BATISTA FILHO Transição Alimentar Nutricional Ou Mutação Antropológica

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    tRAnSio AlimentAR/nutRiCionAl ou mutAo AntRoPolGiCA?

    Malaquias Batista FilhoLuciano Vidal Batista

    em termos de sade populacional, o processo mais di-ferenciado e mais desafiador dos tempos atuais como objeto de estudo, referencial de polticas e programas e temas de reflexo epistemolgica, pode ser confi-gurado nas mudanas rpidas nos padres de morbi-mortalidade. De fato, hoje o homem nasce, vive, adoece e morre de forma bem diferente do modelo prevalente da primeira metade do sculo XX e, evidentemente, do sculo XIX, desde quando se dispe de dados estatsticos para retratar as variaes do processo sade/doena. Numa imagem alegrica, estamos diante de uma metamorfose epidemiolgica como acontece na entomologia, deli-neando, em nvel coletivo, uma situao inteiramente nova, desig-nada h cerca de 40 anos como transio (1; 2).Assim, num espao relativamente curto em termos histricos, a dinmica da natalidade e da mortalidade diferenciou-se radicalmen-te. Do padro modal de 8/10 filhos por casal, o nmero de descen-dentes tende para dois ou menos, ou seja, para um crescimento em torno de zero: dois pais, dois filhos. Por outro lado, a mortalidade infantil que, no incio dos tempos modernos (ps-Renascena) era de 500 a 600 bitos por 1000 nascidos vivos, baixou para menos de 10/1000 nos pases desenvolvidos. Nesse sentido, o caso da China, que ainda no pertence ao seleto bloco das naes mais avanadas, simplesmente espetacular: duas mortes para cada 1000 nasci-dos vivos segundo as Naes Unidas (3). Mas, alm da reduo da mortalidade infantil e pr-escolar, decaram todas as taxas de bi-tos, sobretudo entre crianas, adolescentes, mulheres no perodo reprodutivo e adultos jovens. Resultado: diminuindo rapidamente a natalidade e a mortalidade por causas evitveis, operou-se uma inverso nos resultados da equao demogrfica: de uma situao em que a vida mdia da populao humana se situava em torno da idade de Cristo (um longevo demogrfico aos 33 anos), se caminha para uma expectativa de sobrevivncia de mais de 80 anos, em algu-mas das naes mais avanadas (4).Nessa rpida mudana do modelo de morbimortalidade, carac-terizando a transio epidemiolgica, o componente alimentar/nutricional tem um papel de fundamental importncia (5). Antes, o binmio alta natalidade/alta mortalidade de crianas, adolescen-tes e mulheres em idade reprodutiva como desfecho se explica por outro binmio como fatores causais: a interao doenas infeccio-sas/processos carenciais. Ou seja, a desnutrio energtico-protica, ainda hoje associada a 55% das mortes em crianas no mundo em desenvolvimento (3); a deficincia de vitamina A (DVA) que con-corre para 25% do risco de morte das diarreias em crianas (6); a anemia, a mais resistente das doenas carenciais, com uma preva-

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    dores da semiologia clnica para a terceira dcada de vida em diante, desloca-se, progressivamente, para os grupos infanto-juvenis, assu-mindo uma direo inesperada.Na mesma e surpreendente direo, as dislipidemias, a hiperten-so arterial, o comprometimento precoce dos vasos coronarianos. Assim, as doenas de adultos com razes na infncia, passam a ser riscos para a prpria infncia e adolescncia maneira de adultos e velhos, antecipando a lgica da histria natural clssica dessas enfer-midades (12; 13). curiosa, como no caso do Brasil e outros pases em desenvolvimento, a colinearidade em nvel ecolgico, entre o sobrepeso/obesidade das mes e a anemia das crianas, juntando no mesmo tempo, espao e famlias, problemas que, por sua natureza etiopatognica, se opem, mas que passam a caminhar nos trilhos paralelos da epidemiologia nutricional, quando deveriam represen-tar linhas distintas e at mesmo divergentes (14). Mudou a natureza? Ou mudamos ns?Como forma de encadear o processo que configura a transio, pode-se recorrer a um esquema idealizado de eventos que se suce-dem, constituindo, tentativamente, uma cronologia. Como todo modelo, o ideograma da transio alimentar/nutricional descreve uma representao simplificada da realidade. As formas graves de desnutrio (kwashiorkor e marasmo) desapareceram, depois de milhares de anos, como problema epidemiolgico entre as naes desenvolvidas ainda na primeira metade do sculo passado, rarean-do, no momento atual, nos pases em desenvolvimento. Seguem-se as formas moderadas e leves, o dficit de altura, at o patamar ideal de equivalncia gentipo/fentipo. Deve-se observar que a transio no representa uma sucesso linear e descontnua de etapas que se excluem. A superposio parcial de caselas expressa essa observao. Ademais, a significao do ideograma se faz como leitura de uma linha de situaes direcionadas pelo estado de nutrio energtico-protica. Na realidade, o processo de transio bem mais com-plexo, reunindo desde as carncias nutricionais especficas e suas associaes com doenas nutricionais e no-nutricionais (vertente ascendente do modelo) at a vertente descendente, tipificada no binmio sobrepeso-obesidade. Mais ainda, as situaes da vertente descendente podem ocorrer tambm na escala ascendente. um contnuo que pode ser descontinuado.Muitos fatos conflitantes com a lgica conceitual do modelo esto surgindo ou ressurgindo. o caso da deficincia primria de iodo, uma carncia nutricional especfica e de fcil controle (basta a iodatao rotineira do sal de cozinha para resolver o pro-blema) e que est reaparecendo como um risco potencial na rica e culta Europa de nossos tempos, segundo um relatrio da OMS (1995-2005). Demonstra-se que em 19 pases do velho continen-te, 52,4% dos escolares tem uma ingesto de iodo baixa (

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    Outro conjunto de problemas conjugados nova situao dos mercados alimentares, ou seja, s novas tcnicas de produo de alimentos, est sendo revelado pelo uso crescente dos defensivos agrcolas: inseticidas, fungicidas e pesticidas. Observaes na Regio dos Lagos (Estados Unidos), Holanda e Japo, informam que o emprego excessivo desses produtos, que foram essenciais para o sucesso da primeira Revoluo Verde est relacionado com a multiplicao de casos de hipospdia e de criptorquidia, alteraes morfolgicas congnitas do aparelho genital masculino. Ademais, alimentos contaminados por agrotxicos quando consumidos durante a gestao (a chamada poluio intrauterina) esto sendo relacionados com acentuado retardo do desenvolvimento mental. Por fim, a poluio intrauterina tem sido estreitamente associada mortalidade de embries do sexo masculino no momento da diferenciao sexual. Em princpio, o risco relativo j era universal-mente mais elevado nos embries machos. No entanto, como no caso do Japo, essa relao vem sendo aumentada em propores considerveis nas ltimas dcadas: 2,5 vezes em 1966, 3,1 vezes em 1976, 6,2 vezes em 1986 e 10 vezes em 1996. Ou seja, um aumento de quatro vezes em trinta anos (16).Outro fato muito emblemtico foi a sndrome da vaca louca. Na verdade a encefalopatia esponjeiforme (substrato patolgico da doena) j era bem conhecida da prtica mdica h algumas dcadas. No entanto, sua ocorrncia no gado vacum recentssi-ma: deve-se a agentes pr-virais, desenvolvidos a partir do farelo de peixes na rao animal, em razo de seu baixo custo quando comparado s farinhas de gros, principalmente leguminosas e oleaginosas. Os prions (esta a denominao dos novos contami-nantes) passaram a produzir a doena nos animais numa reedio do que j se conhecia na patologia e clnica humana, a doena de Creutzfelet-Jacob. Sua ocorrncia sinaliza na direo j apontada por precursores da epidemiologia prospectiva, advertindo para os riscos do consumo de novos produtos (entre os quais, alimentos industrializados), a despeito de sua aprovao sumria em ensaios experimentais nos biotrios. Esses e outros exemplos reforam o princpio de ponderao que, alm dos defensivos agrcolas e dos aditivos qumicos nos alimentos industrializados, deve ser apli-cado em relao ao uso extensivo dos transgnicos, patenteados mediante estratgias e objetivos monopolistas, por empresas de insumos agrcolas (16; 17). , sobretudo, uma situao reveladora de que as mudanas alimentares, violando princpios naturais da prpria vida, podem ser desastrosas. Afinal, a partir da doena da vaca louca, fica a lio de que peixe no comida de gado.

    desnAturAo dA vidA Na realidade, a transio alimentar/nu-tricional, depois de grandes conquistas, est se encaminhando para uma vertente perigosa: a desnaturao dos alimentos, a desnaturao da vida humana e dos biomas em seu conjunto, o confronto com a natureza, como uma guerra no declarada: os ganhos da tecnologia a servio dos mercados. Assim, 80% a 90% dos alimentos, antes de entrar em nossas bocas, passa pela boca das mquinas. O alimento hoje emblematicamente um sanduche: seja nos fast foods das es-quinas, seja no recheio da vertente industrial que produz insumos

    figura 1 ideograma da transio alimentar/nutricional, incluindo desdobramentos hipotticos

    Equivalncia gentipo/fentipo

    Nanismo Sobrepeso e obesidade

    DEP leve e moderada Comorbidades

    Marasmo (?)

    Kwashiorkor (??)

    NotAS exPLICAtIVAS

    Kwashiorkor Forma grave de desnutrio aguda em crianas com predomnio da deficincia de protenas. uma marca epidemiolgica de condies extremamente adversas de alimentao e sade.

    Marasmo Desnutrio grave, de evoluo demorada (crnica), com grande perda de tecido muscular e adiposo e predomnio da carncia calrica.

    DEP leve e moderada So as formas mais comuns de desnutrio, predominando a perda de peso na relao peso/idade.

    Nanismo Reflete o efeito prolongado da desnutrio energtico-protica, resultando no atraso de altura, muitas vezes irreversvel. um termo laico.

    Equivalncia gentipo/fentipo Traduz, idealmente, uma situao de normalidade nutricional onde o potencial gentico de crescimento e desenvolvimento se realiza plenamente. Seria o patamar do processo de transio.

    Sobrepeso e Obesidade Acmulo excessivo de tecido adiposo, traduzindo o balano excedente de calorias em relao s necessidades orgnicas. mais comum aps a concluso do crescimento estatural, na vida adulta.

    Comorbidades Conjunto de doenas crnicas que se associam obesidade e outras caractersticas da alimentao e estilos de vida no-saudveis.

    ( ? ) Prope-se interrogar sobre desdobramentos previsveis, como a compresso da mortalidade por tecnologias de sade ou mudanas de comportamento, influenciando o curso da patogenia e seu desfecho.

    ( ?? ) Podem representar a imprevisibilidade de certos processos, como a esterilidade, defeitos congnitos, doenas neurolgicas de carter degenerativo, processos neoplsicos ou doenas emergentes e reemergentes, com um componente alimentar/nutricional j manifesto ou ainda a ser pesquisado.

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    como agente e como objeto de nova e desconcertante civilizao que est sendo construda, com o avano da cincia e da tecnolo-gia para rumos desconhecidos. Perdeu-se o impulso darwiniano da adaptao sucessiva, por conta dos desafios do passado e seus ambientes. Agora, j se faz artificialmente ambientes adaptados imagem e semelhana dos interesses e circunstncias do prprio homem. A transio alimentar e nutricional uma reproduo dos novos ecossistemas de vida. Configura-se na rpida passagem de uma economia baseada em atividades primrias para um mode-lo dominado pelas indstrias de transformao, suas demandas crescentes de bens e servios, algumas para atender necessidades bsicas, outras (muitas outras, por sinal) para responder a deman-das suprfluas, plenamente descartveis. A populao mudou-se do campo para a cidade. Os meios de comunicao, sem fronteiras geogrficas e polticas e muitas vezes sem fronteiras ticas, impem novas, volveis e at inteis e nocivas exigncias de consumo. Por sinal, as mudanas recentes nos hbitos alimentares da populao brasileira (Quadro 1) so bem indicativas dos riscos que esto se instalando a partir de nossos pratos (18). Somando prs e contras, com base no documento referencial das Naes Unidas (19), h mais sinais vermelhos do que cores verdes no trnsito das novas tendncias de consumo alimentar no Brasil. Destacam-se, como elementos positivos, a reduo do consumo de acar, gordura animal e ovos. Em relao aos aspectos negativos, o aumento no consumo de embutidos, biscoitos, refrigerantes, de par com a diminuio do feijo e outras leguminosas, razes, tubrculos e peixes. Em alguns itens, essas variaes chegam a 218% e at 425%, sendo as maiores em itens indicativos de alimentos no saudveis, como embutidos, refrigerantes e biscoitos. A avaliao recente do consumo de frutas e verduras (3-4% do valor calrico da dieta), evidencia como est longe de se alcanar os valores reco-mendados de 6% e 7%. So alertas urgentes que devem ser assumi-dos como responsabilidades de polticas pblicas de promoo de sade. So deveres de Estado e direitos de cidadania que esto num jogo desigual, pelo poder da indstria e comrcio de alimentos. Neste sentido, cabe reconhecer as posies e as lutas firmemente assumidas, h quase vinte anos pela sociedade brasileira (da I a IV Conferncia Nacional de Segurana Alimentar), h dez anos pela Poltica Nacional de Alimentao e Nutrio do Ministrio da Sade, h cinco anos pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa) e, em nvel global, pelas Naes Unidas, ao estabelecer recomendaes, normas e compromissos para regular o mercado de alimentos, com vistas nos interesses de sade da populao.As automaes, os servomecanismos, entraram, visceralmente em nossos corpos, incluindo seu prprio metabolismo, agora quase restrito s atividades vegetativas. Por outra parte, a obsolescn-cia programada pelos modismos do mercado est levando a um impasse ambiental: assim, se o padro de consumo dos Estados Unidos e Japo fossem espalhados por toda a humanidade seriam necessrios trs planetas Terra para atender a efetiva demanda de matrias-primas (20). J se questiona: o homem ainda natural-mente humano? Para onde caminha o conflito homem/natureza? Como se projetam, nesse cenrio de imprevises, as perspectivas

    para a agropecuria e a outra vertente industrial que transforma os produtos primrios do campo em manufaturados. J se chega ao paradoxo de se empobrecer alimentos pelo processo de industriali-zao e depois enriquec-los, por nova reciclagem tecnolgica: caso do ferro, dos folatos, da vitamina A e das vitaminas do complexo B, adicionados artificialmente para reverter o prejuzo nutricional do prprio processamento. A Revoluo Verde, saudada como a soluo cientfica e tecnolgica para salvar a humanidade contra a fome pelos sculos afora, est com seus dias contados: a caminho, para substitu-la, como pensamento e como nova prtica, vem a uma Segunda Revoluo Verde, tratando o solo, as guas, as sementes, as plantas e os animais mediante princpios naturais chamados de orgnicos. A revoluo inovadora dos ecossistemas de produo, transformao, conservao, transporte e distribuio, articulados em cadeias que tendem a se fechar , agora, a busca de prticas e princpios conservadores, visando a sustentabilidade. No caminho histrico da transio nutricional, um grande recuo no tempo seria ilustrativo para se perceber duas tendncias: de um lado, a mobilizao decrescente do esforo fsico para prover as necessidades humanas. a desativao progressiva do metabo-lismo de trabalho. Pode-se conjecturar que o homem primitivo, num regime de atividade coletora (caa, pesca, busca de frutos e razes) dispendia 60% ou mais de suas calorias no rduo esforo de coleta e transporte de alimentos. Com o advento da agricultura e da pecuria, provavelmente o esforo produtivo, base de energia muscular, passou a demandar 60% ou mais de seu metabolismo de trabalho. Com a modernizao tecnolgica, o trabalho muscular foi sendo substitudo gradualmente e com grandes vantagens, em termos de produtividade e reduo de custos, seja na agropecuria seja em vrias outras atividades produtivas. Resultado: liberados do trabalho fsico, praticamente nos alimentamos para atender pouco mais que o metabolismo basal. Configura-se, assim o Homo sedentarius da modernidade. No incio do sculo XX, as necessida-des mundiais mdias de consumo energtico da populao huma-na eram de 2.800 a 3000 calorias por pessoa/dia. Hoje, situam-se em 2.100 calorias, em funo das baixssimas demandas energ-ticas das ocupaes profissionais ou domsticas e at do prprio lazer. o que se pode chamar de confortocracia. Mas isso tem seu preo, em termos de sade: o componente de atividade fsica a que o homem (ou seus precursores) e algumas espcies de animais domsticos recorriam h de milhares de anos foi praticamente des-cartado pelo crescente sedentarismo, que representa uma marca da modernidade e seus novos estilos de vida. A obesidade e seu squito de doenas associadas, assumindo propores epidmi-cas, constitui um produto representativo dos modos do homem moderno, ou mais apropriadamente, do modelo ocidental de vida. No existe em outras espcies animais, a no ser nos que, domesti-cados, convivem de perto com o homem em estreita dependncia, como gatos, ces e aves. So os novos co-habitantes do ambiente obesognico (comida ad libitum e sedentarismo sem limite). Na realidade, a transio alimentar e nutricional, mais do que um campo da leitura recortado no painel da epidemiologia em rpida mudana, constitui um dos movimentos mais ousados do homem

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    da alimentao e nutrio? Para onde transitamos? Para as fron-teiras do sem fim e sem direo de um futuro sem valores referen-ciais? Valer a pena um projeto de civilizao que deve constituir o desenvolvimento humano em vrias dimenses simultneas e interativas? Ou seja, unificando os desafios econmicos, sociais, polticos, ecolgicos, culturais e coparticipativos, direcionados por princpios ticos e por razes de sustentabilidade? Mais que uma utopia, o que se discute, se estuda e se prope no Centro Internacional de Desenvolvimento, fundado por um brasileiro exilado, Josu de Castro, um pioneiro da luta contra a fome e as desigualdades, na Universidade de Paris VIII. Ou ficamos com o discurso radical da ps-modernidade, enunciando que a histria no tem nem ter rumos? E viva o niilismo! Mas isto no seria uma sentena de morte?

    Malaquias Batista Filho professor e pesquisador do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip) Recife, Brasil. membro do Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Consea) e bolsista do CNPq. Email: [email protected] Vidal Batista entomologista com doutorado em cincias biolgicas (zoologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Email: [email protected]

    QuAdRo 1 - eVoLuo PeRCeNtuAL dA dISPoNIBILIdAde doMICILIAR de ALIMeNtoS dA PoPuLAo BRASILeIRA (1974/2002/03)

    Refrigerantes + 425%

    Biscoitos + 218%

    Embutidos + 173%

    Carne de frango + 100%

    Refeies prontas / industrializadas + 77%

    Carnes em geral + 46%

    Leites e derivados + 37%

    Carne bovina + 23%

    leos e gorduras vegetais + 16%

    Frutas e sucos naturais + 9%

    Cereais e derivados - 5%

    Verduras e legumes - 18%

    Acar - 23%

    Feijes e outras leguminosas - 30%

    Razes e tubrculos - 33%

    Peixes - 38%

    Gordura animal - 63%

    Ovos - 83%

    Fonte: Levy-Costa et al.(2005)

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