Bataille (Kristeva Bataille Solar Ou o Texto Culpado)

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JULIA KRISTEVA HISTORIAS DE AMOR Tradufao e introdujo Leda Tenório da Motta 0 PAZ E TERRA

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  • JU LIA K R IST EV A

    HISTORIAS DE AMOR

    Tradufao e introdujo Leda Tenrio da Motta

    0PAZ E TERRA

  • ns que nao prefira urna empregada a urna mulher sabia, para passar com ela a vida 49: o aforismo nao apenas um eco de Moliere, tambm urna recusa dos efeitos niveladores da democracia. Teria esse liberal enamorado de Italianas piedosas a paixo secretamente catlica, la Chateaubriand? O livro segundo de De l amour, seja como for, faz ouvir que o amor est em contradigo com a razo democrtica, e que a emancipado tem por dever a salvaguarda do mistrio. Cllia nao trair o pai liberal por amor de Fabrcio? Mas Stendhal precursor de Tocque- villeB0, fascinado e fiasco perante as amantes mulheres, nao mostra apenas as contradices entre um pensamento liberal e as exigencias de autonoma feminina. Ele exprime, mais simples e mais intimamente, a ertica de um homem que procura no amor um valor refgio para a sua angustia. Stendhal como pseudnimo permanece ambiguo face tambm h emancipado feminina: grandiosa ou ridicula, a emancipado feminina como um ltimo e sublime floro no discurso do ambicioso. Contudo, ela varrida pela exploso passional (Sanseverina) ou pela suave reserva inteligente (Madame de Chasteller). Nesse universo de crime que o amor stendhaliano61, as heronas anden rgime e as mes apaziguadoras ou violentas levam a melhor diante das jovens modernas, instruidas e emancipadas. Se feminismo stendhaliano h, ele est nesse culto que sugere justamente que o feminismo talvez nossa ltima religio, a da mulher com autoridade. Ela nao morreu, a me primordial, senhora absoluta: ela nos empurra para o amor, para a morte.. . Encaremos nossos fiascos com humor, com amor. . .

    49. De l'amour, op. cit., p. 207.

    50. Cf. Michel Crouzet, Prefcio, De l'amour, op. cit.

    51. Stendhal colecionava obras sobre crimes: sua biblioteca con- tinha, entre outros, tres volumes das Causes clbres, Chroniques du crime, Cours d assises, Palais de justice; na Itlia, ele recolhe manuscritos de histrias trgicas. Cf. Victor Brombert, Stendhal Analyst or Amorist?. Prentice Hall, 1962.

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    Bataille solar, ou o texto culpado

    No se pode olhar fixamente nem o sol nem a morte , afirma La Rochefoucauld, e Bataille evoca essa frase quando o personagem de Ma mere, um jovem que faz as vezes de narrador, relata as extravagncias sexuais da me. Cmplice daqui por diante desse desejo materno to intenso quanto degradante, ora joguete, ora vtima das encena9es erticas dessa me que nada poderia satisfazer exceto a morte, ele confia-nos porm a paradoxal afirma?o de seus crimes: A morte no era menos divina a meus olhos que o sol, e minha me estava com seus crimes mais prxima de Deus que tudo o que eu via pela janela da igreja

    Um eclipse do sentido: o obsceno

    Pode-se tender a atribuir a experiencia ertica de Bataille a um catolicismo assumido at as ltimas conseqncias de sua lgica pecadora, que levara sua reverso interna. Esse aspecto sem duvida importante da escrita em Bataille no chega a eclip-

    1. Ed. 10/18, p. 2!.

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  • sar contudo a lgica universal que ela contm. Quando ele escreve que somente as trevas perfeitas assemelham-se luz 2 deparamo-nos com o desdobramento de urna metfora antittica quef az colidir dois campos semnticos opostos (trevas, luz) e, pela tenso dessa reunio nao sinttica, produz um efeito de nonsense, de siderasao. Longe de ser porm o nada, esse instante paradoxal da metfora antittica aqui evidenciada o lugar do afeto mximo. Como se o abrasamento ertico do sujeito e do sentido, da mesma forma que a cegueira pelo sol ou o intolervel da morte ("no se pode olhar fixamente nem o sol nem a morte ), tomasse por codificafo mxima a jun^o da operado metafrica com a operao antittica. A metfora, diz-se para simplificar as coisas, torna visvel. Mas podemos tornar visvel o intolervel e o que cega, a morte e o sol, ou o incesto? Como tornar visvel o que no o quando nenhum cdigo, conven?o, contrato, identidade o pode suportar? Tra- tar-se-ia alis de tornar visvel o irrepresentvel, que parece ser aqui a paixo desenfreada de urna me sem interdito? A lin- guagem figurada, a literatura teriam ento que estar altura desse invisvel, como tambm de sua intensidade pulsional. Deveriam produzir um eclipse do sentido, e ao mesmo tempo um transporte do sentido... para onde? para um ponto em que o sentido se embaralha, mas em que permanece a per- turba?o passional que ganha o sujeito amoroso face ao corpo nu, sublime ou nauseante, do amado.

    Ns no nos livraremos nunca do recalque, enquanto falar- mos. E se, a partir de Freud, urna certa censura do desejo veio a ser suspensa, nem por isso apagou-se a questo retrica maior: que linguagem dar a essa suspenso da censura? Nomear tal qual o ato sexual em sua organicidade e nada dizer da rela?o amorosa como processo de perturbado de seus sujeitos. A narrativa deve ento encarregar-se de urna dupla fun9o. De um lado, ela se faz obscena; persegue tanto quanto possvel o fantasma at em seus recnditos perversos. Pierre, em Ma mre, torna-se primeiro o amante de Ra, urna amiga de sua me, que a prpria me Ihe prope. Depois, se enamora do casal sadomasoquista formado por Hansi e Loulou, duas amigas de

    2. Ibid.. p. 39.

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    sua me igualmente, que representam para o jovem todo o arsenal do que ele fantasma como sexualidade feminina oni- potente, destruidora, agressiva e vitimria a um s tempo, mas autrquica em ltima instncia como um Deus antigo, porque despojada de objeto. A me vai dizer; Eu no sei se gosto verdaderamente das mulheres. Acho que nunca amei seno nos bosques. No que amasse os bosques, mas amava desmesuradamente. Eu nunca amei seno voc, mas o que eu amo em voc, no se engane, no voc. Acho que eu s amo o amor, e mesmo no amor s a angstia de amar, eu s a senti nos bosques ou no dia em que a morte. . . 8

    A narrativa desmesuradaEntretanto, a simples designa9o, a denomina9o unvoca

    das rela9es perversas, sua descr9o "cientfica , no est altura da desmesura prpria angstia de amar. E justamente para responder a essa desmesura que antes de mais nada o discurso se faz incoerente: antecipa9o, introdu9o de cartas, de reflexes mediativas estranhas brutalidade da cena ertica etc. Essa tcnica que lembra o romance picaresco, ou o de Sade, conduzida aqui no espa90 de um relato curto. Ela pois condensada, no justificada, no verossimilhantizada . Ela evoca em conseqnca o estado crepuscular de urna conscincia perturbada pelo desejo. Ademis, nenhum enigma, at mesmo sexual, podendo manter-se doravante nessa obscenidade generalizada, resulta que a metfora como tropo potico, com seu squito de idealiza9o e de mistrio, j no vem mais ao acaso. O movimento tenso da condensa9o ser porm retomado para alimentar o campo de urna media9o paradoxal . A metfora corts ou romntica apaga-se diante dessa media9o paradoxal. Media9o do sublime, plo essencial do amor: media9o de Deus. Ela ser no entanto, e na verdade, paradoxal, pois o sublime desvelado em seu suporte obsceno, agressivo, destruidor, mortal, ou simplesmente doloroso e abjeto, um sublime degradado, vertiginoso, risvel. De que rir aqui embaixo seno de Deus? "Parece-me no mais das vezes que adoro minha me. Teria cessado de ador-la? Sim: o que adoro Deus. No

    3. Ibid., p. 65.

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  • entanto, eu no acredito em Des. Ento sou iouco? Tudo o que sei: se eu risse nos suplicios, por mais falaciosa que seja a idia, responderia questo que colocava quando olhava para minha me, que colocava minha me quando me olhava. De que rir aqui embaixo seno de Deus? 4

    A narrativa amorosa moderna tenta portanto dizer a um s tempo a idealizado e a sidera?o prprias ao sentimento amoroso: o sublime este nem-sujeito-nem-objeto a que ns chamamos urna "abjeso . O fantasma ertico converge para a media?o filosfica para atingir esse fulcro em que o sublime e o abjeto, base do amor, se encorttram na fulgura?o 6. A narrativa moderna no essencialmente urna performance tcnica como o rtouveau-roman pretende mostrar em sua pulveri- zag&o pontilhista. A narrativa moderna (de Joyce a Bataille) terti urna viso ps-teolgica: comunicar a fulgura?o amorosa. Aque- la em que Eu eleva-se as dimenses paranides da dvindade sublime, permanecendo no entanto prxima do desmoronamento abjeto, do nojo de si. Ou simplesmente de sua verso moderada que a solido.

    Para conduzir-nos nessa experincia, a narrativa faz-se literal, pelo desvendamento do fantasma sexual. Sem seqncia, sem estrutura, simples associa^o livre, urna deriva, ina engre- nagem de acontecimentos narrativos. Alm do qu, a narrativa torna-se mediativa ao retomar neste ltimo movimento a refle- xo teolgica ou filosfica para apoiar-se nelas ou para desfaz- las. O resultado de tais opera?5es no entanto o de urna trans- ferncia e de urna condensago, de urna epfora magnificada, extensiva. Abertura para o nonsense da paixo ou do afeto sem signo. O cmulo da representado e do realismo exacerbado desguam assim, quando presos a urna lgica de transferncla de sentidos contraditrios (sexual-cientfico-filosfico etc. sublt- me-degradante etc.), na evoca?o do invisvel. Ora, o invisvel que fora Deus justamente, na experincia dramtica do animal pensante, o obsceno: o fora-de-cena, o irrepresentvel que insiste no entanto as falhas da trama (lingua, discurso o narrativa) que representa

    4. Ib id .i p. 82.

    5. Ibid.. p. 21.

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    Se foi um heliotrpio, namorada do sentido supremo solar, na narrativa moderna a metfora eclipsa-se. Assim encerra-se o movimento de refinamento e de extin?o do sentido, que im- pulsionava a metfora tecida na escritura automtica, onde de- sempenha o papel de urna estrela cadente, mais que de um gi- rassol . O campo da epfora, da transferncia e da condenao de sentido termina por abrir a superficie dos signos ao irrepresentvel que os subtende e que, se a parte indizvel da cor- rente amorosa, precisa da estratgia discursiva e narrativa para assinalar seu vazio. O erotismo escrito urna fun?o da tenso verbal, um entre-os-signos .

    Dizer a cisa sexualO que feito ento da metfora? Ela passa a essa

    variante da condena?o que a elipse narrativa. Assimila-se tambm a mltiplos ndices ao longo da narrativa, sugrindo que eu amoroso perverso e em gozo v a coisa (qUe no mais o sol de Romeu, nem Deus Res significata, porm mais enlmente o sexo Materno) de frente e sem embara^, mas no a pode dizer toda. O real no poderia ser dito tal qual. Reserva que no nem a impotncia da melancola nem b rcalque frgido da censura. Pelo contrrio, qando o desejo irriga aber- tamenlfe a idealizado amorosa, seu fluxo tira o ser falante dos eixos, e na prova da linguagem que s sege, o signo de rto- dito tdrna-se o equivalente mais intenso do abrasamento ertico. Se a metfora o signo do desser, ela tem seu ponto clmlhante e seu acabamento na suspenso do sentido, no momento exdto em que a narrativa explcita certas etapas erticas do desser.

    Tal condenado torna-se, numa narrativa desembara^da* 0 reverso da prolixldade; o branco das ehtreinhas. TematCS- mertte, a cofisso da fallid (Bataille dlz-s "culpado') CotoO reverso inseparvl de gozo. O ponto culminante da literatura atinge-hos ao exibr rtela prpria O seu itnpossvel. Testemunha nica, no da complacncia com 0 sexo to explorado na arte- comerclat mas com o que Batailie chama urna "soberana . Um amor que abriga e leva ao Infinito a falha deliciosa e doloros

    6. Cf. M. Riffaterre, La M taphore file daiis la posl sllrra- lste\ La Production du trxte, Ed. du Seui, 1979.

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  • da paix3- Como Jembramos: o narrador de Ma mre pronuncia a frase de La Rochefoucauld evocando os desregramentos sexuais de sua tO**6- O sol, o sexo, o incesto no se deixam com efeito ver de frente mas enviesadamente, em transporte, em narrativa ertica 2 mediativa: amorosa. Narrativa teolgica e filosfica, com seu ar Sao Toms mas tambm com seu ar libertino, essa media?C narrativa prolonga as conotages da experincia amorosa indefinidamente, contrabalangando assim a suspenso dessa conota$d como advento do sentido obsceno. A metfora, em suma ter renunciado corrida para o invisvel ou o arrebatador. Ela desenvolve-se doravante como urna cavalgada jubilosa e culpoSa> entre ntedia?o e obscenidade, plenitude do sentido e esvazi#mento do sentido. . A metafsica resolve-se em transporte, e*n transferencia, etrt movimento perptuo dos sentidos e do seflddo

    Tanatos

    O analista perguntar como descrever esse sujeito amoroso, de que 0 narrador de Ma mre um exemplo perfeito. Perverso? Par^nico ( . . .eu me senta semelhante a Deus)? Crente obstinado e obsessional numa libido feminina todo-poderosa que seria o equivalente de um flus materno? Inimigo edipiano do pai condenado daqui por diante a s imaginar parceiros ho- mossexUa*s para a me, e a se feminizar ele prprio, passivo e quase vitimrio? Tais etiquetas tm a desvantagem de insinuar um outf amor que, quanto a ele, estara isento de perverso; e mascaram> alm do mais, urna questo-chave da dinmica amorosa- Se verdade que na alquimia amorosa a pulso sexual sofre a idealiza?o atada ao narcismo de que a sabemos imbuida, o que se passa em amor com o reverso de Eros, Tanates? Em ltima instfittcia, de urna codificado da pulso de morte. que Freud dir anterior ao objeto e ao amor, que se trata na narrativa obscena. Esta conduz Tanatos entre os signos, Pe a^ temtica da paixo e da morte de um lado, pelo choque dos campos semnticos e dos discursos heterogneos de otitro. O outro, a me, est animado por urna libido que menos E ros que a Morte: eis o fulcro dessa dinmica subjetiva e discu"s,va- As mulheres de Picasso, as de De Kooning,.como

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    Ma mre de Bataille, sao a aposta desmedida de nada omitir sobre essa me-morta, de capt-la de frente, ou de vis, mas de capt-la de qualquer forma, na rede da obra. Deformando-a at a feira e a excita?o extravagantes. Ah, range os dentes, meu filho. Voc parece o seu sexo, esse membro respingando raiva que crispa meu desejo como um punho. 7 Trata-se em suma de urna me que ignora o interdito, me pr-edipiana, detentora arcaica de minha eventual identidade. Potencialmente psicotizante. A narrativa obscena neste sentido urna tentativa herica de acert de contas com essa me: ela , conseqente- mente, a mais ampia sublimadlo da psicose. A perverso, em suma, no simplesmente o legado obrigatrio do neotnico; ela o primeiro territrio defensivo que o sujeito ope Morte na medida em que ela lhe parece originar-se na origem mesma da vida: na me. O amor forte como a morte , canta o Cntico dos cnticos, o que leva os comentadores recentes a suporem que o canto do amor sublime viria das orgias funer- rias 8. Esses aventureiros do psiquismo a que chamamos escritores vo ao fundo da noite em que nossos amores no ousam se embrenhar. Ficamos simplesmente atnitos, como manda o inconsciente, com a intensidade do estilo. . . Um estilo tes- temunha da perda de sentido, vigilia da morte.

    7. Ibid., p. 126.8. Marvin H. Pope, Song of Songs, Doubleday, 1977, op. cit. Cf.

    acima. p. 110.