BASTOS, R. J. M. Esboço de Uma Teoria Da Música. Para Além de Uma Antropologia Sem Música e de...

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BASTOS, R. J. M. Esboço de Uma Teoria Da Música. Para Além de Uma Antropologia Sem Música e de Uma Musicologia Sem Homem

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  • Esboo de uma Teoria da Msica : Para alm de uma Antropologia sem Msica e de uma

    Musicologia sem Homem 1

    Rafael Jos de Menezes Bastos Universidade Federal de Santa Catarina

    Prembulo

    Os nossos esperam os vossos2.

    Se os musiclogos ignoram o povo, os antroplogos ignoram o som. (Feld ms.)

    O primeiro contexto da presente discusso o das teorias elaboradas nos ltimos cerca de cem anos pela Etnomusicologia sobre:

    1. a definio de seu prprio campo; e 2. a da msica como categoria objeto de seu conhecimento. Ele aqui comparecer, entretanto, apenas como pano de fundo. Minha

    inteno concentrar -me nas dcadas de 50 e 60 deste sculo. A ocorreram fatos fundamentais na direo da conformao da disciplina, tipicamente nos Estados Unidos:

    a. O paulatino abandono da expresso Musicologia Comparada como nome da rea de conhecimento;

    b. a correspondente afirmao de seu atual nome, Etnomusicologia, inicialmente grafado com hfen (Etno-Musicologia );

    c. a criao em 1955 da Society for Ethnomusicology ; sucessora da fugaz (na dcada de 30) American Society for Comparative Musicology ;

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Publicado originalm ente em MENEZES BASTOS, Rafael. Esboo de uma Teoria da Msica: Para Alm de uma Antropologia Sem Msica e de uma Musicologia Sem Homem. in Anurio Antropolgico/1993, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. pp. 9-73 2 Escrito num ossrio do Cemitrio da Quinta dos Lzaros, na Bahia. Joselina de Menezes Bastos, minha me, constantemente usava este dito como apontamento crtico quilo tudo que lhe parecia veleidade modernista.

  • ACENO, Vol. 1, N. 1, p. 49-101. Jan. a Jul. de 2014.!

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    d. a cristalizao da comunidade cientfica etnomusicgica. Isto se expressa especialmente pela publicao, em 1964 e arredores, de alguns clssicos, entre os quais The Anthropology of Music (Merriam , 1964).

    A reduo cronolgica e nacional em considerao no redundar em

    prejuzo de uma viso global da rea. Pelo contrrio, as referidas dcadas norte-americanas representam o projeto etnomusicolgico como um todo: reafirmam seus germes originais de pensamento, assumem por completo seu dilema e apontam para deslocamentos na disciplina, previsveis em suas origens.

    Includo neste contexto, o exame localiza-se tambm no contexto geral - atinente s questes I e 2 acima - das diversas outras musicologias, isto , Musicologia Histrica, Sociologia e Psicologia da Msica, Esttica e Folclore Musicais. Isto ser ensaiado - de maneira modesta, entretanto - atravs da anlise de alguns autores das referidas reas, sobretudo europeus. Aqui tambm as dcadas de 50 e 60 merecero enfoque central, opo que fiz por razes semelhantes s expostas para o caso da Etnomusicologia.

    Finalmente, a presente discusso tambm trabalha os nexos da Antro pologia com a msica e a Etnomusicologia. O clebre dilema etnomusicolgico (Merriam , 1969: 213) no uma construo exclusivamente etnomusicolgica. Tal dilema, congnito nesta rea de estudos, estabelece a msica como constituda por dois planos de abordagem: o dos sons (ou msica ) e o dos comportamentos (ou cultura ). O primeiro mereceria uma anlise musicolgica , sendo que o segundo exigiria um exame antropolgico (conforme as expresses de Merriam, 1969: 2 13). Entre estes dois planos, as relaes seriam de determinao do primeiro pelo segundo, o que porm nunca se explicita claramente seno em termos de um vago mecanicismo projetivo do comportamento sobre o som. Tal postura nunca mereceu crtica antropolgi ca, o que lhe concede legitimidade na disciplina, mesmo que por omisso.

    Esta legitimidade no se esgota, porm, no plano da omisso crtica. Ela pode tambm ser rastreada pelo exame de atitudes usuais com relao msica - enquanto objeto de estudo -, vigentes na cultura antropolgica, sobretudo em sua tradio oral. Entre estas atitudes, registro a da reduo da msica - especificamente, do som segundo Merriam - ao sistema de notao da Msica Ocidental. Tal reduo estaria na base da afirmao de que o estudo da m sica (de suas tecnicalidades) seria inacessvel ao antroplogo, constituindo algo de especfico, particular, oposto assim ao geral (cultura), que seria o cerne desta Antropologia Sem Msica com relao Musicologia Sem Homem 3.

    A atitude referida no t pica apenas do conjunto das relaes vigentes entre a Antropologia e a Etnomusicologia, reproduzindo-se globalmente nos campos intersticiais das Cincias Humanas com as respectivas musicologias. Por exemplo, entre a Sociologia e a Sociologia da Msica; entre a Histria e a Musicologia Histrica.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3. A forma portugusa geral tem sua matriz no verbo latino generare, que tem como sentidos prprios engendrar, gerar, dar o ser ( da, genitor ). Seus sentidos figurados so: produzir, criar, compor (da, general de patente militar).

  • MENEZES BASTOS, Rafael Jos de. Esboo de uma teoria da Msica.

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    Assim contextualizada, a presente discusso intenciona uma reflexo sobre a msica, suas disciplinas cientficas (aqui chamadas de musicologias) - com nfase na Etnomusicologia - e suas vizinhas da rea das Cincias Humanas, a Antropologia centralmente. Esta reflexo ser de escopo antropolgico pelo estranhamento que procurar produzir no sentido da construo de todos esses alguns - s vezes, ns - como outros. Em ltima instncia, ambiciono pensar sobre a msica no pensamento Ocidental, toma- das as musicologias - a cincia, pois - como instante privilegiado deste. Tal o exerccio que farei, na direo tanto da maior navegabilidade no mundo da msica Kamayur quanto do desnudamento do dilema etnomusicolgico. Esse dilema, com todas as suas ambigidades - o terreno por excelncia, assim, para a manipulao -, apenas a realizao regional etnomusicolgica daquilo que denomino de paradoxo musicolgico. Um paradoxo a inverso de uma ideologia, operando com relao a esta a mudana de sinal4.

    Os nativos ocidentais, como quaisquer outros nativos, so capazes de operacionalizar, com alto grau de consistncia, a interface da msica com os outros sistemas da vida scio-cultural. Quer dizer, o seu contexto, expresso pelo universo de seus usos. Desta maneira, colam, por exemplo, a Marcha Fnebre s vestes negras, aos corpos constritos, s lgrimas, flores, tudo reunindo na direo da composio do evento enterro . O conjunto destas operaes dominado pela verbalizao de normas conscientes (por exemplo: "no enterro, as msicas devem ser tristes"). Estas normas so ad hoc com relao a cada evento ou domnio, constituindo uma ideologia ou senso comum em toda e qualquer sociedade.

    No campo cientfico, porm - no das musicologias -, essa fluncia problemtica, esterilizando -se nas dificuldades de evidenciao das regras de conjuno (contextualizao) da msica com os outros sistemas e vice - versa. Estas regras, do terreno das representaes coletivas, so inconscientes. Ademais, sendo de contextualizao - de encadeamento sintagmtico, pois -, necessariamente atuam tambm no plano dos paradigmas componentes e atravessam domnios. Eis a a essncia do dilema etnomusicolgico: como reduzir a expresso da msic a (o som) - sua fonologia e gramtica - a seu contexto (o comportamento ) e vice -versa? Afinal, a Marcha Fnebre tambm pode ocorrer numa laica aula de Histria da Msica ou num brilhante dia de vero na casa de um amante nada funreo de Chopin. A que a Marcha Fnebre , ento, que pode estar junto com textos to diversos?

    A busca da soluo deste dilema tem sido realizada nestes cerca de cem anos de Etnomusicologia basicamente no mesmo eixo em que ele viceja: no da interface contextuaI. Parte-se aqui da crena na determinao da expresso pelo contexto musical e, correspondentemente, da descrena na pertinncia mesma de um plano de conte do desta linguagem. Tem-se procurado, assim, no mbito de uma Pragmtica Music al e, desta maneira, em termos contextuais da msica,

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 A palavra paradoxo tem origem grega: o sufixo par (que d a idia de contraste ) mais o nome dxos (aparncia, senso comum). Um paradoxo, pois, inverte uma ideologia, no sentido de falsa concincia (Mannheim 1950) ou do portugues mentira (do latim, mentiri ), algo que de to mental falso, no sabendo pois a real, embora o imite e finja.

  • ACENO, Vol. 1, N. 1, p. 49-101. Jan. a Jul. de 2014.!

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    a resoluo das questes de ordem fonolgico -gramaticai desta linguagem e de sua interface contextual, esta admitida como estruturante do som. Isto caracteriza, em essncia, no somente a abordagem etnomusicolgica mas, em bloco, o conjunto das musicologias conforme procurarei mostrar na segunda parte deste texto.

    O que se pode assim verificar como tendncia central da Etnomusicologia que a busca de equacionamento da problemtica da interface contextual da msica tem sido feita, em todos esses anos, em termos eles mesmos contextuais. Paralelamente a isto, tem-se cedido lugar, na grande maioria das vezes, negao de semanticidade msica, que assim decretada como se nada "enviando". Isto est agudamenta consignado na epgrafe a este texto. O que faz ela? Congela a linguagem musical (minimizada ao som) na sensorialidade pura, desapropriando-a de toda inteligibilidade. Isto constitui um absurdo, lugar de nascimento das tautologias que dominam as elaboraes sobre a questo do sentido musical feitas de dentro das Cincias Humanas e de suas satelizadas musicologias . Por outro lado, na repblica tico -espartana de Plato (segundo Adorno, conforme adiante), isto aponta relaes de poder entre entendedores e sentidores, vitria de Pirro dos primeiros sobre os outros.

    Superar o paradoxo musicolgico significa superar suas duas dobras: a de sinal positivo, constituda pelo senso comum das normas conscientes e ad hoc de contextualizao; tanto quanto a de sinal negativo, de paralisia quanto a descoberta das correspondentes regras inconscientes.

    Somente o projeto de uma Semntica Musical pode levar isto a termo. Este projeto, recortando o que sentido o que contexto, parte da pertinncia e validade de um plano de contedo musical, codificado no de expresso. Assim procedendo, recompe a integralidade da msica como linguagem, o que sua condenao ao contexto - to bem traduzida pela minimizao sonora - lhe extirpou.

    Uma das caractersticas fundamentais da linguagem, sem a qual ela no existe, e exatamente a da escolha com relao ao contexto. No projeto, pois, de uma Semnt ica Musical, est o aceno que estes fins de sculo e milnio fazem na direo do equacionamento c ientfico adequado da msica. Como o de qualquer Semntica, porm, este no um intento fcil, da a dissecao que farei de sua problemtica, que por no ser ingnua parte daquela que considero uma das aprendizagens mais fundamentais da Hist ria da Antropologia: " A msica social no s por seu contedo, mas tambm em sua forma "5. Este pensamento, na base do estudo que fiz da msica dos ndios Kamayur, fundamental na direo do estranhamento do paradoxo musicolgico e, assim, do restabelecimento da linguagem musical enquanto sistema significante e de significado.

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    Para uma Antropologia da Etnomusicologia

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 Conforme Mauss (1979: 118), onde substitu prece por msica , num exerccio que considero feliz no s devido ao falo de ambos os discursos (msica e prece) serem voco-sonoros.