o da padronizao e generalizao da previdncia social ea erradicao do analfabetismo atravs do Mobral.

    Ainda que a discusso sobre os fatores que conduziram ao

    fim do regime militar continue, possvel assinalar que a respostadesmobilizadora e repressiva crise do antigo Estado patrimonialcontinha cm si mesma alguns limites bastante claros. Processossociais to amplos como os de esvaziamento do campo esuperpovoamento das cidades so impossveis de controlar, e osregimes militares nem sequer o tentaram. Obter legitimidadepoltica e ideolgica em um contexto de represso edesmobilizao quase uma contradio em termos, que nopode ser superada pela simples manipulao de smbolos nacio-nais ou pelo uso mais ou menos competente dos meios de comu-nicao de massas.

    Nada impede, tambm, o renascimento de velhos padrespatrimoniais e neomercantilistas em um contexto poltico autori-

    trio e repressivo. Analistas tendem a atribuir ao governo Geiselum projeto de desenvolvimento scio-econmico e poltico defi-nido que deveria culminar no restabelecimento da ordem demo-crtica em novas bases. O perodo seguinte, por outro lado, normalmente reconhecido como aquele em que a apropriaoprivada da coisa pblica mais se exacerbou em um contexto his-trico, em que os grandes projetos do governo anterior entravam

    em hibernao ou eram abandonados. Em grande parte, esta di-ferena entre os dois ltimos governos militares se explica pelamudana nas condies externas que afetaram os projetos gover-

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    namentais (a segunda crise do petrleo, a crise da dvida etc.); e,em parte, pelas diferenas pessoais entre as personalidades en-volvidas. Porm, o que mais chama a ateno no tanto o con-traste quanto a convivncia relativamente pacfica entre padresticos aparentemente to distintos, sugerindo que ambos fazemparte de uma sndrome comum, prpria dos sistemas autoritri-os de base neopatrirnonialista.

    O regime militar tambm chegou ao fim por uma dinmicade conflitos internos que tendia, inevitavelmente, a incorporar

    novos atores s disputas pelo poder, fazendo que, mesmo nosperodos de autoritarismo mais intenso, o setor civil do sistemapoltico do pas no fosse completamente desarticulado. A exis-tncia destas disputas internas, e a manuteno de canais abertosentre o Estado e setores da elite poltica e econmica, umacaracterstica histrica do Estado patrimonial brasileiro que oregime militar no chegou a destruir, e acabou por alimentar ascontradies que levaram devoluo pacfica do poder aos civis.

    A transio negociada entre o regime militar e a Nova Rep-blica implicava a conteno dos mpetos renovadores expressospelo movimento das Diretas j e pelo renascimento de certaslideranas populistas tradicionais e a entrega do poder a uma li-derana civil mais tradicional e confivel, capaz de se valer do

    populismo sem se deixar dominar por ele; e implicava tambm aconteno de algumas formas mas agressivas e arrivistas do po-der econmico, em eventual aliana cornos setores militares maisvinculados ao sistema repressivo e de informaes. Buscou-seum novo equilbrio entre Estado e sociedade, que continuasse adar primazia ao Estado, eventualmente modernizado e adaptadoaos novos tempos. Apesar da reconhecida maestria com que este

    processo foi conduzido, permitindo inclusive que a aliana assimformada sobrevivesse tragdia pessoal de Tancredo Neves, ofato que a Nova Repblica traz a aparncia de ser uma realidade

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    efmera, ansiosamente pendente dos resultados das pesquisas deopinio pblica, sobrevivendo graas conduo de um intenso

    calendrio poltico-eleitoral que no governa totalmente e queparece exaurir quase todas as suas energias.

    VIII

    Esta viso panormica da evoluo brasileira, nas ltimasdcadas, permite sugerir algumas respostas pergunta inicial a

    respeito da irreversibilidade ou no dos processos de aberturapoltica e democratizao que estamos assistindo. Uma das tesesdefendidas a este respeito de que os anos de autoritarismo jteriam cumprido sua funo, que seria a de realizar, sua manei-ra, o processo de transio da economia brasileira de um sistemaproto-capitalista para uma economia capitalista plena. Uma vezcumprida esta funo, o autoritarismo j no teria razo de ser.

    uma tese difcil de ser sustentada a partir da perspectiva adotadaneste livro, que pretende demonstrar que no existe um padrouniforme de desenvolvimento, e que o entendimento de umasociedade nem de longe se esgota na anlise das transformaesde seu sistema produtivo; ou, mais especificamente, que o Esta-do brasileiro tem caractersticas prprias, ligadas a suas origenspatrimonialistas, que o tornam bastante distinto dos modelos dospases capitalistas ocidentais. Bastaria, alm disto, uma simplesviso da conjuntura econmica brasileira ao final de 1986, quan-do este texto est sendo escrito - o problema da dvida externano-equacionada, a reduo dos supervitscomerciais, os gastospblicos ainda fora de controle -, para vermos que os anos futurossero, certamente, turbulentos na rea econmica, com inevitveis

    repercusses ao nvel poltico e socialUma outra tese, certamente mais complexa que a anterior, a que

    poderamos chamar de tese do transbordamento. Basicamente, ela

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    consiste em afirmar que o crescimento e a modernizao da socie-dade brasileira nas ltimas dcadas foi de tal ordem que os sistemas

    tradicionais de controle poltico da sociedade, pela cooptao daslideranas e enquadramento corporativista dos setores organizadosda populao, ou pela mobilizao populista do eleitorado, j seriamcoisas do passado, e neste sentido a volta aos padres tradicionais dedominao de nosso Estado neopatrimonial seria impensvel

    Trata-se de uma tese somente em parte verdadeira. certoque a parafernlia de controles polticos e institucionais que co-

    nhecemos, em parte constituda nos anos do Estado Novo, estcomeando a se desmoronar, e a sociedade brasileira se organizahoje em uma pluralidade de formas no previstas e dificilmenteenquadrveis em qualquer mecanismo estvel de dominao esta-tal. O que no certo que este processo significa a consolidaoda ascendncia permanente da sociedade civil sobre o Estado,

    superando assim, de maneira definitiva, nosso passado autoritrio.Para que isto fosse verdade, seria necessrio no somente que asestruturas tradicionais de dominao tivessem transbordado -que no deixa de ser um fato -, mas tambm que a sociedade bra-sileira tivesse se tornado mais madura neste processo e o Esta-do, mais competente - duas premissas bastante problemticas

    IX

    Teorias sobre a maturidade dos cidados costumam vir emduas verses, uma de tipo evolucionista, outra de fundamentomais religioso. A primeira destas verses consiste em afirmar que, medida que as sociedades se desenvolvem, e o povo se tomamais culto e educado, aumenta tambm seu nvel de politizao,

    seu grau de conscincia poltica, sua maturidade. Como todas asteses evolucionistas, esta tambm tem duas vertentes, uma maisliberal, outra mais marxista e revolucionria. Pela vertente liberal,

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    o processo de amadurecimento se relaciona basicamente coma educao a ser obtida nas escolas e a ser transmita pelas famli-as. Na vertente mais revolucionria, o processo de amadureci-mento poltico estaria diretamente relacionado com o desenvol-vimento do capitalismo, que traria como conseqncia a trans-formao das antigas classes em si em classes para si. Ambasas teorias tm em comum a noo de que o amadurecimentopoltico no se d de forma espontnea e automtica, mas umprocesso evolutivo que depende de um trabalho constante e per-

    manente de educao e proselitismo, tanto para que as pessoasevoluam; na vertente liberal, quanto para que elas superem oscondicionantes das ideologias hegemnicas e mascaradoras dosverdadeiros interesses, na segunda vertente.

    As teorias de fundo mais religioso dispensam a evoluo, epartem da tese de que o povo naturalmente bom, justo e sbio. Oproblema com o regime brasileiro no estaria na imaturidade oufalta de conscincia poltica do povo, mas sim nas manipulaesdas elites, que sistematicamente trataram de escamotear a realidadee apresent-la de maneira falsa e deturpada. O verdadeiro trabalhopoltico no seria o de educar e catequizar o povo, mas sim o dedesmascarar seus inimigos explcitos ou ocultos. Esta viso religio-sa da sabedoria popular se manifestou com muita clareza na idia

    lanada por alguns setores, segundo a qual a Assemblia Constituin-te de 1987 no deveria ser eleita pelos partidos convencionais, esim formada, diretamente, pelo povo. Havia a idia de que ospartidos polticos, memo nas condies de liberdade estabelecidaspara as eleies de 1986, seriam necessariamente corrompidos ealienados; mas que o povo, se pudesse se manifestar em suapureza, poderia se expressar de maneira plena, fazendo com que o

    Brasil finalmente encontrasse o regime poltico de seus sonhos.Os resultados das eleies de 1986 permitem testar algumas

    destas teses. Chama a ateno, nestas eleies, tanto o fracasso

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    dos candidatos ideolgicos quanto o dos candidatos cuja principalbase eleitoral fosse o simples poder econmico ou a identifica-

    o de classe. A eleio paulista poderia ter-se polarizado entre ogrande capitalista, Ermrio de Moraes, e a liderana operria or-ganizada no Partido dos Trabalhadores; no entanto ela terminousendo muito mais um conflito entre o lder municipalista Qurciae o arrivista Paulo Maluf. No Rio de Janeiro, a tentativa brizolistade polarizar as eleies entre ricos e pobres fracassou, levan-do com ela o candidato do PDT. Em Minas Gerais a polarizao

    foi entre um poltico tradicional, mas rebelde, e outro de basepopulista, que contava com o apoio do governo do Estado. Entreos dois, foi punida a rebeldia. A vitria macia do PMDB foi, em suamaior parte, a vitria do governo federal. claro que este o gover-no da Repblica Nova; mas, em muitos estados, o peemedebista dehoje o pedessista de ontem, e o governo sempre governo.

    Sem pretender esgotar a complexidade e variedade dos resul-tados eleitorais, e pensando no s nas eleies de governadores,mas tambm nas proporcionais, possvel dar uma lista dos atri-butos necessrios para que um candidato fosse eleito. A primeira que ele conseguisse, de alguma forma, furar a barreira do ano-nimato e se transformasse em um midia event, uma figura dos meiosde comunicao de massas. claro que dinheiro conta para isto,

    mas radialistas e comentaristas de televiso foram eleitos semmaiores dificuldades, assim como candidatos de pequenos parti-dos que souberam utilizar bem os horrios gratuitos de propa-ganda eleitoral. O segundo tipo de candidato bem votado foi oque tinha urna base institucional bem estruturada: a poltica civil,um grupo religioso organizado. Alguns candidatos conseguiramboa votao ao se identificarem com um ou dois pontos de gran-

    de apelo ideolgico para a classe mdia, como os candidatos dapena de morte do Rio de Janeiro e de So Paulo. Acima de tudo,no entanto, foram eleitos candidatos que, pela posio atual ou

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    passada na mquina administrativa de seu estado ou municpio,conseguiram construir no passado redes de lealdades pessoais

    que agora se pagam, ou se renovam na esperana da continuida-de. Para o eleitor que no fosse ligado aos meios de comunicaode massas, no fosse beneficirio de uma rede de favores pbli-cos, no tivesse um tema que o identificasse fortemente com umcandidato e nem tivesse um parente ou amigo concorrendo, aseleies majoritrias no chegaram a fazer muito sentido, o queexplica o grande nmero de votos em branco. As eleies de 1986

    significaram no s a derrota eleitoral dos candidatos ideolgicos eprogramticos, que tentaram basear sua campanha na problemti-ca da Assemblia Constituinte, como tambm dos partidos quepretenderam uma definio ideolgica mais clara - o Partido Soci-alista, o Partido dos Trabalhadores e os partidos comunistas.

    O que esta anlise sucinta revela que a maturidade do povo,tanto quanto sua hipottica sabedoria e bondade naturais, estolonge de proporcionar uma base slida para a constituio deuma nova ordem democrtica. Na realidade, o exemplo de ou-tros pases que lograram um sistema poltico-eleitoral estvel re-vela que a questo fundamental no a da maturidade do povo,mas a da natureza das instituies sociais, governamentais e par-tidrias existentes. Se estas instituies so bem constitudas e

    autnomas, elas conseguem traduzir as preferncias eleitorais emmandatos polticos legtimos e regimes polticos responsveis. Oproblema principal com os Estados de base neopatrimonial no que eles mantenham o povo em situao dependente e aliena-da, mas, principalmente, que todas as formas de organizao so-cial que eles geram tendem a ser dependentes do poder pblico eorientadas para a obteno de seus favores. O simples

    transbordarnento das estruturas de dominao mais tradicionais,e a criao de novas formas de organizao poltica e social, nogarante que este padro de comportamento no se v reproduzir.

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    X

    Em ltima anlise, se o Estado todo-poderoso, nada mais

    racional do que buscar seus favores e proteo. A crise atual doEstado patrimonial brasileiro que ele parece ter cada vez menoscapacidade de atender s demandas que lhe so feitas, ou os inte-resses dos grupos que dele participam ou a ele se associam. Parausar uma expresso da moda, o Estado brasileiro enfrenta o problemada ingovernabilidade do pais. levada s suas ltimas conseqncias,esta ingovernabilidade pode vir a significar o colapso do Estado

    neopatrimonial tal como o conhecemos, e a conseqente des-truio de todas as formas de dependncia que a sociedade civiltem desenvolvido em relao a ele. Esta situao limite dificil-mente se colocaria, no entanto, j que o potencial repressivo deque o Estado dispe tenderia a se manifestar muito antes que umcolapso deste tipo se materializasse. A ingovernabilidade no uma situao absoluta e extrema, mas pode se manifestar em grause formas distintas, e pases podem muito bem deslizar lentamentepela rampa inclinada do desgoverno sem maiores convulses.

    Os anos de regime militar serviram para mostrar que aingovernabilidade afeta com freqncia os regimes fortes, fecha-dos e imunes aos controles da imprensa, da opinio pblica e dospartidos polticos. O que a democratizao mostra que ela no

    basta para que a governabilidade seja instaurada. A experinciados poucos anos da Nova Repblica j mostra como algumasdecises e aes so certamente mais fceis do que outras. Deci-ses grandiosas e de grande impacto, quando possveis, so sem-pre as preferidas (veja o Plano Cruzado). Polticas setoriais e delongo prazo (reforma agrria, eliminao dos subsdios agrcolas,reforma administrativa, os prprios ajustes do Plano Cruzado),

    no outro extremo, so quase impossveis, pela paralisaoprovocada pelos interesses contrariados. Aes aparentementetcnicas, de pouca visibilidade pblica, so em princpio mais

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    fceis de serem conduzidas. Mas, freqentemente, seu carter tc-nico significa tambm que estas aes se subtraem facilmente aocontrole poltico, e so suscetveis influencia de grupos de interesseespecializados (decises sobre mercado financeiro, polticas deexportao, subsdios, poltica nuclear, incentivos fiscais etc.).

    O desenvolvimento de graus mais altos de governabilidadeem um contexto de legitimidade poltica depende, tanto quanto aconstruo de uma ordem democrtica estvel, da constituiode uma srie de instituies estveis e auto-referidas que

    intermediem, por um lado, a opinio pblica amorfa e manipulvele os interesses privados e setoriais capazes de mobiliz-la e, poroutro, o Estado. Estas instituies so necessrias no somentedo lado da sociedade civil, como os partidos polticos, os meiosde comunicao de massas, as associaes profissionais e sindicais,os grupos de interesses organizado etc., como tambm do lado doEstado, atravs da constituio de um funcionalismo pblico mo-tivado e cioso de suas responsabilidades, de um judicirio zelosode sua competncia e independncia, e assim por diante.

    de se esperar que estas novas formas de Institucionalizaosurjam e se desenvolvam no pela simples boa inteno de algu-mas pessoas, mas pela prpria lgica de interesses dos gruposenvolvidos, na medida em que eles comecem a sentir a precarie-

    dade de sua dependncia exclusiva dos favores e privilgios deum Estado neopatrimonial em crise. O resultado final deste pro-cesso, se ele for bem-sucedido, no ser, possivelmente, um Es-tado controlado pela sociedade civil, mas uma situao em queinstituies pblicas solidamente constitudas possam colocarfreios e contrapesos efetivos tanto volatilidade da opinio p-blica quanto ao abuso de poder do Estado e dos interesses priva-

    dos. A opinio pblica, os grupos de interesses e o poder polticodo Estado sero tambm essenciais neste contexto ideal, paramanter sempre em xeque as tendncias paralizadoras e conserva-

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    doras de qualquer sistema social que se institucionalize. Nestascondies, as fronteiras usuais entre pblico, privado, Es-

    tado e sociedade estaro profundamente alterados, assim comoos conceitos que hoje utilizamos para seu entendimento

    XI

    Vislumbrar a possibilidade de um encaminhamento adequa-do para os problemas polticos e institucionais do pas no o

    mesmo que afirmar que este caminho ser seguido, e nem mes-mo que ele o mais provvel. Se este caminho vier a ser efetiva-mente trilhado, existe uma srie de questes e dilemas a seremenfrentados, dois dos quais merecem uma ateno especial, e ser-viro para concluir este prefcio.

    Uma questo que se coloca com intensidade, a dos meca-nismos de incluso ou excluso dos setores hoje marginalizadosdo Brasil moderno, em relao sociedade futura que se pre-tende construir. Esta questo por vezes colocada em termos deuma oposio entre um modelo de desenvolvimento internacionali-zado, baseado no fluxo relativamente aberto de idias, pessoas emercadorias do Brasil com o resto do mundo e um modelo maisautrquico, fechado e, presumivelmente, mais autntico e nacional.

    O que d argumentos segunda posio a constatao de que odesenvolvimento do Brasil moderno tem-se caracterizado pelaexcluso de grandes setores da populao, afetando particular-mente as regies nordestinas, o interior e a populao de cor. Noseu extremo, esta posio vem acompanhada de um rechao ge-neralizado civilizao ocidental e seus valores de eficincia,racionalidade e individualidade, e sua substituio por valores

    supostamente mais autnticos de identidade tnica e cultural,afetividade e coletividade. No falta, nesta perspectiva, os quesustentam que o Brasil possui os elementos de uma civilizao

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    superior do racionalismo e materialismo ocidentais, que estariato-somente mascarada pelas manipulaes das classes dominan-

    tes e seus aliados internacionais.Quem conhece algo da histria do Brasil sabe, porm, queno possumos no passado um modelo de civilizao prprio emais autntico para o qual possamos aspirar a retornar. Desdesua criao este pais tem sido um complemento - e,freqentemente, uma imagem retorcida - dos imprios coloniaise dos centros mundiais, cujas influncias culturais e interesses

    econmicos at aqui chegaram. A busca de um passado idealiza-do, apesar de provavelmente irrealista e ilusrio em todos os ca-sos, pode fazer algum sentido em pases com um histria distintae uma cultura no ocidental identificvel. Isto no significa, evi-dentemente, que no existam especificidades culturais prpriasdo pas que no tenham valor e no possam florescer. Mas esta

    especificidade, para florescer e adquirir valor universal, h de re-sidir nas maneiras prprias com que os brasileiros iro inserir-seno mundo moderno, e no no retorno nostlgico a formas cultu-rais de um passado que no chegou a existir.

    Assinalar o beco sem sada do nacionalismo cultural no sig-nifica ignorar a gravidade dos problemas de incorporao assina-lados. O que importante frisar em relao a esta discusso so-

    bre a cultura brasileira menos a solidez das teses nacionalistas eisolacionistas - que quase inexistente - do que seu potencial decriao de formas explosivas de nacionalismo populista, em umcontexto de altos nveis de excluso social, causados por umainternacionalizao da cultura e da economia caracterizada pelouso de tecnologias complexas e em qualificaes educacionais

    cada vez mais elevadas.Esta discusso traz tona uma questo que permaneceu la-

    tente at aqui, e que no ocupa o primeiro plano no prprio livro:

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    a da dependncia do Brasil em relao aos centros do capitalismointernacional contemporneo. As chamadas teorias da depen-

    dncia, que existem de muitas formas, partem de um fato im-portante e conhecido - que pases como o Brasil se constituram,desde suas origens, como dependncias de outros centros - parachegar muitas vezes a duas concluses pelo menos paradoxais. Aprimeira a de que o peso da dependncia tal que nada podeser entendido em um pas como o nosso a no ser a partir de suainsero no contexto externo. Em sua forma mais extremada, a

    teoria da dependncia assume feio claramente paranica: pa-ses como o Brasil so uma tragdia s, e tudo isto por culpa nicae exclusiva deles. O que pretendemos mostrar, ao contrrio, que a dependncia no exclui o fato de existir uma realidade pr-pria, especfica e interna ao pas, que no se esgota nem se exaurenas relaes com os centros capitalistas mais desenvolvidos. Aoutra concluso paradoxal, que decorre da primeira, a de que

    todos os problemas poderiam ser resolvidos pela superao dasrelaes de dependncia. Mas se, de fato, a dependncia toconstitutiva, fica difcil imaginar onde o pas encontrar foras erecursos para super-la. Se, ao contrrio, entendermos que a rea-lidade de um pas com a complexidade do Brasil no se esgotanas suas relaes externas, isto nos da condies de pensar nas

    coisas que podemos fazer com nossos recursos, ter uma visomenos persecutria do que nos cerca e, a partir da, ter elementospara buscar reverter as situaes de dependncia que nos pare-am inadequadas.

    XII A concluso geral de tudo o que foi dito at aqui que oautoritarismo brasileiro, cujas bases se erguem a partir da prpriaformao inicial do Brasil como colnia portuguesa, e que evolui

    e se transforma ao longo de nossa histria, no constitui em umtrao congnito e insupervel de nossa nacionalidade, mas certamente um condicionante poderoso em relao a nosso pre-

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    _______________________3 Sou grato a Vanda Pereira Costa e Helena Maria Bousquet Bomeny pelos

    comentrios crticos a este texto.

    sente e futuro como pas. A complexidade das questes envolvi-das nesta discusso deve ser suficiente para deixar claro que, na

    realidade, o termo autoritarismo pouco mais do que umaexpresso de convenincia que utilizamos para nos referir a umahistria cheia de contradies e contra-exemplos, onde, no en-tanto, um certo padro parece predominar: o de um Estadohipertrofiado, burocratizado e ineficiente, ligado simbioticamentea uma sociedade debilitada, dependente e alienada. da supera-o deste padro histrico e de suas conseqncias que depende

    nosso futuro. E como o passado contraditrio e o futuro abertoe pronto para ser construdo, possvel ser otimista.3

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    APRESENTAO

    Poucos se surpreenderiam hoje com a afirmao de que oBrasil um pas de longa tradio autoritria. No entanto, o en-tendimento adequado dessa tradio cuja origem se prende aospadres de relacionamento havido entre o Estado e a sociedadebrasileira s comeou a ser buscado de forma maia sistemtica

    nos ltimos quinze anos, em parte pelo traumatismo causado pelasexperincias autoritrias mais recentes, e em parte tambm pelaabertura de novos horizontes intelectuais e analticos entre osestudiosos da realidade social e poltica do pas. Este livro pre-tende ser uma contribuio para esse entendimento.

    Bases do autoritarismo brasileiro deve ser entendido como um reexame

    aprofundado de So Paulo e o Estado nacional, publicado em 1975.

    1

    Algumas partes do texto de 1975 foram mantidas, outras foram pro-fundamente revistas e materiais novos foram acrescentados.2 Emgeral, esta uma obra mais declaradamente terica e conceitual, quepretende ser tambm mais abrangente e fundamentada.

    So Paulo e o Estado nacionalfoi escrito em um dos perodos deautoritarismo mais intenso da histria brasileira, enquanto que o

    atual texto foi preparado durante a experincia de relativa aber-tura poltica do Governo Figueiredo. A experincia poltica vivi-da nestes ltimos anos confirma a tese de que o entendimento davida poltica brasileira passa necessariamente pela anlise das

    _______________________

    1 Schwartzman, 1975.2 Gostaria de agradecer a assistncia inestimvel de Rosa Maria Arajo du-rante a realizao deste trabalho, assim como a inteligente reviso do textofeita por Paulo Csar Farah.

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    contradies entre o centro econmico e mais organizado da so-ciedade civil, no pas, localizado em So Paulo, e o ncleo do po-

    der central, muito mais fixado no eixo Rio de Janeiro - Braslia. Foide So Paulo que surgiram as presses sociais mais fortes contra ospoderes concentrados no Governo federal, tanto por parte de gru-pos empresariais quanto pelo movimento sindical organizado; em So Paulo, em ltima anlise, que se joga a possibilidade deconstituio de um sistema poltico mais aberto e estvel, que pos-sa dar ao processo de abertura uma base mais permanente.

    Essa constatao, embora promissora, no deve obscurecero fato de que, historicamente, a sociedade civil brasileira tem sidoincapaz de criar um sistema poltico em condies de se contra-por efetivamente ao peso avassalador do poder central oucontrabalan-lo. As razes dessa ressalva so muitas e sero exa-minadas em detalhe no livro. Uma delas, no entanto, que a opo-

    sio ao autoritarismo tende freqentemente a confundir e mis-turar dois tipos de problemas totalmente distintos, que vale apena assinalar desde logo.

    Por uma parte, est o contraste entre o Estado patrimonial,irracional, centralizador, autoritrio, e os setores da sociedade quese pretendem autnomos, descentralizadores e representantes doracionalismo privado dos grupos sociais mais organizados. Por

    outra, no entanto, est o contraste entre as ideologia liberais deno-intervencionismo, privatismo, laissez-fare, e as necessidadesineludveis de planejamento governamental e interveno doEstado na vida econmica e, social do pas.

    Ao juntar as duas dimenses em uma s, a oposio liberaldefende, muito justamente, a tese de que o Estado no se deve

    sobrepor sociedade e control-la, e de que importante que ossetores sociais mais dinmicos e dotados de recursos prprios eautonomia tenham o direito e a oportunidade de se fazer ouvir e

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    se fazer valer. Ao mesmo tempo, no entanto, essa perspectivaliberal nega a validade do planejamento social, da interveno doEstado na vida econmica, da possibilidade de definio de valo-res sociais e nacionais que sejam superiores simples agregaode interesses privatizados. Ela se confunde, assim, com a defesado status quo, com a manuteno de privilgios econmicos, como conservadorismo enfim. O reverso da medalha a defesa ex-trema do intervencionismo governamental sem considerao paracom os grupos sociais autnomos, sem mecanismos explcitos e

    eficientes de responsabilizao dos governantes em relao aosgovernados, enfim, o autoritarismo.

    O problema crucial dos Estados contemporneos de origemburocrtico-patrimonialista de como fazer a transio de umaestrutura ineficiente, pesada e embebida por um sistema de valo-res ultrapassado e conservador, para uma estrutura gil, modernae capaz de levar a efeito, finalmente, a passagem do subdesenvol-vimento e atraso ao desenvolvimento e justia. O fundamental que, nesse processo, tal sistema poltico em renovao no fiqueatado a suas bases mais arcaicas de sustentao. nem caia presado liberalismo novecentista que gerou, em outros tempos e ou-tros lugares, uma democracia que no chegamos a conhecer.

    Por razes que este trabalho trata de entender, o fato que, no

    Brasil, as ideologias polticas liberais tendem a se localizar predomi-nantemente entre grupos sociais relativamente restritos, ainda quesocial e economicamente bem postos, e sempre tiveram um conte-do social bastante reduzido. Os componentes conservadores do li-beralismo brasileiro debilitam a legitimidade de suas bandeiraslibertrias, que s adquirem maior ressonncia em perodos deautoritarismo mais exacerbado; enquanto isto, o eventual contedo

    social e reformista com que se apresentam as diversas ideologiascentralizadoras, em todo o espectro da sociedade, tende a se perdere a se esvaziar pelo seu inerente autoritarismo.

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    O equilbrio poltico implantado a partir da Repblica Velhacombinava, em certo sentido, o pior de dois mundos, o do libera-

    lismo novecentista e o do patrimonialismo burocrtico ineficientee autoritrio O encaminhamento da atual crise poltica brasileirano pode ser feito a partir de uma ressurreio desse esquema,nem pela subjugao de um de seus lados pelo outro O que opais necessita completar simultaneamente duas transies fun-damentais Do lado do Estado deixar definitivamente para trs orano patrimonial ineficiente burocratizado e autoritrio, em bene-

    fcio de uma estrutura mais moderna eficiente aberta a informa-es e inovaes, e consciente de suas responsabilidades de con-duo da sociedade brasileira. Do lado da sociedade deixar paratrs o liberalismo esclerosado, a identificao falaciosa entre liber-dade e privatismo, dando condies para o desenvolvimento e im-plantao de um sistema representativo mais real e diversificado.

    Qual a possibilidade de que essas transformaes ocorram? difcil dizer, mas as condies para sua ocorrncia so bastanteclaras: necessrio que as duas transformaes se processem. OEstado necessita de novos, ativos e vigorosos interlocutores nasociedade para que possa efetivamente se modernizar e conduziro pas com plenitude; e a sociedade necessita de um Estado efici-ente, capaz de desenvolver uma poltica social de interesse co-

    mum a longo prazo. Do lado do Estado, necessrio que eleassuma cada vez mais sua responsabilidade ante a sociedade, tan-to no sentido de quem responde e d satisfao de seus atos,como no sentido de quem assume a responsabilidade e se imbuida funo social que deve desempenhar. Do lado da sociedade, necessrio que os grupos sociais mais articulados se compene-trem de que o Estado e o planejamento da vida social e econmi-

    ca esto aqui para ficar, que no h mais lugar no mundo de hojepara a simples prevalncia dos interesses privados sobre os inte-resses coletivos, e que por isso, em ltima anlise, seus melhores

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    interesses consistem em aceitar a existncia de um Estado nacio-nal que deve ser conduzido a nveis cada vez mais altos de bom

    funcionamento e acatamento explcito das necessidades sociais.Deve ser possvel, tarde ou cedo, chegar a esse novo pacto socialentre Estado e sociedade, quando no seja pelo fato de que no pare-cem existir outras alternativas exceto o autoritarismo puro e simples.

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    Captulo 1DA TEORIA POLTICA REALIDADEHISTRICA

    1. A Crise das Teorias de Representao

    2. Um Marco de Referncia: Capitalismo Ocidental ePatrimonialismo3. A Perspectiva Politica: Cooptao e Representao4. A Poltica Como Fenmeno Espacial: as QuatroRegies5. Concluso: da Teoria Poltica Realidade Histrica

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    1. A Crise das Teorias de Representao

    O problema terico inicial deste livro clssico e bem conheci-do: por que os acontecimentos polticos e partidrios em um pascomo o Brasil no podem ser facilmente compreendidos e previstosem funo de um modelo de polarizao e conflito entre ricos epobres, burgueses e proletrios, exploradores e explorados, agricul-tura e indstria, financistas e industriais? Os fenmenos polticosparecem ser transparentes e facilmente inteligveis quando podemos

    estabelecer uma conexo entre cada instituio e cada evento polti-co, por uma parte, e um determinado grupo de interesse, setor ouclasse social por outra. a maioria dos esforos de anlise poltica, emtodos os pases, tende a buscar essas conexes. O conhecido debateentre pluralistas e elitistas na cincia poltica norte-americana,por exemplo, tem a ver com a pergunta de se os grupos de interesseso muitos ou poucos, concentrados ou dispersos, ad hocou perma-

    nentes; mas no coloca em dvida o fato de que a poltica sempreuma questo de agregao de interesses.1

    Apesar dessa tendncia, a sociologia poltica j demonstrou,empiricamente e de forma bastante irrefutvel, que as pessoas demodo geral no se interessam muito por poltica e que as eleiestendem a ser disputadas em torno de temas pouco relacionados

    com interesses explicitamente definidos ou em funo de divi-ses quase-ideolgicas do passado.2 Essa situao, verificada nos

    _______________________1 As principais referencias a esta discusso incluem Dahl, R ., 1968, Polsby, N.,

    1963 e Bachrach, P., 1967.2 So clssicas aqui as contribuies dos grupos de Michigan e Columbia,

    cujas obras seminais so Campbell, A., Converse, P., Miller Warren L. e Stokes,

    D, 1960; e Berelson, Bernard, Lazarsfeld, Paul F., e McPhee, W. N., 1956. Sobrea forma em que o pblico percebe os fenmenos polticos, cf. Converse, P.,1964. Sobre a autonomia dos temas polticos e sua persistncia atravs do tempo,

    ver Pomper, G., 1967.

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    sistemas polticos das chamadas democracias ocidentais, torna-se ainda mais aguda quando a mesma perspectiva aplicada a um

    contexto como o brasileiro. Aps procurar em vo pelos grupospolticos estruturados. que deveriam surgir e acompanhar o desen-volvimento da economia e sociedade brasileira um pesquisadorintrigado nota que em sua pesquisa

    os achados mais sugestivos... so aqueles relacionados comas relaes indeterminadas entre o desenvolvimento e

    associabilidade, achados que na realidade envolvem a con-firmao de uma hiptese nula. Primeiro, a transformaoestrutural da sociedade brasileira no conduziu formaode grupos de interesse autnomos, agressivos e com altograu de interao, articulando demandas alternativas e com-petitivas.... Segundo, essas mudanas no parecem ter pro-duzido coalizes multifacticas de associaes ao longo delinhas exclusivas e totalmente antagonsticas. O caso brasi-leiro coloca em questo os supostos ortodoxos das relaesentre industrializao e conflito polarizado de classes. Ter-ceiro, apesar da evidncia conclusiva a respeito do aumentoda associabilidade, no existe evidncia de um aumento dainfluncia desses grupos no processo de tomada de deci-ses em nvel governamental. Em resumo, a predominn-cia de grupos de presso pode no ser um componenteinevitvel da modernizao, tal como geralmente se pensa.3

    Isso no significa, evidentemente, que a atividade poltica sed em um mundo idlico onde no existem interesses em jogo.Acontece, porm, que os interesses manifestados na esfera pol-tica no so facilmente identificveis com interesses econmicosbem determinados, como normalmente se pensa. O processo

    _______________________3 Schmitter, P. C., 1971; traduzido do original ingls. Os grifos so meus.

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    poltico, como este livro pretende evidenciar, tem objetivos emecanismos prprios que, embora no sejam independentes e

    isolados dos processos que se desenvolvem na esfera produtiva,s podem ser entendidos em sua especificidade.

    Se as explicaes usuais, de tipo economicista, no conse-guem explicar suficientemente o que ocorre no nvel poltico,por que o antigo modelo de representao de grupos de interes-se permanece vigente? Podemos dizer, numa primeira aproxima-o, que se trata de um modelo aparentemente to claro, to con-

    vincente, que permanece como um pano de fundo ao qual sereferem todos os novos desenvolvimentos tericos. Mas poss-vel mostrar tambm que, mais profundamente, isso se explicapelas origens histricas do pensamento social e poltico contem-porneos, baseado, praticamente todo ele, na experincia intelec-tual e poltica particular da Europa Ocidental, posterior, pelo

    menos, Revoluo Francesa.4

    As anlises dos problemas decomportamento poltico, nos chamados pases em desenvolvi-mento, no tm geralmente o mesmo grau de sofisticaoemprica e metodolgica tipificada pelas escolas de Columbia e

    _______________________4 neste sentido que Wanderley Guilherme dos Santos fala de um paradigma

    clssico da anlise poltica e social do Brasil, melhor tipificado, segundo ele,por Celso Furtado, 1965. A crtica de Wanderley Guilherme dos Santos consiste,essencialmente, em notar que esse paradigma no toma em considerao quea dinmica da competio poltica entre partidos, e faces dentro de partidos,no um simples bal metafrico do que ocorre na economia. Ao contrrio,as instituies polticas moldam as maneiras pelas quais formas econmicas esociais de competio se traduzem em alternativas de polticas que tm impactodefinido sobre o desenvolvimento ulterior da estrutura social. (Cf. Santos,1979.) O que diferencia iriais profundamente seu estudo do nosso que ele se

    preocupa com as estruturas polticas engendradas pelo prprio processo decompetio, e no com estruturas histricas e de mais longo prazo, queantecedem o prprio processo de competio em um momento dado. As duasperspectivas, evidentemente, no se excluem.

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    Michigan tendendo a cair em dois grandes grupos, um caracteri-zado pelo tema da cultura poltica, outro pelo tema da moder-

    nizao. Em trabalho posterior, por exemplo, Phillipe Schmittertrata de entender o sistema poltico brasileiro em termos deautoritarismo, propondo uma conexo entre um processo dedesenvolvimento retardado em um contexto dependente, por umlado, e um sistema poltico autoritrio permanente, por outro.Embora suas concluses se assemelhem s minhas no que serefere importncia atribuida ao papel ativo do Estado na vida

    poltica (die verselbstandigten Machte der Exekutivegewalt, conformesua referncia a Marx), existem trs diferenas bem importantes.Primeiro, a identificao feita por Schmitter entre um elementoestrutural - o peso especfico do Estado em uma sociedade - euma caracterstica de comportamento e clima poltico - oautoritarismo - conduz facilmente velha porm nem sempreverdadeira noo liberal de que regimes no autoritrios so somen-te aqueles em que o Estado no ativo na vida social e econmi-ca, contendo, alm disso, certo rano de explicao atravs devariveis de cultura poltica, a que me refiro mais adiante. Se-gundo, este autor no toma em considerao a diviso entre osaspectos poltico e econmico do desenvolvimento, com suasdiferenas regionais, que so centrais nesta anlise. Finalmente, ele

    sugere que esse tipo de regime inerentemente incapaz de gerardesenvolvimento, j que se orienta para a manuteno do statusquo em contextos de subdesenvolvimento e aspiraes crescentes,o que a experincia brasileira, no entanto, assim como a de vriosoutros pases de regime autoritrio, desmente com clareza.5

    Por sua vez, os tericos da cultura poltica tendem a buscarnas particularidades de um determinado sistema poltico a explica-

    _______________________5 Schmitter, P. C., 1972.

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    o das diferenas entre a realidade e o modelo de representaode interesses. Essas peculiaridades so explicadas em termos de

    uma ampla gama de teorias psicolgicas, antropolgicas e psica-nalticas. Por exemplo, o trabalho clssico de Banfield sobre aSiclia explica a ausncia de desenvolvimento naquela regiopelo amoralismo familista; Lucien Pye recorre aos complexosde inferioridade dos birmaneses para explicar por que noimplementam melhor seus interesses; McClelland fala na falta deum need for achievement, e assim por diante.6

    O resultado final tende a ser um tipo de explicao que re-corre unicidade ou especificidade da cultura poltica de umdeterminado pas, deixando pouco espao, assim, para explica-es mais estruturais. Uma das principais dificuldades dessa abor-dagem que ela leva noo bastante desconfortvel de que asnaes so presas de sua cultura poltica e no tenderiam, assim,

    a evoluir para um estgio em que a vida poltica pudesse ser vivi-da e compreendida de forma apropriada. Unia maneira de re-solver esse problema recorrer a teorias de desenvolvimentopoltico ou, mais geralmente, de modernizao social. aplicadasao Brasil, essas teorias tendem a afirmar que o pas ainda nodesenvolveu condies adequadas para o surgimento de fortesgrupos de interesse, que emergiriam quando aumentassem os

    nveis de diferenciao institucional, valores modernos etc.7

    _______________________6 As referncias incluem Banfield, E., 1958; Pye, L., 1962; McClelland, D. C.,

    1961, Almond, G. A., e Verba, S., 1963; Mannoni, O,, 1956, e outros. O exemplomais importante para o Brasil , certamente, a obra de Oliveira Viana, quecontm uma das primeiras e mais penetrantes anlises da realidade polticabrasileira, em contraposio sua fachada institucional. Suas explicaes, no

    entanto, caem no mbito elas anlises de cultura poltica, com sobretons racistase pseudo antropolgicos, hoje fora de uso. Cf. Viana, Oliveira, 1949, e id., s.d.7 Os textos evolucionistas mais conhecidos nessa linha so, provavelmente, os

    de Almond, G. A., Powell, B., 1966, e Lerner, Daniel, 1958.

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    Um dos principais problemas dos modelos de modernizao a qualidade de suas predies. Em moda no principio da dcada

    de 1960, elas perderam muito do seu prestgio com a estagnaoeconmica da maioria dos pases do mundo subdesenvolvido e aproliferao de regimes polticos no-representativos. GinoGermani, por exemplo,8 havia previsto um processo contnuo eirreversvel de expanso da participao poltica na Amrica Latinaque, obviamente, no ocorreu. Mas existe tambm um problemaconceitual importante: essas teorias no conseguem explicar o

    que existe antes da ocorrncia da modernizao, j que todos osconceitos usados tendem a ser de tipo negativo: indiferenciao,difusidade de papis, falta de conscincia, poucainstitucionalizao etc.

    importante notar que essa maneira de pensar existe tantonas chamadas teorias burguesas de desenvolvimento poltico

    quanto nas anlises polticas ditas marxistas, que utilizam aexpresso classe em si para caracterizar uma classe que aindano est consciente de seus verdadeiros interesses. Em ambos oscasos, existe uma noo mais ou menos explcita de que a passa-gem do estgio inicial (tradicional, primitivo, em si) para o final(moderno, para si) se faz atravs da industrializao (ou acumulaocapitalista). Um exemplo recente da esquerda dessa vertente

    um estudo da classe operria brasileira, que supe ser ela a van-guarda do desenvolvimento social, econmico e poltico do pas:

    o proletariado, objetivamente, este estrato dinmico, oque no significa que, em sua maioria, j esteja conscientedesta sua funo na sociedade. Encontra-se, como apon-tamos atrs, em processo de alcanar o conhecimento desta

    condio, pelos fatores da ao intrnseca e extrnseca,_______________________

    8 Germani, G., 1962.

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    fundamentalmente pelos ltimos, o que pressupe aindauma longa caminhada na direo da total conscientizao.9

    Mais recentemente, essas teorias de desenvolvimento prede-terminado passaram a admitir, mesmo em sua vertente liberal, anoo de um perodo interveniente de autoritarismo poltico nocaminho entre tradicionalismo e modernidade. Mas, em geral, ambasas vertentes tm dificuldade em explicar a embaraosa persistnciae o inesperado comportamento desses regimes intervenientes10

    Talvez a mais importante e bvia razo para o fracasso dosmodelos interpretativos mais correntes que, se o Brasil no certamente um pas desenvolvido e industrializado como a Eu-ropa Ocidental ou os Estados Unidos, tambm tem pouco a vercom uma sociedade tradicional ou feudal. O pas foi, afinalde contas, colonizado por um dos principais centros de podercolonial de seu tempo e, desde sua independncia, em 1822, man-

    teve contatos intensos com os centros econmicos e culturaismais ativos do Ocidente, tais como Inglaterra, Frana, Alemanhae Estados Unidos. A populao nativa encontrada pelos portugue-ses era bastante rarefeita e foi eficazmente eliminada, tornando oBrasil radicalmente distinto de outros pases latino-americanosem que a administrao colonial foi superimposta a uma sociedadenativa tradicional, densa e bem organizada. Houve, certamente, a

    _______________________9 Vinhas, M., 1970, p. 271.10 Um dos benefcios no planejados dos regimes fortes e autoritrios nos

    pases subdesenvolvidos tem sido um crescente esforo da teoria poltica paraentend-los. Referncias sobre esses novos desenvolvimentos tericos incluemos trabalhos de Barrington Moore, de Juan Linz, sobre a Espanha, os de Germani

    e Organski sobre o fascismo italiano, assim como o conceito de representaono-democrtica sugerido por David Apter. Cf. Moore, B., 1966; Linz, Juan,1964; Apter, D. E., 1968; Organski, A. F., 1969. Ver tambm o excelente trabalhode Schmitter, P. C., 1974.

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    De acordo com essa perspectiva as elites so culturalmentealienadas, e o sistema poltico criado no em funo dos inte-

    resses e preferncias de grupos sociais determinados, mas emfuno de modelos estrangeiros mais ou menos prestigiosos Aconseqncia, de acordo com Oliveira Viana era no somente afalta de correspondncia entre as estruturas informais de poder eo sistema formal de ordenao jurdica, mas tambm uma gran-de discrepncia entre um modelo de organizao poltica quepressupe altos nveis de agregao de interesses e uma popula-

    o preocupada com temas nacionais por uma parte, e uma cul-tura poltica em que os horizontes dificilmente ultrapassavam onvel local e os interesses mais imediatos, por outra.

    A prpria noo de que os grupos polticos devem represen-tar interesses tende a ser vista como imprpria pela elite brasilei-ra. Ao contrrio, sempre prevaleceu a idia de que partidos e

    polticos devem se colocar acima dos interesses e ter sempreem mira os objetivos da nao como um todo. Um questionrioaplicado aos participantes da IV Conveno Nacional da Ordemdos Advogados do Brasil em 1970 d uma boa indicao destefato. Quando perguntados sobre se os partidos polticos brasilei-ros deveriam representar diferentes grupos de interesse ou per-manecer acima de interesses privados, a grande maioria optou

    pela ltima alternativa, uma atitude que parecia ser to mais fortequanto maior fosse a idade do entrevistado:12

    _______________________12 Agradeo a Lcia Gomes Klein pelo uso desses dados. O relatrio global

    da pesquisa est em Lima ir., O. B. de, Gomes Klein, L. M., Martins, A. Soares,1970.

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    A existncia to difundida dessa ideologia do interesse geralfaz com que exista uma diferena profunda entre os nveis mani-festo e efetivo da vida poltica, em contraste com o que ocorre,

    por exemplo, nos EUA, onde a organizao dos grupos de inte-resse os mais variados na instituio do lobby considerada nor-mal e legtima. Mas seria equivocado supor que se trata de umsimples fenmeno ideolgico, uma superfcie sob a qual nossarealidade poltica no se diferenciaria das demais, pois de fato, noBrasil, geralmente difcil estabelecer conexes precisas e bemdeterminadas entre governantes e decises governamentais, de

    um lado, e classes sociais e grupos de interesses especficos, deoutro. No h dvida, certamente, de que nenhum governo bra-sileiro se props a alterar de forma realmente drstica o sistemade propriedade da terra; mas isso no significa, necessariamente,que esses governos tenham sido controlados pela elite rural,cuja fora poltica tem, na realidade, decrescido de forma cons-tante e progressiva nos ltimos 40 ou 50 anos. Um outro exem-plo fato que o pas tem atravessado perodos de industrializa-o intensa, com Vargas depois de 1937, com Juscelino Kubitschekdepois de 1955, e novamente aps 1964. Ningum diria, no entanto,

    Jovem MeiaIdade

    MaisVelhos

    Total

    Acreditam que os partidos devemrepresentar grupos de interesse

    23,5% 17,8% 0,0% 17,6%

    Acreditam que os partidos devempermanecer acima de interessesprivados

    73,5% 82,2% 91,6% 80,4%

    No sabem/ no respondem 3,0% 0,0% 8,4% 2,0%TOTAL (100%) (34) (56) (12) (102)

    Quadro 1: Atitudes de Advogados Brasileiros em Relao aos PartidosPolticos

    Faixa de idade

    Fonte: ver nota 12

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    que estes tenham sido governos dominados ou controlados pelaburguesia industrial.13 Em um terceiro exemplo, setores militaressempre tiveram grande participao na vida poltica brasileira, mas astentativas de estabelecer um vnculo entre essa participao militar e asclasses mdias nunca passaram de um esforo pouco compensadorpara explicar a falta de correspondncia entre a instituio militar egrupos de interesse scio-econmicos claramente definidos.

    Virgnio Santa Rosa (1933) foi talvez o primeiro a falar daorigem dos militares, no caso os tenentes, nas classes mdias.

    Essa idia, mais tarde retomada por San Tiago Dantas (1949) eNlson Werneck Sodr (1949), passa da em diante a fazer partedo folclore das cincias sociais brasileiras, uma vez que os estudosempricos mais aprofundados mostram como ela tem pouco aver com a realidade, e nenhum valor terico ou explicativo.14

    Impressionante e muito pouco compreendido tambm o

    fato de o principal Estado da Federao brasileira, So Paulo,nunca ter desempenhado um papel poltico correspondente sua

    _______________________13 Na verdade, os esforos no sentido de ajustar a realidade teoria tm levado

    a afirmaes desse tipo. Por exemplo, em sua anlise da Revoluo de 1930,que discutiremos mais adiante, Octvio Ianni afirma que a revoluo de 30, adespeito de no ter sido conduzida nem alimentada preponderantemente pelas

    burguesias industrial e financeira nascentes, nem pelo proletariado incipiente,deve ser interpretada como um momento super-estrutural da acumulaoprimitiva, que funda a industrializao posterior (Cf Ianni, O. 1965 p. 135-6).Em outras palavras ela foi, objetivamente (o que significa, na realidade, deacordo com a subjetividade do analista). uma revoluo burguesa, j que, ex postfacto, ela conduziu industrializao. Este tipo de interpretao dispensariaqualquer esforo para identificar, empiricamente, quem conduziu e alimentouo movimento de 30, ainda que saibamos que na-o foi nenhum dos atores sociaisreferidos acima.

    14 Para a defesa da teoria das classes mdias, ver ainda Nun, J., 1965. Para umaviso muito mais aprofundada, ver ODonnell, G., 1972, Campos Coelho, E.,1976, Carvalho. J. M., 1977, e Costa Barros, A. 5., 1978. Ver tambm Hunting-ton, S. S., 1957.

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    importncia econmica e demogrfica no contexto nacional. SoPaulo, desde o inicio do sculo XX, tem sido o setor maior, mais

    rico, mais industrializado e moderno do pas. Existe ampla evi-dncia, no entanto, de que esse desenvolvimento social e econ-mico progressivo tem sido acompanhado de relativa debilidadepoltica. Um indicador disso o tamanho reduzido dos partidospolticos nacionais (UDN, PSD, PTB) no Estado de So Paulodurante o perodo 1945-64; essa situao ainda corroboradapelo fato de que, desde 1930, somente o frustrado Governo de

    Jnio Quadros se originou naquele Estado. A Repblica Velha,at 1930, geralmente considerada como o perodo em que aoligarquia poltica de So Paulo dividiu com a de Minas Gerais ocontrole do sistema poltico nacional. Mas, como veremos maisadiante, pareceria que, mesmo nesse perodo, a preeminncia de SoPaulo era muito menor do que seu peso econmico sugeriria.

    Estudiosos do sistema poltico brasileiro que trabalham como modelo de representao de classes ou de grupos tm, em geral,dificuldade em reconhecer ou entender essa surpreendente fragilida-de poltica do centro econmico do pas. Um dos principais estudio-sos dos movimentos populistas no Brasil, Francisco Weffort, depoisde dizer que evidente que as condies paulistas so especificasde uma grande cidade industrial que ocupa posio nica no Brasil,

    afirma que, exatamente por ser uma metrpole, ela se constitui emum modelo para a anlise da poltica de massas no Brasil. 15 Oautor parece no considerar o fato de que So Paulo representa nopas um caso nico e atpico de industrializao e urbaniza o si-multneas, o que afeta sua utilidade como modelo para o restodo Brasil. No se trata aqui de um simples equvoco, mas de umadificuldade conceitual de corrente do modelo analtico implcito, que

    _______________________15 Weffort, F. C., 1965.

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    supe uma identidade entre cresci mento econmico -urbanizao -industrializao - participao poltica. Essa identidade fica ainda mais

    transparente no trecho em que Paul Singer assemelha o crescimentode Belo Horizonte, um caso extremo de urbanizao sem industria-lizao, com o de So Paulo:

    Belo Horizonte cresceu a uma taxa apenas pouco inferior [a SoPaulo] - 6,8% - que revela o considervel impulso tomado pela suaindustrializao.16

    Mais adiante, tratando de explicar como So Paulo continuoucrescendo, ao passo que a taxa de industrializao diminuiu, dizque o crescimento da indstria acarreta forte expanso do setortercirio da economia. O modelo terico implcito dificulta a per-cepo do fato, por outra parte bvio, de que pode haver urbaniza-o e terciarizao sem industrializao; e que Belo Horizonte cres-ceu por razes administrativas, polticas e sociais, diante das quais

    a indstria uma atividade de importncia secundria e subsidi-ria. Quando no possvel assemelhar So Paulo ao resto do pas,surge muitas vezes a tendncia de consider-lo como um casodesviante no quadro nacional; mas isso certamente problem-tico quando se trata do prprio centro da economia nacional.

    2. Um Marco de Referncia: Capitalismo Ocidental ePatrimonialismo

    No restante deste livro, os problemas discutidos at aqui serotratados em dois nveis. Um estrutural, e tem a ver com a maneira

    _______________________

    16 Singer, P., 1968. Os grifos so meus. A