bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião,...

402
UMA COMUNIDADE ,... AMAZONICA Estudo do Homem nos Trópicos ,.....} lf ;) ;J l

Transcript of bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião,...

Page 1: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

UMA COMUNIDADE ,...

AMAZONICA

Estudo do Homem nos Trópicos

,.....} ~ ~ lf ;) ;J

l

Page 2: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou
Page 3: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

BIBLIOTECA PEDAGÓGICA BRASILEIRA Série 5.ª * * Vol. 290 BRASILIANA

CHARLES W AGLEY

UMA COMUNIDADE A

AMAZONICA

Estudo do Homem nos Trópicos

Trad~ção de

CLOTILDE DA SILVA COSTA

COMPANHIA EDITORA NACIONAL

q '{ f f3~~.~ -

SÃO PAULO

Page 4: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Do original norte-americano:

AMAZON TOWN

A Study of illan in tlw Tropics

Ilustrações de

JOÃO JOSÉ RESCALA

1957

Direitos para a lfngua portuguêsa adquiridos pela

COMPANHIA EDITORA NACIONAL Rua dos Gusmões, 639 - Sã.o Paulo

que se reserva a propriedade desta tradução

Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brazil

Page 5: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Oecilia

/

' ~ !.> o m o e o 1> {) )>1 o

...(;Q rn r õ

-m o )>

Page 6: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou suas espantosas invenções, mas por ter sido a primeira, desde o alvore­cer da civilização, há cinco ou seis mil an.os a trás, em que os homens ousaram pensar em esten.der a tôda a raça humana os benefícios da civilização .

.ÀRNOLD J. ToYNBEE, em Not the Age of Atoms but of Welfare for All, New York Times Magazine, October 21, 1951.

Page 7: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

PREFACIO

CAPITULO

íNDICE

* PÁG,

9

I - O PROBLEMA DO HOMEM DOS TROPICOS 17 II - UMA COMUNIDADE AMAZONICA . . . . . . . . . . 42

m - O MEIO DE VIDA NOS TROPICOS 100 IV - .AJ5 RELAÇOES SOCIAIS EM UMA COMUNI-

DADE AMAZONICA 150

V - OS ASSUNTOS DE FAMILIA EM UMA CO-MUNIDADE AMAZONICA 206

VI - A GENTE TAMBEM SE DIVERTE . . . . . . . . . 258 VII - DA MAGIA A CIENCIA

VIII - UMA COMUNIDADE DE UMA AREA SUB-DESENVOLVIDA BIBLIOGRAFIA

293

347 399

Page 8: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou
Page 9: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

PREFÁCIO

E m 1939, visitei o Brasil central que, então, era uma das várias regiões do mundo que se poder,iam

escolher para um estudo do homem primitivo. Durante quase dezoito meses vivi entr-e os índMs Tapirapé, estudando os se1is costumes. É uma tribo isolada que ainda mantém, em essência, seus costumes aborígines. Proporcionaram um excelente campo de pesquisas para. (J antropólogo social, mas, vivendo em seu meio, pouco aprendi sôbre o Brasil moderno. Qua11do deixei o Brasil, em 1940, tinha a certeza de q1te voltaria. Meu conhecimento superficial do país, de passagem pelo Rio de Janeiro, São Paitlo e Goiás, em minhas viagens de ida e volta para a aldeia dos Tapirapé, deu-me a con­vicção de que o Brasil é um dos mais intere~santes labo­ratórios de '[>esquisa para a antropologia social. Desde então tenho-me dedicado, de uma ma.neira ou de outra, ao estudo do Brasil moderno.

9

Page 10: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Em 1941 voltei para estudar os índios Tenetehara, uma tribo que vivia em estreito contacto com brasileiros da zona rural e que estava sendo gradualmente incor­porada à nação. E então, em 1942, os acontedmentos colocaram-me em contacto direto com os problema,s do Brasil moderno. Naquele ano, como p/J,rte de seu pro._ grama comum para o esf órço de guerra, os govêrnas do Brasil e dos Estados Unidos estabeleceram um serviço cooperativo de saúde pública que se tornou coMiecido como S'/tSP (Serviço Especial de Saúde Pública). O SESP foi concebido, a princípio, como uma medida de guerra e um de seu..~ principais programas era fornecer assistência mé<Uca aos ... produtores de matérias primas estratégicas - os seringueiros do Vale Amazônico, os emigrantes das zonas do nordeste devastadas pelas s°êcas que demandavam o Amazonas para extrair a borracha, e os mineiros de mica e quartzo das regiões monta­'nhosas do Brasil central. Vivendo, a maioria dessa. gente, na i,nterior, um antropólogo social, com grande experiência e conhecimento do sertão brasileiro, seria de grande utilidade para o serviço. Durante os três anos e m,eio em que fui membro da missão técnica bra­sileira do Instituto de Assuntos Lnter-Americanos, ligado ao SESP, desempenhei várias funções: como membro do escritório regional do SESP no Vale Ama­zónico, como diretor de seu Programa de Migração. proporcionando assistê.ncia médica a muhares de pes­soas que deixavam seus lares, na árido Nordeste, para. trabalhar no Ama.zonas, como assistente do Superinten­dente do SESP e, finalmente, como diretor de sua Divisão de ·Educação Sanitária. No decorrer dêsses anos muito aprendi sôbre o Brasil, tamto na minh~ qualidade de antropólogo, quanto na de adminristrador. Meu ponto de vista antropológico auxiliou-me enorme-

10

Page 11: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mente nas questões de administração e planejamento, da mesma maneira que minha crescente familiaridade com os problmnas práticos contriõuitt para aguçar meu interêsse científico no Brasil. Em minhas viagens. através de extensas regiões do interior brasileiro e na minha convivência com os habitantes de sitas zonas ru­rais, adquiri consciência dos problemas agrícolas, tanto do ponto de vista do povo, como do ponto de vista dos planejadores e administradores da cidade.

Visitei, pela primeira vez, a pequena cidade de Itá, em 1942, durante uma 'viagem de estudos que ante­ceden o planejamento do serviço de saúde pública do SESP no Vale Amazônico. Foi nessa lenta m'agem de lancha, de.scendo o rio Amazonas, na companhia de meu jovem assistente e companhe·iro, Cleo Braga, qite, pela primeira vez, tive consciência da riqueza da cultura amazónica e da necessidade de um estudo da vida do homem da Amazô.nia. À. medida que visitávamos as aldeias e os postos de comércio do Baixo Amazonas e que conversávamos com pessoas de tôdas as classes so­c;iais, cheguei à conclusão de que a exótica magnifi­cênc.ia do panorama tropical havia desviado as atenções do homem do Vale Amazônico. As clássicas narrações Je H. W. "'BateS, A.7,y;êã, R. W allace, do Tenente William Herndon, de Louis Agassiz e outros, qtie des­crevem o grande vale, fazem referências sitrpreenden­temente escassas ao homem e às questões humanas. E a aldeia de Itá pareceu-me ser o local ideal para iim esfado desta .natureza.

Depois de 1943, quando o SESP instalou 1tm posto de saúde em 1tá, pnde acompanhar, de longe, os acon­tecimentos dessa aldeia, pela leitura dos relatórios de seus médicos; reuni também grande quantidade de dados sóbre a comunidade. Voltei a Itá em 1945. Nessa

11

Page 12: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ocasiao, acompanharam-me Eduardo Catete Pinheiro, nm especialista em educação sanitária e filho daquela. regiao, e Dalcidio Jitrandir, conhecido romanc·ista brasileiro que estava escrevendo os textos dos progra­mas educativos que o SESP pretendia realizar no Vale Amazônico. Em sita primeira mocidade Dalcidio vi­vera em Itá onde servira como secretário do Prefeito da localidade. Seu profundo conhecimento da vida da cidade e o grande círculo de amigos a qiie me apre­sentou, tornaram-me possível aprender mais a respeito de Itá, em um mês, do que o teria conseguido em dois meses sem o seu auxílio. Catete Pinheiro e Dalcidio Jurandir, pela própria formação de sitas vidas, muito me ensinaram sôbre a Amazônm. ~ ."ÊJste livro, entretanto, baseia-se,_§_obretudo, em da­

dos colhidps d§ junho a ser;;;;J;ro de 1948, durante um estudo da Amazônia realizado pela Organização Cul­tural, Cfrntífica e Educacional das Nações Unidas, para o Instituto Internacional da Hiléa Amazônica. Durante êsses meses de pesquisas e residência em Itá, contei com a colaboração de Eduardo e Clara Galvão e de minha espôsa, Cecili'.a Roxo W agley, que também me acompanhou a Itá em 1942. N assa equipe de estudos alugou alí iima casa onde vivíamos e trabalhá­vamos. Fazíamos as refeições na casa de um comei·­ciante do liigar. Visitávamos as pessoas em s1ws casa.ç e elas nos retri'buiam as visitas. Ji'reqitentávamos as festas e os bailes, tagarelávamos nas esquinas e nas lojas, percorríamos com os amigos os seus roçados e viajávamos de canoa para assistir a festejas rurais ei

visitar os postos de comércio onde os seringueiros of e­reciam seus produtos. Participamos da vida de Itá tanto quanto é possível a um estranho fazê-lo. Não havia barreiras de linguagem, pois três componentes de nossa equipe de estiidos eram brasileiros e, eu próprio,

12

Page 13: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

clomino razoàvelmente o português. Cada um de nós realizava, diàriamente, longas entrevistas com numero­sas pessoas de tôdas as condições sociais e todos os dÃas tomávamos notas copiosas. Com o auxílio de dois assis­te,ntes do lugar, nossa equipe -realizou e~!!~ de casos de 113 .f<J,rn/í,lias da c(Jmunidad!J, q1t.e abrangeram po-r­

'menõres sôbre sita alimentação, despesas, rendimento.~, objetos pes~o.ais, além de várias outras inforniações

-especf,[ic_<!!§,_ !H ~aráte-r econômico e social. Além disso, Õ SESP também nos pôs à disposiçii<J os -resultados de uma pesquisa sôb-re hábitos dom.ésticos realizada em Itá, relacionadã ·-principalmente com a alimentaçã-0. Em 1950, por sugestão minha, lris Mye-rs, que se espe­cializa tanto em antropologia como em psicologia, passou várias semanas em. Itá. Infelizmente, não me foi possível, ao escrever êste .livro, compulsar pessoal­mente os resultados de suas experiências psicológicas, mas suas cartas e anotações forneceram-me dados e maior compreensão da sociedade de Itá. Tôdas as fon.. tes acimà mencionadas estiveram à minha disposição durante a feitura dêste livro.

Os desenhos que o ilustram são de autoria do co­nJiecido pintor brasileiro, Joã-0 José Rescala. Em se11. prêmio de viagem pelo Brasil perco-rreit todo o Vale Amazônico. Observou e visitou pessoas como as que descrevemos neste livro, sendo seus desenhos feitos de memória e de mimerosos esboços realizados durante sua viagem pela Anudônia.

Quero· expressar minha imensa gmtidão a todos a que acima me referi. Em maior ou menor escala, todo.s participaram dos estudos que levaram à composição dêste livro. Muito particularmente quero agradecer aos meus companheiros de estudos da missão da UNESCO em .1948, por me terem permitido utilizar a

13

Page 14: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

riqueza <k informações de seus cadernos de notas. Mas, principalmente, desejo agradecer os muitos amigos de ltá, cuja hospitalidade e cooperação, cuj_a paciência com as contín.uas perguntas do antropólogo a respeito de todos os aspectos de suas vidas, tornou possível a realização dêste estudo. lnf elizmente, têm que perma­necer anônimos; o antrop6logo tem obrigação de pre­servar, tanto quanto possível, todos aquêles que lhtJ revelam suas vidas e lhe fornecem informações sôbro outrem. Comparecem neste livro vários de nosso1 amigos de Itá. Seus nomes, entretanto, fÓram muda­dos. Pela mesma razão, a aldeia também recebeu um nome fictício.

Desejo consignar o auxílio financeiro da UNESCO e do Conselho de Pesquisas de Ciências Sociais da Uni­versfrlade de Columbia ao nosso estudo da Amazônie brasileira. A UNESCO deu-me permissão para uti­lizar as informações colhidas durante o estudo da Hi1éia Amazônica, mas as opiniões expressas neste livro sã.e exclusivamente minhas e não representam a política da UNESCO. Alguns dos dados aqiti reproduzidos já fo­ram pub.zicados em outros trabalhos, sob outra forma. O capítulo sôbre "Relações Raciais de uma Comunidade Amazônica" foi, publicado no folheto "Race and C"lass in Rural Brazil" (Raças e Classes do Brasil Rural), (UNE.SOO, Paris, 1952) e a conferência pronunciada no Instituto Brasileiro da Universidade de Vanderbilt, que reswnie alguns aspectos da cultura de ltá, foi pu­blicada sob o título, "The Brazilian Amazon; the Case for an Umler-Dev.eloped Ar~a" (A Amazônia Brasi­leira; o Hist6rico de uma Área Sub-Desenvolvida) em Four Papers Presented to the Brazilian Institute (Quatro Ensaios Apresentados ao Instituto Brasileiro), (Universidade de Vanderbi1t, Editôra, Nashville, 1950). Os dados sôbre a religião de Itá foram compilados por

14

Page 15: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Eduardo Galvão em s1ta tese intitulada "A Vida Reli­giosa de 1tma Comunidade Amazônica" (Bibli'oteca da Universidade de Colmnbia, microfilme, 1952); os capí­tulos VI e VII dêste livro devem muito ao seu esfttdo dêsse aspecto da .cultura de ltá.

Finalmente, quero agradecer Alfred Métraux, da UNESCO, que muito contribuiu para possioilitar a constância de meus esfodos sôb·re o Brasil. Agradeço ainda os meus amigos Carl Withers, Gene W eltfish e Cecil Scott da Macmillan Company, que leram o ma­nuscrito antes de sua revisão final e ofereceram suges­tões para o corrigir e melhorar.

CHARLES W AGLEY New York, 1959.

15

Page 16: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou
Page 17: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

1. O PROBLEMA DO HO­MEM DOS TRóPICOS.

l'llste livro é o estudo de uma região e do modo de vida de seu povd. A região é a Amazônia brasileira, ondr- a fusão das culturas indígeno-americana e portu-

17,

Page 18: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

guesa formou, no decorrer dos últimos tirês sécµlps, um modo de vida distintamente tropical. Num sentido mais amplo, o livro é um estudo da adaptação do ho­mem ao ambiente tropical. É, também, o histórico de uma área "retrógrada" e sub-desenvolvida.

O interêsse pelas regiões do globo ·econômicamente marginais, começa a despertar. Extensas áreas do globo, habitacbt.s por povos sub-nutridos, não indus­triais, pareciam-nos, outrora, de pouca importância 'para o nosso próprio bem-estar. M.as, aos poucos, fomos compreendendo que a luta dêsses povos afetava todô o mundo. Em 1949 o presidente Truman revelou ao pú­blico o problema que constituem essas áreas, tanto para os povos que as habitam, como para aquêles mais afor­tunados que vivem nos países tecnicamente adiantados. "Mais de metade da população do mundo'', declarou, "vive em condições que se aproximam da miséria. Sua alimentação é insuficiente. .São vítimas das doenças. Sua vida econômica é primitiva e estagnada. E a sua. pobreza é um empecilho e Ulna ameaça, não só a êles próprios, como às áreas mais prósperas". (1)

Mas a melhoria da condição de vida dêsses povos não precisa, necessàriamente, esperar por novos pro­gressos cientüicos. A humanidade possui os conheci-

, mentos técnicos, fruto do acúmulo das contribuições dos homens de várias nações no decorrer dos séculos, ne­cessários para melhorar o seu quinhão. O problema con­siste em estender os conhecimentos e as habilidades técnicas que parte do mundo já possui à outra metade que ainda não os tem. É êste um dos problemas cru­ciais de nossos dias. ·

(1) Discurso de posse, pronunciado em 20 de janeiro de 1949.

18

Page 19: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

A maioria das áreas sub-desenvolvidas está. situada nas zonas tropicais e semi-tropicais, embora, é claro, os trópicos não detenham o monopólio da miséria. Mas as regiões tropicai.s da África, Ásia, das Ilhas do Pací­fico, do Oriente Médio e das Américas, são em geral as mais retarda~;is do ponto de vista econômico. E são sobretudo as zonas tropicais, quentes e úmidas, como as da África Equatorial, da Bacia Amazônica e da Nova Guiné que, em contraste com as zonas tropicais quentes, mas áridas, têm proporcionado, até o presente. o clima menos favorável ao homem. Essas áreas tro­picais, quentes e úmidas, cobrem cêrca de 38 milhões de quilômetros quadrados da superfície da terra e encerram uma população de cêrca de 700 milhões de pessoas. Três quartas partes dessa populaçi'ío, entre­tanto, vivem na região tropical da Ásia, cuja superfície ó de, apenas, 8 milhões de quilômetros quadrados. Com exceção da Ásia, por conseguinte, as áreas tropicais, quentes e úmidas, têm uma população relativamente esparsa. As regiões tropicais chuvosas da África, Oceania, Austrália e América encerram apenas 170 mi­lhões de homens, em uma extensão total de cêrca de 30 milhões de quilômetros quadrados. Excetuando-se a Ásia, as regiões tropicais chuvosas têm, em média, de cinco a seis habitantes apenas por quilômetro quadrado, enquanto que nos Estados Unidos, por exemplo, a média é de cêrca de setenta habitantes por quilômetro qua­drado. (2) Essas áreas tropicais menos populosas, como o Vale da Amazônia, são, na realidade, fronteiras. Atraem nosso interêsse, não só pela luta dos povos que as habitam, como também por seus recursos inexplo­rados, suas terras ainda virgens, e o potencial que ~ncerram para futuras colonizà.ções.

(2) Cf. Pierre Gourou, Les Pays tropicauz (Paris, 1948), pp. 5 e segs.

19

Page 20: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O Vale Amazônico, quase tão vasto como os Estados Unidos, é uma das mais extensas dessas fronteiras tro­picais modernas e, talvez, a de população mais esparsa. A bacia fluvial formada pelo imenso rio Amazonas e seus numerosos tributários, atravessa seis nações da América do Sul - o Brasil, o Peru, a Bolívia, a Colom­bia, o Equador e a Venezuela. A maior- parte do grande vale fica no Brasil. Tôda a população da região amazô­nica hrasileira - cêrca de um milhão e meio de pessoas - fica perdida em uma área de três milhões de quilô­metros quadrados. A população nessa região tem apenas a metade da densidade da população da Nova

Guiné e encerra, por quilômetro quadrado, uma duodé­cima parte da população das áreas quentes e úmidas da África. Apesar da Amazônia brasileira s6 encerrar uma pequena parte dos povos "atrasados!' da terra, seu território imenso, suas terras inexploradas e seus recursos desconhecidos ainda poderão um dia desem­penhar papel importante na solução dos problemas mundiais decorrentes da fome e da miséria.

As condicões atuais do Vale Amazônico qualifi­cam-no, sem ;ombra de dúvida, como uma área sub­desenvolvida. Aproximadamente 60 por cento das pes­soas que habitam a Amazônia brasileira são analfabetos. Apesar da bio-estatística da região ser confessadamente deficiente, demonstram os registros que, em 1941, das 1. 000 crianças nascidas em Belém, capital do estado amazônico do Pará, 189 morreram antes de atingir um ano de idade. Em Manaus, capital do estado de Ama­zonas, situada no coração do V ale, o índice de morta­lidade infantil era, naquele mesmo ano, 303 em mil. Em oito comunidades rurais do estado do Pará em que se colheram dados estatísticos relativos a 1941, o índice de mortalidade infantil, no primeiro ano de vida, atingiu 304 em mil.' Segundo as autoridades sa-

20

Page 21: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

nitárias, entretanto, êsses dados são inferiores aos ín­dices reais. O tifo que, nos Estados Unidos, no per.íodo de 1937 a 1941, foi responsável por apenas 1,3 mortes em 100. 000 pessoas, atingiu em :il.Ianaus o índice de 28 rm 100. 000. Nesse mesmo ano, em Manaus, a tuber­culose causou 242,5 mortes em 100. 000 pessoas, en­quanto nos Estados Unidos êsse índice era de 45,8; e P. malária, uma doença pretensamente tropical, atingiu o índice de 334,9 em Manaus, no ano de 1941, sendo apenas 1,1 nos Estados Unidos. No entanto, as condi­<;Ões sanitárias dessa metrópole amazônica, em 1941, eram superiores às da maioria das pequenas comuni­dades do Vale.

Além disso, a população da Amazônia tem uma alimentação insuficiente. Um estudo da dieta das fa­:ir.ílias dos operários de Belém, efetuado há alguns ànos atrás, revelou que o consumo médio, diário, de ali­mentos, por pessoa, era equivalente a apenas 1. 800 a 2. 000 calorias. Embora a necessidade universal da criatura humana que executa trabalho~ pesados seja calculada em 3. 000 calorias, nos trópicos parece 'Ser meno1', tendo sido calculada em 2 .400 calorias por um estudioso da dietética nos trópicos. (3) Ainda assim, a dieta média das famílias de Belém, objeto do estudo, C'ra deficiente em calorias e sobretudo em vitaminas e minerais. A impressão geral dos pesquisadores é de que o estado de deficiência alimentar, talvez mesmo de semi-inanição, predomina cm todo o Vale.

A vida econômica do Vale é francamente "primi­tiva e estagnada". As técnicas agrícolas empregadas na Amazônia .são em grande parte herdadas dos índios nátivos - a técnica da "queimada" e da "dern1bada

(3) Josué de Castro, Geografia da fome (Rio de Ja­neiro, 1946), p. 67.

2l

Page 22: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

e queimada". Em 193!J, menos de meio por cento de tôda a área do estado do Pará era cultivada, segundo fui informado, e essa porcentagem é provàvelmente um tanto ou quanto elevada para o Vale em geral. O trans­porte é efetuado por vagarosas embarcações fluviais que em sua maioria são movidas a carvão. Existem apenas uns 2. 500 quilômetros de rodovias e cêrca de 385 q ui-1ômetros de estradas de ferro em todo o Vale. A indús­tria é primitiva e quase inexistente. O comércio da região consiste bàsicament1e em produtos florestais como borracha bruta, óleos vegetais, couros e madeiras tro­picais. AB instalações de utilidade pública, como es­gotos, luz elétrica e água são insignificantes. Algumas pequenas cidades possuem luz elétrica e outras já man­tiveram usinas elétricas que, entretanto, deixaram-se cair em desuso. Até bem recentemente só Belém e Manaus possuiam sistemas de águas e esgotos e, ainda assim, bastante antiquados. Em Belém, depois da se­º guerra mundial, os bondes deixaram de andar e a usina elétrica estava tão enfraquecida que a cidade era mergulhada na escuridão total várias vêzes durante a noite. Diante dessas condições é fácil de se compreen­der porque não cresceu a população da região amazônica do Brasil no período de 1920 a 1940, quando no país todo seus habitantes aumentaram 36 por cento. A po­pulação brasileira só é estática na região árida do nor­deste do Brasil, onde os padrões de vida são quase tão baixos quanto os da Amazônia.

A população esparsa, as péssimas condições sani­tárias, os padrões de vida deploràvelmente baixos e a ausência da indústria serão um indício de que o am­biente da Amazônia é um obstáculo insuperável ao desenvolvimento? Em outras palavras, o ambiente tropical, quente e úmido, imporã limitações ao desen­volvimento humano a ponto de tornar quase impossível

22

Page 23: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

o aumento do padrão de vida nessas regiões? Esta é uma questão decisiva para tôdas as regiões tropicais. Nas condições específicas da Amazônia, será esta mna fronteira que deverá ser. habitada e desenvolvida em benefício da fome do mundo, ou estará ela fadada a ser para sempre o "deserto verde" Y As opiniões sôbre o potencial da Amazônia são desencontradas. Os pes­simistas descrevem-na como um "inferno verde" e porque taf\tos sonhos grandiosos concentraram-se nessa região, foi ela chamada de "ópio verde". Nesse mesmo espírito um agrônomo declarou certa vez, em tom de brincadeira, que a única solução para os problemas do V ale Amazônico seria cercá-lo e remover aos poucos todos os seus habitantes. Contudo, desde os tempos de Alexandre von Humboldt, e até antes, os homens vêm sonhando com grandes cidades, riquezas agrícolas e prósperas indústrias no imenso Vale. Um dêsses oti­mistas foi Alfred Russel W allace, o famoso naturalista inglês que visitou a Amazônia no século dezenove. "Afirmo sem mêdo", escreveu com entusiasmo, "que esta floresta primitiva pode ser convertida em ricas pastagens, em campos cultivados, hortas e .pomares com tôdas as variedades de produtos, à custa da metade do esfôrço e, o que é mais importante, em menos da metade do tempo que seria necessário em nossa terra". (4) Poderíamos citar inúmeras opiniões semelhantes, tanto a favor como contra a Amazônia, pois os escritores, quer de um lado, quer de outro, sempre foram eloqüentes.

Nos últimos anos, a escola pessimista encontrou apoio para suas idéias sôbre o futuro da Bacia Am~­zônica em dâdos científicos que procuravam provar a maior prevalência das doenças nos trópicos, sinais de

(4) A Narrative o/ Trave18 on the Amazon anã Rio Negro (Londres, 1853), pp. 334-335.

23

Page 24: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

retardamento do crescimento humano, causado pelo calor excessivo, a qualidade inferior do solo tropícal e outras supostas barreiras ao bem estar do homem no ambiente tropical. Alguns escritores têm mesmo sus­tentado a tese de que não só êsse ambiente tropical constitui uma barreira, mas que a própria vida nos trópicos leva à degeneração humana. Um dêstes ex· tremistas é Ellsworth Huntington que chegou ao absurdo de declarar que os ambientes tropicais provo­cam o "enfraquecimento da vontade" que se manüesta na falta da indústria, na embriaguez, no temperamento irascível, e na complacência sexual. (5) Ainda outros -extremistas apegam-se aos argumentos raciais. '.Êsses "racistas tropicais" alegam que os climas tropicais só podem ser habitados pelas raças de pigmentação escura, isto é, os negros, os mongóis ou as misturas destas raças com os ~aucásios. Essas raças ou misturas mais es­curas, dizem êles, são inferiores aos brances europeus, razão porque as regiões tropicais estão condenadas a um nível mais baixo de desenvolvimento cultural. Se­gundo essas teorias a miscigenação entre os brancos, que lhes é imposta pela necessidade de sobreviver, diminui sú.a potencialidade cultural.

A pele mais escura pode bem constituir um fator }Jositívo para a aclimatação aos trópicos, assim como a pele mais clara para as regiões nórdicas, pois que a pigmentação escura parece servir de proteção aos raios solares. A distribuição das três principais espécies raciais no ano de 1500 parece indicar ·que, no decorrer de muitos séculos, êsses fatores realmente atuaram; mas não existe qualquer evidência de que a pigmen­tação tenha jamais constituído uma verdadeira bar-

(5) Civilization and Clhnate, 3'> edição (New York, 1939), pp. 68 e segs.

24

Page 25: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

reira- à aclimatação a qualquer clima habitável de. que se tenha conhecimento. O mais nórdico de todos os povos, os esquimós, são mongolóides; o negro americano adaptou-se muito bem ao norte dos Estados Unidos; c brancos europeus vivem no norte de Queensland e na Zona do Panamá, para citar apenas dois exemplos, sem qualquer sin_al de degenerescência de importância fun­cional. (6)) Mais importante, entretanto, é o fato de que tôdas as--pesquisas da antropologia e ciências corre­latas, até hoje realizadas, demonstraram que todos os grupos raciais e tôdas as misturas de grupos raciais têm a mesma capacidade para a conquista da cultura_. Em outras palavras, todos os homens são membros da mesma espécie e têm aproximadamente a mesma inte-1 ligência nativa e a mesma capacidade para atingir um padrão de vida mais alto.1'" Aquêles que proclamam o perigo da mistura racial ·e das barreiras sociais para o desenvolvimento cultural, nos trópicos ou em outras regiões, estão simplesmente fazendo uma perigosa pro­paganda social.

O que dizer dos efeitos enervantes do calor cons­tante sôbre o homem? O homem é, sem dúvida, de todos os animais, o que mãis" se adapta às variações de t.emperatur.a. Isto não é unicamente devido ao fato de ser êle uma criatura de sangue quente, vantagem que compartilha com outros mamíferos, mas também :porque é um animal passível de cultura. Graças ao emprêgo de vários meios culturais, tornou-se capaz de viver em todos os climas conhecidos. ÂB roupas e o fogo tor­naram habitáveis os climas árticos. O homem cria a proteção contra o calor causticante do sol tropical: anda: semi-nu ou com uma capa protetora e adapta seus há-

• (6) Vide Grenfell Price, White Settlers in the Tropics

(New York, Geographic Society Publication No. 23, 1939), pp. 52 e segs. pp. 146 e segs.

25

Page 26: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

bitos às temperaturas elevadas. Do dia para a noite, sem necessidade de se gastarem séculos na modificação física da espécie, o homem pode adotar uma vestimenta externa, branca, como a dos indianos, que reduz a cêrca de dois têrços a absorção das irradiações solares. ( 7) Além do mais a ausência de cabelo e pelos no corpo faz com que o homem seja, entre os mamíferos, o mais adaptável ao calor; possui uma superfície respiratória maior do que a dos demais mamíferos - um meca­nismo que permite ao corpo eliminar o excesso de calor e ajustar-se à temperatura.

Os climas quentes e úmidos parecem, contudo, ter dado mais trabalho ao homem do que os· temperados, apesar de sua extraordinária adaptabilidade física e cultural. Nas temperaturas quentes e úmidas é mais difícil a eliminação do excesso de calor do corpo. De­pois de uma prolongada exposição ao calor, a tempe­ratura normal do corpo só pode ser mantida por meio de uma compensação interna, por uma redução da combustão celular e da atividade das glândulas endó­crinas: Além do mais, as temperaturas elevadas pa­recem exigir um consumo maior de Vitamina B (prin­cipalmente tiamina, ácido pantotênico e piridoxina), entretanto, os alimentos tidos como as grandes fontes dessas vitaminas, como a carne de porco magra, nas regiões tropicais contêm apenas a metade da porcen­tagem que apresentam nas zonas temperadas. Assim, a dificuldade parece ser dupla: há maior necessidade de vitamina B, mas, nos trópicos,"' os alimentos contêm uma. porcentagem menor dêsse elemento do que nas demais regiões. Essas dificuldades fisiológicas parecem provocar o retardamento do crescimento e da maturi'.·

(7) Vide Gladwln Thomas, "Climate and Anthropology", American Anthropologist, Vol. 49, No. 4, Parte I (1947), p, 605.

26

Page 27: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

dade sexual - pelo menos foi o que provaram as expe-1·1.ências realizadas com animais e existe um estudo que parece demonstrar que o mesmo acontece com o ho­mem. (8)

As melhores condições de vida, nos trópicos, talvez sejam as do Panamá, onde os trabalhadores do canal comem alimentos importados, onde as doenças tropicais e parasitárias foram reduzidas ao mínimo e as condi­ções de habitação são boas. Averiguou-se que os "ame­ricanos nascidos no Panamá são cêrca de 10% mais. pesados e 3% mais altos do que os panamenhos da mesma idade; são também cêrca de 3% mais leves e ligeiramente mais baixos (menos de 1 polegada aos 17 anos de idade) do que as crianças nascidas nos Estados Unidos e que viveram menos de um ano na zona do Panamá". (9) Foi também demonstrado que a matu­ridade sexual das meninas verificava-se um ano mais tarde no Panamá do que em Richmond ou Cincinnati - o que contraria a crença comum da maturação pre­coce nos trópicos. A diferença que existe entre pana­menhos e americanos nascidos no Panamá pode ser explicada pela estatura média mais baixa da linhagem ancestral e pela qualidade inferior da alimentação dos panamenhos. Entretanto, a diferença entre o ameri­cano nascido ·nos Estados Unidos e o americano nascido no Panamá, por menor que seja, parece indicar que, como no caso dos animais submetidos a experiências, no homem, "nas condições de vida dos trópicos, verifi­ca-se uma reduçã'o de crescimento e desenvolvimento· que seria ideal se não fôsse o calor tropical". (10)

(8) C. A. Mills, "Climatic Effects on Growth and De­velopment with Particular Reference to the Effects of Tro­pical Residence", American Anthropologist, Vol. 44, No. 1 (1942).

(9) Ibid., p. 8. (10) Ibid., p. 12.

27

Page 28: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Poderíamos perguntar, entretanto, que importância tem a menor estatura para a adaptação do homem ao ambiente tropical. Apesar da qualidade inferior da dieta e das suas condições de vida, os meninos pã.na­menl1os, aos 17 anos de idade, eram, em média, apenas 8 centímetros mais baixos, e 7,8 quilos mais leves do que os americanos que viveram no Panamá menos de um ano. Uma dieta equivalente e padrões de vida mais altos entre os panamenhos, forçosamente, reduzi­riam a diferença existente entre os meninos paname­nhos e os americanos. Além disso, a altura média dos meninos panamenhos aos dezessete anos era 1,67 metros - perfeitamente dentro dos limites de variação indivi­dual dessa mesma idade no grupo (latino) do Mediter­râneo que vive na zona temperada. Nem a altura, nem o pêso do indivíduo têm qualqJ-1er correlação com a capacidade mental e a aquisição de cultura. Têm exis­tido homens, excepcionalmente dominadores e enérgicos, extremamente baixos ou excessivamente altos. Os egíp­cios, um povo que tem a seu crédito inúmeras contri­buições culturais, eram sabidamente baixos e fisicamente leves. Todos os grupos raciais estão sujeitos a modi­ficações decorrentes da influência do ambiente, como é o caso dos filhos de imigrantes nos Estados Unidos que são mais altos do que seus pais. Essas modificações não têm qualquer correlação com suas aptidões cultu­rais. A importância dêsses estudos da biologia tropical é ter demonstrado que o clima tropical, como qualquer outro clima, requer do homem certos engenhos e hábitos que facilitem a habitação humana e o desenvolvimento cultural. Parece estar provado, por exemplo, que, nos trópicos, o homem necessita ingerir menos caloria~, uma' dose diferente de vitaminas, vestimentas especiais para o proteger contra o sol e outros equipamentos apro­priados, como os que usamos contra o frio.

28

Page 29: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O clim_a. da Amazônia é, certamente, quente e úmido. No mapa, o equador parece cort'ar em duas essa área. Existem, entretanto, inúmeros conceitos errôneos sôbre o clima da Amazônia.· O calor não é insuportável. A temperatura média de Manaus é, apenas, 25,6.° C. e a máxima registrada nessa cidade durante um período de trinta anos foi 36,2.0 e. - mais ou menos correspondente a uma onda de calor no ve­rão novaiorquino, e nada inusitado no meio-oeste se­tentrional americano. A diferença da temperatura, durante o dia e a noit'e é, frequentemente, de 9,44.0 e. na Amazônia. Aliada a uma aragem constante, a tem­peratura mais baixa torna as noites bastante confor­táveis. A umidade, entretanto, é grande; em Manaus é, em média, de 78 por cento. A umidade e, talvez, a falta de variação de temperatura através das estações, são os aspectos mais desconfortáveis do clima. A dife-

. rença entre o mês "mais quente" e o mês "mais frio" é apenas de quatro graus. Para os habitantes da Ama­zônia as ~sta_çõ~s são marcadas, mais pelo volume das chuvas do· que pela variação da temperatura. Embora as chuvas sejam abundantes durante todo o ano, atin­gindo em média 2,03 metros nos rios mais altos e ligei­ramente menos perto da costa, o período de janeiro a junho é a "estação chuvosa" chamada de "inverno". Durante êsses meses chove quase todos os dias e os rios transbordam. Os outros meses do ano formam a "es­tação sêca" ou "verão". Durante o verão muitos são os dias sem chuva e esta, quando cai, é sob a forma de tempestades, rápidas e violentas. Durante êsses meses baixa o nível das águas nos rios e secam as várzeas.

As esta,ções tropicais da Amazônia, apesar da falta de contraste entre suas temperaturas, afetam tanto a vida do homem quanto as das zonas temperadas. En­quanto as temperaturas geladas do inverno, nas zonas

29

Page 30: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

temperadas, exigem o aquecimento das casas e roupas especiais, as chuvas constantes do inverno amazônico e a inundação das vãrzeas que cobrem os caminhos, impedem as pessoas de deixar os seus lares. A pesca não é rendosa durante êsses meses e a borracha não pode ser extraida. O verão, ao contrário, é um período de atividade - de plantação, de produção de borracha, de pesca, de visitas e festas. Nas cidades as ruas são sêcas e, nos distritos rurais, os caminhos são transitá­veis. Nos principais afluentes do rio Amazonas desco­brem-se as praias de areia onde as t:artarugas depositam os seus ovos. As expressões locais "verão" e "inverno" têm conotações anãlogas aos têrmos correspondentes usados nos climas temperados; referem-se às diferenças acentuadas do ciclo anual que quebram a monotonia da vida e às quais o homem associa suas diversas ativi­dades. O clima da Amazônia tem as suas grandes des­vantagens, mas, sob muitos aspectos, é melhor do que os grandes extremos de temperatura ·de várias áreas da América do Norte. O clima não é uma barreira impos­sível de se transpor.

Um dos mais fortes argumentos contra as regiões tropicais baseia-se na prevalência das doenças, princi­palmente as chamadas "doenças tropicais", que são consideradas o maior empecilho ao progresso daquelas áreas. O fato de conterem as zonas quentes e úmidas, não só grande parte das moléstias comuns às zonas tem­peradas, como também uma série de doenças locais, é considerado um obstáculo intransponível. A leishma­niose, uma ulceração tropical; a filariose, que provoca uma deformação monstruosa conhecida como elefantíase ; (11) a oncocercíase, causada por uma larva que pene-

(11) Estado crônico causado pela obstrução dos canais linfáticos e caracterizado pelo crescimento monStruoso dás partes afetadas.

30

Page 31: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tra no couro cabeludo; a tripanossomíase, causada por um minúsculo parasita que penetra na corrente san­guínea e até nos tecidos; ( 12) e o fogo selvagem, uma doença contagiosa da pele que cobre ràpidamente todo o corpo, são, . de fato, horrorosas. ~ssa~ moléstias exó­ticas, entr!,lt!lnto, são de distribuição limita-da e só rara­me-nfe, como acontece com o tipo de tr"ipanossoma da África, são de incidência bastante alta para constituir séria ameaça à saúde de tôda uma população. A mais espalhada e mortal das "doenças tropicais" é a malária, embora sua distribuição não se limite estritamente aos trópicos. São bem conhecidas as devastações causadas pela malária no mundo tropical, no passado e no pre­sente. Os parasitas intestinais, inclusive a ameba e os bacilos causadores da disenteria, e o ancilostoma, pro­liferam nos climas quentes e úmidos. CalCula-se que cêrca de 90 por cent'o da população rural da Bacia Amazônica está infectada com uma ou outra variedade de parasita intestinal. A tuberculose, a sífilis, que absolutamente não estão limitadas às zonas tropicais, constituem também sério problema para a Amazônia. A bouba (framboesia), doença contagiosa que se asse~ melha à sífilis, é muito comum, principalmente na Bacia Amazônica inferior. ( 13)

A prevalência da maioria dessas doenças não pode ser linicamente atribuída ao clima; são mais propria­mente uma conseqüência do atraso da região do que a sua causa. A tuberculose, como se sabe, decorre do baixo padrão de vida e da sub-alimentação. A preva­lência dos parasitas intestinais é devida, principalmente, à falta de um sistema adequado de águas e esgotos.

(12) A doença do sono da África é conseqüência de uma forma de tripanossoma.

(13) A bouba cede fàcilmente com o tratamento de arse­niato de chumbo.

31

Page 32: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

A instalação de fossas sanitárias e de rêdes modernas .de águas e esgotos, pelo serviço de saúde pública da Amazônia, reduziu a incidência das infecções intestinais. A sífilis e a bouba ·são moléstias sociais. Não ofere­cem, hoje em dia, qualquer dificuldade de cura e a prevenção de ambas é uma questão de educação pública. A malária, a "doença tropical" que tem o maior índice de mortalidade na Amazônia, está atualmente cedendo, graças a medicamentos poderosos e às novas medidas de caráter preventivo.

O SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), úin programa de saneamento mantido em cooperação com o Instituto de Assuntos Inter-Americanos, entidade do govêrno dos Estados Unidós, tem realizado, com êxito· surpreendente, o expurgo das casas e edifícios públicos contra o mosquifü da malária, utilizando uma solução de 5 por cento de DDT - o novo inseticida maravi­lhoso - diluído em querosene. Das 146 comunidades trabalhadas pelo serviço de dedetização do SESP na Amazônia, foi destacada para "contrôle" a pequena cidade de Breves, situada na região do delta. Breves era notoria por suas epidemias quase anuais de malária. Um inquérito realizado em julho de 1943 revelou que 45 por cento da população da cidade tinham o baço aumentado em conseqüência da malária e que 22 por cento tinham ·parasitas da malária no sangue. O ex­purgo de DDT realizado em Breves, teve início. em maio de 1946 e um ano depois novo inquérito revelou que o índice de esplenomegalia havia baixado para apenas 16,8 por cento, e que somente 1,6 por cento da popu­lação tinha parasitas da malária no sangue. Em maio de 1948 êsses índices haviam sido reduzidos para 8,3 e 0,3 por cento, respectivamente. Depois do terceiro mês de dedetização, nenhum exemplar da espécie de anofelino, conhecida como o vetor da malária na re-

32

Page 33: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

gião, fôra encontrado nas casas àe Breves. Após os seis primeiros meses de expurgo, apenas urts ·casos esporádicos de malária se manifestaram nos residentes da cidade e, êsses, os médicos consideraram recaídas em sua maioria ou infecções contraídas em viagens fora da comunidade. (14) O emprêgo do DDT cm outras comunidades da Amazônia teve os mesmos resultados, sendo a droga atualmente usada em todo o mundo para a mesma finalidade e com o. mesmo êxito.

O contrôle da malária já não constitqi um pro­blema sério para o desenvolvimento das regiões tropi­cais. O contrôle de outras dq_enças de alto índice de mortalidade na Amazônia é, fundamentalmente, uma questão de melhores condições de vida, melhor regime alimentar, maior educação do povo e da ampla utili­zação dos conhecimentos e equipamentos científicos de que a humanidade já dispõe. Algumas doenças pode­rão, ainda durante alguns anos, desafiar o contrôlc, c01110 a paralisia infantil nas zonas temperadas, até que novas descobertas científicas forneçam ao homem novos meios de dominar seu ambiente.

A saúde da população da Amazônia, entretanto, depende tanto da melhoria da alimentação, como de melhores recursos médicos. Um regime alimentar me­lhor para a maioria da população amazônica depende, por sua vez, do aumento da produção agrícola na região, Neste caso, também o ambiente tropical parece estabe­lecer um limite ao desenvolvimento cultural. Embora seja crença geral que os solos tropicais, com sua vege­tação exuberante e viçosa, de crescimento tão prodi-

(14) L.M. Deane, Freire Serra, W.E.P. Tabosa e José Ledo, "A Aplicação domiciliar de DDT no contrôle da ma­lária em localidades da Amazônia", Revista do SESP, Ano 1, No. 4, pp. 1121-1139, Rio de Janeiro. ·

33

Page 34: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

gioso, sejam extraordinàriamente ricos, esta não parece ser a verdade. Os solos tropicais foram, em geral, julgados pobres pelos geólogos. A vegetação cresce rà­pidamente devido ao clima quente e úmido que dura o ano todo; entretanto mesmo as raízes das grandes árvores são surpreendentemente rasas. A camada de húmus é fina. A rápida decomposição da matéria orgânica nos trópicos faz com que o depósito de húmus seja lento, até mesmo na floresta densa e, quando se procede ao desflorestamento para cultivo ou estabeleci-­mento de i~úcleos coloniais, a erosão e a lixiviação cedo exaurem a terra. As CQiliosas chuvas tropicais dissolvem. O§ nitrâtos do solo, deixando expostos os minêr1õs"inso­lúveis de ferro e alumínio. Êstes são cozidos pelo sol abrasador que os transforma em laterita - nódulos ro­chosos. Os solos de laterita não são próprios para a

1 agricultura e os alimentos que êles produzem são con­siderados pobres em sais minerais, como cálcio, ferro e cloreto de sódio. (15) A laterita forma a base dos solos arenosos da Amazônia e, em certas localidades, chega a aparecer na superfície. Os solos são evidente­mente inferiores aos das áreas temperadas mais favo­recidas.

Entretanto, no afã de corrigir o falso conceito popular sôbre a fertilidade dos trópicos, pode-se, fàcil­mente, exagerar a pobreza do seu solo. Certo geólogo chegou à conclusão de que, apesar da qualidade me­díocre de seus solos, mais de 70 por cento da área total do Vale Amazônico é propício à agricultura. (16) Mas nem todos os solos da Amazônia são medíocres. ..Q§ solos ~ j]terjta só se encontram na ~ada terra

1írme, a terra que fica acima. do !!ÍYlll alcançado pela_s._ - --34

(15) Vide Josué de Castro, op. cit., p. 73. (16) Ibid., p. 106.

Page 35: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

_!Pci.as periódicas ~ r!2:, Existem extensas áreas de solo fértil, principalmente nas baixadas aluviais, muito embora a maior parte do Vale seja formada de terra firme, apesar de não ser esta a impressão do viajante para quem a Amazônia parece um vasto pântano. Com o advento das viagens aéreas para a Amazônia, tor­nou-se claro que há numerosos pousos na floresta tro­pical e que grande parte da área é constituída por terra firme. A parte oriental da ilha de Marajó, na desem­bocadura do rio, a região do alto rio Branco, na fron­teira brasileira com a Venezuela e a Guiana Inglêsa, e uma extensa área do Vale, ao norte de óbidos e Monte Alegre, são savanas de solo relvoso. Tais sa­vanas, que cobrem mais de 32 .100 quilômetros qua­drados, foram classificadas como "extraordinàriamentc adequadas à criação do gado e talvez mesmo à agricul­tura em geral". (17) Além disso, em vários pontos do rio, erguem-se ribanceiras de 30 a 50 metros e, nas vizinhanças de Monte Alegre e Santarém ainda existem remanescentes de montanhas e platôs que se elevam a mais de 300 metros acima do nível do rio. Como es­creveu o geógrafo Pierre Gourou, "Longe de ser um lago ou um pântano, a Amazônia ergue-se abruptamente acima dos vales de depósitos aluviais, formando um platô baixo, livre de inundações". (18)

Como a maior parte das planícies inundadas pelos sistemas fluviais, a do Amazonas é extensa. Abaixo de Manaus a área anualmente inundada pelo rio é de 40 a 50 quilômetros de cada lado. Como acontece com o Mississipi, as cidades e aldeias ribeirinhas estão si-

(17) Earl Parker Hanson, The Amazon: A New Fron­tier (Foreign Policy Association Pamphlet No. 45, 1944), pp. 22-23.

(18) "L'Amazonie", Cahiers à'Outre Mer, Vol. II. No. 5 (1949), pp. 1-13.

35

Page 36: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tuadas nas ribanceiras e nos afloramentos de terra firme. É lamentável que essas baixadas não sejam mais extensas, pois que os trechos de área inundada são especialmente ricos, como é o caso de vários deltas. A. exploração científica dessas terras de aluvião; tão pouco usadas pelo lavrador da Amazônia, multiplicaria muitas vêzes a produção de alimentos nessa região: (19) ·Também os solos medíocres de terra .firme podem ser "trabalhados para produzir mais. Gourou salienta que uma única e pequena área do Vale, a que se estende ao .longo da estrada de .ferro, .entre Belém e Bragança e é formada de terra .firme, sustenta uma popu.lação muitas vêzes mais densa do que a popu.lação média de todo o Vale, sem ter efetuado qualquer modificação essencial nos métodos tradicionais de cultivo. O· solo amazônico não é de maneira alguma comparável ao de áreas .fér­teis e produtivas como as do meio-oeste dos Estados Unidos; pode, entretanto, vir a produzir alimentos, não só para a população atual da Amazônia, como para um número de pessoas muitas vêzes maior.

É preciso salientar ainda que a qualidade do solo é apenas um dos muitos fatores que determinam sua produtividade. Como escreveu um geógrafo, "A .fer­tilidade não é uma qualidade inerente apenas ao solo; pede ser também avaliada em têrmos de utilizações espe­cíficas do solo". (20) As Grandes Planícies dos Es­tadofl Unidos, onde estão atualmente localizadas nossas grandes plantações de trigo, de produção prodigiosa, jã .foram inacessíveis ao índio ~mericano que não possuía o arado europeu para amanhar a gleba rija. Desti­tuidos de conhecimentos e dos equipamentos técnicos

(19) Gourou, Les Pays t1·opicau:r:, p. 6. (20) Preston James, Latin America (New York, 1942),

p. 543.

36

Page 37: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

adequados, os simples aborígines da Tasmânia supriam uma existência apenas miserável com o produto de uma terra potencialmente rica. (21) A terra só é útil ao homem na medida em que êle pÕssui o equipamento cÜITu.i:aI, em um determinailo lugar ou ocasião e na medida em que dêle sabe se utilizàr~ Com os conheci­mentos que possui atualmente sôbre a fertilização quí­mfoa de solos pobres, a adaptação das culturas a deter­minados solos e outras técnicas da agronomia moderna, o homem não deveria ter dificuldade em melhorar a produtividade dos solos na Amazônia. Mesmo as ino~ vações técnicas mais elementares seriam infinitamente superiores ao sistema agrícola primitivo empregado atualmente em todo o Vale.

Não sendo o "V;ale Amazônico um ambiente parti­cularmente propício ao homem, ainda assim tem-se que concluir que o ambiente físico não é o obstáculo mais sério ao seu futuro desenvolvimento e à melhoria dos padrões de vida de seus habitant~s. Todos os povos têm a mesma potencialidade para melhorar sua condição social; o ambiente físico em que vivem é ape-1ms um dos muitos fatores que determinam o completo ajustamento do homem à sua ambiência. Como de­clarou recentemente um escritor: "A terra, o cl.ima, as riquezas minerais, não são fatores - determinantes do_ p_i:ogresso humano. São meros determinantes dos limites teóricos que o habitante nativo não pode ultrapassar. ,;\ ciência e a técnica estão ampliando êsses limites, mas elas são finitas. Até que ponto uma determinada nação

(21) C. Daryll Forde, Habitat, Economy anã Boctety, 6• ed. (Londres, 1948), p. 100, salienta que "o clima estimu­lante da tempestuosa zona ocidental (da Tasmânia), a que tão freqüentemente se atribui o vigor dos povos da Europa ocidental, não estimulou qualquer nova conquista de sua cul­tura (da Tasmânia)."

37

Page 38: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

consegmra aproximar-se dos limites finitos da civili­zação dependerá dos fatores humanos". (22) :Êste "limite finito" está ainda no horizonte distante para a Bacia Amazônica, onde· a ciência e a técnica· mo, dernas são pràticamente desconhecidas. Os "fatores humanos", dos quais tanto depende, são parte inte­grante da cultura e do sistema social de um povo. São as tradições culturais dêsse povo que lhe proporciona­rão os instrumentos, o conhecimento e a técnica para enfrentar o ambiente. É a cultura que determina os fins para os quais os homens de uma determinada área fazem uso de sua técnica e é o sistema social que deter­mina a organização de trabalho e a distribuição dos produtos dêsse trabalho.

As principais razões que fazem do Vale Amazônico uma área atrasada e sub-desem;olvida têm que ser bus­cadas na cultura e na sociedade amazônica e nas rela­ções dessa região com os centros do poder econômico e político e com as origens da difusão cultural. Quais são os equipamentos técnicos de que dispõem os habi­tantes da Amazônia para explorar seu ambiente 1 O que é que representa uma "boa vida" para o homem da Amazônia? Em outras palavras, quais são seus incentivos, suas motivações, sua escala de valores Y Qual a forma local das instituições fundamentais e universais - família, igreja e govêrno - pelas quais o homem de tôda parte organiza sua vida Y Qual tem sido a relação econômica e política da Amazônia com o resto do mundo? A resposta a essas perguntas dirá por que razão essa região é atrasada.

:Êste livro, portanto, é o estudo de uma cultura, do modo de vida criado pelo homem do Vale Amazônico

(22) Howard A. Meyerhoff, "Natural Resources in Most of the World", in Most of the World, ed. Ralph Linton (New York, 1949), p. 92.

38

Page 39: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

do Brasil. Já que as culturas, histõricamente, são desenvolvidas e já que se formam de elementos de ori­gem largamente difundida pelo empréstimo de outras culturas, temos que procurar, no passado e além do Vale, as origens e os acontecimentos que influenciaram a cultura contemporânea da Amazônia. O conhecimento do modo de vida do homem da Amazônia fornecerá os indícios do que deverá ser modificado para que pos­sam ser melhorados os padrões de vida. ~sse conheci­mento nos permitirá prever algumas das reações que não poderão deixar de provocar a introdução de novos dementos na cultura amazônica. O ideal que consiste em "fazer com que os benefícios oriundos de nossas conquistas científicas e de nosso progresso industrial concorram para o progresso e o crescimento das áreas sub-desenvolvidas" requer uma reforma cultural. Nãó é um processo simplista de enviar técnicos especializados para essas áreas, de realizar inquéritos e estudos para apurar os recursos econômicos básicos das mesmas, ou mesmo de enviar trabalhadores, engenheiros, administra­dores e outros especialistas para estudar nos Estados Unidos e lá adquirirem a experiência acumulada por aquêle país - embora todos êsses esforços sejam pro­veitosos. O que a tarefa requer é a I.!.10dificação de uma cultura - de um mogQ qe yida - ~ o reajusta­mento das relações de um povo com o ambiente que o cerca.

Qualquer idéia nova só será aceita se, na cultura preexistente, houver uma base que torne útil o elemento. Um programa destinado a introduzir práticas agrícolas modernas não se pode limitar a proporcionar métodos mais eficientes, como há muito compreendeu o Minis­tério da Agricultura dos Estados Unidos; êsses mé­todos precisam agradar ao povo. Certas culturas, fre­qüentemente, apresentam barreiras a métodos ainda

39

Page 40: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mais eficientes. O simples fato de que o solo de uma determinada região seria mais produtivo se nêle se plantassem batatas ou feijão soja não basta para per­suadir um povo, cujo prato de resistência é o arroz. Para se conseguir introduzir o cultivo da batata em nma situação destas, tem-se primeiro que modificar há­bitos e preferências alimentares - ou então criar um mercado para o produto. Se a agricultura é 'intima­mente ligada ~i. religião, como no caso dos índios da Guatemala, os novos métodos de cultivo e as novas cul­turas irão interferir com a religião ; a menos que êsses métodos e culturas estejam integrados no sistema reli­gioso, sua introdução entrará em conflito com o mesmo. O homem não é um ser racional no sentido de que seu comportamento é sempre motivado pelo seu próprio c absoluto interêsse - seu conceito do que constitui "inte­rêsso" ó determinado pelos valores de sua cultura par­ticular.

A cultura, além disso, não é transmitida de ma­neira mecamca, como um carregamento de mercadorias que se transfere de um grupo para outro. Uma vez aceitas por um povo, as inovações tornam-se parte do sua cultura e por ela são modificadas. Os novos ele­mentos adquirem nova forma e significação, diferentes das que possuíam na cultura de origem. A introdução de novos elementos, por sua vez, provoca reajustamentos na cultura emprestada. Basta observar algumas das numerosas inovações introduzidas na cultura americana na última geração. O cinema foi moldado de várias maneiras pela cultura americana; o cinema, por sua vez, m·odificou a vida social americana e, de certa forma, sua vida de família. Está agora sofrendo efeitos se­cundários semelhantes com o advento da televisão. O desenvolvimento da indústria nas áreas não-industriais exigirá novas formas de colonização, a reclassificação

40

Page 41: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

das classes econon11co-socia1s, modificações na estrutura da família e até mesmo nos hábitos mecânicos do povo que terá de aprender a manipular máquinas. Os pro­jetos de recuperação ou divisão da terra exigirão novos moldes de posse e utilização da terra, novos métodos de cultivo e muitas outras modificações, diretas ou indi­retas, na sociedade e na cultura do povo em questão. Conquanto a cultura, não seja uma máquina on um organismo - as duas analogias foram usadas por teó­ricos - é um sistema interligado. E a introdução de novos elementos requer o reajustamento do sistema. Qualquer programa destinado a introduzir a técnica moderna e a indústria no meio de um povo "atrasado" terá que considerar as extensas modificações sociais e culturais que elas implicam.

41

Page 42: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

2. UMA COMUNIDA­DE AMAZÔNICA.

Uma comunidade isolada nunca é típica de uma regiao ou uma nação. Cada qual tem suas próprias tradições, sua história particular, suas variações espe­ciais do modo de vida regional ou nacional. A cultura de uma região ou de uma nação moderna possui uma

42

Page 43: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

organização muito maior do que a simples soma das comunidades que a integram. Existem _ins_tituições e poderes sociais de âmbito regional,- nacional e até mesmo' internacional, que determinam a tendência de vida de. cada pequena cumunidade. A igreja, as instituições políticas, o sistema de educação convencional, o sistema comercial e muitos outros aspectos de uma cultura, são muito mais difundidos e mais complexos em sua organização do que parecem quando observados em uma comunidade. Nem poderia qualquer simples co­munidade possuir tôda a amplitude de uma cultura regional; não possuiria tôdas as classes sociais, tôdas as ocupações ou todos os partidos políticos que se en­contram em uma região inteira. O estudo de uma pe­quena aldeia Bbtl'J'ÍCola dos Estados Unidos, por exemplo, não nos revelaria, provàvelmente, tôda a complexidade. da organização operária americana, do intricado sistema comercial e financeiro ou da ostentação de rique:la que se observa em suas grandes cidades. Entretanto, os estudos do sistema bancário de uma região, da organi­zação formal e da doutrina de sua religião, de suas importações e exportações, ou da dinâmica de sua po­pulação, .pos têrmos impessoais e objetivos dos econo­mistas e sociólogos, são absolutamente inexpressivos. Nada revelam das circunstâncias da vida, ou do fun­cionamento dos amplos padrões e instituições tais como são vividos pelo povo.

Por tôda parte as pessoas vivem em comunidades - em bandos, em aldeias, em núcleos agrícolas, nas; pequenas e nas grandes cidades. Nas comunidades'll existem relações humanas de indivíduo para indivíduo/ {~ nelas, todos os dias, as pessoas estão sujeitas aos pre­ceitos de sua cultura. É nas suas comunidades que os habitantes de uma região ganham a vida, educam os filhos, levam uma vida familiar, agrupam-se em asso-

43

Page 44: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ciações, adoram seus deuses, têm suas superstições e seus tabus e são movidos pelos valores e incentivos de suas determinadas culturas. Na comunidade a econo­mia, a religião, a política e outros aspectos de uma cultura parecem interligados e formam parte de um sistema geral de cultura, tal como o são na realidade. Tôdns as comunidades de uma área compartilham a herança cultural da região e cada uma delas é uma manifestação local das possíveis interpretações de pa­·drões e instituições regionais.

Qualquer .comunidade da Amazônia brasileira con­viria aos nossos propósitos, como laboratório de estudos de uma cultura regional e da forma pela qual ela é preservada por um grupo de habitantes da Amazônia. :Êste estudo focalizará u:m,a pequena comunidade ama­zônica a que chamaremos Itá, nome fictício de uma aldeia real, no Baixo Amazonas, na qual o autor e seus colaboradores viveram e estudaram. Não é uma cidade .média da Amazônia. Monte Alegre, Óbidos, Faro, Abaetetuba e muitas outras são maiores, mais prósperas e mais adiantadas. Existem diferenças de padrões culturais característicos do Alto Amazonas, do Salgado e das Ilhas, que não se manifestam na cultura de Itá. "rtá, entretanto, convém admiràvelmente a um "estudo

· de caso". Possui uma longa história que reflete a maioria das tendências da história regional. O modo .de vida atual de Itá e dos núcleos agrícolas que a cer­cam pode parecer antiquado e atrasado para os mora­dores de Belém, Manaus ou mesmo de Santarém, mas é semelhante, em suas linhas gerais, ao da maior parte da população rural da Bacia Amazônica e dos habitant('s 9os bairros operários das cidades, que estão repletos de emigrantes recém-chegados. Por ser ltá uma co­munidade pobre, sem qnálquer indústria Oll predicado

44

Page 45: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

natural e sem qualquer característica distinta, o estudo dessa aldeia focaliza exatamente o elemento comum a· todos os problemas básicos da região.

II

Itá :está situada em uma sub-região conhecida como o Bàixo Amazonas, abaixo da confluência dos rios Ne­gro e Solimões. Estando, além disso, perto das Ilhas do delta, .duas sub-regiões ecológicas afetam a vida da comunidade. É um povoado de cêrca de quinhentos habitantes, mas, apesar disto, é a sede da municipali­dade que tem jurisdição sôbre uma área de .Q. 094 qui-

_ lômetros q_uadrados - quase a superfície do estado de Rhode lsland, nos Estados Unidos. A cidade está situada numa pequena elevação formada por um aflo­ram~nto de laterita, a três ou quatro metros apenas sôbre o nível do rio, mas de onde se descortina uma paisagem que se estende por milhas e milhas, para cima e para baixo do canal meridional do Amazonas. Vista do rio, a cidade é uma pausa repousante na mo­nótona sucessão de matas que cobrem as margens do Amazonas. Destaca-se, nítida e colorida, do fundo verde-escuro da vegetação. A igrejinha, branca e lu­minosa, com o seu telhado côr de barro, é o primeiro edifício que se distingue. Depois vêm a Prefeitura, com seu prédio de dois andares recentemente terminado, e uma fila de casas baixas, pintadas de côres claras, de frente para o rio. Há um trapiche municipal, verme­lho-escuro, construido sôbre estacas no can.al do rio e ligado à terra por uma longa prancha. Um pouco além, descendo o rio, vê-se um trapiche menor, de pro­priedade de um comerciante local, ao qual está amar­rado um barco a vela côr de ferrugem. Os navios

45

Page 46: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

fluviais que atracam em Itá utilfaam sempre o trapiche municipal que possui um pequeno armazem coberto. Assim vista do. rio, a cidade parece um quadro emol­durado pela folhagem verde-escura das mangueiras enormes e das palmeiras majestosas que lhe guarnecem as beiras. Parece um recanto sedutor.

Mas, quando se deixa o barco e se atravessa a prancha, esfuma-se o cenário romântico e surge a rea­lidade. A rua que fica defronte do rio não tem calça­mento, como tôdas as ruas de Itá. Se fôr na época das chuvas a rua será um mar de lama. Uma calçada enfeita a frente de algumas casas da rua fronteirn ao rio, mas as outras erguem-se diretamente da via pública. Grande parte dos prédios está em péssimo estado de conservação e um ou dois estão a ponto de cair aos pedaços. Nas ruas mais afastadas do rio as. casas são menos coloridas e mais desmanteladas e encontram-se numerosas cabanas cobertas de folhas de palmeira onde mora a populaÇão mais pobre. Itá apresenta ao rio o seu melhor perfil, mas, vista de perto, até a sua orla fluvial está estragada pelo uso.

Um mapa exposto na Prefeitura mostra que Itá tem um plano de urbanização de traçado em xadrez. Três ruas principais acompanham o rio e dêste saem as travessas que lhes são perpendiculares. No mapa vêem-se três praças públicas, e um parque à beira do rio. Tôdas as praças e ruas têm nomes. Cada rua tem o nome de um herói da história do Pará; as tra­vessas têm nomes de santos, e duas das praças rece·· beram nomes de homens famosos. Logo, porém, tor­na-se evidente que o plano de urbanização foi lidéia importada. Os nomes indicados no mapa são raramente usados, quando o são. As ruas são conhecidas como "Rua Primeira'', "Rua Segunda" e "Rua Terceira"

46

Page 47: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

(começando do rio) e, do nome das travessas, ninguém se lembra. As ruas são bastante retas e as praças bem demarcadas, mas as travessas serpenteiam por entre as casas, de maneira estonteante, e são, algumas delas, pouco mais largas do que picadas.

A Prefeitura, que está situada no centro da praça principal, pode ser considerada o coração da cidade. Ocupando todo um lado da praça, el"gue-se o posto de saúde pública, com seu pátio ajardinado e uma horta. A outra praça é vazia, tendo apenas uma pequena estátua erguida em homenagem a um herói do estado. Os outros dois edifícios públicos importantes, a escola e a igreja, estão situados além da comprida Rua Pri­meira, um pouco afastados da cidade. A escola, instalada em um prédio novo, construido pelo govêrúo federal para educação de adultos, é uma construção de adôbe, coberta de telhas. Tem uma sala de aulas e várias dependências ' destinadas à moradia do pro­fessor e sua família. A igreja fica distante da escola algumas centenas de metros, 'bem mais afastada da aldeia, contrariando o costume geral da Amawnia que faz da igreja o seu principal edifício. Entre a igreja e a escola existe um campo de futebol onde, nas tardes de domingo dos meses de "verão", jogam os dois times de Ita, de composição um tanto ou quanto precária.

As quadras formadas pelo cruzamento das ruas e travessas traçadas no plano da cidade são, na reali­dade, difíceis de distinguir. Existe, aqui e ali, tuna. quadra totalmente construida, mas são tantos os lotes vazios que a configuração do plano fica completamente destruída. Pequenos caiv.inhos vão-se formando por entre os espaços vazios até se perderem no matagal da Rua Terceira. E, no entanto, com tanto espaço disponível, as melhores residências de Itá são cons-

47

Page 48: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

truidas diretamente na rua, de parede e meia, apre­sentando ao transeunte uma fachada compacta. O quintal, cercado por muros, é a parte mais importante dessas compridas casas que são ·muito maiores do que parecem, vistas da rua. Hoje em dia, apenas duas quadras completas de Itá estão solidamente construidas il maneira tradicional. Em conseqüência ao rápido de-

,clínio da população, depois do surto da borracha .na Amazônia, muitas casas estão em ruínas; além disso, a tendência atual de construir as casas cercadas de jardins transformou o aspecto da cidade. Na Rua Primeira há uma série de bangalôs para duas famílias que foram construidos em virtude de um projeto do govêrno municipal. Estão afastados uns dois ou três metros da rua e têm entre êles um pequeno espaço. Estas são as casas do prefeito, do chefe de polícia, do coletor federal de impostos, da agente do correio ( q ne· faz da sua sala a agência), e do agente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Apesar dessas casas novas terem espaço suficiente para a circulação do ar, seus tetos são incrivelmente baixos e os quartos muito pequenos, sendo ainda expostas ao sol por todos os lados. E, conquanto sejam modernas, seu projeto não se adapta ao trópico amazônico; além disso, são muito menos confortáveis do que as velhas casas tradi­cionais, com seus tetos altos e suas varandas acolhe­doras dando para o quintal sombrio.

Com exceção de uma, tôdas as demais casas comer­ciais de Itá estão situadas na Rua Primeira. A exce­ção, que fica atrás da Prefeitura, na Rua Segunda, é uma pequena loja desprovida de estoque. Dos três armazens da Rua Primeira, a Casa Gato, que se vem mantendo desde os tempos do surto da borracha, é de todos o que tem maior estoque. Além do mais su_a situação .é ideal, perto do caminho de pranchas quê

48

Page 49: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

]eva ao trapiche municipal. Os outros estão situados mais abaixo na rua e foram instalados mais recente­mente. :i!lsses armazens são também residências. Uma sala grande, de frente para a rua, é a loja, que contém um balcão e a mercadoria. Atrás da loja há um

~!\".!ª!lde dep6sito onde são guar(fados a bo~racha e os outros produt'os que o negociante recebe em troca de mercadoria, além da mercadoria a granel, como sacos de sal, etc. Os .freguêses perambulam pelo armazem e a cachaça é servida no balcão. Os cômodos em que Yivein o negociante e sua família ocupam um lado da casa e êle, muitas vêzes durante o dia, foge para os fundos para bater um papo coní a· família. Os fre­guêses importantes são convidados para a sala de vi­sitas ou, se são íntimos, para a sala de jantar, onde tomam o inevitável cafezinho.

Todos os prédios da Rua Primeira são construidos de taipa ou madeira, todos têm chão de tábuas ou ci­Jnento e. telhados de ·barro- e todos são pintados de branco ou de côres claras. :Êste tipo de residência é classificado, em !tá, como casa, a fim de se distinguí-lo das construções ruais frágeis, cobertas de folhas de pal­meira, chamadas barracas. Com exceção de duas, tôdas as residências da Rua Terceira são barracas. São construções de dois ou três cômodos, com paredes e teto de folhas de palmeira trançadas e apoiadas em estacas fincadas no solo úmido. O soalho, geralmente feito de tabuinhas cortadas do tronco da paxiuba, é irregular, mas algumas dessas barracas têm chão de pranchas d~ madeira. As residências da Rua Segunda. são uma mistura dêsses dois tipos. Existem algumas construções que o povo chama de "casas" apesar de estarem em péssimas condições, e existem "casas" de taipa, pintadas de branco, com telhado de folhas de palmeira. Algumas dessas residências da Rua Segunda

49

Page 50: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

são francamente barracas. Uma das "casas" ela Rua Segunda é também uma padaria onde o padeiro e sua mulher fazem pão de trigo, quando êste é encontrado. A casa de fôrça da usina elétrica, onde é guardada a maquinaria do antigo gerador termo-elétrico, tam-' bém fica na Rua Segunda que se gaba ainda de abrigar dois barbeiros, um dos quais instalou a sua barbearia num dos quartos da sua casa. Em 1948, um sapateiro recém-chegado, que não pretendia ficar por muito tempo na cidade, instalou uma barraca na Rua Se­gunda. Em Itá, portanto, as residências melhores e mais permanentes ficam à beira do rio, enquanto as barracas pobres estão situadas longe dêle, escondidas da vista. Na Rua Segunda fica tôda a confusão do meio têrmo. O equivalente do bairro pobre em Itá é "do outro lado do rio".

A Rua Primeira e a Rua Segunda também são relativamente limpas, porque o govêrno municipal paga trabalhadores diaristas para arrancarem o mato durante a estação sêca. Essa limpeza das ruas é espe­cialmente caprichada nas vésperas de um feriado ou da visita de algum político de Belém. A Rua Terceira, porém, é coberta de vegetação, alta demais para se chamar de mato. Só aqui e ali um morador caprichoso teve o cuidado de limpar a área defronte à sua casa. Uma grande parte da Rua Terceira e das travessas que nela desembocam parecem serpentes ondulantes. Mas, como os que nela moram queixam-se do desleixo injusto de sua rua, o prefeito, de vez em quando, manda limpá-la.

Os prédios mais imponentes de Itá, como Jª vi­mos, são a igreja, a prefeitura e o posto de saúde. A igreja, uma construção alta e simples, foi recentemente reformada por um padre missionário alemão que, aju-

50

Page 51: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

dado por trabalhadores locais, substituiu todo o telhado e pintou as paredes de branco, por dentro e por fora. Eis porque ela é bastante austera, sem a decora1;;ão interna rebuscada da maioria das igrejas das pequenas cidades do Brasil. O posto de saúde é um edifício baixo, cujo projeto foi feito por um arquiteto suiço­americano e construido por engenheiros dos Estados Unidos que trabalharam junto ao serviço de saúde pú­blica do Amazonas durante a guerra. Tem uma va­randa comprida, grandes janelas com tela e outras, ~ompridas e estreitas, perto do teto, para ventilação, bem como outras características adequadas ao clima. Destaca-se, em Itá, como um prédio moderno que não é uma simples cópia dos edifícios da Zona Temperada e que, pelo menos, procura adaptar-se ao ambiente. O edifício de_d._ois~anil~~s dª-. _p_r_e_fcitm:a, -entretanto,. ê o

~ 'iriais famoso em todo o B.aixo .Amazonas. Faria honra a qualquer c1dade americana ou européia muito maior do que Itá. Uma parte do andar superior abriga todos os departamentos públicos, deixando vazio o primeiro andar. Erguendo-se bem no centro de uma das praças públicas, fica exposto ao sol de todos os lados e é muito pouco ventilado. Os escritórios do segundo andar fer­vem durante o dia. A prefeitura, como veremos, figura na história de Itá como um "elefante branco"; as des­pesas com sua construção drenaram várias vêzes os cofres públicos.

III

O mumc1p10, que tem sede em Itá, estende-se ao sul do Amazonas, rio abaixo, e inclui várias ilhas da região do delta. A área é tão grande que a maioria das oito mil pessoas 1que vivem dentro do município muito raramente ou nunca visita a cidade. Os agentes

51 ~-

• BiALlOTfCA 1 N. FlLOSOflA

Page 52: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ela coletoria federal que, em geral, são também comer­ciantes rurais ou negociantes, estão instalados em vários pontos da área. De temp.os a tempos, o prefeito, o coletor estadual, o coletor federal e at'é o chefe de po­lícia, realizam viagens de inspeção que duram de duas a três semanas. Ao longo das vias navegáveis do ml:l­mc1p10 foram instalados barracões comerciais, de intervalos em intervalos. A maioria dêsses barracões renova seu estoque e despacha os produtos que adquire pelos navios fluviais de propriedade de firmas comer­ciais de Belém. Cada barracão é freguês regular de uma determinada firma, cujos barcos fazem essa via­gem, mais ou menos, uma vez por mês. Como a maioria das exportações e importações dos barracões não atra­vessa a aldeia, Itá nãQ é o centro comercial da ~nida,dc;> nolítica que controla. Não e também o centro social do município. ós babitantes das localidades distantes da municipalidade vão às vêzes a Itá, na ocasião da festa anual de. São nenedito"; mas êste é um aconteci­mento que atrài gente de todo o Baixo Amazonas, e os moradores distantes ali comparecem como visitas, tal e qual as pessoas de fora. O município de Itá não é uma unidade social, ou mesmo geográfica, fàcilmente , controlada pela sua sede. Em algumas municipali­dades do Amazonas, como Altamira, no Rio Xingu, a sede está situada, estrategicamente, em locais em que o contrôle político pode ser exercido sôbre todo o seu território e todos os seus habitantes, mas em Itá até a unidade política é fraca.

Uma área mais restrita, que circunda a cidade .e abrange cêrca de um quinto de todo o território do município, considera a cidade o centro de sua vida econômica e social. A maior parte dessa área, que chamaremos de "comunidade de Itá", fica, como a ci­dade, na margem meridional do Amazonas, mas também

52

Page 53: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

inclui algumas pequenas ilhas do canal que fica de­fronte da cidade. (2). A área dessa comunidade encerra cêrca de duas mil pessoas, das quais apenas quinhentas, aproximadamente, moram na cidade. Em frente à cidade de Itá, o canal do Amazonas tem mais: de cinco quilômetros de largura, sendo a sua travessia, cm canoa ou barcos pequenos, bastante perigosa. Em vista disso, embora várias pessoas da margem meri­dional trabalhem regularmente na extração da borracha na Ilha Grande, como é conhecida a margem se­tentrional, as relações sociais com seus moradores são, geralmente, pouco freqüentes. O solo ao sul do rio é em grande parte constituído por terra firme. A área incluída na comunidade de Itá estende-se rio acima até o Rio Jocojó e, rio abaixo, até o Rio Pucuru, ambos pequenos afluentes, ou igarapés, do Amazonas. Entre êsses dois afluentes existem dez outros, e a po­pulação rural da comunidade mora em casas isoladas, espalhadas ao longo das margens dêsses riachos. Na realidade, a fq:r:ma de colonização em tôda a Amazônia é de pequenas casas disseminadas, próximas às vias fluviais, principais meios de transpork Há dois ca­niinhos terrestres, ·entretanto, que partem da cidade em direção este e oeste, estabelecendo comunicação por terra com as zonas rurais, durante o verão. Mesmo durante a estação sêca, entretanto, cargas e carrega­mentos pesados podem ser transportados por canoa.

Os que vivem às margens dos afluentes mais pró­ximos da cidade, como o Itapereira e Jacupí, vão à cidade quase diàriamente para comprar alimentos,

(2) Daqui por diante o nome de !tá será empregado para designar a comunidade - a cidade e a zona rural que a circunda - e não a unidade política, mais extensa, dêsse noine.

53

Page 54: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vadiar pelas lojas ou mesmo a fim de trabalhar para o govêrno municipal. Aquêles que vivem junto aos tributários mais distantes, como o Bacá e o Jocoj6, só visitam a cidade de dez em dez dias, para a quinzena (3), de comércio; urna vez ou outra, entretanto, também vão aos domingos, para assistir à missa ou em outro dia qualquer, para visitar amigos e parentes. Durante os meses de verão celebram-se inúmeras festas dé santos nas zonas rurais e para assistir a elas os habitantes dos numerosos pequenos tributários viajam para cima e para baixo. Dentro da área da comunidade tôdas as

. famílias enterram os seus mortos no cemitério da ci­dade; os que vivem fora têm os seus próprios cemire­rios. Existe na comunidade um forte sentimento de "bairrismo"; na ocasião das comemorações públicas do Dia da Independência e das festas de São Benedito e Santo Antonio a população a elas se refere coruo "nossas festas". As pessoas que vivem fora da comu­nidade são forasteiros; sua charanga, que sempre toca nos bailes da localidade, uma vez se recusou a tocar em uma festa de santo que se comemorava à beira de um riacho vizinho, fora, porém, da área da comunidade. Desculpou-se o chefe da banda dizendo que a gente era brava e que suas festas não passavam de farras. Não se sentia à vontade junto dêsses estranhos. Os mora­dores da beira de um tributário que•desernboca no canal do .Amazonas, do outro lado da cidade, e que está, por­tanto, fora dos limites da comunidade, disseram-nos urna vez: "Vamos às vêzes assistir aos seus festejos" ou "Há mais de dois anos não vamos a Itá".

Os que habitam as margens dos pequenos riachos constituem um "bairro", ou sub~unidade, por assim

(3) No Baixo Amazonas o dia do comércio era tradicio­nalmente marcado de quinze em quinze dias.

54

Page 55: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

dizei·, de uma unidade maior que é a comunidade. Às margens de um dêsses tributários há umas quinze oll vinte casas situadas em intervalos de duzentos, trezentos e até quinhentos metros umas das outras. Encontram-se às vêzes grupos de casas onde moram diversos membros de uma mesma família. Em um dêsses lugares, três casas, separadas uns cem metros apenas umas das outras, abrigavam as famílias de um homem c de seus dois filhos casados; em outro, seis casas espalhadas por :mais de três quilômetros ao longo de um afluente, acolhiam os seus primos. U.:m patriarca e seus genros, e uma viúva com suas três filhas e seus maridos for­)navam dois outros grupos. Conquanto os laços de família freqüentemente constituam fator importante para determinar a moradia das pessoas de um bairro e para assegurar a assistência recíproca entre os ha­bitantes, tais bairros não são grupos de família, como não são grupos sociais de clã. A residência cm co­mum, a amizade e o "parentesco espiritual" entre padrinho e afilhado constituem vínculos tão fortes quanto os de parentesco real entre -Osses vizinhos. -->A devoção por um 1 sànto partic:µlar é outra forma de vínculo que une os moradores de um determinado bairro. Em cada afluente há uma irmandade religiosa dedicada a um santo - a Nossa Senhora de Nazaré, a São Pedro ou São João. Todos os anos o dia do santo é comemorado na localidade e a organização da festa é uma tarefa importante da irmandade. Dentro dêsses bairros os homens trocam de trabalho uns com os outros e organizam grupos de trabalho cooperativo para a agricultura. Fora do círculo da família, o bairro é o cenário da vida diária na zona rural· de Itá. De fato, os laços de vizinhança são mais importantes para os seus habitantes da zona rural do que os de

55

Page 56: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

comunidade; no entanto, os bairros são subdivisões da comunidade. Os acontecimentos dos bairros rurais chegam depressa às ruas da cidade.

Dois bairros da comunidade de Itá fogem ao tipo disperso acima descrito. Os moradores das margens do Jocojó e Maria Ribeiro formam pequenas vilas. A vila de Jocojó tem dezenove casas construidas em uma rua razoàvelmente reta. É uma vila pequenina, com uma capelinha de madeira e uma ramada - ~dificação descoberta onde se dança nos dias de festa. Uma bar­raca extremamente grande, sem paredes, serve de escola; em 1948 ela funcionou pràticamente com a mesma re­gularidade e eficiência que a de Itá. Os pais da vila de J ocojó desejavam ardentemente que seus filhos aproveitassem a escola, pois o seu bairro era o único da zona rural que se gabava de possuir uma. A vila ribeirinha de Maria Ribeiro consistia em um grupo de casas, mas sem capela para os seus santos e sem escola; entretanto essas duas vilas caracterizavam-se pela unidade de sua organização e pelo espírito pro­gressista de seus habitantes. Enquanto as populações rurais do Amazonas viverem espalhadas e distantes umas das outras, será difícil proporcionar-lhes locais acessíveis para educação e assistência médica satisfa­tória. Se as vilas fossem concentradas, como êsses dois

_gi,:_1!J20S atípicos de Itá, seria possível ao govêrno pro­porcionar-lhes escolas. A concentração da população permitiria que o médico de Itá lhes dispensasse trata­mento em massa e que o serviço de saúde fornecesse medidas profiláticas para a proteção coletiva, o que é impossível no caso de moradias esparsas. Essas vilas, portanto, apontam uma solução possível para os problemas da zona rural do Amazonas. -

56

Page 57: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

IV

Os habitantes da comunidade de Itá são brasileiros. Participam, dentro dos limites do conhecimento e do potencial de que dispõem, da vida regional e nacional. Os caboclos, como são chamados os habitantes das aldeias e a população rural pela gente da cidade no Amazonas, falam o português. Discutem política na­cional e internacional e, desde que sejam apenas semi­alfabetizados, podem votar. Em Itá, como em outras comunidades semelhantes do Amazonas, comemora-se o 7 de setembro, festa da independência. O caboclo joga futebol, o esporte nacional do Brasil, e pode arriscar no jôgo do bicho. Em 1945 festejou-se o Dia da Vi­tória nos postos de comércio mais afastados do muni­cípio de Itá. Os lavradores e seringueiros que parti­ciparam dos festejos não compreenderam, naturalmente, tôda a significação da St\,"11Ilda guerra mundial, mail sabiam que o seu país estava em guerra, ao lado dos aliados. As instituições jurídicas e políticas, o sistema -educativo, a religião tradicional e muitos outros aspectos da sociedade de Itá são os mesmos da nação da qual Itá ó apenas uma pequena parte insignificante.

A cultura brasileira contemporânea é formada pela fusão de três tradições culturais. As tradições, a lin­guagem e as instftuições leigas e religiosas trazidas ~, E"uropa para· o Novo Mundo pelos· portuguêses são os padrões culturais que predominam em todo o· !i'aís. rtá, como a màioria ·das comunidades brasileiras, herdou grande parte de sua cultura de Portugal. Além disso, porém, a cultura nacional brasileira sofreu grande j!!fluência, ·do n~gro africano e dos !!!-dí~genas que ha­bitavam a região antes da chegada dos portuguêses.

57

Page 58: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Pelo menos três milhões de escravos foram trazidos para o país apenas durante o período colonial, sendo bem provável que ao todo fossem muito mais. Nume­rosos costumes e tradições de origem africana foram incorporados à vida brasileira. O samba - a música popular brasileira - a cozinha brasileira, seu folclore, e outros aspectos da vida moderna revelam claramente a influência africana. Mas, apesar disso, os padrões culturais indígeno-americanos persistem em todo o país. A técnica agrícola da q}leimada e as principais cul­turas de alimentos (mandioca, milho, feijão etc.) são de origem indígena. A maioria dos nomes da flora e da fauna e a denominação dada a inúmeras localidades, no português ~falado no Brasil moderno, derivam do tupi, dialeto indígena amplamente difundido. Tanto o éuropeu recém-chegado, como seu escravo africano, aprenderam com os índios a viver no Novo Mundo.

Essas três heranças culturais não se manifestam, entretanto, com a mesma intensidade em todo o Brasil. O Brasil é uma nação de acentuadas diferenças re­gionais produzidas por diversas circunstâncias de am­biente e pela precariedade dos meios de comunicação. Ao longo da costa nordeste do Brasil, onde a maioria. dos escravos negros trabalhava nas plantações de açúcar, as influências africanas constituíram um fator importante na formação da atual cultura regional. No extremo sul do Brasil as tradições européias pre­valecem quase que com exclusão total das tradições indígeno-americanas e africanas. No Vale Amazônico, com sell ambiente típico de chuvas e florestas e seu mag11ífico sistema entrelaçado de vias fluviais, mais do que em qualquer outra região, persistiu a herança .indígena do Brasil. Em Itá, com~ em outras comuni­dades do Amazonas, as influências indígenas são fàcil-

58

Page 59: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mente visíveis na maneira de viver das pessoas, em sua alimentação, nas suas crenças populares e em sua religião. Além do mais, uma grande parte da popu­lação de Itá descende de índios. As maçãs do rosto salientes, o cabelo preto e liso, a pele bronzeada e os olhos em formato de amêndoa (devido ao epicanto tão característico do ameríndio) de muitos dos habitantes da comunidade de Itá demonstram a fôrça do traço genético do índio americano.

O vigor da tradição indígena na sociedade e na cultura da Amazônia rural não decorre, entretanto, da fôrça numérica da população indígena que existiu tm região desde antes de 1500. Na realidade, a população aborígine do Vale Amazônico parece ter sido relativçi­mente esparsa, nunca excedendo a metade de um mi­ihão de pessoas disseminadas por tôda a sua imensa área. Em comparação com as complexas civilizações nativas das regiões montanhosas do México e do Peru, sua cultura era simples. As tribos que viviam nas flo­restas tropicais eram de agricultores da técnica manual que plantavam uma série de culturas americanas na­tivas, como mandioca, milho, feijão, amendoim, cará, pimenta, abóbora e al1godão. Dependiam também da resca, da _cª_ça e da apanha de frutas e nozes selvagens para enriquec'!rem sua dieta. Seus métodos de sub­siswncia, embora apropriados ao ambiente amazônico, limitavam o tamanho das suas comunidades, que rara­mente excediam a trezentas ou quatrocentas pessoas. Cada cinco ou seis anos eram obrigados a mudar suas aldeias apesar da imensa expansão de terrenos flo­restais inabitados, e todos os anos roçavam novas áreas para plantação na floresta tropical.~ ·Assim, pois, eram. lhes necessárias grandes áreas de terra para sustentar um número relativamente pequeno de pessoas.

59

Page 60: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Além disso, os nativos do Vale eram divididos em inúmeras tribos que falavam uma infinidade de dia­letos. Uma "tribo" consistia geralmente em uma série de aldeias que, falando o mesmo dialeto, sentiam que formavam "um povo" contra todos os estranhos. l}a­ramente, as próprias "tribos" possuiam qualquer orga­nização política oficial ;--~m raríssimos casos, a autori­dade de um chefe estêndia-se por mais .de uma aldeia. Ê- em suas próprias aldeias não eram muito grandes os poderes dêsses chefes nativos. No Alto Amazonas era tão grande a segmentação da sociedade aborígine que cada aldeia, compost'a de apenas uma ou duas casas compridas, se considerava um povo à parte. Em tôda a área eram constantes as guerras entre tribos e a des­confiança dos estranhos reduzia aci mínimo as rela­ções entre elas.

A falta de unidade lingüística e político-social entre os grupos indígenas da Amazônia tornou o pro­cesso da conquista difícil para os europeus e desastroso para os índios. Tanto os elementos civis como os missionários religiosos portuguêses logo fizeram tra­tados com os chefes indígenas a fim de assegurar relações pacíficas, mas cedo descobriram que êsses tra­tados não eram reconhecidos pelos habitantes das outras aldeias. Em contraste com a conquista do México e .do Peru, por um punhado de espanhóis, onde a cap­tura ou a capitulação de uns poucos chefes levaram à subjugação de grandes populações, a conquista dos nati~os da Amazônia foi necessàriamente uma emprêsa gradativa. Cada "t.ribo", pràticamente cada aldeia, tinha de ser conquistada ou atraída pacificamente pa.ra a órbita da vida colonial portuguesa. O resultado dessa conquista parcelada foi a rápida desjntegração das "tribos" nativas, principalmente ao longo dos principais riachos do sistema do Rio Amazonas, du-

60

Page 61: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

rante cêrca de um século depois da chegada dos ,por­tuguêses, no comêço do século dezessete. (4)

Gomo aconteceu no México e no Peru, os portu­guêses não vieram para o Novo Mundo a fim de tra·· balhar: vieram à procura de fortuna. Mas na Amazônia não encontraram nem as riquezas das minas de prata. de Potosí, nem, como no México e no Peru, milhões de índios para lhes fornecerem mão-de-obra. Também o solo da Amazônia não era próprio para a cultura da cana de açúcar como a rica zona da costa nordeste do Brasil, onde, nos tempos coloniais, se formou uma rica sociedade de cultivadores. O melhor que os portu­guêses puderam fazer, no Amazonas, foi extrair os produtos nativos das florestas tropicais, como madeira de lei, cacau 0 canela, para vendê-los nos mercados europeus. O negocio não era muito lucrativo em comparação com o comércio que os portuguêses manti­nham com o Oriente. Os poucos colonizadores atraídos para a região amazônica não dispunham de recursos

(4) Hoje em dia alguns grupos de tribos indígenas vi­vem ainda nas localidades afastadas do Vale Amazônico, princip;:i.lrp!ln~. ]las.~,cab_eceiras do_s .af!!J._entes não navegáv_eis. Em~número, essas tribos indígenas formam· uma porcenta­gem insignificante da população total do Vale. Certamente não excedem 50.000 pessoas no máximo, menos de melo por cento de tôda a população da Amazônia brasileira. Algumas tribos, como a dos índios Urubus, que habitam a floresta entre os rios Gurupi e Pindaré, a menos de 320 quilômetros de Belém, na embocadura do Amazonas e a dos Gaviões, no baixo Tocantins, sômente agora sentem a influência da so­ciedade luso-brasileira. O processo de desintegração da trH bo e de sua incorporação à sociedade regional amazônica,:. o qual teve início no princípio 9-o século dezessete, prossegue ainda hoje. A história do Amazonas, eJIJ. muitos aspectos, não é uma questão de sequência de tempo absoluta, mas uma questão de espaço. . Processos que se completaram há longo tempo nas principais artérias do sistema do Rio Ama­zonas ocorrem agora, em suas linhas gerais, no Vale.

61

11 )>

o rn o e () 1> () }>1 o

OJ OJ r o ~ rn o l>

Page 62: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

para comprar escravos na África e foram poucos os negros importados para essa região. Em seu lugar, o colonizado!." procurava os índios para serviços domés­ticos, para colher os produtos da floresta e para traba­lhar na agricultura a fim de lhe fornecer os alimentos necessar10s às suas colônias. Nos tempos coloniais eram os índios que "remavam nas canoas, que caçavam e pescavam, que trabalhavam nos misteres domésticos e nos serviços públicos, que criavam gado, que serviam nas fôrças armadas, que labutavam nos estaleil"os", segundo Artur César Ferreira Reis, o grande estudioso da história colonial da Amazônia. (5) Também as observações de t1m escritor português do décimo sexto século aplicam-se admiràvelmente ao Amazonas do dé­cimo sétimo século. "Tão cedo aquêle que pret'enda viver no Brasil", escreveu Pedro de Magalhães, "se torne um habitante do país, por mais pobre que seja, desde que possua um par ou meia dúzia de escravos, que lhe custarão algo nas redondezas de dez cruzados, terá os meios necessários à sua subsistência e ao cultivo de alimentos; assim, pouco a pouco, os homens enri­quecem e vivem honradamente e com mais confôrto do que no Reino (Portugal), uma vez que êsses mesmos escravos indígenas, caçando para sua própria subsis­tência, poupam a êsses homens as despesas com o sus­tento de seus escravos e o seu próprio". (6) Numerosas incursões de caça aos escravos, denominadas resgates, foram organizadas na Amazônia. Penetravam profun­damente no interior e voltavam com escravos indígenas capturados, deixando atrás homens, mulheres e crianças massacrados no processo da luta. Tribos inteira_s eram

(5) Sintese da História do Pará (Belém, 1942), p. 48. (6) The Histories of Brazil, trad. John B. Stetson, Jr.

(New York, Cortes Society, 1922) (1• ed., 1576), p. 41.

62

Page 63: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ràpidamente exterminadas e milhares de índios eram trazidos para a órbita da vida eolonial luso-brasi­leira. (7)

A sêde de escravos dos colonizadores logo cho­cou-se, entretanto, com os interêsses dos missionários religiosos que chegaram. ao Amazonas com as primeiras expedições militares. Os missionários, principalmente os jesuítas, logo estabeleceram aldeamentos em pontos estratégicos, ao longo do rio Amazonas e de seus prin­cipais afluentes, para os quais atraíram índios de vá­rias tribos. Sob o regime estritamente paternal dos jesuítas, os índios da missão aprendiam. catecismo e os rituais da Igreja Católica, novas artes manuais e os costumes do Velho Mundo. Num prazo relativamente curto, milhares de índios dessas tribos transformavam-se em "índios jesuítas" que viviam segundo os preceitos instituídos pelos padres jesuítas, abandonando seus pa­drões culturais aborígines. O dogma cristão e o ceri­monial católico cedo substituíam sua religião nativa, embora algumas crenças e práticas nativas sobreviv('S­scm junto eom a nova religião. Até seus casamentos eram fisealizados pelos padres a fim de que não contra­riassem os preceitos católicos sôbre o incesto e a pro­priedade. Durante algum tempo as missões protegeram. os grupos indígenas contra as incursões de caça aos eseravos. A Coroa de Portugal baixou numerosos de­eretos -proibindo a escravização dos índios e dando aos missionários plenos poderes sôbre a população indígena.

(7) Um capitão português, o infame Bento Maciel Pa­rente, foi acusado de ter assassinado 500.000 índios durante suas várias expedições. Isto, com certeza, é um exagêro, mas não há dúvida em que tanto êle como seus homens mas­sacraram muitos indios e fizeram muitos escravos. Vide Serafim Leite, Hútória da Companliia de .TeatUl 'llO Braail <Lisboa, 1938), IV, 137.

63

Page 64: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Mas o campo de batalha ficava muito longe da Europa e as expedições de caça aos escravos também atacavam as missões jesuítas, levando escravos os cristãos recém-convertidos. Os colonizadores encont'ra­ram nas leis várias falhas que lhes permitiam escravizar os índios. Persuadiram a Coroa a lhes permitir tornar escravos os "prisioneiros de guerras justas" e aqt\êles que "salvavam da corda" (isto é, aquêles que eram arrancados das mãos das tribos canibais). Entretanto, logo que êsses direitos lhes foram concedidos aumenta­ram ràpidamente as guerras justas e o "canibalismo". Defrontando-se com a necessidade de produzir alimentos para os soldados e os colonizadores europeus que não tinham inclinação para os trabalhos manuais, os fun­cionários coloniais portuguêses toleravam ou fechavam os olhos para as transgressões da lei e recorriam cons­tantemente ao trabalho forçado, enviando os soldados à procura de índios do sexo masculino para o trabalho nas colônias portuguêsas. O Padre Antonio Vieira, cujas cartas e sermões fazem parte da literatura clás­sica brasileira, queixou-se amargamente em suas cartas à Coroa de que os missionários, em suas visitas às aldeias indígenas, freqüentemente nelas só encontravam algumas mulheres, crianças e velhos semifamintos. Os homens haviam sido arrastados para o trabalho for­çado durante, exatamente, os meses em que deveriam estar plantando as suas roças. Os homens ausenta­vam-se freqüentemente, escreveu êle, "durante oito ou dez meses do ano - sem a Missa, sem comemorarem um único dia santo, sem (fazerem) a Páscoa, sem (receberem) os Sacramentos e sem poderem plantar suas hortas". ( 8) Os jesuítas tudo faziam para pro­teger os índios, mas, como observa Roy N ash, "os sen-

(8) Leite, op. cit., IV, 52.

64

Page 65: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

timentos pecumarios dos colonizadores haviam sido profundamente atingidos". Era uma guerra "entre os caçadores de escravos brasileiros, que queriam o corpo dos índios, c os jesuítas (e outros missionários), que queriam a sua alma - luta em que o índio americano estava destinado a perder ambas as coisas". (9)

Decidiu-se a batalha, entretanto, nos meados do décimo oitavo século, quando o Marquês de Pombal, que governou em Portugal com poderes quase absolutos durante mais de vinte e cinco anos, despojou os missio­nários de qualquer poder temporal sôbre os índios e ordenou a expulsão dos jesuítas do Brasil. Pombal promulgou uma série de leis destinadas à incorporação elos índios - tanto aquêles que ainda viviam em tribos como os das missões - na vida colonial. Ól'denou que os postos das missões fossem transformados em aldeias e vilas. Muitas cidades importantes do Amazonas,

-?,comoÇQ.liíd~s, F,-aro é: Macã.J?a.i tornaram-se, nessa época, colomzações- civis. -Pombal publicou decretos determi­nando que a língua portuguêsa fôsse ensinada em luga1• da língita geral, uma modificação do tupi, língua nativa dos índios, que os missionários empregavam no ensino de seus índios convertidos. Existia uma polí­.tkfl_ip1encional 9_Ue in~entivava a miscigenação entre <!S europeus e os nª--tivos. Ofereciam-se aos coloniza­dores portuguêses do sexo masculino estímulos especiais ua forma de concessões de terras, .implementos de graça, isenção de impostos e até cargos políticos, caso se ,ca­sassem com mulheres nativas.

A§ reformas .de Pombal visavam à, ª_ssimi\açij._Q ~o índio à sociedade colonial e, pelo menos teõricamente, P.~cóncessão dos mesmós direitos dos colonizadores aos "fndios assiniifados. Mas a concessão de liberdade ao

(9) The Conquest of Bmzil (New York, 1926), p. 106.

65

Page 66: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

índio era impossível sem a modificação do sistema eco­nômico e social da Amazônia. Alguém precisava tra­balhar, e o colonizador europeu considerava o trabalho manual indigno, feito para escravos. Assim, de uma maneira ou de outra, as indústrias extrativas e a agri­cultura, que forneciam alimentos à colônia, dependiam da servidão indígena. Foi necessário manter o trabalho forçado durante o regime de Pombal. Baixou-se um decreto, determinando que todos os indígenas capazes, do sexo masculino, entre as idades de treze e sessenta anos, se apresentassem ao diretor oficial da colônia em que viviam, a fim de serem registrados; metade dos homens de cada colônia foi sujeita, durante uma parte do ano, ao trabalho forçado para os europeus e crioulos. A outra metade tinha permissão de permanecer em casa a fim da plantar suas hortas. :P.isse sistema de contrôle logo degenerou em uma espécie de trabalho de peões e de dever de servidão. E persistiu na: Ama­zônia a escravidão franca até fins do século dezenove, apesar das leis que dispunham em contrário. (10)

Ao passo que a proteção dispensada pelas missões haviam de certo modo restringido a assimilação elo índio à vida colonial, as reformas de Pombal e a constante procura do trabalho indígena na Ama?.êinia tiveram como resultado a aceleração dêsse processo. Por volta de 1821, (•) quando o Brasil conquistou sua indepen­dência de Portugal, a população do Vale Amazônico era principalmente constituída por mestiços e o modo de vida da maioria de seus habitantes era essencialmente português, apesar de fortemente influenciado pelo

(10) Ibid., p. 120. (•) Esta data foi conservada no texto por figurar na

edição do original em inglês. Deve, entretanto, ser um êrro tipográfico, pois a data da independência do Brasil é 1822. (N.T.>

66

Page 67: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

amblente peculiar da Amazônia e pelas culturas abo­rígines que lá se encontravam. Formara-se uma cul­tura regional, fundamentalmentê européia em suas principais instituições, mas profundamente influenciada :P.elo ambiente iípico da Amazônia e pelas· culturas na­tivas. da região.

As narrações feitas pelos que lá viajaram no século dezenove dão uma idéia do grau a que tinha chegado êsse processo de assimilação e aculturação dos nativos da Amazônia. Calcula-se que em 1852 cin­qüenta por cento dos habitantes do Vale eram índios e 26 por cento mamelucos, ou cruzamentos de índios e europeus;' o resto era constituído por europeus e negros. É evidente, entretanto, que êsses "índios" e mamelucos não eram índios no sentido social e cultural. Seu modo de vida era mais ibérico do que aborígine. Con­quanto os visitantes do século dezenove se refiram aos "costumes dos índios" e à "vida dos nativos", estão descrevendo, na realidade, os costumes porfuguêses. A senhora Agassiz, esposa do famoso naturalista suiço, Louis .Agassiz, que chefiou uma expedição ao Amazonas, refere-se a "uma horrenda índia velha que executava um ritmo estranho de "se benzer" e atirar beijos dentro de uma mala que continha uma "imagem de Nossa Senhora de Nazaré". (11) H. W. Bates, o naturalista inglês, cuja narrativa sôbre a Amazônia já se tornou clássica, descreve as festas de Santa Teresa, a santa padroeira de Egá, pequena aldeia em que residiu du­rante meses. Conta-nos a encenação de um drama folcl6rico, nas vésperas do dia de São João, em que Caypor, (•)' uma espécie de divindade silvestre, apa-

(11) A Journey in Brazil (New York, 1896), p. 181. Grifo do autor.

e•) Caipora. CN. T.).

GT

Page 68: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

receu ao lado de imagens cristãs - um costume certa­mente introduzido pelos missionários para substituir as cerimônias aborígines. (12) A breve mas excelente descrição que Herbert Smith faz dos 11 índios amazô­nicos semi-civilizados" das vizinhanças de Monte Alegre, no Baixo Amazonas, também mostra a fôrça dos cos­tumes ibéricos. ( 13) Descreve êle casas de adôbe em lugar da comprida casa de folhas de palmeira trançada. dos tempos aborígines. A música, a dança e os f es­_tejos do dia de um santo a que se refere são os mesmos que ainda hoje se observam em Itá. Os amazonenses davam a "benção" em bom estilo europeu, oferecendo a mão e dizendo, "Deus te abençoe, meu filho". Bio­logicamente eram "índios", mas na cultura tinham mais em comum com o mundo luso-brasileiro do que com os índios autóctones que ainda vivem nas florestas isoladas da Amazônia. Desde o século dezenove o ca­boclo da Amazônia vem cada vez mais se aproximando da vida regional e nacional. É hoje cidadão de um estado nacional e seu modo de vida nada mais é do que uma variedade regional de uma cultura nacional.

A cultura regional de Itá e outras comunidades amazônicas, como já vimos, conserva muitos padrões herdados do índio nativo. Apesar dos esforços dos missionários para transformá-los em católicos, nume­rosos brasileiros rurais da região amazônica éonservam as crenças populares de origem aborígine. Hoje em dia ainda, nos bairros rurais e até mesmo nos distritos da classe mais baixa das cidades do Amazonas, os pajés curam pelos velhos métodos dos índios nativos.

(12) The Naturalist on the River Amazon (Londres, Everyman's Library, edição de 1930), pp. 284 e segs.

(13) The Amazons and the Coast (New York, 1879), pp. 371-397.

68

Page 69: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

L'm grande número de têrmos do tufil foi integrado na língua portuguêsa falada pelo brasileiro da Ama­zônia. As técnicas e as artes da caça e pesca e as crenças populares que giram em tôníõãessas âíiVidades são de origem indígena. Nessas e noutras esferas da vida amazônica contemporânea, percebem-se as tradi­ções indígenas.

Os traços indígenas que ainda sobrevivem na cul­tura ~regional amazônica _sã_Q pi:incipalmente herdados ~-as tdbos indígenas de língua tupi. Êsses povos, que Jiábitavam pràt:lcamente tôda a costa do Brasil e que, na época da chegada dos europeus, pareciam estar-se mudando para o interior, ao longo do braço principal do  mazonas, foram as primeiras tribos indígenas com as quais os portuguêses tiveram um contato mais prolongado. Era sobretudo com os nativos de língua t:upí que os portuguêses comerciavam o pau­brasil, contra quem êles guerreavam, e a quem escra­vizavam durante o primeiro século do período colonial. Os tupís ensinaram os recém-chegados a plantar "novas" culturas, bem como os _J!Om_!!S e a utilidade da flora e da fauna do_ Noyg Mundo. Àlêm disso, coniôescreve Gilberto Freyre de manefra tão pitoresca, "Nem bem o europeu saltava em terra e já seus pés deslizavam por entre mulheres nativas". (14) Os por­tuguêses tinham mulheres e concubinas nativas que deviam ser índias de tribos tupi. Os rebentos dessas uniões, os primeiros brasileiros, criados por suas mães e domJnados por seus pais, eram portadores de uma cultura mista~ tupí e portuguêsa - e em geral fàTâvãm- as ô.nas ·línguas. Os mamelucos desempenha­ram papel importante na expansão do contrôle por-

(14) The Master and the Slaves tradução de Casa­Grande e Senzala, Samuel Putnam (New York, 1946), p. 6.

69

Page 70: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tuguês sôbre a reg1ao amazônica e traziam consigo os costumes, os conhecimentos e as crenças que aprende­ram com suas mães indígenas.

Além disso, durante o primeiro século após a che­gada dos europeus ao Brasil, os povos de língua tupí constituíam a principal preocupação dos missionários católicos. A maioria das descrições de brasileiros na­tivos foi feita por missionários que escreveram sôbre os tm:?inambás, como eram chamadas as tribos de língua tupí que- vmam ao longo da costa. Os missionários, por se terem primeiramente defrontado com os dialetos tupí, e porque os que falavam essa língua devem ter­lhes parecido mais numerosos do que os chamados ta­puias (em geral tribos do interior de língua gê), ado­taram o tupí como língua intermediária para o ensino da doutrina cristã, da mesma forma por que o quechua. foi adotado no Peru e o nauhatl no México. ~sses missionários aprenderam a falar o tupí e deram-lhe a grafia européia. Uma forma generalizada e modifi­cada dessa língua, conhecida como língua geral, foi a utilizada para o ensino e as pregações do Cristianismo em todo o Brasil. Com a língua geral ensinaram-se os nativos de outras línguas, tendo-se ela tornado o idioma dos mestiços índio-europeus e dos indígenas que viviam nos postos das missões e nas colônias européias.

Em meados do século dezenove talvez se falasse mais a língua geral no Amazonas do que o português. Diz Bates que "ao longo do braço principal do Ama­zonas, em uma área de 4 mil quilômetros fala-se o tupí quase sem nenhuma corrupção". (15) Alfred Russel W allace comenta que em uma pequena colônia perto de Manaus, "só um dêles sabe falar português, todos os outros falam a ·língua indígena" (isto é, a língua

(15) Op. Cit., p. 282.

70

Page 71: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

geral). Diz ainda Wallace que nas cidades e vilas mais importantes a língua geral era "empregada tanto quanto o português", e que no Baixo Amazonas a maioria dos habitantes falava as duas línguas, mas que acima de Santarém, no Alto Amazonas, era o tupí a única língua conhecida. Era também empregada por grupos tribais que, embora conservassem o seu próprio idioma, usavam a língua geral como meio de comuni­cação com os comerciantes e Qutras tribos de línguas nativas diferentes. (16) Só em fins do décimo nono século substituiu o português a língua geral, tornan­do-se o idioma da Amazônia, mas até hoje é aquela língua falada em algumas áreas isoladas por índios e mestiços parcialmente assimilados.

Foi através dessa língua que muitas tradições de origem tupí se espalharam pela Amazônia, mesmo em áreas que nos tempos aborígines não eram habitadas pelo povo tupí. Os conceitos europeus, transmitidos pela língua geral, eram modificados e ampliados com pormenores indígenas durante êsse processo. O Deus e o Demônio do Cristianismo receberam os nomes (na língua geral) de Tupã e Jurupari. Ambos absorve­ram as características dos entes sobrenaturais do mesmo nome. .As bruxas e os lobisomens, crendices da Europa medieval, foram ràpidamente identificados com os de­mônios da floresta dos tupís e tinham, também, seus nomes indígenas. Assim, juntamente com os padrõe8 ibéricos impostos e ensinados à população campesina do Amazonas por seus conquistadores europeus, per­sistiu na cultura rural de tôda a Amazônia brasileira uma coleção de padrões aborígines. Êstes fundiram-se na estrutura da cultura predominantemente ibérica,

(16) A Narrativa of Traveis on the Amazon anà Rio Negro, p. 168.

7.1

Page 72: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

formando um modo de vida e uma cultura típica da região, perfeitamente adaptados ao ambiente particu1a1• da Amazônia.

V

Embora Itá não seja uma cidade importante da Amazônia, sua história não deixa de ser significativa pois que reflete, pràticamente, .'.ê_s _p_rjncipajs tend~ncias_ da história do Vale Amazônico. A aldeia é quase tão 'àntfga quanto Jaiüestown, na Virgínia, Estados Unidos da América. Em 1616 os holandeses estabeleceram um forte, no local em que hoje está situada Itá. Conquanto a região da América em que Itá está situada tenha sido concedida aos portu.:,1PUêses pelo Tratado de Tordesilhás, em 1494, as possessões dêstes no Novo Mundo, no século dezesseis, não eram muito seguras. Portugal, com uma população de apenas meio milhão de habitantes, tinha, naquela ocasião, um vasto império e um comércio lucra­tivo com o Oriente. O Brasil foi, naturalmente, negli­genciado; sua população nativa era muito esparsa e seus produtos, com exceção do pau-brasil e algumas especiarias, não eram muito procurados na Europa. Além do mais, de 1580 a 1640, durante o período de "cativeiro" em que· a coroa portuguêsa passou para a família real espanhola, Portugal, para todos os efeitos, fazia parte da Espanha. Por essas razões tornou-se ·o Brasil presa fácil para os inimigos dos espanhóis. Não dispondo os portuguêses de potencial humano sufi­ciente e estando a Espanha ocupada em outras frentes mais proveitosas, os inglêses, os franceses e os holan­deses invadiram o Brasil. ::msses países não só estabe­leceram fortes e colônias no sul do país como, em fins do século dezesseis, os holandeses e os inglêses haviam instalado postos comerciais perto do delta do rio Ama-

72

Page 73: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

zonas e os franceses se entrincheiraram em São Luís, bem ao sul da desembocadura do grande rio.

EU\ fins do século d~ztsSeis, entretanto, Portugal tomou novo interêsse por suas possessões no Novo :Mundo, principalmente quando a cana de açúcar, plan­tada na rica t'erra vermelha da costa nordeste do Brasil, começou a produzir riqueza igual à ·que lhe propor~ cionava o oriente. Os portuguêses enviaram uma fôrça armada para "expulsar os estrangeiros". Em 1616 os franceses foram expulsos de São Luís e os portuguêses estabeleceram um forte em Belém, na embocadura do delta do Amazonas. Nos anos subseqüentes, expulsa­ram os invasores inglêses que se haviam est;abelecido nas margens seten~s do grande rio, perto de sua embocadura e, em Q6_?;9 capturaram o forte holandês de Itã, transformando-o no baluarte português de con­trôle de todo o Baixo .Amazonas. Os holandeses ten­taram recapturar Itâ em 1639 mas falharam e, por Volta de 1640, os portuguêses haviam restabelecido seu çontrôle completo sôbre a região do Baixo Amazonas.

1!A população cresceu à sombra do forte português de Itá e, em 1639, a colônia recebeu foros de vila. Numerosos índios foram atraídos para a col.ônia flo-1·escente, casando-se os soldados portuguêses com mu­lheres indígenas. Essas famílias indígeno-portuguêsas foram a base da população da nova vila. Consta que os missionários carmelitas nela se estabeleceram em 1654. No ano seguinte chegaram os jesuítas. Os dois grupos missionârios levaram índios para a colônia e os jesuítas logo estabeleceram "aldeias missionárias" nas redondezas. Faziam da cidade sua base de ope­rações para a fundação de novas aldeias missionárias rio acima.

A pequena vila continuou a crescer, atraindo para sua órbita os índios das missões vizinhas, nem sempre,

'i3

Page 74: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

porém, por meios pacüicos. Diz-se que em 1667 o ca­pitão-mor de Itá tratou de maneira tio brutal um grupo de índios Taconhapé, qu~ tinham sido persuadidos a descer o rio para trabalhar na construção da Santa Casa de Misericórdia em Belém, que êles fugiram flo­resta adentro e nunca mais reapareceram. Em outra ocasião, êsse mesmo capitão-mor ordenou que os índios das missões vizinhas fôssem dispersados pela fôrça, fato que constituía um reflexo da guerra entre jesuítas e colonizadores, êstes últimos apoiados pelo govêrno. Em 1692 os jesuítas foram expulsos de Itá, passando-se para o contrôle dos frades da Piedade a vida religiosa da vila, por serem êstes religiosos considerados menos agressivos e poderosos.

A situação de Itá, em uma ribanceira que domina uma extensa paisagem do principal canal do Amazonas, dava-lhe grande importância estratégica. Os barcos que subiam e desciam eram obrigados a parar em Itá para pagar impostos, sendo o forte um ponto de con­trôlc eficaz contra possíveis invasões estrangeiras. Em vista de ser a vila ponto de contrôle, grande parte dos que viajavam pelo Amazonas tinha que lá pousar, e vários a ela se referem brevemente. O cientista francês Charles de la Condamine estêve em Itá durante três dias, em 1743, e recebeu do comandante do forte e de outras autoridades locais as honras devidas a hóspedes ilustres. Em 1758, visitou a vila o Governador Fran­cisco Xavier de Mendonça. Diz êle que Itá era o centro da influência portuguêsa no Baixo Amazonas. Para lá também foram atraídos muitos dos índios que antes integravam- as aldeias das missões.

No comêço do século dezenove, a vila de Itâ tinha 86 famílias, ou 564 almas. Segundo o famoso cientista alemão, Karl vou Martius, que visitou Itá em 1819,

74

Page 75: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sua população, ou era uma mistura da "raça indígena'' com portuguêses, ou "índios puros". Suas casas· eram, em grande parte, const'ruídas com fôlhas trançadas de patmeira. O lugar parecia isolado e abandonado. Um de seus habitantes comentara com Von Martius que, no tempo do Pai-Tucura (como os índios chamavam o frade capuchinho que lá morava), as coisas eram melhores. A guarnição fôra reduzida e as atividades das ordens religiosas suprimidas pelas leis de Pombal. Conquanto haja referências às plantações de cacau e café nas cer­canias de Itã, a sua população parecia dedicar-se prin­cipalmente à colheita da salsaparrilha e do cacau nativo que crescia em abundância nas ilhas do delta, perto da vila.

Em 1842 Itá só possuía duas ruas e duas praças. Como acontecia em outras povoações amazônicas, uma parte da vila era habitada pelos índios e seus descen­dentes e era chamada de "aldeia". Na outra parte, conhecida como "cidade", moravam os europeus e os mestiços· que eram comerciantes, funcionários do go­vêrno, donos de terras e artesãos. (17) A cidade, evi­dentemente, cresceu à custa da aldeia, pois à medida que assimilavam a língua e os costumes ibéricos os índios perdiam a identidade e tornavam-se "escravos". Um dos visitantes de Itá, em 1850, calculou sua popu­Jação em 715 pessoas, das quais 482 eram classificadas de 4'brancas ou mestiças" e apenas 233 de "escravas" (isto ó, indígenas). Os viajantes que pousaram em Itá durante as ·últimas décadas do século dezenove, fazem apenas leves referências à cidade; esta evidentemente havia perdido sua importância como posto de comércio;

(17) "Quase tôdas as vilas da Amazônia dividem-se em "cidade" e "aldeia"; a primeira é a vila atual; a segunda, a antiga povoação indígena da qual ela se originou." Smith, op. cit., p. 118. -

75

Page 76: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

consta mesmo que o forte havia sido inteiramento abandonado.

l\fas ao findar do século, com o advento da bor­racha silvestre como importante produto de exportação, Itá parece ter recuperado parte de sua antiga preemi­nência. De 1900 a 1912 o Vale do Amazonas detevo pràticamente o monopólio da produção da borracha. Durante êsse período o Vale foi fabulosamente prós­pero. Houve uma tremenda e dramática eorrida ao "ouro líquido"; foi uma verdadeira arremetida pela posse de florestas de seringueiras. Inúmeros habitantes do nordeste do Brasil, onde as sêcas ocorriam cada dez ou doze anos, causando a morte de milhares de pessoas pela sêde, pela fome, pelas doenças, ou obrigando-as a emigrar, fugiram em busca da Amazônia onde iam trabalhar como seringueiros. O afluxo na Amazônia foi tão grande, em fins do século dezenove, que a população de l\fanaus, que em 1879 era de 5. 000 pes­soas, em 1890 atingira 50. 000; e em Belém, onde vi­viam apenas 15. 000 pessoas em 1848, em 1890 já se contavam 100.000. (18) Calcula-se que de 1850 a 1900 a população do Vale aumentou duas vêzes. O dinheiro rolava. Foi construído um magnífico Teatro l\f unicipal em l\fanaus, a meio caminho do Rio Ama­zonas, onde representavam companhias européias, afrontando os perigos da febre amarela e da malária. Imitando as casas européias do campo e da cidade, construiram-se em Belém e l\fanaus, eom a riqueza pro­duzida pela borracha, habitações absolutamente inade­quadas ao clima tropical. As pessoas mandavam vir suas roupas do estrangeiro e diz-se até que muita gente mandava suas vestimentas mais finas para serem lava­das em Lisboa. Imperava a jogatina, a exploração dos

(18) Pierre Denis, Brazii (Londres, 1914) p. 358.

76

Page 77: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

recém-chegados, a prostituição e a anarquia de tôcla ordem.

As ill1as do delta, em frente de Itá, possuíam ricos seringais cuja produção só era ultrapassada pelos que ficavam à cabeceira dos afluentes do Amazonas e no território do Acre. !t.fl. .t.Qrn_on-se, p()is, ~ centro de U.!ll ll!9Y!mentadg c.omércio sempre estimulado pelos altos preços da borracha. A população cresceu para mais de duas mil pessoas. Abriram-se vinte armazens gerais. No auge dessa prosperidade, de 1909 a 1910, foi fundado e editado um semanário. Os anúncios no "Correio de Itá", como se chamava o jornal, eram sinal de prosperidade, da intensidade da sua vida social e da preocupação dos moradores da cidade com o mundo exterior durante êsse período. Casas comerciais como a Bola de Oiro, o Bazar e a Casa Gato, anunciavam mercadorias recentemente chegadas de Belém e do estrangeiro. Uma barbearia chamada "15 de Novem­bro" anunciava "tônicos capilares da mais fina quali­dade" e advertia a seus fregueses que não atendia a chamados em casa, mas que "aceitavam-se assinaturas mensais, pagas adiantadamente" para barbas e cortes de cabelo. Tôdas as semanas o Professor Antenor Ma­deira, em tom sisudo, oferecia lições particulares de português, francês, latim, aritmética, algebra, geografia e história. Escreviam-se editoriais sôbre os perigos da crescente i:p.dependência das mulheres nos Estados Unidos e a posição do Brasil no. cenário internacional. Um poeta local, sob o pseudônimo de Tula, publicaya versos seus quase tôdas as semanas. E, pelos noticiá­rios, era evidente que os moradores de Itá se interessa­vam vivamente pela política local e estadual. Certo editorial acusou uma mulher, que pertencia a uma irmandade local, de suplicar aos santos que castigassem os chefes políticos da oposição. Pedia o editorial que

77

Page 78: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

se deixassem os santos fora da política e exigia do padre da paróquia que se abstivesse de questões polí­ticas em seus sermões.

As notas sociais do "Correio de Itá" registram ani­versários, chegadas e partidas de personagens impor­tantes e suas famílias, e recepções oferecidas a visi­tantes ilustres. Em dezembro de 1909, por exemplo, o intendente (que corresponde ao prefeito) de Itá ofe­receu um banquete de cinqüenta talheres, em que_ foram servidas duas espécies de vinho e "champagne" em ho­menagem ao aniversário do Senador Antônio Lemos, o político de .maior projeção do Estado do Pará. Em janeiro de 1910, o proprietário da Casa Gato, coronel Filomeno Cesar de Andrade, ofereceu uma festa de ani­versário a suas duas filhas, em que houve "danças e jogos de prendas até tarde da noite". As pessoas idosas que se lembram dêsses tempos de Itá, falam dos bailes realizados nos palacetes de dois barões da borracha da­quela época. Nesses bailes uma orquestra tocava num grande vestíbulo que dava para dois salões de danças, um que abrigava os convidados de "primeira classe" e o outro os da "segunda classe", ou "o povo". No salão ela primeira classe, serviam-se "champagne", vinhos, cerveja, licores importados, bolos finos e uma grande variedade de doces brasileiros. No outro salão as be­bidas eram cachaça e ocasionalmente cerveja e, em lugar dos bolos, serviam-se beijus e broa de polvilho. Fre­qüentemente, entretanto, passando por cima das dife­renças de classe, serviam-se a todos beiju chica e gua­raná, além de outros quitutes regionais. Apesar de suas veleidades de cosmopolitismo, a classe mais alta de I tá era de formação regional.

Os velhos contam ainda histórias da vida alegre de Itá daqueles tempos. Havia várias casas de

78

Page 79: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

jôgo onde o seringueiro das ilhas podia gastar seu sa­lário. E, tal como a maioria das cidades amazônicas da idade de ouro da borracha, Itá vangloriava-se de possuir pelo menos uma casa de prostituição. Os velhos de hoje narram a vida noturna alegre que levavam €m sua mocidade. Passavam longas noites, conver­sando e bebendo, na sala comum dessas casas de liber­tinagem - as casas de prostituição no Brasil foram sempre o centro de reunião da rapaziada. Relembram serenatas :que se prolongavam pela noite adentro. E todos concordam em que a diferença entre o ritmo da vida social de Itá daqueles tempos e o de hoje é a mesma que existe entre a noite e o dia. A população hoje se diverte em pequenas festas e danças mas quei­xa-se de que a cidade está morta e que todos os jovens alegres mudaram-se para Belém.

Entre os vários grupos estrangeiros que foram para o Amazonas no princípio dêste século, atraídos pelo comércio da borracha, havia numerosos judeus do norte da África. Não se sabe ao certo quantos ficaram na Amazônia, mas fundaram uma sinagoga em Belém e abriram casas comerciais em várias cidades amazônicas. It'á tornou-se um centro conhecido entre os imigrantes judeus. O "Almanaque do Pará", uma publicação ofi­cial, declara que já em 1889, seis das quatorze casas comerciais de Itá eram propriedades de hebreus. Nomes como Aben · Athar, Levi, Bensabe1fu e Azulay eram importantes nos negócios da comunidade, no comêço do século. Os judeus tinham papel preeminente na vida de Itá. Eram comerciantes "fortes" e <fois he­braicos foram prefeitos da cidade. Hoje, um dos mais prósperos filhos de Itá, de quem todos se orgulham, é descendente de uma dessas famílias judaicas. Entre­tanto, os seus descendentes contam casos de hostilidades ocasionais contra os judeus daquela época. Jovens -

79

Page 80: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

companheiros de bebida gostavam da brincadeira de "dar uma sova nos hebreus"; um dêsses homens mais velhos contou-nos, com certo regozijo, a história da. pilhagem do Bazar dos judeus por um bando de jo­vens embriagados. Essa hostilidade, entretanto, pa­rece ter sido influenciada pelos acirrados sentimentos políticos da época, pois que nosso narrador lembra-se ainda de que os jovens eram instigados por um político cuja eleição havia sido combatida por um judeu pro-

.' prietário de uma casa comercial. Hoje o cemitério dos judeus, sempre muito bem conservado e limpo, é uma lembrança "das sólidas famílias judaicas que outrora lá viveram. Dona Débora, viúva do último dos comer-

, ciantes judeus, encarrega-se da sua- manutenção. É ela hoje a única judia ortodoxa que vive na cidade; seus filhos e filhas casaram-se todos na religião católica.

Foi durante os últimos anos do surto da borracha que se iniciou a construção do fabuloso edifício· da prefeitura de Itá. Um engenheiro italiano foi contra· tado para desenhar o projeto e fiscalizar a construção. Deveria ter dois andares e uma escada majestosa des­cendo do segundo andar até à praça pública, defronte do rio Amazonas. Por volta de 1912 sua estrutura estava concluída. Segnndo a lenda local, o edifício não foi acabado então porque o prefeito havia desa­propriado para a prefeitura o material de construção que vinha sendo acumulado para erigir a igreja de ·São Benedito, de quem a população de Itá se tinha tornado profundamente devota. "O santo pôs uma maldição no prédio", dizem ainda hoje os moradores da cidade. Sem dúvida, o santo foi muito ajudado pelo colapso da borracha, em 1912, que pôs um fim a essas extra­vagâncias administrativas e causou o desaparecimento da maioria dos estabelecimentos comerciais da locali­dade.

80

Page 81: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

VI

O colaps9 da indústria da borracha r1a Amazônia foi um choque para os habitantes do Vale. Durante os anos de prosperidade, haviam sido otimistas. A todos parecia que o 'l'odo-poderoso tinha concedido uma benção especial àquela região dando- lhe o "ouro ne.gro". Até o clima tropical era descrito como parti­cularmente favorável ao homem .e superior ao da fria Zona Temperada. Em 1909 os homens da Amazônia ousavam proclamar: "Não precisamos nos preocupar com as plantações de borracha que surgiram na Ásia. As condições climatéricas, especiais, do Vale Amazô­nico, o novo sistema de ·beneficiamento de nosso pro­duto, que atualmente está sendo aplicado com tanto êxito às nossas colheitas da Hevea, as imensas extensões de nossas regiões seringueiras, algumas ainda inexplo­radas e, finalmente, as inúmeras necessidades da indús­triP. moderna, nos permitem fazer pouco caso do que os outros estão realizando no mesmo setor. Com efeito', se não considerássemos um dever acompanhar as des­cobertas. científicas relacionadas com a borracha da índia, poderíamos perfeitamente ignora~ por completo as plantações estrangeiras". (19)

Em 1912, como todo o mundo sabe, desfez-se a ilusão. Alguns anos antes, Henry Wickham Steed havia roubado sementes do Brasil para levar a Kew Gardens, em Londres. Foi dessas plantinhas tenras que nasceram as plantações de borracha de Ceilão e da Malaia. A princípio as plantações do Oriente não

(19) Album do Estado do Pará:· compilado a pedido do Dr. Augusto Montenegro, governador (1901-1908) (Paris, 1910), p. 182.

81

Page 82: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

prosperaram muito; houve dificuldades na adaptação das mudas brasileiras ao ambiente asiático. Mac;, em 1910, essas plantações orientais começaram a produzir resultados. Em virtude de várias modalidades de plan­tações, cultivou-se uma seringueira que produzia mais látex do que a H evea brasiliensis nativa. No Oriente a mão-de-obra é mais barata e abundante. Em 1910, o Oriente produziu apenas 9 por cento da produção mundial de borracha; mas, em 1913, sua produção alcançou a do Vale Amazônico. E, nos anos que se seguiram, as plantações orientais gradativamente ultra­passaram as do Amazonas, tanto na produção quanto nos preços.

Depois de 1912 desmoronou-se tôda a estrutura econômica da Amazônia, e desapareceram o otimismo e a ostentação dos anos de prosperidade. A maiori:J das casas comerciais de Belém e Manaus arruinaram-se com o colapso financeiro de 1912 e uma série sucessiva do desastres econômicos conseqüentes atingiu os comer­ciantes rurais e seus seringueiros. Todo o sistema comercial, super-desenvolvido e totalmente dependente de concessões de crédito, era extremamente vulnerável. Os postos de comércio foram abandonados ou prosse­guiam em suas atividades, mas' com estoque reduzido. Os serin.:,fYlleiros tiveram permissão para abandonar as plantações de borracha. Muitos dêles voltaram para o Ceará, outros estabeleceram-se nas terras dos comer­ciantes como pequenos lavradores e uns poucos supriam li sua existência continuando a extrair borracha e outros produtos, como a castanha-do-pará, que alcançavam melhor preço. As comunicações com a Europa, a Amé­rica do Norte e o sul do Brasil tornaram-se menos, freqüentes. O "Teatro Amazonas" de Manaus foi fe­chado e as utilidades públicas de Belém e Manaus foram-se deterio~ando com o tempo. A população de

82

Page 83: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

varias pequenas cidades definhou repentinamente, por­que as pessoas debandavam em busca de trabalho, ou voltavam para o nordeste. Em muitas dessas aldeias esvaziaram-se as casas, que eram abandonadas. Em breve as ruas ficaram coalhadas de estruturas que caíam aos pedaços, abandonadas, e a população rural, das redondezas das cidades e vilas, voltou a viver na solidão.

O Vale Amazônico, tão próspero e que parecia ter um futuro tão brilhant'e durante a primeira década do século, tornou-se ràpidamente isolado e atrasado. Um pessimismo profundo tomou conta da região e refie:. fia-se na atitude de seus 'hál:iítantes. f<::sse pessimismo, por sua vez, influenciava os forasteiros que visitavam o Vale. "A Amazônia", escreveu um talentoso ensaista da região, "tem sido até agora a vítima principal de sua própria grandeza". (20) Seu atraso foi explicado como "não da culpa do homem, mas do ambiente (fí­sico)" (21) As condições sanitárias, que, com a falta de medicamentos, naturalmente, se tornaram piores no interior, pareciam constituir um problema insolúvel. O abandono e o isolamento econômicos foram levados n conta das muitas dificuldades criadas por Deus como parte do ambiente amazônico.

Os anos de 1912 a ;t_9~ foram anos de amargúra para Itá, como para grande parte do V ale Amazônico., A administração política que lá se estabeleceu logo depois do colapso da borracha vendeu fodo o material de construção que havia sido acumulado para a cons­trução da pre~eitura. Até mesmo parte da estrutura

(20) Alfredo Ladislau, Terra Immatura (Rio de Ja­neiro, 1933), p. 29.

(21) Vianna Moog, O Ciclo do Oitro Negro (Pôrto Alegre, 1936), p. 81.

83

Page 84: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

concluída foi demolida para ser vendida e transf orruacla em dinheiro. Numerosas famílias mudaram-se da vila logo depois de 1912. Os comerciantes fecharam suas lojas e deixaram a cidade, falidos ou desanimados. A população rural da comunidade abandonou a extração da borracha e voltou à pequena agricultura. A popu­lação da vila diminuiu ràpidamente e, em 1920, só vi­viam lá trezentas pessoas. O caminho de carro de bois, que ligava a vila às cabeceiras dos riachos próximos, foi abandonado e logo se cobriu de vegetação. O sjs­tema de iluminação a gás que iluminara as ruas durante os anos áureos foi deixado ao abandono. As casas e os. edifícin<; públicos ficaram vazios e logo começaram a desmoronar, por falta de proteção cont'ra o incansável trabalho doo eupins.

Em 1929, quando dois jornalistas de Belém visi­taram Itá, a vila havia atingido as profundezas da decadência e do abandono. Aquele tempo, quase podia ser chamada de cidade fantasma. As crônicas dos co­lunistas publicadas na "Folha do Norte", principal jornal de Belém, referem-se ao perigo que se corria ao Htravessar a prancha 'que levava ao desembarcadouro municipal. Faltavam algumas tábuas e outras estavam podres, e tôda ela oscilava perigosamente. Um dêsses observadores, escritor conhecido que se assinava "João da .Selva", chamou Itá de "ex-cidade onde nas ruas v.êem-se montes de casas em ruínas e outras que S()

vão lentamente desagregando". Referindo-se ã prefei­tura diz que o edifício que serve de "prefeitura" no momento "nem ao menos merece a classificação de casa em decadência, pois que está literalmente caindo aos pedaços". Outro jornalista acrescenta que o mesmo edifício não era em nada melhor do que um "estábulo de cabras". O prédio que um dia abrigara a usina de gás, escreveu João da Selva, nada mais era do quo

84

Page 85: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

"quatro paredes que o vento não quer descobrir para deixar que o céu seja testemunha do que aconteceu lá dentro".

No salão em ruínas do que outrora fôra uma bela residência, notou João da Selva uma harpa com algu­mas cordas e os restos de um piano de cauda meio destruído pelo cupim; a sala que encerrava essas "re­cordações da civilização" estava servindo de estábulo para uma vaca. Descreve êle sua caminharla ("Que mais havia para se fazer?") por uma vereda tortuosa para chegar a "o que êles chamavam de Rua Terceira". Ali chegando mostraram-lhe os destroços de "um coche fúnebre de primeira classe, tão bom quanto os da Sauta Casa de Belém, que algum prefeito havia adquirido, compadecido dos pobres defuntos que eram levados para o cemitério em padiolas ou em rêdes". Com cer­teza o coche era muito largo para passar pela senda que levava ao cemitério e que, depois do colapso da borracha, não fôra mais alargada. Agora, novamente, uma rêde amarrada a duas varas leva para seus tú­mulos a gente de Itá. João da Selva ansiava por deixar a vila, mas não era fácil fugir. Nos velhos tempos, todos os vapores fluviais paravam em Itá, mas, agora, o "Moacyr", navio em que pretendera VIaJar, descia majestosamente o Amazonas sem se dar ao tra­balho de parar.

Nem tôdas as cidades da Amazônia chegaram a uma tal decadência, mas a maioria das comunidades da região sofreu, de uma maneira ou de outra, os efeitos do aba~dono econômico em que ficou o Vale. Em quase tôdas as cidades a população declinou. O sistema de transportes, eminentemente fluvial, foi len­tamente se desagregando devido à falta de substituição do equipamento gasto, e a comunicação entre os vários

85

Page 86: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

centros tornou-se menos freqüente. Os navios que vi­nham da Europa e do Sul do Brasil para Belém e Manaus eram cada vez mais raros, diminuindo assiúi. o contato com o mundo exterior. Esvaziaram-se os cofres estaduais e municipais, pois que fôra a borracha. sua principal fonte de recursos. As utilidades públicai:i de numerosas cidades foram deixadas ao abandono e as escolas rurais fecharam por falta de professôres. Até m~o as cidades de Belém e Manaus sentiram os efeitos dos estragos durante êsse período. Quando a segunda ·guerra mundial trouxe para o Brasil viajantes de tôda parte, na cidade de Belém, por onde êles pas­savam, o sistema de energia elétrica, de propriedade dos inglêses, estavam em condições tão precãrias que não havia fôrça suficiente para fazer andar os bondes. A eletricidade, aliás, faltava durante horas seguidas quase t6das as noites. As ruas de Belém estavam esburacadas e o sistema de esgotos, que nunca fôra concluído, parecia mais um criadouro de mosquitos do que um mecanismo para a eliminação de dejetos. Os telefones usados em Belém ainda eram do antiquado tipo de manivela. Durante êsse período de 1912 a 1942, houve na Amazônia brasileira pequenos intervalos de desafôgo, graças às atividades esporãdicas de algum político enérgico, a auxílios do govêrno federal ou ao aumento de preços de um ou outro produto florestal, mas, de maneira geral, foi uma época de isolamento, de lenta desagregação e de miséria crescente. · Mas a segunda guerra mundfal inaugurou uma nova era no Vale Amazônico. Quando as plantações de borracha do Oriente caíram nas mãos dos japonêses, .os aliados voltaram-se desesperadamente para a região amazônica em busca de borracha natural. Enormes so­mas de dinheiro e esforços consideráveis desencadearam uma campanha pelo aumento da produção da borracha.

86

Page 87: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

A Companhia de Desenvolvimento da Borracha, um órgão do govêrno dos Estados Unidos, criado durante a guerra, trabalhou em conjunto com o govêrno brasi­leiro a fim de melhorar os meios de comunicação e transporte, facilitando a importação de material neces­sário à extração da borracha, concedendo crédito aos produtores, bem como a outros empreendimentos des­tinados a aumentar a produção. Aproveitando-se de uma temporada de sêca no árido Nordeste, numerosos refugiados foram levados para o V ale Amazônico para engrosc;ar a mão de obra na extração da borracha. A borracha ·bruta era transportada por via aérea, de Manaus para os Est.ados Unidos. Uma infinidade de técnicos, muitos dos quais haviam adquirido grande experiência nas plantações do Oriente, afluíram para Belém e Manaus e espalharam-se pelo Vale. Não foi um sucesso, entretanto, a campanha da borracha dos tempos de guerra. A produção ·da borracha da Ama­zônia brasileira que era de cêrca de 19. 000 toneladas em 1940, em 1944 havia aumentado para apenas cêrca de 25. 000 toneladas.

O fracasso do programa de desenvolvimento da borracha foi devido a várias causas. Em primeiro lugar, a própria natureza da indústria de borracha. bruta cria dificuldades ao seu desenvolvimento. As árvores ficam muito distantes umas das outras na flo­resta, o que toma a extração do látex um trabalho árduo e às vêzes exaustivo. Em segundo lugar, a aber­tura de novas (ou a reabertura de velhas) estradas nos seringais da Amazônia, requer um grande conhecimento; do terreno e do processo de extração da borracha sel­vagem. Os trabalhadores inexperientes, trazidos do Nordeste e de outras regiões do país, não tinham a prática do caboclo da Amazônia e eram incapazes de abrir estradas que facilitassem a grande produção. O

87

Page 88: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tempo era escasso e os técnicos e administradores do sul do Brasil e do estrangeiro não compreendiam a so­ciedade amazônica. Desconheciam os incentivos pró­prios a estimular a população rural do Amazonas a despender maiores esforços e não compreenderam a fôrça tradicional do sistema comercial da Amazônia, que consideravam muito deficiente e explorador e, por­tanto, uma barreira à grande produção da borracha.

E'ntretanto a campanha da borracha proporcionou muitos benefícios à Amazônia brasileira. Os preços subiram bastante e a população já podia comprar alguns artigos manufaturados que eram importados pela região. O govêrno brasileiro demonstrou novo interêsse pelo Vale. Em 1940, em um discurso pro­nunciado em Manaus, já o presidente Getulio Vargas prometera que as necessidades da área constituiriam assunto de interêsse nacional e, com o advento da guerra, cumprindo sua promessa, determinou impor­tantes medidas nesse sentido. Em 1942 foi estabelecido o SESP, em virtude de um acôrdo internacional entre o Brasil e os Estados Unidos e como parte do esfôrço de guerra. Uma das partes mais importantes do pro­grama geral do SESP era o gigantesco programa de saúde pública na Amazônia brasileira. Em 1949 o SESP havia estabelecido postos de saúde em trinta ci­dades amazônicas e hospitais em Breves e Santarém, dois centros importantes do Baixo Amazonas. Além de proporcionar assistência médica a grande parte da população amazônica o SESP instalou sistemas de. abastecimento de água em várias comunidades da re­gião, construiu mais de 8. 000 fossas sanitárias em todo o Vale e construiu uma rêde de valas e canais de esgôto, em Belém e nas suas redondezas, que não só proporcionaram à cidade a recuperação de terras como proteção contra a malária. O SESP instituiu ainda

88

Page 89: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

um serviço domiciliar, permanente, de desinfecção com DDT que, desde 1948, vem protegendo cêrca de 40. 000 casas e edifícios públicos de 146 comunidades.

Êsse grande programa de saúde pública, a princípio financiado pelos Estados Unidos e o Brasil, é agora exclusivamente custeado pelo último. Um pequeno grupo de técnicos norte-americanos ainda permanece no quadro de funcionários do SESP, no Vale Amazô­nico, na qualidade de consultores, mas em várias ci­dades da região encontram-se hoje inúmeros médicos sanitaristas brasileiros que ostentam, nas paredes de seus escritórios, flâmulas das universidades de Michigan, Columbia e Jolms Hopkins e diplomas de Doutores em S~úde Pública. São os homens que o SESP mandou estudar nos Estados Unidos. E, onde quer que se vá, encontram-se sanitaristas formados nas novas facul­dades de São Paulo e Rio de Janeiro. O SESP e. outros programas, mantidos pelo Instituto de Assuntos Inter-Americanos do Departamento de Estado dos Es­tados Unidos, são hoje considerados, em tôda a América Latina; modelos de execução do programa do Ponto Quatro.

Já em 1943, manifestaram-se em Itá os efeitos do novo interêsse, nacional e internacional, pelo Vale Amazônico. Não sendo embora um grande centro po­puloso, sua situação estratégica, às margens do braço principal do Amazonas, é extremamente vantajosa. Por constituir um centro excelente, através do qual se podia ter acesso a uma numerosa população, espalhada pelo Baixo Amazonas e na região do delta, em 1943, o SESP instalou um posto de saúde em Itá. Inicial­mente, mandou-se para lá um técnico em laboratório para colher mosquitos e distribuir Atebrina, a droga anti-malárica mais eficaz àquela época. Logo a seguir

89

Page 90: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

também lá chegaram um médico, um enfermeiro e um jnspetor de saúde pública, que instalaram um posto em uma das poucas casas de tamanho regular que ainda permaneciam de pé. Em 1944 construiu-se um edifício moderno para abrigar o posto de saúde e esta­cionou-se em Itá uma lancha a motor Diesel para transportar os médicos em suas visitas às vilas e cidades vizinhas. A escolha de I tá para sede do posto de saúde aumentou-lhe a importância e, aos poucos, foi crescendo a sua população.

O SESP promoveu uma série de inovações. Cons­truiu fossas sanitárias em mais de' 90 por cento das habitações da vila. Um inspetor sanitário conseguiu convencer a população a limpar os seus quintais, arrancando-lhes o mato. De três em três meses o SESP envia uma turma para expurgar com DDT tôdas as casas e edifícios públicos e os principais focos de mos­quitos nas vizinhanças da cidade foram destruídos. Os casos de malária são agora raros entre os habitantes do lugar. Em 1942, 16 por cento das 354 pessoas exa­minadas apresentaram resultado positivo; em junho de 1944, menos de um por cento de .337 exames deu resul­tado positivo para malária. Itá, que foi outrora fa­mosa no Amazonas por suas :graves epidemias, quase anuais, está hoje, pràticamente, livre da malária.

No espaço de dois anos (1944-1945), 6. 329 pessoas foram atendidas no dispensário do SESP; foram admi.­nistradas 1. 069 vacinas contra a varíola ( 100 por cento da população da vila e muitos dos distritos rurais de cidades vizinhas) e 469 vacinas contra o tifo. Criou-se um clube de saúde para as crianças das escolas a fim de nelas se inculcarem hábitos higiênicos mo­dernos. Folhetos, cartazes, palestras de médicos, projeções de diapositivos e visitas periódicas da "visi­tadora" (nome dado às auxiliares de enfermeiras for-

90

Page 91: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

madas pelo SESP) são meios utilizados para educar os habitantes de Itá dentro dos preceitos modernos de higiene e lhes fazer compreender as vantag·ens do pro­grama de saúde pública. As curiosas (part~iras) foram convidadas a visitar o posto de saúde a fim de receberem instruções sôbre os princípios de higiene que devem se.,,"1lir ao realizarem os partos, e de rece­berem gaze e instrumentos esterilizados, bem como o "'quipamento simples de que necessitam para prestar serviços às suas pacientes. A maioria da população de Itá ainda se abastece de água, tanto para beber quanto para os usos diversos de suas casas, nos rios e em alguns poços. Tanto uma como outra dessas fontes foi condenada pelo SESP. Entretanto a população da vila tem esperanças de construir brevemente uma rêde de abastecimento de água, como já possuem outras cidades do Amazonas, por intermédio de um plano do cooperação com o SESP. Em 1948 o SHSP já fazia parte da vida da comunidade; tornara-se uma neces-· Ridade para sua gente. Quando circularam boatos de que o serviço ia fechar porque o govêrno dos Estados Unidos talvez não renovasse seu contrato com o Brasil para continuação do serviço cooperativo de saúde pú­blica, houve grande inquietação. Os habitantes de Itá es­tavam indignados por perderem seu médico e os benefí­cios do posto de saúde. Criticaram tanto o govêrno federal de seu país, quanto a política dos Estados Unidos que, como diziam, eram apenas "amigos em tempos de guerra".

Os altós preços da borracha e, conseqüentemente, de outros produtos, durante a segunda guerra mundial, também estimularam outros setores da vida de Itá, além da saúde pública. Os impostos criados para as exportações de borracha e de côco de babaçu aumenta­ram as rendas da municipalidade. Em conseqüência,

91

Page 92: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

com exceção da pavimentação de cerâmica, foi final­mente concluída, em 1947, a construção do edifício da prefeitura. Trinta anos depois, a vila de Itá repetia sua louca ostentação. As despesas com as obras da prefeitura deixaram a municipalidade de tal forma endividada que as rendas provenientes da arrecadação de impostos foram hipotecadas por vârios anos. Con­tudo, o govêrno municipal descobrira meios de reunir fundos para consertar o embarcadouro, para construir os bangalôs duplos já mencionados e para pagar os trabalhadores que, de tempos a tempos, arrancavam o mato das ruas. O govêrno federal construira uma escola destinada a aulas noturnas para adult~s quP, entretanto, estava sendo utilizada como escola primária . . Com a acumulação de presentes oferecidos pelos de­votos de São Benedito, a igreja foi reformada. Havia também esperanças de se substituir o gerador termo­elétrico que havia sido instalado vários anos antes e já não mais funcionava, por outro, Diesel. Em .1948, a melhoria das condições de vida atraiu novamente para a cidade alguns de seus antigos habitantes; ds uma pequena população de menos de 300 pessoas, em .1930, passara Itá a abrigar 500, em 1948 e mais de 600, em 1950.

Apesar de alguns melhoramentos, entretanto, Itá ·ainda é uma comunidade atrasada, decadente e isolada. Em 1948 não possuía telégrafo nem estação de rádio ; a "Amazon Cable Company", que outrora mantivera uma agência na vila, fechara suas portas. Um hidro­avião PBY da Panair do Brasil parava lá uma vez por semana quando subia o rio, vindo de Belém, e uma vez por semana quando descia de Manaus, para en­tregar correspondência e, vez ou outra, deixar um passageiro. A maioria dos navios da SN APP, unm companhia de navegação fluvial do govêrno federal,

92

Page 93: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

parava em Itá e, ocasionalmente, a cidade recebia a visita de algum vapor de companhias particulares. Durante um período de três meses, doze navios fluviais pararam em Itá para entregar e apanhar correspon­dência, descarregar mercadorias e carregar borracha e alguns outros produtos de exportação. Tendo-se em vista seu parco comércio e a escassa correspondência que entra e sai da vila, êsses meios de comunicação parecem-nos mais do que suficientes. Em condições normais, apenas umas quarenta carta~ são recebidas e mais ou menos a mesma quantidade é despachada pela agência do correio, no espaço de um mês. A maior parte da correspondência recebida é destinada aos vá­rios funcionários do govêrno e às casas comerciais e a correspondência expedida consiste, principalmente, em relatórios oficiais. · O movimento de mercadorias que entram e saem de Itá é pequeno, porque a maior parte das exportações do município é despachada dos postos de comércio instalados ao longo do rio, diretamente para Belém.

O atraso de Itá reflete-se no pequeno número de pessoas que lá sabêm ler e na precariedade de seus JJJ.eios de ~çlucação. Em 1948 apenas duas pessoas re­cehiam JOrnais ou revistas, apesar de que êstes eram emprestados a cêrca de umas dez outras. Mais de 40 por cento da população da cidade e cêrca de 80 por .cento da população rural da comunidade eram total­mente analfabetos: os que sabiam ler correntemente formavam apenas um punhado. Do que se passava pelo mundo exterior pouco se conhecia e não havia mesmo qualquer interêsse em conhecer; o prefeito tinha um rádio de pilha e tôdas as noites cinco ou seis pessoas reuniam-se à porta de sua casa para escutar as notícias do Rio de Janeiro. Além do mais, o sis­tema escolar poucas esperanças oferecia para um pú-

93

Page 94: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

blico mais esclarecido ou ilustrado. Em todo o muni­cípio, de mais de sete mil habitantes, existiam sete escolas primârias com uma única sala de aulas, cada uma com um professor. Duas dessas escolas estavam situadas na comunidade de Itá - uma na vila e outra na pequena povoação de J ocojó. As professôras -pois eram mulheres - não se tinham formado na escola normal do Estado; ambas tinham como principal cre­dencial para ensinar, a capacidade de ler e escrever. Essas duas escolas primárias da comunidade de Itá, como tôdas as escolas primârias do Brasil, são mistas. Embora no Brasil o curso primârio seja de cinco anos, a escola de I tâ só fornece os primeiros três anos. As duas professôras não podem ensinar o quarto e o quinto. Em 1948, sessenta alunos (26 meninos e 35 meninas) matricularam-se na escola da vila, mas a freqüência média era üe apenas 40 ou 50. A escola de Jocojó tinha 36 alunos inscritos, mas a freqüência diária nunca ia além de 20 ou 25. A maioria das crianças em idade escolar (de 7 a 12 anos) das duas povoações estava matriculada, mas poucas terminaram o curso de três anos ou, me.c;;mo, sequer aprenderam outra coisa além de escrever seus nomes ou de peno­samente soletrar uma simples frase. .Apenas uma criança recebeu o "certificado" de terminação do curso em 1946 e duas em 1947. (22)

O sistema escolar de Itá é, teoricamente, regula­mentado pela Secretaria de Educação do Estado do Pará. Na realidade, as escolas são raramente fisca­lizadas, quando o são, e são dirigidas mais ou menos segundo as idéias e os caprichos das duas professôras.

(22) A população rural da comunidade, com exceção de .Jocojó, não possuia qualquer meio de educação. Mais da metade das duas mil pessoas da comunidade era totalmente privada de qualquer oportunidade de instrução.

94

Page 95: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

A escola municipal funciona cinco dias na semana, de 8 horas da manhã ao meio-dia; o horário, entretanto, é um pouco incerto porque o relógio da prof essôra pára muito freqüentemente e quase nunca sincroniza, com os outros relógios de Itá. No meio do ano, em julho, há umas p"equenas férias; as longas duram d~ dezembro até meados de fevereiro. Em junho de 1948 a escola municipal estava quase completamente despro­vida de material escolar, mas em· agôsto, finalmente, chegou de Belém um sortimento que há muito vinha sendo ansiosamente esperado. Dêle constavam 26 car­tilhas, 27 tabuadas, 12 lápis, 11 canetas, 20 penas, 7 envelopes, 1 borracha, 1 mata-borrão, 1 pacote de giz, um vidro pequeno de tinta vermelha, 60 folhetos edu­cativos, 72 folhas de papel de escrever e um livro de freqüência para o professor. ~sse material deveria suprir 60 alunos durante todo o ano e aiuda tinha que ser dividido com a escola de Jocojó. Além disso, em 1948 uenhuma das professôras, havia ciuco meses, recebia os seus vencimentos. A prof essôra municipal ameaçava despedir-se. Teõricamente, ensinam-se nessas escolas leitura, ortografia, aritmética, gramática por­tuguêsa e "noções gerais de geografia", mas, como a professôra municipal, em 1948, era também a beata da localidade que se dedicava aos cuidados da igreja, sem­pre que possível ensinavam-se também orações e histó­rias elas vidas dos santos.

Essa situação é máis ou menos a mesma em tôda a Amazônia ~rasileira. O Estado do Pará, com uma po­pulação de mais de 900. 000 pessoas, cm 1936, tiuha apenas 81. 592 crianças registradas em escolas primá­rias - cêrca de um têrço das crianças em idade escolar (7 a 11 anos). Nesse mesmo ano, apenas: 3. 000 crian­ças completaram o curso pnmar10. Em todo o Estado só existiam seis escolas secundárias, tôdas localizadas

95

Page 96: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

em Belém, e, com exceção de uma, dirigidas por insti­tuições religiosas ou particulares. Como já dissemos acima, mais de 60 por cento da população do Vale são analfabetos e é evidente para qualquer um que conheça :intimamente os distritos rurais, que muitas dessas pes­soas classificadas de alfabetizadas são na rcalida<le "semi-analfabetos" que apenas conseguem ler com muita dificuldade e mal podem assinar o nome. A menos que se proporcionem maiores oportunidades edu­cacionais a Itá e outras comunidades amazônicas, essa região permanecerá nas mesmas condições de atraso. Não se pode esperar o êxito permanente de um programa de saúde pública, como o que está sendo executado pelo SESP, ou de qualquer outro programa de desen­volvimento, a não ser que se eleve o nível da educação dos ·habitantes do Vale.

Tufas Itá é atrasada de várias outras maneiras. O sistema econom1co, tradicionalmente predatório, do Vale Amazônico ainda prevalece em Itá, como na maioria das zonas rurais do V ale. Sua população vive ainda da extração da borracha e outros produtos na­turais da floresta, ou das velhas técnicas indígenas de agricultura que consistem na derrubada e queimada. Na realidade, a agricultura é tão pouco desenvolvida na comunidade, que grande parte dos alimentos bá­sicos tem que ser importada. Itá, além de feijão, arroz, açúcar, café e conservas, importa ainda grande quantidade de farinha de mandioca que constitui a base da alimentação de sua gente. Quando sahem__os_pi:e.ço.s

_Q_a l:iorracha ou de qualquer ouh:o p:i:od11to_ de.. .ext1:_ação, ~ II a_g:rfol.lltura.i... freqüentemente,. é .abandonada. quase....por rcompkto. Os seringueiros vivem de conservas e secos, como peixe e carne sêca, feijão e arroz, importados a

preços elevadíssimos do sul do Brasil. Quase todos os artigos manufaturados, desde fósforos e agulhas, até

96

Page 97: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

qualquer espécie de maquinaria, procedem do sul do país ou do estrangeiro. O transporte é lento, inefi­ciente e caro. Os carregamentos procedentes do Rio de Janeiro ou de Santos levam de um mês a seis semanas para- chegarem a Belém, na embocadura do rio Ama­zonas, e muito mais, ainda, para atingirem Itá. ~r­tjgns_ mav.uf11:tm:lldos_~. QS...J!lim~!os Ji.nportados são,' por çonsegµinte1 ~tremamentepis12.endiosos. A idéia exagerada que têm os comerciantes locais do "lucro normal" e os preços relativamente baixos pagos pelos produtos florestais tornam êsses preços ainda mais altos para o seringueiro ou o lavrador de Itá. A. estl'u­t'ura econômica de Itá, como a da maioria do Vale Amazônico, é ainda orientada para exportação para os mercados estrangeiros, como no passado. Como acon­tece na maior parte das regiões coloniais do mundo, essa orientação priva o povo das necessidades básicas da vida, dirigindo seus esforços para a produção de matérias-primas para a exportação em lugar de con­centrá-los na produção de meios de subsistência. O resultado, principalmente durante os períodos em que essas matérias-primas sofrem uma baixa de preços, é o baixo padrão de vida - até _mesmo a miséria.

Do passado histórico de Itá e de tôda a região, surgem as razões fundamentais de seu atraso relativo. Uma cultura é, antes de mais nada, um produto da história - da seqüência de acontecimentos e infl uên­cias, determinados pelÓ homem, que se combinam através do tempo para criar o modo de vida prevale­cente em uma determinada região. As culturas aborí­gines da flore!;lta amazônica adaptavam-se bem ao ambiente tropical, mas sua adaptação técnica era de forma tão simples que, para o europeu recém-chegado, .apenas proporcionava meios para sobreviver ou de mera suqsistência. Nos dois primeiros sé~ulos de re-

97

Page 98: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

gime colonial, em que se formou um ~ovo modo de vida i10 Vale Amazônico, os europeus pouco contribuíram para proporcionar o equipamento ou os métodos técnicos que aumentassem a capacidade do homem para arrancar do ambiente amazônico o suficiente para viver. Desde os seus primórdios, pouco tinha o Vaie para atrair os europeus que para lá iam em busca de riquezas rá­pidas, como o fizeram os conquistadores espanhóis. Os poucos port~.tYJiêses atraídos pela região, logo estabele­ceram um sistema de escravatura, servindo-se dos na­tivos para colher os produtos naturais da floresta, que exportavam. Nem a eficientíssima técnica européia, nem a organização social e a ideologia grandemente avançadas do Ocidente penetraram no Amazonas. De­pois de 1500 a região continuou à margem do desenvol­vimento nascente das novas sociedades coloniais do Novo Mundo, como nos tempos aborígines se mantivera à margem dos centros de civilização complexa.

O sistema escravagista e a economia extrativa que haviam sido estabelecidos nos primeiros tempos colo­niais pelos europeus, deixaram marca indelével na so­ciedade amazônica. Nota-se um sentimento de desprezo por todo e qualquer trabalho físico naqueles que não descendem de escravos, bem como a preferência pela. mão-de-obra barata aos mecanismos que poupam o trabalho humano. Também a classe dominante tem-se contentado com o sistema agrícola nativo, que apenas permite à população do Vale suprir à sua existência com o produto da terra. Em vez de melhorar os mé­todos e técnicas agrícolas, seus esforços têm sido diri­gidos no sentido de aumentar a produção dos produtos de extração. Não se pode modificar o que já passou; mas do estudo do passado torna-se evidente que a principal barreira para um melhor nível de vida para os habitantes do Vale Amazônico é a incapacidade do -

!)8

Page 99: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

homem de orientar seus esforços na direção de seus próprios interêsses. Fossem outros o equipamento téc. nico e a orientação da sociedade da Amazônia, e outra adaptação cultural e social talvez lá se tivesse criado.

Se, entretanto, as razões do atraso do Vale Ama­zônico são principalmente de natureza social e cultt~:ral, e portaii'to, determinadas · peio~- hÕmem, então não hi barreiras intransponíveis à capacidade do homem para. planejar e controlar a direção de seu futuro desenvol: vimento. Existem, evidentemente, numerosas limita­~.ões impostas pelo ambiente físico e pelo climã e, o que também é evidente, os proolemas econômfoõs e so­ciais não podem ser resolvidos localmente, porque a região amazônica está intimamente ligada ao Brasil, como nação, e ao mundo exterior. Ainda assim, a trans­formação social, quer se manifeste como um reflexo das modificações ocorridas no cenário nacional e interna­cional, quer como o resultado de acontecimentos pura­mente locais, implica fundamentalmente em alterações na sociedade e na cultura da comunidade. E é nestB plano, dentro da estrutura da pequena comunidade. que o antropólogo está mais apto a auxiliar o plane­jador social e o administrador, encarre,,,"'3.dos da exe­cução de programas de saúde, de reformas agrícolas, de campanhas educativas e de outros esforços desti­nados a melhorar as condições econômicas e sociais.

99

Page 100: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

3. O MEIO DE VIDA· NOS TRóPICOS.

A maioria da população da região amazônica bra­sileira ganha a vida por meio de técnicas e métodos que há muito foram superados em outras regiões do Brasil e na maior parte do mundo ocidental. O homem

100

Page 101: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

contemporâneo da Amazônia compra artigos manufa­turados nas fábricas modernas, viaja em vapôres ou navios fluviais movidos a motor Diesel, conhece os grandes transatlânticos e aviões e depende dos capri~ chos de mercados distantes e de políticas governamen­tais; entretanto, grande parte dessa gente provê à sua subsistência com uma agricultura primitiva ou, mais propriamente, lavoura, com a caça e a pesca, com a extração dos produtos naturais da floresta ou com um pouco de tudo isto. Embora disponham de ferramentas, de umas poucas culturas novas e importem inúmeros alimentos e artigos, as colheitas e os métodos agrícoias basicos pouco mudaram desde os tempos dos aborígines. Os. produtos que extraeIIJ. da floresta são, hoje em dia, detepnip.ados pelas exigências dos mercados distantPs mas, em grande parte, são ainda os mesmos que o índio conhecia.

Como nos tempos dos aborígines que os precederam, o elemento principal da alimentação dos atuais habi­tantes da Amazônia brasileira é .a manáioca (ou cas­.sava, como às vêzes é chamada). Essa raiz, hojo difundida por tôda a região tropical, na África e na Ásia, é nativa da Am~rica. É uma planta forte e nutritiva que se adapta bem aos tr6picos e aos seus solos lixiviosos. Cresce em uma grande _variedade de solos e resiste melhor. aos insetos, principalmente à saúva, do que a maioria das outras culturas. Des~n­volve-se tão beni com grandes aguaceiros como com chuvas leves. Na Amazônia considera-se a terra firme a mais apropriada ao cultivo da mandioca. Os solos. desbravados na floresta virgem são, naturalmente, prefe~ 'ríveis, mas nas cercanias da maior parte das aldeias e v~~ las amazônicas quase tôda a floresta primitiva que cres­cia em terra firme já foi arroteada. As terras de capoeira alta são geralmente consideradas as melhores para ó

101

7

/'-. i -n

)> o fTl o e o )> {) )>1 o.

m m ri -1 01 -i ' rn 1

º' )> 1

,;

Page 102: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

cultivo da mandioca, mas aquêles que vivem nas vizi­nhanças das aldeias são obrigados a plantar em terras de capoeira baixa. Nas áreas inundadas, nos inter­valos da cheia e da vazão do rio, planta-sé milho, arroz e feijão, culturas de rápido crescimento. As vêzes, juntamente com a mandioca, planta-se, na terra firme, .abóbora, feijão, inhame, pimenta, amendoim, abacaxi e banana. De maneira geral, entretanto, o lavrador da .Amazônia é produtor de mandioca.

Diz a gente de Itá que se aproveita até a menor partícula do tubérculo e que mesmo as cascas servem de alimento para as galinhas. Com o suco venenoso de uma variedade amarga de mandioca prepara-se o famoso tueupí, condimento que se obtém por exposição ao sol, dentro de uma garrafa, durante quinze ou vinte dias; e com a tapioca, polvilho fino, rico em açúcar, que se peneira ao preparar a farinha de mandioca, os habitantes de Itá fazem um mingau. Dêsse mesmo polvilho e de uma massa pesada, preparada com o tu­bérculo, faz-se o beiju. Entretanto, o produto mais comum da mandioca é a farinha, prato obrigatório em tôdas as refeições dos moradores de Itá, quer como farofa, quer COIJlO ehibé - misturada com um pouco dágua. Uma .família de cinco pessoas consome, nor­malmente, dois ou mais quilos de farinha por dia.

O preparo da farinha de mandioca é tarefa demo­rada. Em Itá usam-se as duas espécies de mandioca para fazer farinha: a variedade doce, não venenosa, e a amarga, ou mandioca "braba", cujos tubérculos são bem maiores e contêm uma alta porcentagem de ácido pruss1co. E como os tubérculos da mandioca amarga são maiores e rendem mais, é esta espécie a mais usada no preparo da farinha. Os métodos empregados na fabricação da farinha são, em essência, os mesmos dos

102

Page 103: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

índios das tribos amazônicas. A parte mais trabalhosa é a remoção do líquido venenoso, que se faz de duas maneiras: na primeira, depois de se descascar o tu­bérculo, é o mesmo passado em um ralador de mão ou no caitetu, ralo cilíndrico movido por dois volantes de tração manual. Depois extrai-se o suco dessa polpa ralada. Uma cesta cilíndrica, chamada tipití, usada pelos antigos aborígines, é ainda utilizada para êsse fim. Coloca-se a polpa dentro dêsse tubo longo e fle­xível e, à medida que se estica o tipití, o líquido vai escorrendo. Ou então remove-se o suco por meio de uma prensa em forma de caixa cuja tampa é empurrada por uma alavanca. Depois de extraído o suco, passa-se a massa por uma peneira a fim de separar as fihras e os grãos mais grossos. Finalmente, torra-se essa massa em uma grande chapa de cobre.

A segunda maneira de se fazer farinha de man­dioca difere no método de tratar o tubérculo. :Êste, em vez de ser ralado, é depositado em um riacho on qualquer água corrente, durante cêrca de quatro dias, até que fique puba, isto é, amolecido, quase podre. A casca é assim fàcilmente retirada, o suco extraído e a massa mole peneirada e torrada. Em Itá a melhor farinha é a. ·que se prepara com uma combinação dêsses dois métodos. Metade dos tubérculos é ralada e a outra metade amaciada na água, e as duas misturadas antes de torrar. Para preparar um alqueire de farinha, de­pois de colhido o tubérculo, um homem e sua mulher levam todó um dia.

Todos os anos, no verão, de junho até o fim de agôsto, os lavradores de Itá trabalham na roçagem das terras para suas plantações de mandioca. Seu primei M

trabalho consiste em cortar a vegetação rasteira com um facão de mato; as árvores são depois derrubadas

103

Page 104: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

com um machado. Deixa-se o mato e as árvores seca­rem durante um mês ou seis semanas e, em setempro ou outubro, conforme a época em que foi roçado, o sítlo é queimado. Aí começa o trabalho duro para o lavrador, a coivara, que consiste em empilhar os troncos meio queimados e em arrancar as raízes mais profundas que não foram queimadas. Quanto mais drástica fôr a queimada, menor será o trabalho da coivara. A terra agora está pronta para ser plantada, embora, para olhos inexperientes, pareça apenas um emaranhado de galhos e árvores queimados no meio da floresta. A plantação leva de fins de outubro até dezembro, du­rante as primeiras chuvas do inverno. Brotos ou galhos ~ortados da haste do arbusto são plantados na terra onde logo deit'am raízes. Às vêzes plantam-se na mesma área culturas acessórias, como jerimu (abó­bora), milho, melancia e pimenta; são plantas de cres­cimento rápido e podem ser colhidas antes que as ra­magens da mandioca fiquem muito espêssas.

A mandioca cresce muito lentamente; geralmente só amadurece depois de um ano. Entretanto pode ser coJhida depois de seis meses, ainda verde, antes que os tubérculos acabem de crescer. Mas, mesmo depois de madura, a colheita pode ser feita aos poucos, pois que se necessita dos tubérculos durante quase todo o ano. Para se colher a mandioca, cortam-se primeiro os ar­bustos, arrancando-se os tubérculos do solo com uma enxada. A maioria dos lavradores de Itá replanta a mandioca, imediatamente, à medida que a vai colhendo; no mesmo lugar em que arrancaram uma raiz, replan­tam outra. Sendo êsse segundo plantio muito menos produtivo do que o primeiro, o sítio geralmente só é replantado uma vez. Depois da segunda colheita o sítio abandonado é invadido pelo mato. É êste, via de regra, o ciclo agrícola do cultivo da mandioca em Itá.

104

Page 105: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O trabalho agrícola' exigido pela cultura da man­dioca varia muito, entretanto, conforme o tipo da terra escolhida. A floresta virgem e a capoeira alta são muito mais difíceis de roçar do que a capoeira baixa, mas são os SQlos novos que asseguram maior produção. A roçagem da capoeira baixa, ou vegeta­ção rasteira, é um trabalho mais fácil e geralmente não requer a coivara, mas as ervas daninhas crescem muito ràpidamente nessas áreas, sendo as colheitas men9s produtivas. Calculam os lavradores de Itá que um homem só, trabalhando numa área de uma tarefa (1) de capoeira alta, levaria cinco dias para roçar o mato, cinl!o dias para derrubar as árvores grandes, um dia queimando tôda a área, cinco dias empilhando os galhos e arrancando as raízes ( coiva.ra ) e vinte dias plantando o sítio. E, ~nquanto a mandioca crescesse, levaria outros dezesseis dias arrancando as ervas mais daninhas. Assim, para uma tarefa de mandioca, teria gasto quarenta e dois dias de trabalho. Em uma tarefo de floresta virgem gastaria um pouco mais do que isso, e muito menos numa tarefa de capoeira baixa.

O trabalho de uma roça, entretanto, nunca é feito ~or um só homem, nem de maneira tão sistemática quanto poderia parecer pelo cálculo acima. Em pri­meiro lugar, um dia de trabalho para o lavrador da Amazônia raramente vai do raiar do dia até o anoi­tecer. O lavrador, geralmente, sai de casa de manhã cedo, depois de ter tomado um cafézinho com um pu­nhaÇlo. de farinha de mandioca. Trabalha até meio-dia: ou pouco mais, voltando à casa para uma pesada re­feição. Depois dêsse almôço, descansa• e passa o resto da tarde ocupado em outros afazeres.

(1) Uma tarefa tem 25 por 25 braças; em !tá a braça é de 2,5 metros, sendo pois uma tarefa, 8906,25 metros qua­drados.

105

Page 106: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O lavrador só passa o dia todo no campo quando participa ou é o dono de um piixirão ou conm"te, como são chamados êsses serviços em conjunto. Organi­zam-se às vêzes tais grupos de tr&balho cooperativo para as várias tarefas do cultivo da mandioca, mas em geral são êles reservados para o trabalho pesado da roçagem de um sítio. O dono da roça, nessas ocasiões, manda convites a vários homens - a parentes próximos, aos compadres (2) ou aos amigos. Algumas vêzes, os vizinhos, sabendo que se planeja um trabalho coopera­tivo, aparecem, mesmo sem convite especial. O tama­nho . dêsses grupos varia consideràvelmente. J uca, um 1avrador que mora em !tá e tem uma plantação logo à saída da cidade, convida sempre uns quatro ou cinco· amigos, velhos conhecidos com que tem trabalhado há muitos anos. Em Jocojó, os grupos de trabalho coo· perativo geralmente se compõem de quinze a vinte homens que moram nas redondezas. Nessas ocasiões o anfitrião se responsabiliza por tôdas as despesas. Serve café em casa antes de sairem para o campo; compra cigarros ou fumo para os convidados e fornece a cachaça para um golinho ou outro em meio ao tra­·halho, ou como mata-bicho, antes da refeição do meio­dia. A mulher do anfitrião, auxiliada pelas mulheres dos convidados, prepara um lauto almôço. Geralmente, mata-se um porco, ou várias galinhas, quando o grupo é numeroso. O anfitrião retribui àqueles que o ajuda­ram, quando se apresenta a ocasião; os trabalhadores não são pagos em dinheiro e, às vêzes, podem-se passar muitas estações, sem que êle tenha oportunidade de retribuir aos seus colaboradores com a mesma proporção de trabalho. "Trabalhamos duas vêzes mais depressa quando o fazemos em conjunto'', explicou-me um la-

(2) Vide p. 213.

106

Page 107: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vrador, e todos preferem executar os pesados trabalhos agrícolas em grupos cooperativos.

Em determinadas tarefas agrícolas, também a fa­mília costuma trabalhar em conjunto. A roçagem do terreno, a queimada e a coivara são trabalhos dos ho­mens; mas as mulheres ajudam os maridos na plan­tação e, algumas vêzes,. na remoção de ervas daninhas, bem como na colheita da mandioca e na fabricação da farinha. Dessa maneira um homem e sua mulher po­derão plantar uma tarefa em dez dias em vez dos vinte que levaria um homem sôzinho. Juntos, também pode­rão roçar, em oito dias, o capim que um homem só levaria dezesseis dias para roçar, como juntos serão capazes de preparar em um dia um alqueire de farinha.

Segundo os cálculos dos lavradores de Itá, uma família, se quiser viver exclusivamente da agricultura, precisa possuir, pelo menos, quatro tarefas (15.625 metros quadrados) de roça com mandioca madura a fim de poder suprir às necessidades de cinco pessoas e de t'er um excedente para vender. Para isto, um homem terá que plantar um novo sítio de quatro ta­refas todos os anos. Assim, em setembro de 1948 de­verá ter, digamos, quatro tarefas de mandioca, que foram plantadas pela primeira vez em 1946 e replan­tadas em 1947, e das quais ainda poderá colher alguns tubérculos. Precisará ter, além disso, quatro tarefas de mandioca, plantadas em 1947, que estarão acabando de amadurecer. E durante os meses anteriores deveria ter. roçado quatro tarefas para serem plantadas em outubro ou novembro. Estaria utilizando, ao mesmo tempo, doze tarefas de terra, ou cêrca de 46. 875 metros quadrados. :Êstes cálculos baseiam-se nas suas pró­prias necessidades, nos preços pagos pelo excedente do seu produto e na produtividade média da terra. Ve-

107

Page 108: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

remos, entretanto, que esta é a área máxima de terra que uma família pode lavrar sem auxílio externo.

Uma tarefa de terra relativamente boa (isto é, de mata ou capoeira alta) produzirá uma quantidade de tubérculos que darão, aproximadamente, 900 quilo-; de farinha, e a mesma área, ao ser gradativamente re­plantada, 11. medida que a primeira plantação fôr co.

'lhida, produzirá cêrca de metade dessa quantidade. 'Um homem que planta quatro tarefas de terra por· ano deverá ser capaz de fabricar cêrca de 5. 400 quilos de f?rinha - 3. 600 das novas roças e 1. 800 das replan­tad~s - durante o ano. Sua família, se êle possuir mulher e três filhos, consumirá cêrca de 720 quilos de farinha de mandioca em um ano, deixando-lhe um saldo de 4. 680 quilos, ou, em têrmos locais, 156 alqueires, para vender. Ao preço vigente em 1948, isto lhe ren­deria cêrca de Cr$ 7 . 020,00, o que representa uma renda mais alta do que a renda média, quer da classe mais baixa da cidade, quer dos agricultores. Não é, entretanto, uma boa renda, em vista dos preços dos remédios, das roupas, dos utensílios domésticos, das despesas necessárias para se organizar uma festa e de

.outros igastos exigidos pela família. Nas melhores circunstâncias, o cultivo da mandioca, incluindo-se fer-ramentas e os métodos hoje empregados em Itá, apenHH dá para a subsistência.

Além disso, se o lavrador de Itá seguisse à risca €sse programa ideal, pouco tempo lhe restaria para qualquer outra coisa - para pescar, consertar sua casa, construir ou reformar sua canoa. Teàricame!}te, o trabalho agrícola requerido em um ano por quatro tarefas somaria 168 dias e, ainda em teoria, o lavrador precisaria de mais ;360 dias para preparar, sozinho, 5. 400 quilos de farinha de mandioca. Se sua mulher

.o ajudasse a plantar, a capinar e a fabricar a farinha,

108

Page 109: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

àinda necessitaria de 330 dias de trabalho, o que é cer­tamente uma ocupação bastante absorvente. Na reali­dade, evidentemente, poucos lavradores lem .Itâ pos­suem quatro tarefas de plantação de mandioca; os que .as possuiam em 1948 tinham, para os ajudar, filhos crescidos, ou outros parentes que dêles dependiam. Segundo os cálculos que 39 moradores da aldeia fizeram de suas roças, plantadas no ano anterior, possuiam êle!f.. em média, apenas 2,7 tarefas de mandioca. Os cálculos de 29 lavradores das zonas rurais, davam, em média, apenas 2,9 tarefas por homem. De 68 lavradores que nos forneceram cálculos dessa natureza, apenas 11 resi­dentes da cidade e 10 da zona rural possuiam quatro tarefas de mandioca madura. (4)

Muito poucas pessoas, portanto, vivem exclusiva­mente da Bio~icultura. Pràth~amente todos os lavradores de Itá têm de aumentar seus rendimentos com outras atividades e muitos só plantam o necessârio para o pr6prio consumo. A gente da cidade trabalha como assalariados e ganha 15 cruzeiros por dia e os lavra­dores das vizinhanças trabalham nas indústrias extra­tivas - colhendo cocos, timbó e borracha, ou cortando lenha para os vapores fluviais. Todos os anos, os ho­mens mais jovens da pequena vila de Jocoj6, depois das festas de São João e Santo Apolônio, em julho, partem para a região da ilha a fim de trabalhar nas estradas de borracha; s6 voltam em outubro, a tempo de ter­minar a roçagem da terra e plantar as roças, antes que comecem as chuvas. :M:esmo os lavradores que são donos de terras e .que a elas dedicam tempo integral,

(4) Em l.948 tivemos oportunidade de medir as roças que vinte lavradores de Itá haviam preparado para a plan­tação de mandioca. Essas roças, cuja safra deveria ser co­lhida em 1949, tinham, em média, apenas 2,6 tarefas; e sõ­mcnte 5 lavradores possuiam quatro tarefas.

109

Page 110: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

como Jorge Porto, precisam trabalhar na extração da borracha, ou dedicar alguns meses durante o ano a qua1quer outra atividade rendosa. Itá é uma comu­nidade agrícola em que é muito difícil ganhar-se o mínimo indispensável à subsistência, exclusivamente com a agricultura.

Essa comunidade, como aliás todo o Vale Amazô­nico, não produz alimentos básicos em quantidade sufi­ciente para suprir mesmo sua esparsa população atual. Segundo os registros mantidos pelo funcionário local do serviço de estatística, mais de 350. 000 quilos de fa­rinha de mandioca, 5. 000 quilos de feijão, 4 7. 000 quilos da açúcar e 34:.000 quilos de café - que podiam per­feitamente ter sido produzidos na localidade - tiveram que ser importados pela municipalidade. O velho sis· tema indígena de cultivo é pouco eficiente e improdu­tivo, quando comparado com os métodos modernos empregados na Europa e na América do Norte. A terra que se explora em Itá - terra firme - é medíocre em comparação com as ilhas e terras de aluvião das margens do Amazonas, que são áreas alagadas. 1llsses baixios constituem para a municipalidade um grande -potencial para o cultivo de arroz, cana de açúcar, juta c outras colheitas de rápido crescimento, como feijão c milho, que podem ser plantados e colhidos durante o verão, na vazão do rio. (5) Mesmo um emprego mínimo das técnicas e dos conhecimentos agrícolas mo­dernos aumentaria consideràvelmente a produção da região. Melhores condições de transporte e umas -poucas inovações, como a centralização de fábricas de farinha, maquinaria simples e animais de tração, po­deriam incrementar a produção agrícola de Itá, como

(5) Pierre Gourou, "L' Amazonie", Cahiers à'Outre Mer, Vol. II, N.º 5, (1949), pp. 1-13.

110

Page 111: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

o fizeram na regiao de Belém-Bragança, perto da foz do Amazonas. Mas, enquanto prevalecerem os atuais métodos agrícol~s predatórios, a produção de alimentos constituirá seu principal .problema ..

II

Os índios das florestas tropicais, que habitavam a região amazônica antes da chegada dos europeus, pro­viam à sua subsistência com a caça e a pesca, além da agricultura. Nos primeiros tempos da era européia, a caça e a pesca eram extremamente important'es para o sustento dos colonizadores e seus escravos. Foi o índio que ensinou o europeu a viver no estranho am­biente amazônico. Era êle o caçador e o pescador. Os métodos de caça e pesca da cultura regional contempo­rânea da Amazônia são de origem fundamentalmente aborígine. Embora o habitante moderno do Vale cace com uma espingarda ou uma carabina de calibre 44 e pesque com um anzol de ferro ou uma rêde de tipo europeu, exerce essas atividades com o conhecimento da fauna local que lhe foi transmitida pela herança cultural indígena. Além disso_, utilizam-se ainda nu­merosas técnicas aborígines e ainda persistem muitas crenças populares ind~genas a respeito da caça e da pesca. Hoje em dia, nem uma nem outra dessas ativi­dades é de grande importância para a economia re­gional. Ao longo das principais artérias do sistema fluvial do Amazonas, a caça jã não constitui uma ocupação lucrativa. Depois de séculos de habitação humana, a fauna da região foi devastada. (6)

(6) Encontram-se ainda, entretanto, excelentes áreas de caça, nas cabeceiras dos afluentes do Amazonas - no Estado

111

Page 112: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Em muitas comunidades amazônicas, como ltá, a caça tornou-se quase exclusivamente um passatempo; ninguém depende, para viver, do produto da caça. A pesca, entretanto, é de relativa importância para a subsistência. Embora, nos rios principais, os peixes sejam hoje menos abundantes do que anterionncnte, a maioria das famílias amazônicas pesca para o consumo próprio; algumas, entretanto, freqüentemente, dispõem de um excedente para vender. Em algumas localidadei;:, como em Santarém, na embocadura do rio Tapajós, existem pescadores profissionais. Nos remansos, ou igapós, do Alto Amazonas, pesca-se o gigantesco pira­rucu, que às vêzes pesa quatrocentos quilos, e depois de salgado e sêco ao sol é· vendido ao longo do rio, como "bacalhau brasileiro".

Os meses mais favoráveis à pesca, nas vizinhanças de Itá, são os que vão de junho a dezembro. Durante êsses meses os pequenos riachos, que engrossam durante a estação chuvosa, voltam às suas margens primitivas ou secam totalmente e os peixes também regressam aos rios principais. Em agôsto e setembro várias espécies de peixes começam sua migração rio acima, até às cabe­ceiras do Amazonas onde fazem a postura de ovos. Nos meses de verão o peixe é abundante em Itá e constitui o prato de sustância de quase tôdas as famílias. Nos meses de inverno (a estação chuvosa), ao contrário, encontra-se apenas o pirarucu, o bacalhau importado, ou sardinhas e atum em lata. De janeiro a maio o Amazonas e seus tributários engrossam; os afluentes transbordam e, como diz a gente do lugar, "o peixe vai para a mata". Durante êsses meses a pesca de anzol, de barragem ott de rêde, ou por outros métodos

de Mato Grosso, ao sul, e ao longo da fronteira das Guianas, ao norte.

112

Page 113: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

empregados durante o verão, é impossível, só se con­seguindo fisgar, às vêzes, um ou outro peixe nas áreas inundadas.

Nos meses de verão são vários os métodos de pescar. O mais comum, naturalmente, é o do anzol. Tôdas as tardes pode-se observar a gente de Itá percorrendo o rio, para baixo e para cima, em suas canoas, para. pescar durante algumas horas, e os homens ficam às vêzes lançando as linhas até tarde da noite. Os mé­todos mais produtivos, entretanto, são os que utilizam veneno, barragens ou rêdes. Em Itá usa-se um único tipó de rêde, a tarrafa, de forma circular e manejada por um só homem. As barragens são de várias espé­eies. A maior é a cacurí, uma barragem permanente que avança, rio adentro, uns t'rinta ou cinqüenta metros. Em 1948 havia em Itá cinco dessas barragens. Eram de propriedade de Abilio Costa, dono de uma Joja, de Dona Dora Cesar Andrade, de Benedito Ma­rajó e seu irmão, e de J uca, eni sociedade com o bar­heiro, Ernesto Morais. A de Dona Dora fôra primei -ramente construida por seu marido, uns vinte anos antes e, desde então, tem sido consertada ou refeita quase todos os anos. Sua localização é considerada excepcionalmente boa, pois que todos os anos dá uma safra de peixes superior à dos outros. A de Juca e do barbeiro é nova, tendo sido construida em 1948 por cêrea de Cr$ 1. 000,00. Calcula-se que dentro de dois anos terá que ser reconstruida, mais ou menos pelo mesmo preço ; nessas condições são poucas as pessoas que podem possuir barragens permanentes.

A cacurí é constituída de uma parede de varas do tronco do açaí que avança pelo rio, formando uma barreira para os peixes que sobem ou descem, arras­tados pela corrente. No fim dessa barreira, forma-se um curral circular onde os peixes se movimentam e,

113

Page 114: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mais além, um outro cercado menor que se pode fechar quando se querem retirar os peixes. Durante o prin­cípio do verão os donos das cacurís sabem que só podem apanhar alguns quilos de peixe por dia, mas quando os peixes começam a emigrar rio acima, mais para o fim da estação, êles às vêzes chegam a apanhar cem quilos em um dia, que vendem quase todos à gente da cidade. No ano de 1946, em que a pesca: foi con­siderada excelente, Dona Dora Gesar Andrade apanhou em sua barragem cêrca de 2.000 quilos de peixe. Ven­deu uns 300 quilos, aproximadamente, a 4 cruzeiros o quilo e exportou o resto, salgado, para Belém. E'm. 1948, embora Juca e seu sócio só esperassem apanhar a metade dessa quantidade, contavam, entretanto, con­seguir o bastante não só para o sustento de suas fa­mílias como para vender no mercado local e assim amortizar o preço da barragem.

Aquêles que não têm dinheiro, nem tempo, para construir cacurís, principalmente os ·que vivem nas mar­gens dos pequenos riachos, geralmente pescam cercando os mesmos com tapagem;. Itá, que fica bem a jusante do Amazonas, sofre os efeitos das marés oceânicas. Uma diferença mínima no nível das águas dos canais principais é o suficiente para encher ou para esvaziar, duas vêzes por dia, os pequenos afluentes, durante a estação sêca. O pescador da Amazônia constrói uma barreira através dêsses pequenos rios, com uma com­porta que pode ser aberta para deixar entrar os peixes qne sobem o rio com a maré enchente e fechada, para prendê-los, na maré vazante. Durante vários meses, todos os anos, essas barragens proporcionam um aben­çoado acréscimo às refeições de muitas famílias rurais. Além disso, nas enseadas ou lagoas pouco profundas ou nos pequenos riachos, muita gente pesca com raízes de timbó ou de tingui. A raíz esfarrapada ou a planta

l14

Page 115: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

esmagada produzem um veneno que, quando colocado num poço pouco profundo ou num riacho raso, entor­pece o peixe, fazendo-o subir à superfície onde é fàcil­mente apanhado. Os peixes também são fisgados com o arco e a flecha; hoje em dia, ainda se pode ver, em muitas habitações rurais, o espeque, lança de várias pontas, ou o arco e a flecha do tipo usado pelo índio do Amazonas.

Embora a caça não seja tão importante em Itá, a preocupação e o interêsse que desperta não estão d& acôrdo com sua contribuição para o sustento do homem. Muitos seringueiros levam consigo uma espingarda em seu percurso diário pelas estradas de borracha; oca­sionalmente poderão abater uma cutia, uma paca, uma ave silvestre como o jacu, ou até mesmo um porco do mato que lhes atravessem o caminho. Alguns lavra­dores das zonas rurais, que possuem espingardas ou carabinas, de tempos a tempos passam um ou dois dias caçando. As vêzes preparam tocaias, armadilhas formadas com a espingarda armada de maneira que dispare, se o animal tentar fugir com a isca ou no caso de arrebentar um cordão esticado através da picada. Com essas tocaias o lavrador poderá, vez ou outra, matar um veadinho selvagem ou uma paca que venham pastar em sua roça. Assim é que a caça, muitas vê­zes, fornece um refôrço bendito à alimentação, relati­v;unente pobre de carne, da população rural.

Entretanto, o profundo interêsse pela caça que prevalece em· Itá e as inúmeras crenças populares que giram em tôrno dêsse esporte, são remanescentes cla época em que a caça era de importância básica para a economia da aldeia. Nas zonas rurais de Itá, vários homens tornaram-se famosos como caçadores. Entre êles, Enéas Ramos e Domingos Alves. Ambos ganham

115

Page 116: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

a vida em outras ocupações - agricultura e extração da borracha. Domingos é lavrador e vive junto de suas plantações, a dois ou três quilômetros apenas da aldeia. Caça duas ou três noites por semana e tem dois ca­chorros paqueiros. Possui duas armas, uma espingarda de· carregar pela boca e uma carabina. Em 1947 quase morreu de uma queda em que quebrou a perna quando corria pela floresta cerrada afrás de uma anta que acabara de ferir. Em sua casa sempre tem embiara (caça). Quando se conversa com Domingos ou com o velho Enéas Ramos acaba-se inevitàvelmente falando sôbre caça. Como quase todo apaixonado dêsse esporte, descrevem de forma minuciosa e pitoresca as suas fa­çanhas - aquela vez em que mataram uma onça ou a no;te em que abateram dois veados. Falam dos hábitos dos animais e das técnicas de tocaiar determinadas caças.

Ao descrever suas éxperiências, Domingos, como outros caçadores da localidade, não faz qualquer dis­tinção entre o mundo real, tangível, e o sobrenatural, Existe uma planta, designada pelo nome genérico de tajá, que dizem dar muita sorte ao caçador, e da qual há várias espécies: o tajá de veado, o tajá de anta e muitas outras. Plantam-nas os caçadores perto de suas casas, pois, se as utilizarem de maneira apropriada, cada tipo atrairá o animal de que traz o nome. Dizem, por exemplo, que o sangue de três veados, mortos pelo caçador, deve ser derramado sôbre as folhas do tajú de veado; esmagam-se essas folhas com as palmas das mãos e esfregam-se a testa, as costas e os braços do ca­çador. Se êsse ritual fôr repetido várias vêzes, êle terá o poder de atrair os veados em suas peregrinações pela floresta. Mas contam também os perigos da caça, os naturais e os sobrenaturais, que para êles são igual­mente reais. A jibóia, cobra de grande porte, às vêzes.

116

Page 117: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ataca o caçador. '.Êste, na floresta, pode passar pela jibóia sem a ver, mas a serpente tem uma fôrça miste­riosa que atrai o caçador, fazendo-o andar em círculos, aproximando-se cada vez mais, até chegar ao alcance de seu bote. Não se deve matar ou comer a preguiça durante o mês de agôsto, dizem os caçadores, porque nessa ocasião ela tem febre e pode transmití-la ao ho­mem. Em junho não se deve comer o lagarto grande, cliamado jacuruaru, porque é a época em que costuma brigar com cobras venenosas e fica cheio de veneno.

Mas outros perigos ameaçam ainda o caçador; o Anhangá, espírito mau que toma a forma de um animal e o Curupira, pequeno ente sobrenatural que vive na floresta e chama o caçador, atraindo-o cada vez mai3 para dentro da mata até que êle se perde. (7) Além disso, se um caçador "perseguir'' uma determinada espécie, isto é, se matar muitos animais da mesma espécie, êstes roubarão ou farão apodrecer sua sombra, fazendo-o enlouquecer, "dizer bobagens", ter dores no corpo e cair doente com febre. Os caçadores prudentes, como Domingos e Enéas, para não irritar os animais, depois de matar, por exemplo, duas ou três pacas em seguida, procuram outras caças, "uma anta, um veado ou outro animal, antes de tornar a matar uma paca". Às vêzes usam uma cruz feita de cêra benta para es­pantar a "assombração de bicho". Certa vez, quando caçava, Enéas Ramos viu um ·bugio que avançava em sua direção. Lembrou-se, então, que ultimamente havia caçado muitos dêsses macacos. Virou-se e fugiu. Na noite seguinte teve febre e dores de cabeça. Percebeu que o niacaco quisera roubar-lhe a sombra e tratou logo

(7) As crenças nesses dois entes sobrenaturais são des­critas mais pormenorizadamente no Capítulo VII. Ambas são de origem indígena.

. 117

8

Page 118: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de se medicar. Como êle próprio contou, fêz em seu corpo uma fumigação com a fumaça produzida por uma mistura de ninho do sapo cunauaru, (8) nm pouco de cêra benta, uma pimenta sêca e raspas de chifre de veado. Essa mistura é queimada em uma vasilha de barro ou numa cabaça e deve ser passada três vêzes por baixo da rêde do doente, até que a fumaça envolva o seu corpo. .As vêzes o feitiço do animal é tão poderoso que se precisa chamar um pajé para lhe restituir a saúde.

Todavia, o maior flagelo que persegue os caçadores e os pescadores é a panema. Um caçador ou pescador que tem fracassos sucessivos que não podem ser expli­cados por causas naturais, atribui-os à panema, fôrça maligna que se apodera da pessoa, de sua arma, de sua linha de ·pescar, ou de sua .barragem. O têrmo gene­ralizou-se, tanto na zona rural como urbana da Ama­zônia, com o sentido de "má sorte". Um jogador, por exemplo, atacado de panema, começa a perder sem parar. Em Itá, entretanto, panema quer dizer "impo­tência para caçar ou pescar" devido a uma causa sobrenatural. Pode ser transmitida de pessoa para pessoa como qualquer moléstia infecciosa. A mulher grávida que come caça ou peixe pode transmitir pa­nema ao caçador ou ao pescador que os apanhou.· Um homem poderá apanhar panema de algum amigo com quem esteja aborrecido por causa de desavença em questões de alimentação. Se a mulher de um caçador atirar descuidadamente no quintal os ossos de alguma caça e um cachorro ou um porco comê-los, o caçador

(8) O cunauaru é um pequeno sapo que vive nos buracos dos troncos. O seu ninho tem a consistência de uma resina que, quando queimada, produz uma fumaça aromática. Em todo o Vale Amazônico utiliza-se essa resina queimada para fins medicinais.

118

Page 119: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

poderá pegar panema. Também os feitiços dos ini­migos poderão provocá-la.

Enéas Ramos contou-nos um caso típico de caçador atacado de panema. Há muitos anos, quando caçava freqüentemente, Enéas matava muitos veados. Entre­tanto, durante uns dois meses, embora caçasse quase todos os dias, não viu um veado sequer. ·Um dia, um de seus amigos contou-lhe que sua mulher estava grá­vida de vários meses. Enéas então lembrou-se que havia dado ao seu amigo uma porção de veado que ma­tara; percebeu que a mulher era "venenosa" e que lhe transmitira panema. "Nem tôdas as mulheres são ve­nenosas e transmitem panema, mas Catita era", apres­sou-se a explicar-me. "Cada vez que ficava grávida, ao apanhar uma flor, esta murchava". Imediatamente, Enéas notificou seu amigo de seu estado, pois é muito perigoso quando o caçador procura curar-se de pancrna transmitida por uma mulher grávida; o tratamento pode fazê-la abortar. Catita, entretanto, encontrou um meio de curar Enéas sem provocar um abôrto ou sem que seu filho nascesse morto. ( 9)

A panema proyocada por outras causas - descon­fiança dos amigos, feitiços, ou porque os cachorros ou porcos comeram os ossos de alguma caça ou peixe -é mais difícil de d.iagnosticar. O caçador ou pescador não pode saber dessas ocorrências, mas analisando sua::; suspeitas ou reconstruindo acontecimentos passados, geralmente consegue descobrir a causa. Raimundo' Profeta, depois que foi atacado de panema, lembrou-se de que havia negado a um amigo um pedaço de carne de veado, e atribuiu-a à "desconfiança". Enéas Ramos

(9) Outros casos de tratamento de panema em caçado­res, que provocaram abortos e natimortos, são descritos no Capítulo V.

119

Page 120: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

acha que teve panema certa ocasião porque recusara um pedaço de carne de anta a duas crianças que saí­ram de sua casa chorando. Em outra ocasião, quando uns vizinhos invejosos catavam ossos de peixe no quintal de um pescador e deram-nos de comer aos seus porcos, suas linhas e rêdes de pescar foram atacadas de panema; em conseqüência, durante os melhores meses da estação de pesca só conseguiu apanhar uma ninharia. Se algum inimigo seu atirar os ossos de um animal ou peixe dentro de uma fossa sanitâria, o caçador ou pescador também poderá ser atacado de panema. O perigo de apanhar a doença é tão grande que muitos caçadores e pescadores têm mêdo de vender carne ou peixe. Só os darão de presente a parentes ou amigos íntimos em quem tenham confiança ou cujas mulheres não estejam grávidas. (10). Esta precaução é ainda .maior quando o pescador tem uma linha nova; em hi­pótese alguma, nessa circunstância, deverá o peixe ser comido por qualquer pessoa fora de sua família direta, porque tanto a linha como o pescador estarão parti­cularmente vulneráveis à panema. Gustavo Ramos, filho de Enéas, certa vez atirou os ossos de peixes apa­nhados com suas linhas noYas em cima do t'elhado de sua casa, para que não pudessem ser alcançados por ca­chorros ou porcos ou roubados por algum estranho:

São várias as receitas para a cura de panema. Em sua maioria consistem em cozimentos feitos principal­mente com alho e pimenta e aplicados na forma de banhos ou fumigações. A composição, a dose e o nú­mero de tratamentos variam muito de acôrdo com as preferências de cada um e com a gravidade do caso. O velho Enéas Ramos, caçador experimentado, também conhece muitos remédios para panema. Os moradores

(10) Domingos Alves evita êsse perigo, s6 dando ou ven­dendo carne sem osso.

120

Page 121: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

dos distritos rurais de Itá procuram-no para serem medicados e êle, amàvelmente, lhes ensina o que sabe, sem nada cobrar. Uma das receit'as mais fortes que Enéas costuma dar aos caçadores atacados de panema é a seguinte: esmaga-se numa cabaça um pedaço de ninho de cauré, um pedaço de ninho de sapo cunauaru, umas folhas de baunilha e de aninga (flor aquática), dois pimentões e uma pitada de alho. Deixa-se a mis­tura absorver o sol e o "orvalho da noite" durante vá­rios dias. Aplica-se depois, 110 banho, levemente, du­rante três sextas-feiras consecutivas antes da lua cheia. A lua cheia, explicou êle, invalidaria o tratamento.

Outra receita aconselhada por Enéas, é uma fumi­gação e bem menos complicada: um pedaço de ninho de cauré, alguns pimentões, a teia ·de uma aranha (ou, para ser mais exato, da aranha rica) e uma pitada de alho são colocados em uma vasilha de barro, por cima de algumas brasas. O caçador deixa, então, que a fwnaça se espalhe por seus braços, suas pernas e suas costas. Enéas recomenda que o paciente termine o tratamento, segurando a vasilha bem perto do queixo e deixando a fumaça espalhar-se pelo seu rosto ; deverá conservar a boca aberta e deixar a saliva escorrer dentro da vasilha até que as brasas se apaguem.

Os, cachorros de caça atacados de panema podem ser tratados do mesmo modo, quer com banhos, quer com fumigações. Para se tratar uma carabina conta­minada, deve-se soprar a fumaça dentro do cano. A linha de pescar é lavada em um banho preparado se­gundo a receita favorita do pescador, ou pode ser fu­migada com algmna mistura, preferlvelmente na rua ou em uma encruzilhada "em que passe muita gente". Domingos Alves e muitos outros, durante a estação de pesca, costumam fazer fumigações tôdas as semanas, como preventivo.

121

Page 122: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

As crenças . populares amazônicas, em tôrno da caça e da pesca, em sua maioria, são de origem indí­gena. Os índios brasileiros de língua tupí considera­vam Anhangá um fantasma ou espírito, e também acreditavam que êle tomava a forma de animais ou pássaros. Para os índios tupis, o Currupira eri\ tam­bém um demônio da floresta muito temido pelo caçador. As febres e a loucura passageira, que em Itá se atri­buem ao roubo da alma por algum animal, asseme­lham-se aos castigos impostos aos índios caçadores das tribos Tenetehara pelos espíritos conhecidos como "Donos da Floresta". A impotência para caçar e pes­car, causada pela panema, é uma crença que êsses índios da floresta tropical também partilhavam, de forma quase idêntie?t, com a gente de !tá. (ll.) A fôrça da tradição indígena na cultura moderna de !tá parece concentrar-se nos aspectos da vida que se rela­cionam à adaptação do homem ao ambiente amazônico. Os portuguêses e os negros tiveram que aprender com o ameríndio a pescar, a caçar a paca, a anta e outros .animais do Novo Mundo. E, à medida que aprendiam, também iam adquirindo suas crenças sobrenaturais.

Ao europeu recém-chegado, que não dispunha dos recursos da ciência moderna, como aos próprios índios, essas crenças ( •) forneciam a explicação para os impre­vistos da caça e da pesca. Como se pode explicar que um caçador, famoso por seus conhecimentos dos hábitos dos veados, acostumado à tocaia, absolutamente fami­liarizado com a floresta e geralmente bem sucedido em suas caças, de repente não consiga encontrar um único veado - ou, se o encontra, erre os tiros? Na agricul-

(11) Cf. Charles Wagley e Eduardo Galvão, The Tene­tehara Indians of BraziZ (New York, 1949) pp. 58 e segs. e 102 e segs.

(*) Folk.

122

Page 123: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tura amazônica, entretanto, que também segue os mé­todos indígenas, as ~uperstições não parecem ter tanta jnfluência. Se uma roça não cresce muito bem, é por· que foi atacada pelas formigas ou porque a terra esco· lhida não era boa. Não culpam os espíritos da floresta, nem atribuem à feitiçaria a falta de boas colheitas. A razão dessa diferença de crenças supersticiosas a res­peito da caça e da pesca e a respeito da agricultura está na natureza das atividades agrícolas. Na Ama­zônia, a agricultura concentra-se na mandioca, uma planta extraordinàriamente robusta. É raríssimo se ouvir falar no fracasso de uma safra de mandioca. Em contraste com o que acontece nas regiões semi-áridas, a chuva não é um fator determinante. Embora a agricultura na Amazônia seja primitiva e relativamente pouco produtiva, certamente não é incerta e caprichosa; eis porque, a seu respeito, recorre-se menos a explica­ções sobrenaturais.

III

O primeiro produto que, a princípio, os europeus buscavam no Vale Amazônico era a borracha extraída da "Hevea brasiliensis"; entretanto, há mais de dois séculos êsse produto era apenas um dos muitos que se podiam extrair da floresta amazônica. Era expor­tada em pequena escala, principalmente para a fabri­cação de sapatos, bolas, sacos, para fábricas de artigos impermeáveis e outras finalidades semelhantes. Só em meados do último século, com o desenvolvimento doi processo de vulcanização, é que a borracha da Ama­zônia começou a ser procurada em grande quantidade. Desde então, a extração do látex da seringueira agreste tem constituído uma das principais atividades econô-

123

Page 124: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

micas do Vale, mesmo depois da concorrência das plan­tações de borracha do Oriente.

No município de Itá, as ilhas e as baixadas alaga­diças das margens dos rios e afluentes contêm florestas, que produzem um tipo de látex conhecido como "delta" cuja ·qualidade só é inferior à do tipo "Acre fino" produzido nos altos afluentes do Vale Amazônico. A borracha constitui ainda mais de 50% do valor total das exportações do município. Em 1946 foram expor­tados para Belém 58 .479 quilos da "borracha fina" e, em 194 7, 30. 881 quilos. A maior parte dessa borracha procede das áreas distantes do município, mas também é extraída, em menor quantidade, nas cercanias da ci­dade; a extração da borracha é, de fato, um dos aspectos importantes da vida econômica de Itá. Quase todos os seus habitantes, numa época ou outra de sua vida, foram seringueiros. Muitos dêles ainda traba­lham, durante alguns meses, nas ilhas do delta e outros contrataram-se para extrair borracha nas ricas florestas. de seringais do Alto Xingu ou do Alto Tapajós. Nos anos de alta do preço da borracha as famílias de Itá atravessam o Amazonas e mudam-se para as ilhas, abandonando suas roças para extrair borracha. Quando os preços baixam, começa a intensa migração para a terra firme e a agricultura. Mas, apesar dos preços baixos, muitas famílias que nunca tiveram outra ocupação, e várias outras que só trabalham nos seringaig parte do ano, continuam a extrair borracha para. aumentar suas rendas. A borracha bruta é a principal fonte de renda de Itá.

Os métodos de exploração da borracha nativa das florestas determinam, em grande parte, os tipos d.o fixação e a distribuição espacial da população nas áreas em que é ext;raído êsse produto e são mais ou

124

Page 125: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

menos os mesmos em todo o Vale. O conhecimento do sistema tradicional de extração da borracha é, portanto, muito importante para se poder compreender a socie­dade da Amazônia rural As ãrvores da família H evea que produzem a borracha não crescem muito próximas umas das outras; conservam, em geral, entre si uma distância de cinqüenta a cem metros. O seringueiro, a fim de passar de uma para outra, tem que abrir uma trilha. Essa trilha, que une 100 árvores (ou de 150 a 200 nos afluentes superiores onde elas são mais junt.as), forma uma "estrada". Essas estradas, geral­mente, começam perto da casa do seringueiro e formam um grande círculo que acaba mais ou menos no ponto em que começou. Na Região das Ilhas do delt.a do Amazonas, as estradas da borracha têm, em média, de quatro a sete quilômetros de extensão, conforme o espa­çamento das árvores na floresta. Habitualmente cada seringueiro trabalha em duas estrad.as; cada dia extrai borracha de uma enquanto desc.1nsam as árvores da. outra. Segundo se diz, a extração do látex da mesma árvore durante dias consecutivos, cansa a árvore, di­minuindo-lhe a ptodução. As barracas dos seringueiros são, portanto, geralmente, bastante espaçadas; ficam distantes umas das outras, cêrca de um ou dois quilô­metros, nas margens do rio principal, ou dos pequenos afluentes. As estradas da borracha partem, floresta a­dentro, de suas barracas, onde y,êm terminar, sendo o rio o seu meio de comunicação com o posto comercial ou a cidade.

O aia de trabalho do seringueiro começa antes do amanhecer,· às três horas, nos afluentes superiores e um pouco mais tarde, na região das ilhas. Acham necessário começar tão cedo porque dizem que a árvore produz mais leite quando o tempo está fresco e antes que chegue o vento da manhã. o primeiro trabalho

125

Page 126: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

do seringueiro é o corte da casca, ou a sangria para. que possa escorrer o látex. Há grande controvérsia entre os seringueiros e os seringalistas sôbre o melhor método de se cortar as árvores. Hoje em dia, muitos concordam em que o tipo chamado de bandeira é o que menos prejudica a árvore. O tipo de corte conhe­cido como espinha (espinha de peixe) produz mais látex, mas vai lentamente matando a árvore. A espinha consta de uma profunda incisão vertical que todos os dias é acrescida de outras que dela partem formando ângulo, de maneira a que tôdas escorram para ela. A bandeira é uma incisão em diagonal; em cada viagem o seringueiro faz uma nova incisão, imediatamente abaixo da que cortou dois dias antes. No princípio de cada estação a incisão tipo bandeira começa bem no alto do tronco e vai descendo, gradativamente, até que se acabe a estação. Essas incisões, entretanto, não devem ser muito profundas para não ferir a árvore irremediàvelmente; por êsse motivo a maioria dos serin­galistas obrigam os seringueiros a utilizar uma faca especial de preferência ao machadinho que se usava nos primeiros tempos da extração da borracha. Embaixo de cada corte, em diagonal, da bandeira, o seringueiro coloca uma pequena tigela de cêrca de cinco centímetros de profundidade, destinada a aparar o látex branco que vai lentamente escorrendo.

O seringueiro leva umas três ou quatro horas para. dar a volta de uma estra.da, cortando árvore por árvore e nelas colocando as tigelas que aparam o látex gote­jante. Se começar às 5 horas da manhã, estará de volta em sua barraca às 8 ou 9 horas. Nos afluentes superiores do Amazonas, muitos seringueiros, que pre­cisam sair mais cedo, usam uma pequena lanterna de cabeça. Muito já se tem escrito sôbre os grandes pe­rigos a ,que se expõe o seringueiro, principalmente em

126

Page 127: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sua viagem matinal - as cobras venenosas que caem das árvores, os índios selvagens ·que os atacam de sur­prêsa e as estreitas pontes de troncos que têm de atra­vessar nos pântanos. Em algumas regiões afastadas da Amazônia, os índios ainda atacam os seringueiros - geralmente em represália a assaltos às suas aldeias - e as cobras venenosas são conheci.das em todo o Vale, mas nenhum dos seringueiros com quem conversamos passou por qualquer dêsses perigos, mesmo quando trabalhavam no Alto Amazonas. Suas hist6rias refe­rem-se mais à extensão das estradas e à malária do que a índios ou cobras.

A maioria dos seringueiros de Itá toma apenas um cafezinho ou não ingere qualquer alimento, antes de. sair para sua primeira volta da estrada da borracha, mas quando regressam do corte das árvores, comem o seu almôço, principal refeição do dia. Freqüentemente, entretanto, antes de almoçar, o seringueiro tem que procurar o que comer. De volta de sua primeira via­gem aos seringais, dedica algum tempo à pesca, a menos que tenha tido a sorte de matar alguma ave - . ou uma. cutia, uma paca ou mesmo um porco do mato - em seu percurso da estrada da borracha. Depois da refeição precisa o seringueiro dar a segunda volta na estrada. Dest'a vez êle recolhe o líquido das tigelas, depositando o látex numa cuia. Nas redondezas de Itá uma estrada de borracha produz apenas cêrca de dois a três quilos de látex por dia, nos meses de junho e julho, princípio da estação. A medida que esta vai se passando, entretanto, e que as incisões são feitas mais embaixo, nas partes mais espêssas do tronco, a produção diária pode atingir de quatro a seis quilos. Esta produção, todavia, ainda é menor do que a das estradas das margens dos afluentes do Alto Amazonas que produzem até dez quilos por dia.

127

Page 128: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Mas a labuta diária do seringueiro não termina. com seu regresso da colheita do látex. Após caminhar cêrca de oito a doze quilômetros, tem ainda que defumar o látex (coagulá-lo com fumaça). Toma na rêde um pequeno descanso e depois gasta nessa tarefa quasa tôda a tarde. A defumação é feita num fogão de barro a que chamam "boião" dentro de uma pequena. barraca de folhas de palmeira. É o boião construído de maneira a que a fumaça escape por uma pequena abertura. E o melhor fogo se consegue queimando-se sementes de urucuri, que têm grande quantidade de óleo e produzem bastante fumaça. Ta~bém se pode utilizar lenha verde em fogo bem vivo. Os seringueiros de Itá calculam que para defumar quatro quilos do látex líquido é preciso cêrca de uma hora. O látex é despejado, aos poucos, sôbre uma espécie de grande pá, na forma de remo, que é lentamente girada na fu­maça que sobe da boca do boião. A medida que a borracha vai endurecendo na pã, mais látex líquido vai sendo derramado até formar uma bola oval de borracha coagulada. Geralmente, depois de se formar uma camada de pouco mais de um centímetro de espes­sura, retira-se a borracha endurecida da pã, enrolan­do-a em volta de uma vara que serve de centro para uma bola maior, ou bolão. Êste vai sendo aumentado, dia a dia, até atingir de 75 a 100 quilos. A defumação é cqnsiderada tarefa desagradável. O fogo tosta a:; pernas do seringueiro, que sua com o calor demasiado e sufoca com a fumaça que enche a pequena barraca. Muitos seringueiros atribuem a freqüência da pneu­monia e mesmo da tuberculose às horas sem fim que ficam dentro das barracas enfumaçadas preparando a borracha para o mercado.

Nos seringais de Itá os seringueiros só podem tra­balhar na extração da borracha cinco meses do ano,

128

Page 129: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

apesar de que no Alto Amazonas a estação da colheita é pouco mais longa. Durante o inverno, de dezembro até fins de maio, a chuva cai dentro das tigelas inserida-; nas árvores para recolher o látex líquido. A água mistura-se ao látex fazendo transbordar a tigela. Além disso, no inverno, as árvores do Baixo Amazonas não produzem muito e os rios que transbordam e a chuva constante inundam as estradas de borracha que ficam intransitáveis. A extração da borracha limita-se, por­tanto, aos meses de verão, de junho a princípios de dezembro. Mas mesmo no verão, às vêzes chove, pas­sando-se muitos dias sem que seja possível trabalhar. Como as ilhas baixas são muito pantanosas, os serin­gueiros têm que construir pinguelas de troncos de ár­vores, acima do nível das águas, para poderem atra­vessar certos trechos de suas estradas. Durante o mês de agôsto, que é o auge da estação sêca, as serin­gueiras estão em flor. Nessa época poucos seringueiros trabalham em suas estradas porque as flores caem dentro das tijelas, fazendo coagular o látex. Além do mais, diz-se que o corte nesse período prejudica a árvore, reduzindo permanentemente sua produção.

A estação da colheit'a é relativamente curta, ma.e; se o seringueiro trabalhar com afinco, pelo meno::> cinco dias da semana durante tôda a estação, conseguirá produzir até 500 quilos de borracha coagulada - numa proporção de cêrca de 50 a 60 quilos diários no espaço de 15 dias. Na Amazônia costuma-se deduzir de 20 a 30 por cento do pêso da borracha, no posto comercial, para descontar a perda decorrente da desidratação que se processa entre a data em que o seringueiro a entrega. " a ocasião em que é recolhida do posto pelo vapor fluvial. Depois dessa dedução, que no Vale é cliamada de tara, o seringueiro receberá õ preço de apenas 300 a 400 quilos do produto de seu trabalho durante tôda

129

Page 130: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

a esta~ão, conforme estejam mais ou menos sêcas as bolas de borracha na ocasião em que as entrega no posto. Em 1948 os negociantes pagavam cêrca de der. cruzeiros pelo quilo da borracha. O seringueiro podia esperar receber, portanto, de 1. 500 a 4. 000 cruzeiros durante unta safra.

A despesa mínima, com alimentos e outras neces­sidades, de um seringueiro e sua mulher, foram cal­culadas, aproximadamente, em 200 cruzeiros por mês; entretanto, a despesa média das famílias dos serin­gueiros incluídas em nossos estudos era de cêrca ele 485,20 cruzeiros. De qualquer maneira, um serin­gueiro que tenha a sorte de não precisar comprar tigelas, facas, uma espingarda e out'ros instrumentos para o seu trabalho, pode perfeitamente chegar ao fim da estação com um pequeno lucro. Em 1948, alguns seringueiros da região de Itá ganhavam apenas de 1.000 a 3. 000 cruzeiros, depois de deduzidas suas despesas básicas. O custo dos instrumentos para extração da borracha, a inatividade forçada, e os altos preços que o seringueiro tem que pagar ao negociante por seus suprimentos essenciais, lhe absorvem os parcos lucros. Muitas vêzes o seringueiro tem que substituir tigelas, faca.~ e outros instrumentos; tem que comprar anzóis, UDU\ espingarda ou outras necessidades; e, freqüentt>­mente, paga ao dono dos seringais de 10 a 20 por cento do que produz pelo direito de extrair borracha de suas terras.

Nas circunstâncias atuais, e com as técnicas de exploração da borracha bruta que predominam em todo o Vale Amazônico, a extração dêsse produto não proporciona o mínimo necessário à subsistência. Como a agricultura, t'em que ser suplementada com outras atividades econômicas para que um homem consiga o

130

Page 131: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

suficiente para viver com sua família. Freqüeute­mente, vários membros da família têm que trabalhar na extração da borracha a fim de prover às suas neces­sidades básicas. Em um dêsses ca.Sos o chefe da fa­mília e seu filho de vinte anos trabalhavam em quatro estradas de borracha, enquanto sua mulher e uma filha de dezoito anos se encarregavam do trabalho de defumação do látex. O auxílio das mulheres permitia. aos homens reservar algumas horas para plantar uma pequena roça e para pescar. E, no entanto, apesar dessas atividades, a família tinha dívidas.

Vários seringueiros da região de !tá trabalham em outras indústrias extrativas durante. a estação do ano em que não podem extrair borracha, colhendo di­ferentes produtos nativos da floresta que tenham valor comercial e que podem ser colhidos fora da estação. Em janeiro e fevereiro o fruto de ucuuba, que cresce à margem dos pequenos afluentes, cai nos igarapés que transbordam. Os habitantes das ,baixadas apanham-no em suas canoas e vendem-no nos postos comerciais. Dêle se extrai óleo. Em 1947 e 1948 mais de cem toneladas dessas sementes foram exportadas para o baixo rio pelos comerciantes de Itá. Outra semente selvagem que também se colhe em fevereiro é a do paracaxí. Mergulha-se essa semente na água, durantt' cêrca de oito dias, e depois é ela cozida em fogo baixo. O óleo que assim se extrai é vendido por cêrca de cin­qüenta cruzeiros em latas de vinte litros e usado como lubrificante ou na fabricação do sabão. Outros óleos vegetais, coino os extraídos da patua, da andiroba e. da copaíba, também são exportados. O cacau é outro produto nativo da floresta amazônica e as famílias dos seringueiros dedicam algum tempo à colheita de suas sementes. Em certas áreas determinadas os serin­gueiros têm permissão para derrubar árvores de ma-

131

Page 132: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

deira de lei, como a andiroba e a macaúba, que vendem para construções. E até bem pouco tempo, a raiz de timbó, que se utilizava como inseticida, rendia bom preço para os seringueiros, mas os produtos sintéticos, como o DDT, substituíram o timbó no mercado. As folhas da palmeira babaçu também podem ser cortadas e vendidas para cobrir casas. A madeira de lenha comum é sempre ·fàcilmente vendida ao longo do braço principal do Amazonas para os vapores fluviais. As peles de animais, como as do veado, da onça e do porco do mato, também rendem algum dinheiro para as fa­mílias dos seringueiros. Além dêsses produtos extra­tivos adicionais, muitos seringueiros plantam pequenas roças durante a estação sêca, com alimentos de rápido crescimento, como feijão, milho, melancia e abóbora. Sem essas fontes complementares de renda e alimento o seringueiro não poderia prover à sua subsistência. Na realidade, a indústria da borracha no Vale Amazô­nico parece estar fadada à morte lenta. É, realmente. um estranho fenômeno - na terra nativa da borracha, sua indústria não pode competir com as plantações do Oriente ou com a indústria da borracha sintética do Ocidente.

Também a cultura da borracha não demonstrou, até o presente, qualquer êxito comercial na Amazônia. Há muito tempo, plantaram-se seringueiras em váriaH lor.alidades do Vale. Em I tá, há uns quarenta anog atrás, mais de duzentas dessas árvores foram plantadas à saída da cidade. Hoje em dia a municipalidade arrenda-as a quem as queira explorar. Conquanto seja relativamente fácil extrair-se o látex, a produção não é muito lucrativa, pois essas seringueiras não pro· duzem tanto quanto a árvore nativa. A Companhin Ford tentou explorar a borracha amazônica com uma grande plantação. Em 1924, Ford obteve amplas con-

132

Page 133: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ccssões às margens do Tapajós, na Fordlandia e em Belterra. Milhões de árvores foram semeadas nas duas plantações. Entretanto, depois ela segunda guerra mundial, a Companhia as revendeu ao govêrno brasi­leiro por uma quantia relativamente módica, depois de tc1• gasto milhões de dólares em equipamento e no cul­tivo da borracha. O fracasso dessa grande emprêsa particular, depois de quinze anos, é uma prova das inúmeras dificuldades inerentes à indústria da borra­cha cultivada naquela região.

As principais dificuldades existentes nas conces­sões da Ford não foram as moléstias tropicais, nem o clima. Tanto na Fordlandia, como cm Belterra, hos­pitais modernos forneciam a melhor assistência médica possível. Em ambas as concessões os mais modernos recursos de saneamento proporcionavam condições sa­nitárias muito superiores às da maioria das cidade::.; brasileiras. Eram excelentes as condições de habitação elos trabalhadores e dos empregados da companhia. _A.. maior dificuldade ooriW~ sido .Q.JLI'_QbleJ!la. de, adap-

_tação da árv9r~ nativa .às condições9!: plantio, bem çomo assegurar-se mão-de-obra co~t~nte. Quando as seringueiras eram plantadas muito junto umas das outras, tornavam-se muito mais vulneráveis aos seus inimigos naturais - as pragas e os insetos. A fim de conseguir uma árvore imune às pragas em suas planta­ções, a Companhia Ford contratou técnicos com grande experiência das plantações do Oriente. Êsses técnicos recomendaram o enxêrt'o da árvore nativa com uma. variedade importada dos bosques de seringueiras do Oriente. Em 1945, a maioria das seringueiras produ­tivas de Belterra possuíam um sistema de raízes nativas brasileiras, tronco oriental e um sistema de ramagens nativo. O cultivo da borracha era, pois, um ~es~ ~~plicado e ~is_p_endiosQ,, Em segundo lugar, as con-

133

il

Page 134: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

cessões da Ford lutavam com a falta de braços. Apesar das boas condições de vida das plantações - escolas, hospitais, habitações modernas, boa alimentação e outras facilidades, geralmente inexistentes no Vale Amazônico - os seringueiros ali não permaneciam cm número suficiente para realizar, de maneira eficaz, o trabalho exigido pelas plantações.

O seringueiro da Amazônia é conhecido por seu modo de vida nômade. É, geralmente, atraído pela extração da borracha, ou a ela obrigado, pela esperança de obter lucro rápido com uma ou duas estações; poucos a consideram uma ocupação permanente. E'm conse­qüência, o seringueiro não se dá ao trabalho de construi,i_· instalações ou acessórios para seu confôrto físico. Como, em regra geral, a terra em que mora pertence, de certo modo, ao comerciante para quem trabalha, não se inco­moda em construir uma casa permanente e, como sua renda é pequena, são poucos os ·bens materiais que acumula. Se não fôssem as dívida.e;, viveria de um lu­gar para outro, sempre à procura de situação melhor, ao fim de cada estação. Os seringueiros que conhPce­mos tinham um _$.entiin.~.tltQ._ pe_in~btlidade, um des~jo de ~scapa,r e uml! _ va_ga e.sperança de e:µriquecer de repente. Seus hábitos -seminômades e suas tendências de- enriquecimento rápido, determinadas pelo sistema social e econômico da indústria da borracha no Vale, não são de molde a fazê-los conformar-se com empre­gos permanentes nas plantações comerciais. Os traba­lhadores recrutados pelas concessões da Ford, cujas diárias obedeciam à média comum da Amazônia, logo se transferiam para outras regiões seringueiras mais ricas, onde pudessem acumular algum lucro em um ano ou dois. As plantações amazônicas, sujeitas a uma mão-de-obra caprichosa, não podem concorrer com as da Africa, nem com as do Oriente que têm intensa

134

Page 135: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

população onde recrutar trabalhadores. Enquanto os agrônomos do govêrno brasileiro não conseguirem pro­duzir uma árvore que se adapte melhor às condições de plantio, e enquanto não se dispuser, na região, de mão-de-obra suficiente e estável, o Vale Amazônico não poderá transformar a borracha em uma indústria lucra ti vã..

IV

A indústria da borracha, entretanto, influenciou de várias maneiras a sociedade amazônica. O sistema. social de grandes regiões do Vale, sobretudo naquelas em que a extração da borracha ainda é (ou foi) a principal atividade econômica, decorre· diretamente do sistema comercial relacionado à indústria da borracha. Em grande parte do Vale a estrutura dos distritos rurais é grandemente determinada pelo sistema de crédito, pela dependência econômica ao comerciante e pelo vago sistema de arrendamento de terras que se formou em conseqüência da indústria da extração da borracha. Além disso, as relações dos agrupamentos de seringueiros com as comunidades maiores e com a cidade são, por sua vez, determinadas pelo sistema de crédito e de comércio da indústria da borracl1a natiYa.

O sistema comercial que regula a extração a a borracha é controlado, indiretamente, pelas companhias de exportação e importação de Belém e Manaus (avia­dores). Essas grandes companhias remetem a merca­doria, a crédito, para os comerciantes locais (seringa­listas) que, em troca, lhes vendem borracha e outros produtos locais. Além disso, os exportadores são pro­prietários dos vapores fluviais que navegam re.,""lllar­mente o Amazonas e seus afluentes e que, muitas vêzes, são o único meio de comunicação entre os postos

135 -,

Page 136: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

comerciais e as vilas e cidades da região. Por sua vez, o comerciante local fornece os artigos essenciais a seus fregueses, os seringueiros, de quem compra a ·borracha extraída. Cada um fica a dever ao outro - o serin­gueiro ao comerciante e o comerciante à firma de ex­portação e importação. Cada qual entrega ao outro a mercadoria a crédito. E, como não podia deixar de ser, em um negócio tão incerto, os grandes exporta­dores de :Manaus e Belém devem aos bancos· e impor­tadores de borracha do Rio de Janeiro, de Londres e de Nova York. · Nas zonas de extração de borracha-, os distritos rurais são formados pelo comerciante e seus fregueses seringueiros que vivem espalhados pelas estrada.s de borracha das redondezas e, periodicamente, visitam o posto comercial que constitui o centro do distrito. '.Êste s~ comunica regularmente com o mundo exterior por meio do vapor de propriedade da compa­nhia de que o comerciante é freguês e devedor.

Além da dívida, a posse da terra aumenta as re­lações de dependência entre o exportador, o comer­ciante e o seringueiro. Os direitos de propriedade da terra são freqüentemente confusos e precários na re­gião amazônica. ll)sses direitos foram concedidos, em épocas diferentes, pelos govêrnos estaduais; alguns são legalmente válidos, outros dão aos "proprietários" ape­nas direito de exploração da borracha ou da castanha­do-pará e, alguns ainda, embora expressos como direito absoluto, só valem o papel em que foram firmados. De qualquer maneira, é o contrôle da terra, e não os documentos legais, que, na prática, determina a "pro­priedade" da terra. O comerciante, geralmente, instala seu barracão, ou posto comercial, na embocadura de um pequeno rio ou afluente. As margens do rio e oi> seringais vizinhos são, portanto, de "propriedade" do comerciante ou de algum "proprietário" ausente de

136

Page 137: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

quem o comerciante é arrendatário. Seus fregueses­serin.,aueiros habitam e exploram as terras vizinhas do rio controlado por seu posto. Durante o surto da borracha, extensas áreas dos vales dos rios eram, assim, controladas por um único indivíduo

0

e por companhias do exportação. Nessas áreas o "proprietário" tinha contrôle absoluto sôbre a vida das pessoas que mora­vam em seus domínios.

A montante de Itá, por exemplo, a família Pe­reira Silva era "proprietária", até há menos de uma década, de tôda a terra entre os dois rios que se esten­dem do norte do braço principal do Amazonas até as fronteiras da Guiana. Essa área abrangia dois muni­c1p1os. Além dessa propriedade, havia duas vilas, ambas sedes de municípios, e vários povoados menores que cresceram em volta dos postos comerciais da ~om­panhia. A companhia Pereira Silva tinha seus pró­prios vapores e exportava seus produtos diretamente para o sul do Brasil e para o estrangeiro. As autori­dades policiais, federais e estaduais raramente apare­ciam nos seus domínios, pois que empregados armados da companhia "mantinham a ordem". Em Belém espalhara-se a lenda de que nas primeiras décadas do século vinte a maioria dos presos das cadeias eram embarcados rio acima para acabar seus dias como uma espécie de escravos dos Pereira Silva. Certa ocasião, há alguns anos atrás, os trabalhadores de seus domí­nios se revoltaram. Dominaram os guardas armados, apoderaram-se de um grande barco fluvial e rumaram para Belém. Nesse pôrto, entretanto, foram detidos }>ela polícia estadual e, segundo nos contaram vários informantes, foram recambiados, rio acima, para tra­balharem o resto de sua vida nos mais longínquos serin­gais dos Pereira Silva. Hoje as terras dos Pereira Silva estão divididas em várias grandes propriedades,

137

Page 138: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

como a maioria dos vastos domínios da reg1ao da bor­racha do Vale; mas o velho "coronel" Pereira Silva ainda controla enormes extensões de terra e é muito temido pela gente da comunidade de Itá que conta como os homens do velho dominavam os seringueiros a chi­cote e espingarda.

As relações entre o comerciante-proprietário e o seringueiro, nos dias do apogeu da indústria da bor­racha, foram descritas por numerosos escritores. O romancista contemporâneo português, Ferreira de Cas­tro, em seu livro A Selva, (13) descreveu a brutalidade e o contrôle absoluto, de vida e morte, do comerciantiJ sôbre seus seringueiros. Euclides da Cunha, cujas observações precisas e coloridas, sôbre a revolta de um punhado de fanáticos religiosos contra as fôrças fede­rais. brasileiras no nordeste do Brasil, se tornaram uma obra clássica nacional, (14) também visitou a Amazônia durante os primeiros tempos do surto da ·borracha. Em breve ensaio, traça um quadro minucioso do recru­tamento de trabalhadores na região assolada pela sêca do nordeste do Brasil e do sistema de escravização pela dívida que predominava na Amazônia. Segundo Euclides da Cunha, os proprietários de seringais en­viavam seus agentes aos Estados nordestinos a fim de aliciarem homens para a extração da borracha no V ale Amazônico. Desde o momento em que o novo serin­gueiro deixava a sua comunidade, começava a dever ao patrão. "Devia a passagem de navio até o Pará e o dinheiro que recebia para se preparar para a viagem". E daí por diante sua dívida aumentava constantemente. Era-lhe cobrada a passagem de barco para subir o ria

(13) Traduzido para o inglês por Charles Duff, em The Jungle (New York, 1935).

(14) Os Sertões, traduzido para o inglês por Samuel Putnam, em Rebellian in the Backlands (Chicago, 1944).

138

Page 139: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Amazonas até um dos tributários em que ficava loca­lizado o posto comercial. Ali chegando, recebia os utensílios de que necessitava para colhêr o látex, uma espingarda e munição, alimentos para a duração da estação de colheita e quinina para curar a malária que certamente contrairia. Tudo isto era-lhe cobrado a preço de ouro. Diz Euclides da Cunha que, na melhor das hipóteses, o novo seringueiro ficava de­vendo ao comerciante-proprietário cêrca de 2 :090$000, antes de começar a trabalhar. Calcula ainda que, nas melhores condições, o novo trabalhador conseguiria fa­zer uns 2 :000$000 durante o primeiro ano. Em condi­c;ões excepcionais, talvez dobrasse a produção no se­gundo ano, conseguindo, assim, pagar sua dívida e ter algum saldo; mas, a-inatividade causada pela febre, os gastos com novos instrumentos, a interrupção do tra­balho durante os dias de grandes aguaceiros, uma ou outra pândega em dias de festas e a inexperiência, inevitàvelmente, obrigavam-no a pedir novos adianta­mentos, aumentando a dívida. "Evidentemente", diz Euclides da Cunha, "raro é o seringueiro que tem a sorte de se libertar". (15)

Nos tempos descritos por Euclides da Cunha e Ferreira de Castro, o comerciante-proprietiário de postos comerciais no Vale Amazônico tinha a proteção da "lei". Essas "leis", que garantiam ao comerciante o pagamento: dos adiantamentos que fazia aos seus seringueiros, fo­ram incorporadas aos "Regulamentos dos Seringais" que eram uma espécie de acôrdo sistematizado entre os proprietários dos seringais quanto às suas relações com seus seringueiros-devedores. :1!lsses "Regulamentos" fo­ram elaborados com o fim de impedir que os seringueiros fugissem e para os manter sempre em dívida. Segundo

(15) A Margem da Hiatória (Pôrto, 1941), pp. 23-24.

139

Page 140: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

os "Regulamentos", o proprietário podia impor uma multa ao seringueiro por ter feito lilll corte muito pro­fundo em uma árvore, ao sangrá-la, ou por ter usadc no processo um machado de mais de "quatro palmos". Estabeleciam ainda que o seringueiro não podia fazer compras senão no posto que lhe havia feito adianta· mentos. Se o· fizesse, poderia ser multado em 50 por cento do custo dos objetos comprados. O seringueiro não podia deixar o emprêgo do comerciante a quem devia, sem primeiro liquidar totalmente sua dívida. Para impedir que os seringueiros fugissem, os comer­ciantes instalaram seus postos principais nas emboca­duras dos afluentes, onde sentinelas armadas com rifles 44, montavam guarda dia e noite a fim de barrar a saída daqueles que quisessem escapar pelos rios. Mas, mesmo que algum seringueiro conseguisse fugir por terra, através da mata, ou descendo o rio à noite, sem ser visto, o ac·ôrdo entre os comerciantes os proibia de dar refúgio ao fugitivo. Todo comerciante era obri­gado pelos "Regulamentos" a capturar os devedores foragidos e a devolvê-los aos seus credores. Se, por um golpe de sorte, ao fugir de suas dívidas, o serin­gueiro conseguisse atingir Belém ou Manaus, ainda podia ser prêso pela polícia e devolvido, rio acima, ao seu patrão-credor. Os "R~gulamentos" não eram de­cretos governamentais, mas os proprietários dos serin­gais faziam grande pressão sôbre o govêrno para que oi:: ajudasse a fazê-los cumprir como se fossem lei.

Depois de 1912, com o fim da fabulosa alta do preço da borracha, tanto o sistema comercial quanto o sistema de escravização pela dívida, ligados à indús­tria da borracha, começaram a se desintegrar. Os "barões" da borracha perderam o poder absoluto e as fortunas que possuíam. Escândalos internacionais atraíram a atenção do mundo para a escravização do

140

Page 141: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

seringueiro da Amazônia. Os comerciantes, perdendo o crédito dos exportadores, muitas vêzes sentiam alívio em dispensar seus trabalhadores. Todavia, ainda hoje persiste, em grande parte do Vale, o mesmo sistema de relações entre devedores e credores, embora de forma mais atenuada.

Mesmo na área rural da comunidade de Itá existe um sistema semelhante entre os agricultores e os co­merciantes e lojistas locais. A maioria dos habitantes dos distritos rurais são fregueses de um determinado comerciante ou lojista da cidade. Os lavradores que vivem nas margens do Igarapé Jocojó e do Igarapé Ribeira, por exemplo, são fregueses tradicionais da Casa Gato, de Itá. Quase todos devem a Dona Dora Cesar Andrade que lhes adianta alimentos e mercado­rias e lhes compra os produtos excedentes da lavoura, quando os há. Dona Dora possui títulos que lhe con­ferem a "propriedade" da maioria das terras que margeiam êsses pequenos igarapés. Tanto Dona Dora, como seu cunhado, Rui, que é o .gerente da Casa Gato, queixam-se amargamente de que seus "fregueses fazem negoc10s em outros estabelecimentos". Consideram injusto, ilegal mesmo, que os outros comerciantes com­prem farinha de mandioca ou outros produtos florestá.is do seus fregueses e que êstes façam compra em outros armazens. Mas, apesar disso, seus "fregueses" conti­nuam a ir a Itá, depois do escurecer, para vender fari­nha de mandioca a outro armazem, ou a subir o rio para venqer e comprar em outro posto de comércio situado nas margens do Amazonas. "Recordo-lhes suas dívidas e a terra (direito de exploração) e êles se sentem envergonhados", disse o gerente da Casa Gato. Às vêzes ameaça expulsá-los da terra e limita-lhes o crédito. Mas Dona Dora também sabe que seus "títulos" sôbre a terra são de legalidade precária e não

141

Page 142: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ousaria expulsar os lavradores, muitos dos quais JU vêm ocupando a terra há vinte anos ou mais. Além disso, como os lavradores têm menos para vender aos comerciantes do que os seringueiros, são menos depen­dentes do comerciante para as compras de que neces­sitam e êstes têm mais dificuldade em manter seu con­trôle sôbre os fregueses lavradores do que sôbre os seringueiros.

Na área da borracha do município de Itá, ainda imperam as relações tradicionais entre comerciantes e :fregueses, constituindo um forte elo social e econômico. O posto comercial é o centro do distrito rural em que todos os habitantes são fregueses do comerciante. O posto de Francisco Firmo, que fica exatamente de­fronte de Itá, do outro lado do canal do Amazonas, é um exemplo típico de um distrito de extração da bor-1·acha. Êsse posto está situado no local em que o pe­queno rio Urutaí desemboca no Amazonas. Francisco Firmo tem vinte e um fregueses, isto é, os moradores de vinte e uma residências espalhadas, que só compram em seu armazem. Na porta está pregada uma lista dos chefes de famílias dessas residências. As estrad,as de borracha em que trabalham êsses fregueses são de "propriedade" do senhor Firmo. :tJlle não tem direito legal sôbre a terra, mas possui documentos provando que comprou os seringais de um ex-proprietário que obteve a concessão do govêrno estadual para explorar borracha naquela área. Mais importante do que os documentos, entretanto, é o fato de que a gente da comunidade reconhece o "direito de propriedade" do senhor Firmo. Tôdas as vinte e uma famílias recebe­ram adiantamentos de Francisco Firmo e o exame de seus livros revelou-nos que êle adiantou, em média, cêrca de .Cr$ 2. 000,00 a cada uma, para a estação da

142

Page 143: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

colheita. Vários de seus fregueses têm dfridas de muitos anos.

Os fregueses de Francisco Firmo moram nas mais variadas distâncias de seu posto comercial. Seis casas estão situadas no braço principal do Amazonas e as outras ficam nas margens do rio U rutaí. Essas casas são espaçadas de trezentos a oitocentos metros umas das outras e são construídas em um ponto do rio que dá acesso a duas, três ou mais estradas de borracha. E"m comparação com os postos comerciais mais impor­tantes, localizados no alto Xingu, Tapajós e Madeira, e no Território do Acre, Francisco ~'irmo tem poucos fregueses. Nos distritos mais produtivos, cinqüenta e às vêzes sessenta famílias são assim, freqüentemente, ligadas a um comerciante.

Em t'odo o Vale Amazônico os fregueses de um comerciante têm por hábito visitar o posto em um dia determinado, ou "quinzena", para entregar a borracha

'<1ue extraíram e fazer. estoque de suprimentos. A "quinzena", no posto de Francisco Firmo, e geralmente em tôda a região do Baixo Amazonas, ocorre comu­mente uma vez por mês e não em intervalos regulares de quinze dias. É geralmente marcada para a véspera da chegada do "Union", o vapor fluvial da Companhia J·. Fontes, de Belém, que fornece a Francisco Firmo artigos de comércio e dêle compra borracha e outros produtos. O "Union" atraca durante algumas horas no desembarcadouro que fica defronte do posto do se­nhor Firmo, mais ou menos no dia 20 de cada mês. Durante algumas horas é grande a atividade dos ma­rinheiros que descarregam os fornecimentos, enquanto a borracha e outros produtos são pesados e carregados para bordo. Entretanto, o dia mais movimentado do mês para o posto é o da véspera da chegada do vapor, pois é o dia eIE- .que a maioria dos fregueses e suas

143

Page 144: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

famílias vão fazer snas compras. Francisco Firmo manda um aviso aos fregueses marcando a data da "quim:ena", conforme a escala do "Union" que não tem a menor regularidade em suas visitas. Mas a população não limita suas compras a êsse único dia; todos os domingos alguns fregueses reunem-se no posto para negociar, beber ou fazer visita. A "quinzena" mensal, entretanto, é uma ocasião em qbe todos querem estar presentes. É dia para transações comerciais mas também de divertimentos para a família, como as tardes de sábado nas pequenas cidades americanas.

Todos os anos, no mês de junho, no dia de São João, Francisco Firmo convida os seus fregueses e suas famílias para o posto, a fim de rezar para o santo, beber à sua custa e dançar durant'e tôda a noite. Por­que o senhor Firmo é grande devoto de São João qne, segundo êle crê, lhe protege o posto. Os fregueses esperam ansiosamente pela festa. anual e também amigos de outros postos a ela comparecem. No dia de seu aniversário o comerciante oferece, à sua freguesia, uma festa com bebidas e danças. O posto tem uma grande varanda que dá para o cais, um grande depó­sito onde fica exposta a mercadoria e outros em que são guardados os produtos a serem embarcados. Além dessas, tem outras dependências onde moram o Senhor Firmo e família, inclusive um grande salão para re­ceber as visitas e para as danças das grandes ocasiões. A sua arquitetura típica de barracão indica que serve tanto de mercado central como de centro social para a vizinhança de lavradores e serin.,"'lleiros. E o senhor Firmo é, ao mesmo tempo, o patrão e o credor de sem; fregueses e líder social da redondeza.

As relações comerciais, por sua vez, determinam as relações sociais do senhor Firmo .com a grande c·i-

144

Page 145: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

clacle. É êle freguês da grande companhia de expor­tação e importação por atacado, J. Fontes, de Belém. :Munição e mercadorias como querosene, conservas, utensílios de cozinha, velas, lâmpadas, facas, en­xaclas, farinha de mandioca, peixe sêco, tecidos, roupas feitas e outros artigos de que êle tem estoque, são-lhe fornecidos a crédito pela Companhia J. Fontes. Por conta de suas dívidas, a companhia retira borracha e outros produtos que êle despacha pelo "Union". Como os seringueiros, seus fregueses, o senhor Firmo rara­mente recebe dinheiro. De vez em quando vende secretamente alguma quantidade de borracha por di­nheiro, a um regatão, espécie de barco itinerante que se insinua furtivamente junto aos fregueses da com­panhia, da mesma forma por que seus fregueses nego­<:iam ·secretamente em outros estabelecimentos. Também, às vêzes, recebe dinheiro, vendendo a seringueiros, fregueses de outros comerciantes, que passam pelo seu posto. Mas, geralmente, o senhor Firmo s6 negocia com seus próprios fregueses e credores. Quando ne­cessita de fundos para urna viagem a Belém, ou qualquer outra emergência, retira dinheiro por conta de seu crédito com a companhia J. Fontes, que freqüentemente lhe paga as contas em outras firmas da cidade. H:í. dois anos atrás, quando sua mulher precisou de óculos, viajou para Belém no "Union". A companhia J. Pon­tes mandou-a a um oculista e pôs na conta do marido o preço da passagem e a conta do médico. Uma vez, há muitos anos, o senhor Firmo quis saldar suas dí­vidas com a companhia e pediu-lhes que ajustassem com êle uma prestação de contas mensal. Mas logo descobriu que a Companhia não estava interessada cm contas a curto prazo. Mesmo em anos de alta do preço da borracha, quando o senhor Firmo tem saldo a seu favor, não retira os lucros, que ficam depositados na

145

Page 146: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

companhia. "J. Fontes não quer saber se a minha conta é paga ou não", explicou, "o que quer é a bor­racha que lhe forneço". Na Amazônia o comerciante tem mais lucro com a revenda dos produtos comprados dos fregueses do ·que com o que vende para êles, apesar àos preços elevados que cobra. Assim também a com­panhia J. Fontes ganha mais com a exportação da bor­racha do que com as mercadorias que vende aos co­merciantes.

O sistema comercial na Amazônia já não é man­tido pelos velhos "Regulamentos dos Seringais", nem pela polícia e seus rifles 44, como durante a primeira década de nosso século. Todavia, as obrigações do se­ringueiro para com o comerciante e do comerciante para com a firma exportadora e importadora ainda constituem, essencialmente, a base das relações· que canalizam as r~ç.ões--comer~ciais _e __ sociais da, :região. A fôrça dêsse sistema tradicional é um elemento im­portante que se terá de combater caso se queiram mo­dificar as condições econômicas e sociais do Vale. Durante a última guerra, fracassaram tôdas as tenta­tivas para vender os suprimentos diretamente ao co­merciante, sem o intermédio da firma exportadora e importadora, e para a extração direta da borracha, devido à pressão das tradicionais relações, comerciais e sociais, entre o comerciante e a grande companhia da cidade. Para o comerciante, o rompimento com sua única fonte de crédito e de suprimentos - freqüente­mente, seu único meio de comunicação com o mundo exterior - era um verdadeiro absurdo. Tôdas as ten­tativas no sentido de criar cooperativas e de conceder crédito oficial às populações da Amazônia chocam-se quase sempre com êsse sistema de relações, já que as cooperativas eliminariam o comerciante. E, no entanto, até mesmo êsse sistema comercial da Amazônia poderia.

146

Page 147: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ser útil para a introdução de novas práticas. Por meio das firmas da cidade, poder-se-iam introduzir novas idéias, novas técnicas e novos instrumentos, pri­meiramente entre os comerciantes e depois entre os seringueiros e lavradores das áreas longínquas <lo Vale. (16)

V

Vários problemas básicos da adaptação do homem ao ambiente tropical das comunidades amazônicas res­saltam dos diversos meios de vida da gente de Itá. As duas principais ocupações da comunidade, a agri­rultura para prover à subsistência e a extração dos produtos nativos da floresta, são típicas das grandes áreas do Vale Amazônico. É evidente que nenhuma dessas ocupações pod(\rá, sõzinha, prover um mínimo para a subsistência de uma família de Itá. Mesmo

(16) Em princípios de 1943, quando tudo indicava que a borracha nativa poderia ser vital para o esfôrço de guerra dos Aliados, as autoridades administrativas foram informa­das de que a malária estava causando sérios empecilhos à extração da borracha e de que não havia medicamento espe­cifico para o tratamento da moléstia nas regiões mais dis­tantes elo Vale. Muitos milhões de comprimidos de Atebrina (droga antimalárica) foram imediatamente enviados a Ma­naus, por via aérea. Surgiu então o problema de como fazer chegar a droga, de maneira rápida e barata, às mãos do se­ringueiro. Também havia os problemas de transporte para os altos afluentes e dos elevados preços que certamente :;e­riam cobrados pela droga preciosa, se esta fôsse vendida pelos canais ·normais. Resolveu-se então oferecê-la, gratui­tamente, às firmas de exportação e importação, com a con­dição de que seria fornecida, de graça, ao comerciante e, por seu intermédio, ao seringueiro. O remédio foi, assim, ràpidamente conseguido, mesmo nos afluentes mais distan­tes, através do mecanismo das relações entre a firma da ci­dade, o comerciante local e o seringueiro.

147

Page 148: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

aliando as atividades extrativas e a agricultura, ap<:>­nas conseguem manter um baixo nível de viela. O sistema primitivo da a.:,"'l"icultura que se adapta aos pobres solos montanhosos da .Amazônia c que é pro­cessada sem a ajuda de instrumentos modernos, apenas com umas poucas ferramentas manuais, não produz alimentos suficientes para a população relativamente esparsa da comunidade, já que requer grandes extensões de terra. Por conseguinte, em regiões como a de Itá, onde o homem vem adotando êsse sistema de cultivo há vários séculos, existe, de certo modo, um problema de terras. Nos tempos aborígines, os índios da .Ama­zônia mudavam a localização de suas aldeias, cada cinco ou seis anos, a fim de encontrar terra melhor, mas nas condições atuais não é possível levar essa vida seminômade. Além do mais, a população atual do Vale é muitas vêzes maior do que nos tempos aborí­gines. Nas vizinhanças da maioria das comunidades amazônicas, há, portanto, escassez de terra, em vista dos métodos usados para sua exploração naquela região.

Além disso, a ext'ração da ·borracha parece real­mente constituir uma barreira à produção suficiente de alimentos. .A borracha e outros produtos da floresta proporcionam ao homem o dinheiro ou crédito de que carece para comprar as inúmeras necessidades que têm de ser importadas; mas, ao mesmo tempo, essas ativi­dades extrativas para a exportação desviam os esforços de grande parte da população da produção de alimen­tos. O que ganham na extração de produtos da flo­resta não lhes dá uma renda suficiente para comprar alimentos e outros artigos que precisam ser importados de outras regiões. .A predominância da economia ex­trativa e da exportação de matérias-primas para os mercados distantes, desde o início da colonização euro­péia, tem impedido a adaptação adequada do homem

148

Page 149: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ao ambiente da Amazônia, muito mais do que as con­dições físicas.

A melhoria das conilições sociais da Amazônia depende, naturalmente, d'.o desenvolvimento de uma base econômica mais lucrativa e eficaz para a sociedade amazomca. A agricultura precisa ser ·modernizada e adaptada às condições locais, de maneira a fornecer alimentos suficientes à sua população atual; e isto é ainda mais urgente e vital quando se considera a grande emigração para o Vale. As velhas indústrias extrativas, como a de castanhas-do-pará e da borracha, têm de ser organizadas de maneira a fornecerem uma. subsistência adequada ao produtor amazônico - ou. então terão de ser abandonadas. Além disso, devein-se plantar novas culturas, que proporcionem uma produ­ção comercial e para as quais exista um mercado sólido e lucrativo. (17) ~

A transformação econômica de Itá depende do me­lhoramento dos transportes e meios de comunicação, de facilidades de crédito mais amplas e mais eficientemente administradas, da remoção das barreiras comerciais e da disponibilidade de equipamento técnico moderno. Tudo isto, evidentemente, é determinado por condições que ultrapassam as fronteiras de uma simples comu­nidade. Em outras palavras, o melhoramento do sis­tema econômico de !tá dependerá das tendências e políticas nacionais e internacionais. Contudo; é na comunidade que essas tendências e políticas se defron­tam com situações humanas concretas e afetam a vida da população.

(17) Uma dessas possíveis culturas é a juta. Nestes úl­timos anos houve um rápido desenvolvimento dêsse produto nas margens do médio Amazonas.

149

10

Page 150: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

1

4. AS RELAÇÕES SO­CIAIS EM UMA CO­MUNIDADE AMA­ZÔNICA ..

Na pequena comunidade amazônica de Itá, como em tôdas as sociedades humanas, os homens são classi·· ficados de acôrdo com o seu prestígio. Em Itá a po­sição social depende de uma série de fatores, alguns dos quais se estabelecem pelo nascimento, tais comv sexo, raça e posição da família, e, outros, como ocupa­ção e educação, dependem de escolha e iniciativa pró­prias, embora também estejam condicionados às opor­tunidades favoráveis e à capacidade do indivíduo 1

150

Page 151: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

para as aproveitar. (1) Sendo Itá uma comunidade pequena e isolada, a distância entre os indivíduos de maior e menor prestígio na escala social não é tão grande como nas grandes cidades ou nas sociedades de estrutura social mais aprimorada e complexa. Não obstante, o sistema de escalonamento social é um as­pecto importante da vida de Itá.

Houve uma época em que foi maior a diferença entre os indivíduos da mais alta e da mais baixa posição social de Itá. Nos primeiros séculos da história da cidade, os que nasciam de índios, ou com mistura de raça no sangue, na zona da "aldeia", traziam consigo o estigma de escravos herdado de seus pais. As cria­turas nasciam escravas ou livres. Era raríssima a mobilidade vertical. Durante o surto da borracha a diferença econômica entre os ricos comerciantes de bor­racha e os miseráveis seringueiros determinou grandes diferenças sociais. Aquela época existia uma "aristo­cracia" em Itá. Famílias como a do barão de Itâ orgulhavam-se de ·seus ancestrais portuguêses. Man­davam educar os filhos nas grandes cidades do Brasil e da Europa. Possuíam ricas propriedades territo­riais e participavam da vida social e política de tôda a região amazônica. Viajavam frequentemente para Belém e Manaus e recebiam visitantes de outras comu­nidades. Formavam a alta sociedade, ou a aristocracia. Na sua qualidade de comerciantes e donos de t'erras,i controlava:r:g a vida econômica e política da cidade, e ocupavam todos os cargos públicos da municipalidade. Pessoas, como o Coronel Filomeno Cesar Andrade, rico comerciante que se mudou do Maranhão para Itá; Flaviano Flavio de Batista, dono de terras, intendente

(1) Cf. Ralph Linton, The Study o/ Man (New York, 1936), pp. 113 e segs.

151

Page 152: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de Itá e líder político respeitado e acatado em Belém; e Dr. Joaquim Nobre, o juiz, formado pela Escola de Direito do Pará, que mantinha a mulher legítima e uma :filha em Belém e uma outra família em Itá, eram representantes típicos dessa classe. Os limites de classe eram mais rigorosamente mantidos nos tempos dos aristocratas, antes do colapso da borracha. Um membro da classe baixa não se sentava na presença de um dêsses brancos, como eram chamados. Nas festas havia sempre dois salões, um para a classe baixa e outro para a aristocracia. Em ltá, como na maioria das comunidades latino-americanas, a acentuada dife­rença de classe entre a aristocracia colonial e a popu­lação de origem indígena e escrava, subsistiu no século atual.

Hoje em dia, apenas alguns descendentes dessas famílias aristocratas vivem em Itá. E as poucas que "restam são relativamente pobres, tendo perdido sua altc>. posição social. No fim do surto da borracha, mudaram-se, uma por uma, quase tôdas as famílias aristocratas. Seus prósperos filhos partiram para estudar em Belém ou no sul do Brasil. ~sses homens, como o médico judeu a que nos referimos anteriormente, nunca mais voltaram, depois de terminados os estudos, inuito embora seus pais lá ficassem ainda por algum tempo. Atualmente, com exceção do médico sanita· ·1·ista Jo SESP, não existe em Itá um único indivíduo com educação secundária completa. Das antigas e só­lidas casas comerciais dos tempos da borracha, hoje resta apenas a Casa Gato. Das famílias aristocráticas tradicionais (que ainda controlam grandes propriedades territoriais da Amazônia), da classe profissional, dos militares, dos dignitários da Igreja, dos grupos indus­triais e comerciais, dos líderes ·políticos - que, juntos,

152

Page 153: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

formam a classe mais alta, contemporânea, da regiao amazônica - não há qualquer representante na atual sociedade de ltá.

Itá, por conseguinte, dá.· ao forasteiro a impressão de uma sociedade homogênea de camponeses, de pessoas que pouco diferem umas das outras quanto à posição social. Em Belém, as pessoas das classes mais altas costumam classificar a gente de Itá, com exceção de uns poucos representantes do govêrno que lá trabalham, de caboclos. Os viajantes procedentes dos grandes centros, geralmente, visitam o médico do SESP, Dona Dora, da Casa Gato, ou o prefeito, homem ainda jovem que antes pertencera à Marinha brasileira. A gente da. cidade considera essas pessoas mais ou menos corres­pondentes à classe média das cidades. A gente de Belém, quando visita Itá, comenta às vêzes a ausência da classe mais alta na cidade. Ent're outras coisas, dizem que "o prefeito não é mais do que um caboclo", ou so espantam da alta posição social de Dona Dora que é mulata escura e cujo marido era negro. Entre­tanto, quando se ·vive em Itá e se participa de sua vida social, logo se percebe que aquela gente, dentro dos limites da comunidade propriamente dita, é muito sensível às diferenças de posição social. Realmente, os moradores da terra são absolutamente francos e cate­góricos a respeito das diferentes camadas sociais de sua comunidade .

• Essas diferenças de posição social que hoje existem decorrem do sistema de classes da sociedade colonial da Amazônia, da antiga escravidão dos índios e dos escravos negros importados da África, e da ascendência social dos colonos portuguêses. Refletem ainda a po­sição econômica e social dos vários grupos que atual­mente vivem em Itá. Na sua forma mais simples, e

153

Page 154: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

segundo seus próprios habitantes, as camadas sociais de !tá são as seguintes, de acôrdo com o prestígio social:

1. Gente de Primeira, ou os "brancos", que for­mam a classe local mais alta;

2. Gente de Segunda, ou os moradores urbanos da classe mais baixa ;

3. Gente de Sítio, ou os que vivem nas propr.ie­dades agrícolas de terra firme ; e

4. Caboclos da Beira, ou os que vivem em ca­banas construídas sôbre estacas, nos pântanos das baixadas e nas ilhas alagadiças, e que ganham a vida nas indústrias puramente ex­trativas.

Não se pode dizer que tôda gente em Itá tenha plena consciência de cada uma dessas categorias. Assim -como a gente da cidade tem uma tendência a consi­·derar Itâ uma sociedade homogênea de camponeses de aldeia, a Gente de Primeira de Itá também costuma classificar todos os que lhe ficam abaixo na escala social de "o povo" ou "caboclos", Por sua vez, a Gente de Segunda da vila demonstra sua superioridade sôbre tôda a população rural, chamando-a de "cabo­clos", termo que, entre os lavradores, é reservado aos seringueiros da Ilha que consideram inferiores. E, finalmente, êsses seringueiros se sentem ofendidos quando são chamados de "caboclos", pois não fazem distinção entre si próprios e os lavradores. (2) O sis­tema de estratificação social de Itá varia, por conse-

(2) Os seringueiros da Ilha empregam o termo "cabo­clo" para designar os índios de tribos que habitam as cabecei­ras dos afluentes do Amazonas. O "caboclo" amazônico só existe, portanto, no conceito dos grupos de posição mais alta quando se referem às pessoas de posição mais baixa.

154

Page 155: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

guinte, de acôrdo com a posição social pela qual é encarado. E, eomo se tornará elaro, as diferenças soeio-eeonômieas são maiores entre a Gente de Primeira ~ as outras três camadas inferiores. Entre a Gente de Segunda, os lavradores e os seringueiros da Ilha, os limites de discriminação social não são tão claramente definidos; a mobilidade social se processa fàcilmente e as condições econômicas diferem menos do que entre êsses três grupos e a Gente de Primeira. Portanto, em um certo sentido, talvez se possa classificar a socie­dade de Itá em duas classes sociais apenas - a mais alta e a mais baixa; mas esta simples classificação dupla não expressaria fielmente as distinções sociais estabele­cidas pela própria população.

Para as poucas pessoas que reivindicam algum parentesco com a velha aristocracia de Itá, como Ma­nuel Serra Freire, o agente da coletoria estadual, e Dona Branquinha, a professôra, são poucos os que realmente pertencem aos "brancos" ou Gente de Pri­meira. Dona Branquinha só reconhecia como alta so­ciedade ou Gente de Primeira a família de Dona Dora Cesar Andrade. Nunca incluiria Dona Deborah, viúva de um importante comerciante judeu, porque seu filho vive "amigado" com uma moça criada pela própria Dona Branquinha. Para ela, hoje em dia, as danças 11ão são festas, mas "orgias em que as moças de família se misturam com todo o mundo". Disse-nos o senhor Serra Freire que "antigamente os postos políticos só eram ocupados pela Gente de Primeira", e referiu-se à baixa origem do atual prefeito, como um sinal da decadência da sociedade de Itá. Não levava a família às solenidades públicas por não achá-Ias convenientes e, enquanto residimos em Itá, êle próprio nunca assistiu a qualquer reunião social promovida pelas pessoas da administração. Mesmo as pessoas das classes mais

155

Page 156: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

baixas reconhecem que são poucos os aristocratas de origem local que hoje ainda restam em Itá. Uma mu­lher da classe baixa disse-nos que "a única e verdadeira Gente de Primeira que hoje se encontra em Itá são os forasteiros". Com exceção de duas ou três famílias de comerciantes, o grupo considerado "branco" ou Gente de Primeira é constituído pelo prefeito, o chefe de polícia, os agentes da coletoria federal e estadual, os funcionários do SESP e suas respectivas famílias - todos administradores e funcionários públicos assa­lariados.

Entretanto, as linhas de divisão social entre a Gente de Primeira e os grupos inferiores, entre os "brancos" e o "povo", ainda são nltidamente definidas cm Itá. Em 1942 a "linha" entre os dois grupos era ainda rigorosamente mantida. Durante as comemora­ções do dia do nascimento de um conhecido herói polí­tico da região, houve uma parada e fogos de artifício, acompanhados de discursos, a que todos assistiram, aparentemente sem distinção de classes. Mas à noite houve dois bailes ; um, no . salão público de dançaH, para o "povo". Ali os homens dançavam em mangas de camisa e, tanto os homens como as mulheres, dan­çavam descalços sôbre o chão duro. Na residência do prefeito, que nessa ocasião era Benedito Levi, descen­dente de uma das famílias judias, houve danças e re­frescos para os "brancos" - um grupo de cêrca de trinta pessoas. Para essa festa dos "brancos" foram convidadas algumas moças solteiras de boa reputação, mas da Gente de Segunda. Uma dessas moças de se-. gunda foi, com sua mãe, à festa da Gente de Primeira. de vestido e sandálias de baile, enquanto seu irmão dançava no pavilhão público. Um homem, aceito pela Gente de Prfrneira, foi à festa sem sua companheira, porque esta não era de primeira. Explicaram-nos

156

Page 157: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

que êle nunca legalizara seu casamento porque sua "amiga" não era "de boa família".

Em festas semelhantes realizadas em 1948, já essa "linha" entre a classe mais alta· e as mais baixas pa­recia menos rígida. Para um baile oferecido em 1948 pelo prefeito, foram convidadas muitas pessoas da Gente de Segunda; comentou-se muito, na ocasião, que o prefeito precisava de votos para a próxima eleição. A reintegração do Brasil no regime de eleições livres, depois de dez anos de ditadura, dava, de fato, ao eleitor, maior importância, fôsse de que classe fôsse. Muita gente da segunda classe, entretanto, não ia à festa do prefeito, apesar de convidada, porque "sentiam-se acanhados diante de tanta gente importante". Outros não iam, simplesmente, porque não possuíam sapatos e roupas apropriados e não tinham dinheiro para os comprar. Mas às pessoas da segunda classe que com­pareciam, fazia-se sentir sua posição inferior. Aos convidados da primeira classe ofereciam-se cadeiras, servia-se café, e convidava-se para beber cerveja na sala dos fundos, junto com o anfitrião. As pessoas da segunda classe não eram convidadas a sentar e eram servidas por último. Ouve-se ainda com freqüência, em Itá, a expressão "meu branco", como sinal de res­peito pela posição social e a gente da classe mais baixa sempre se levanta quando se dirige a um "branco", como Dona Dora Cesar Andrade e Dona Branquinha. Entre a camada mais alta e as mais baixas são ainda bem defini~as as linhas de discriminação social.

Entre as três classes mais baixas, entretanto, essa discriminação não é tão acentuada. Os lavradores, em geral, vivem na mesma margem do braço principal do Amazonas em que está localizada a cidade que visi­tam freqüentemente. A gente da classe baixa que

157

Page 158: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vive na cidade tem muitos amigos e parentes entre os lavradores da zona rural e comparece aos vários fes­tejos oferecidos pelas irmandades religiosas dessa zona. Compreendem que não são muito diferent'es dos lavra­dores - também são capazes de ganhar a vida, pelo menos em parte, com a lavoura. Contudo, os lavra­dores vivem isolados, tendo um padrão de vida mais baixo do que a gente de segunda classe da cidade. A gente da cidade tem uma certa vantagem sôbre os lavradores: pode enviar os filhos à escola ou ao posto ele saúde que fica à mão. Há, portanto, entre a gente de segunda classe da cidade, uma tendência generali­zada a se considerar superior a seus amigos e parentes da zona rural.

Tanto a gente das classes inferiores da cidade como os lavradores, entretanto, têm um certo desprêzo pelos caboclos que ganham a vida exclusivamente da extração da borracha e do côco. Muito embora, em anos de alta dos preços da borracha, os moradores da cidade c da zona rural se transfiram para as Ilhas para extrair êsse produto, são apenas residentes itinerantes dessas áreas isoladas. Consideram-se diferentes dos que tra­balham permanentemente na extração da borracha. Êstes são os "matutos". Quando o seringueiro vai à cidade para assistir à festa de São Benedito ou Santo Antonio, veste a roupa branca, que de tão engomada "fica em pé sozinha". "Leva os sapatos, que muitas vêzes não usa há dois anos, e agüenta a dor provocada pelos mesmos durante quase todo o primeiro dia, mas tira-os para dançar", diz do seringueiro a gente· da cidade, divertindo-se a valer. "Quando dança, pisa no pé do parceiro. Ninguém gosta de dançar com os ca­boclos". No segundo dia da festa "os pés do caboclo estão inchados; êle não está habituado a usar sapatos, nem a andar no chão duro" (muito diferente da lama

158

Page 159: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

macia dos igapós). Como, aliás, em tôda parte, o "matuto" é ridicularizado e os moradores da cidade e da zona rural de Itá acham ainda meio bárbaro o modo de vida da gente das Ilhas e das áreas alagadiças. Referem-se aos numerosos "casamentos na ponta do revólver" realizados pelo chefe de polícia, entre os caboclos das Ilhas, como sinal de seus baixos padrões de moral e de seu atraso. Os seringueiros participam tão pouco da vida social da cidade de Itá que nossos companheiros da cidade nunca foram capazes de nos dizer os nomes dos moradores das barracas situadas ao longo dos rios, nas áreas de extração da borracha da comunidade. Entretanto, conheciam de nome todos os habitantes isolados da zona rural da vizinhança. Mas os caboclos das Ilhas não tratam a gente das classes mais baixas da cidade e do campo, com o mesmo ex­cesso de respeito e cortesia ·que geralmente os grupos de nível inferior demonstram pela classe alta. "'.Êles (os seringueiros e lavradores) são menos civilizados", disse Juca, um citadino da segunda classe, "porque vi" vem isolados e são pobres".

II

Os moradores de Itá classificaram mais ou menos nm têrço dos residentes da cidade de "brancos" ou Gente de Primeira e os restantes de Gente de Segunda ou a classe baixa da cidade. Numericamente, isto quer dizer que os habitantes da comunidade de Itá, inclusive sua zona rural, constituem uma população de menos de 10% da· classe superior, e de cêrca de 20% da classe mais baixa. O censo aproximado que realizamos na área da comunidade demonstrou que cêrca de 60% da população eram constituídos por gente de sítio. Ape-

159

Page 160: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

nas. uns 10% dos habitantes da comunidade eram serin­gueiros, já que a grande maioria dêstes vive fora de su8 área, na região das Ilhas do município. Havia. certa divergência de opiniões entre nossos diversos amigos de Itá quanto à posição social de alguns indiví­duos dos degraus mais baixos da primeira classe. Manuel Cesar Andrade, por exemplo, um rapaz da classe mais baixa, criado por Dona Dora Cesar Andrade, só foi classificado na primeira classe depois de muita hesitação por parte de várias pessoas. E, como já expusemos antes, algumas pessoas da primeira classe, como o senhor Serra Freire e Dona Branquinha, reco­nhecem a muito poucos o direito de serem classificados como "verdadeira Gente de Primeira". De maneira geral, ·entretan~o, nossos amigos de Itá estavam de acôrdo sôbre quais as famílias da primeira classe e quais, por eliminação, as que pertenciam às classes mais baixas das áreas urbana e rural. Os habitantes de Itá basearam-se em critérios diversos para atribuir às pessoas sua legítima posição social, alguns dos quais estavam claramente definidos em suas mentes e outros qqe eram implicitamente aceitos. (3)

(3) Obtivemos esquemas pormenorizados sôbre compo­sição da família, sua renda, despesas de alimentação, sua ocupação, suas propriedades, etc., de cêrca de 113 residências da comunidade de Itâ. &ses esquemas proporcionam um quadro de mais de 30% de sua população total (calculada em 350 residências) que obedece à seguinte disposição: 17 residências da primeira classe, 55 da segunda classe, 31 do grupo de lavradores e 10 do grupo de seringueiros das Ilhas. Dificuldades de transporte nos impediram de colher dados re-. ferentes à força numérica de ambos os grupos rurais no conjunto da população; entretanto, creio que nosso quadro, um tanto incompleto, dos dois grupos em questão, fornece bQa indicação sôbre as düerenças de padrão de vida entre os mesmos.

160

Page 161: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Um dêsses critérios, explícito e importante, era o da ocupação profissional. Vários escritores referem-se a um chamado "complexo de fidalguia" existente no Brasil. O esfôrço físico, no século passado, era apa­ná,,"1.o exclusivo da casta de peões-escravos e dos recém­alforriados e, mesmo depois da libertação, o trabalho braçal continuou a ser um símbolo de baixa posição social. À medida .que as pessoas subiam na escala so­cial, adotavam as atitudes dos antigos senhores de ter­ras e donos de escravos e, ainda hoje, no Brasil con~ temporâneo, existe um sentimento de desprêzo por qualquer forma de trabalho braçal. É um valor social aceito, não só pelos descendentes das famílias proprietárias de escravos, como taml?ém pelas camadas média e comercial das classes mais altas das cidades e pelos habitantes de inúmeras cidadezinhas. do interior do Brasil. · Mesmo em Itá, uma pequena cidade isolada ' do Vale do Amazonas, a ocupação de uma pessoa é indicação de sua classe social. E como a população de I tá não descende da fidalguia proprietária de escravos (na realidade, grande parte descende de es­cravos), a emancipação do trabalho braçal constitui um símbolo particularmente importante de alta posição social. Dos dezessete homens classificados na primeira classe no estudo das famílias que realizamos, nenhum executava trabalhos braçais; eram todos funcionários públicos ou comerciários. :Êlsse grupo incluía o agente da coletoria estadual, o prefeito, o subprefeito e os proprietários de três casas comerciais. Embora suas esposas se ocupassem com trabalhos caseiros, a maioria tinha empregados domésticos. Em compensação, dos cinqüenta e ciMo homens da segunda classe incluídos em nosso estudo, com exceção de dois (escriturários da Prefeitura), todos ganhavam a vida com alguma forma de trabalho manual. Os poucos artesãos de Itá, como

161

Page 162: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

o sapateiro e os carpinteiros, eram incluídos na segunda classe. Mesmo a lavoura é considerada uma ocupação da classe baixa. Das dezessete famílias da primeira classe, apenas uma possuía uma roça de mandioca e, assim mesmo, fôra plantada por lavradores assalariados.

O montante da renda de uma pessoa e seu padrão de vida também constituem um critério explícito com que a gente de Itá estabelece a classe social de um indivíduo. Tôdas as famílias incluídas na primeira élasse tinl1am um atributo comum: negociavam com di­nheiro, Tôdas possuíam uma renda relativamente fixa, proveniente de salários ou do comércio e, portanto, ou dispunham de dinheiro ou tinham crédito nas lojas da localidade. Se,,,!Y'\lndo a definição grosseira de um ho­mem da segunda classe: "Os "brancos" são aquêles que têm um pouco (de dinheiro) guardado no baú. .A diferença é que quando eu quero um côco, tenho que subir na árvore e apanhá-lo eu mesmo, mas quando êlcs querem, pagam alguém para o fazer". Nosso estudo das rendas das famílias dá a idéia, connunente aceita em Itá, de que o dinheiro é um fator importante para a posição social. Na cidade, a renda média, em di­nheiro, das dezessete famílias da primeira classe era. de cêrca de Cr$ 1.597,10 por mês, enquanto que a das familias da segunda classe era apenas Cr$ 452,30. ( 4)

As famílias da primeira classe tinham casas me­lhores, vestiam-se e alimentavam-se melhor do que as da segunda classe. Sem exceção, todos os incluídos na primeira classe moravam em residências classifi­cadas de casas, situadas na Rua "Primeira" ou na Rua "Segunda" e não em barracas de cob.ertura de palha,

(4) A renda mensal das famílias da primeira classe va­riava entre Cr$ 500,00 e Cr$ 5.000,00 e a das familias da segunda classe entre uns parcos Cr$ 50,00 e Cr$ 1.700,00.

162

Page 163: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

como o faziam 75 por cento das famílias da segunda classe. Nas casas das famílias de primeira a porcen­tagem era de 0,9 pessoas por quarto, enquanto liavia 1,2 pessoas por quarto nas barracas da Gente de Se­gunda. Na Amazônia brasileira o calçado constitui uma parte importante da indumentária, tanto do ponto de vista social como para proteção contra a verminose. Entre as famílias da primeira classe os homens pos­suíam em média, 3,3 pares de sapatos, enquanto os da segunda classe tinham apenas 1,8. As mulheres da primeira classe possuíam em média 3,6 pares de sapatos, e as da segunda classe, apenas 1,7. As habitações da primeira classe eram mais bem mobiliadas, continham mais cadeiras, mais roupa branca, utensílios de cozinha e aparelhos de louça e maior número de rêdes do que as da segunda classe, As poucas camas existentes em Itá pertenciam às casas. das famílias da classe mais alta. Como em várias regiões isoladas, a máquina de costura é um artigo extremamente valioso, não só por sua contribuição à economia do lar; como pelo prestígio que dâ ao seu proprietário. De tôdas as dezessete fa­mílias da primeira classe, apenas três não possuíam máquina de costura, ao passo que, das cinqüenta e cinco da segunda classe incluídas em nosso estudo, apenas onze possuíam uma.

Na cidade focalizada pelo nosso estudo, a média da despesa mensal das famílias da primeira classe, com alimentos e outras necessidades domésticas, era cêrca de Cr$ 926,20, enquanto que entre as da segunda classe era aproximadamente Cr$ 207,20. (5) A diferença das despesas em dinheiro entre os dois grupos é compen-

(5) As despesas das famílias da primeira classe variavam entre cêrca de Cr$ 455,00 e Cr$ 2.609,50; as da segunda classe, entre uns míseros Cr$ 55,00 e Cr$ 900,00.

163

Page 164: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sada, entretanto, pelo fato de que muitas famílias da segunda classe possuem roças onde cultivam mandioca para fazer farinha e, às vêzes, um pouco de milho (6) e pelo fato de que muitos de seus homens se dedicam à pesca durante a estação sêca. Contudo, essas fontes adicionais de alimentos mal dão para cobrir a grande diferença existente nas despesas básicas. Determinados alimentos nunca figuram nos orçamentos das famílias da segunda classe. As da primeira classe alimenta­vam-se de pão, manteiga de lata, e outros gêneros im­portados, tais como leite condensado, queijo e goiabad8l - que em uma família da segunda classe só eram comprados uma vez por ano, num aniversário ou al­guma outra data comemorativa. As famílias da pri­meira classe também compravam mais feijão, arroz, carne sêca, açúcar, café e outros gêneros que têm de ser adquiridos em um dos três armazens de Itá. Con­quanto o nível de vida das famílias de Itá seja baixo e insuficiente, mesmo na classe mais alta, as diferenças, tanto de renda como de despesas comuns, entre as clas­ses mais altas e as mais baixas, dividem a cidade em dois grupos.

O nível de vida dos dois grupos rurais de lavra­dores e seringueiros das Ilhas é mais difícil de avaliar, pois ambos dependem, para sua subsistência, quase ex­clusivamente de suas roças, da pesca e até mesmo da caça. Entretanto, a análise de suas rendas e despesas jndica que o nível de vida que levam pouco difere da classe baixa das cidades. Uma família média de la­vradores possuía uma renda mensal de cêrca de Cr$ 301,90, enquanto a renda média de algumas das

(6) Vinte e dois dos cinqüenta e dois homens da se­gunda classe eram lavradores por profissão e dezesseis das suas cinqüenta e cinco famílias possuiam roças para au­mentar seus rendimentos.

16!

Page 165: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

famílias de seringueiros era cêrca de Cr$ 661,30 por mês. A renda mais alta do seringueiro provém da venda de produtos florestais, mas é contrabalançada pelas despesas mais elevadas que tem de fazer com alimentos e outras necessidades caseiras. As famílias de lavradores gastavam, em média, Cr$ 203,30 por mês, enquanto as de seringueiros gastavam pouco mais de· Cr$ 485,20, com alimentos comprados e outras neces­sidades. Os seringueiros da Ilha dedicam-se quase' unicamente à colheita dos produtos naturais da floresta e, em sua maioria, não possuem nem ao menos uma roça de mandioca para prover à sua subsistência. Das dez famílias de seringueiros, para as quais organizamos, nm orçamento pormenorizado, apenas duas possuíam, roças. Tais famílias têm de comprar até a farinha de mandioca que consomem.

Tôdas as famílias rurais da comunidade de Itá (tanto de lavradores, como de seringueiros) moram em barracas de palha. Dispõem de pouco menos espaço do que a classe baixa das cidades: 1,7 pessoas por quarto, entre o grupo de lavradores, e 1,5 entre o dos seringueiros. Além disso, a po'"pulação rural ppssui menos sapatos e chinelos do que a classe baixa da ci­dade: os homens do grupo dos lavradores tinham em média 1,3 pares, cada um, e os seringueiros, 1,5 pares. As mulheres de lavradores tinham 1,7 pares de calçado e as dos seringueiros, 1,8. Das mulheres de lavradores, apenas cinco tinham máquinas de costura, mas de cada dez mulheres de seringueiros, cujos rendimentos eram mais elavadós, cinco as possuíam ..

Essas estatísticas indicam que os dois grupos ru­rais têm um nível de vida ligeiramente mais baixo do que os grupos da classe baixa das cidades. A maior diferença de nível de vida, entretanto, é a que existe entre a classe baixa em geral (a Gente de Seg1inda da

165

11

Page 166: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

cidade e os lavradores e seringueiros da zona rural) e a classe mais alta, os "brancos" ou Gente de Primeira. A gente da classe baixa, tanto das cidades como dos campos, vive num regime quase de fome. Os gêneros comprados, como açúcar, café, sal, carne fresca e sêca, querosene, sabão e tabaco são consumidos com parci­mônia e constituem, pràticamente, um luxo. Em 194~, o dia de trabalho em Itá era remunerado a Cr$ 15,00 e o preço cobrado por qualquer artigo manufaturado era extremamente dispendioso em relação a êsse salário, bem como em relação aos preços alcançados pela fari­nha de mandioca, a borracha, as raízes de timbó, cocos e outros produtos que rendem dinheiro ou crédito para a população rural. Em conseqüência, a gente da classe baixa, geralmente, tem dívidas nas casas comerciais das localidades em que vivem.

III

Conquanto os dados estatísticos reflitam fielmente as divisões de classe' da sociedade de Itá, os fatores, complexos e correlatos, que determinam um nível de vida e os problemas humanos que se têm de considerar, .não podem ser simplesmente descritos por estatísticas. Na opinião do autor, os estudos-de-caso de três famílias escolhidas entre os estudos pormenorizados que fizemos dos orçamentos familiares descrevem muito melhor o modo de vida da gente de Itá. Essas famílias não eram as mais ricas ou as mais pobres de suas respec­tivas camadas econômico-sociais; foram selecionadas porque nos pareceram representar a média de cada grupo.

A primeira, que poderemos denominar de família "A", é de "brancos", ou Ge.ntc de Primeira.. Mora

166

Page 167: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

na Rua "Primeira", mas numa casa de adôbe já meio em ruínas. A família é composta de um homem, sua mulher e três filhos pequenos - duas meninas e um menino ainda bebê. O pai é secretário da Prefeitura e ganha Cr$ 1. 500,00 por mês. Sua casa tem cineo eômodos : uma sala de visitas, dois quartos, uma sala de jantar e cozinha. Os banhos são tomados no rio próximo, e fora existe uma privada, instalada pelo ser­viço de Saúde Pública. A casa é de frente de rua. Atrãs há um quintal cercado, com vinte bananeiras, quinze pés de abacaxi, cinco coqueiros e outras árvores frutíferas. Além disso, a família cria umas vinte ga­linhas no quintal, mais pela carne do que pelos ovos.

De acôrdo com os padrões locais, a casa da família "A" é bem mobiliada, embora para um estranho pareça um pouco vazia. Tem seis cadeiras de madeira, três me­sas, um armário de louças, quatro malas para guardar a roupa, dois lampiões de querosene e uma cama que raramente é usada. (7) Como outras famílias de Itá, a família "A" dorme em rêdes que durante o dia são desarmadas e enroladas contra a parede. Marido e mulher dormem em um dos quartos de alcova, sem janelas, e as crianças no quarto pegado. À cozinha; que fica no fundo da casa, tem uma plataforma sôbre a qual foi construído um fogão de fogo aberto. 0& utensílios de cozinha consistem em quatro panelas de ferro fundido e vários potes de barro, de fabricação local. A sala de jantar, que tem a forma típica de uma varanda parcialmente aberta, dá para o quintal dos fundos. Nela não só se fazem as refeições como se desenrola .pràticamente tôda a vida de família. Os

(7) Em Itá, mesmo na classe mais alta, prefere-se a rêde para dormir. A cama é um objeto que dá muito pres­tigio e, segundo nossos informantes, só é usada para as rela­ções sexuais.

167

Page 168: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

amigos íntimos são recebidos na sala de jantar e não na sala de visitas, reservada para ocasiões mais ceri­moniosas e quê fica na frente da casa. No annário de louças da sala de jantar há doze pratos, doze xicrinhas e seis xícaras com pires, para o café da manhã, quatro copos de vidro e dez facas, dez garfos e dez colheres.

Para !tá, a família "A" veste-se relativamente bem. O pai tem dois ternos de brim, confeccionados por wn alfaiate itinerante que visita a cidade umas duas vê­zes por ano. Tem mais três pares de calças para o uso diário, cinco camisas, quatro gravatas, dois pares de sapatos e dois pares de sandálias abertas que usa sem­pre dentro de c~sa e, às ''êzes, mesmo na rua. Sua mulher tem quatro vestidos "bons" que ela reserva para as festas e a igreja. Tem mais quatro vestidos velhos e quatro pares de chinelos para o uso diário. Cada uma' das crianças tem três "uniformes" - ves­tidos de algodão para as meninas e macacões de algodão para o menino pequeno - e um par de sapatos que s6 usam em ocasiões especiais.

Com exceção do pouco que cultiva no seu quintal, a família "A;' compra tudo o que come. Como a maioria das famílias de Itá, mantém uma conta em uma das quatro casas comerciais. São fregueses da. Casa Gato onde gastam cêrca de Cr$ 1. 000,00 por mês, com alimentos e outras necessidades. Grande parte dessa quantia é consumida por gêneros básicos, como farinha de mandioca, café, açúcar, carne fresca, peixe fresco e salgado, feijão e arroz. A família "A" (como outras famílias da Gente de Primeira) também coml>ra pão para comer no café. E, freqüentemente, tem man­teiga de lata, leite condensado, e doces, como goiabada e marmeláda, que constituem a sobremesa mais comum em todo o Brasil. O marido fuma cigarros prontos e, vez ou outra, bebe uma garrafa de cerveja ou um

168

Page 169: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

trago de cachaça na Casa Gato. Sua conta é raramente saldada; apesar do marido ganhar salário fixo, o preço das roupas, dos remédios, os donativos para a igreja e uma ou outra festa a que comparecem, obrigam-nos a estarem sempre em dívida com a Casa Gato. Mas, em !tá, é considerado boa política permitir a um fre­guês com salário fixo conservar-se em dívida, pois isto o obriga a continuar a comprar de seu credor. Os empregados da Casa Gato são muito liberais com a fa­mília "A"; insistem sempre para que façam compras além de suas necessidades usuais. O modo de vida da' família "A" não é confortável quando comparado com o das populaçõ~ mais favorecidas do mundo, mas para !tá é uma família rica.

Nosso segundo exemplo, a família "B", é classi­ficada na localidade como Gente de Segunda, ou classe. ·baixa da cidade. Como a família "A", compõe-se de um homem, sua mulher e três filhos (duas meninas e um menino). Mas o filho mais velho, de doze anos de idade, auxilia na roça e representa uma ajuda econô­mica real para a família. A família "B" mora na Rua '"Terceira", em uma barraca de palha. O pai é um lavrador que trabalha por dia e ganha apenas de Cr$ 250,00 a Cr$ 300,00 por mês em dinheiro. Esta renda, entretanto, é acrescida com o produfu (principal­mente mandioca) de sua roça que êle planta em terras da Prefeitura e que cultiva com o auxílio da mulher e do filho. Além disso, durante os meses de verão; o senhor "B" pesca; tanto para suprir a própria despensa, como para vender. Nos anos em que sobe o preço da bor­racha, êle passa um mês ou mais colhendo borracha un. região das Ilhas do município. A família "B" tam­bém possui algumas galinhas (dez) e em seu quintal há bananeiras, mamoeiros e outras árvores frutíferas. Ao contrário da família "A", que vive quase exclusi-

16,!)

Page 170: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vamente do ordenado, a família "B" depende grande­mente, para sua subsistência, da lavoura, da pesca e da extração da borracha.

O padrão de vida da família "B" é bem inferior ao da família "A". Sua barraca só tem três cômodos.: quarto, sala de jantar e cozinha. Nela há uma mesa de jantar, dois bancos de madeira e duas cadeiras de ~ncosto para as visitas. Um caixote de madeira, com quatro pernas, serve para guardar os alimentos e a louça. Duas mnlas encerram as roupas da família o um único lampião de querosene fornece iluminação para tôda a casa. A família só possui seis pratos, seis xí­caras pequenas de café, com pires, seis colheres, duas facas, dois copos de vidro e algumas peças avulsas de louça. Cada membro da família tem si.ia rêde, mas as crianças têm de dormir na sala de jantar. O marido tem um terno e dois pares de calças. Tem duas cami­sas, uma para o trabalho e outra para ocasiões formais. Sua mulher tem um vestido bom para ocasiões especiais e dois vestidos velhos para o uso diário. O marido, a mulher e o menino mais velho têm sapatos que são cuidadosamente guardados nas malas. No trabalho, andam descalços. As crianças mais novas só têm uma. muda de roupa para todos os dias, e o mais velho tem mais um par de calças e uma camisa nova para os dias de festa.

A família "B" também é freguesa da Casa Gato, mas com ela os empregados não insistem para que faça compras extraordinárias. Conquanto suas roças pro­duzam bastante mandioca para fabricar farinha para. o consumo próprio, ainda gastam, em média, cêrca de Cr$ 195,00 por mês com outros alimentos básicos, tais como carne fresca (de 2 a 4 quilos por mês) , café, açúcar, arroz (de 2 a 3 quilos por mês), feijão (de 1 a 2 quilos por mês) e sal. Raramente consomem artigos

170

Page 171: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de luxo, como leite condensado, doces, óleo de cozinha, pão e manteiga. Seu regime é extremamente frugal. Fazem uma única refeição completa por dia - a do meio-dia. A família vai para o trabalho ou para a escola tôdas as manhãs tendo tomado apenas uma pe­quena xícara de café e comido um punhado de farinha, que os sustenta até o meio-dia. O seu regime, como diz Josué de Castro, referindo-se à Amazônía em geral, 6 "parcimonioso, escasso, de espantosa sobriedade. O que um homem come durante um dia todo, não seria suficiente para uma refeição em outras regiões climá­ticas que determinam outros hábitos"~ (8) A família "B" é indiscutlvelmente subnutrida. As crianças têm o ventre intumescido em conseqüência da verminose e todos os membros da família são freqüentadores assíduos do pôsto de saúde. Três filhos do casal morreram ao nascer ou antes de atingir um ano de idade.

Como a maioria das famílias de Itá, a família "B" tem dívidas. Embora sua renda exceda as despesas mensais normais, de vez em quando êles gostam de ostentar. Numa bebedeira que tomou, o marido :fez uma conta de Cr$ 200,00, só de cachaça; em outra ocasião êle e sua mulher aceitaram o encargo de patro­cinar uma festa de Nossa Senhora das Dores. A co­mida, a bebida e os foguetes para a festa lhes custaram mais de Cr$ 400,00. Em 1947, conseguiram persuadir a Casa Gato a lhes conceder crédito para. comprarem roupas novas para a festa de São Benedito. Pol'que estão s~mpre devendo e porque o marido gosta de ir amiúde à "éasa Gato bater um papo, a família "B", em geral, compra pequenas quantidades: uma caixa de fósforqs, uma meia garrafa de ·querosene, ou meio quilo de feijão. O nível de vida da classe baixa de Itá t'.i pràticamente o mínimo indispensável à subsistência.

(8) "Geografia da Fome", p. 66.

171

Page 172: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Mas os grupos rurais de lavradores e seringueiros, a que antes nos referimos, vivem ainda em maior po­breza. Os problemas dessas populações rurais Yariam ligeiramente, de acôrdo com sua ocupação. O serin­gueiro que não possui uma roça para fornecer a fa­rinha de mandioca necessária à sua família precisa comprar todos os alimentos. Os lavradores que têm pouca renda ou crédito nas casas comerciais dependem quase exclusivamente dos roçados, da caça e da pesca, para alimentarem os seus. O caso de uma família de lavradores servirá para ilustrar a parca existência da classe baixa dessa população rural. A família em ques-· tão, família "O", mora numa barraca em Jocojó. Com­põe-se de quatro membros: um homem, sua mulher e dois filhos ainda muito pequenos para poderem ajudar na roça. ·Tanto o marido quanto a mulher trabalham no roçado, mas o trabalho mais pesado é executado· pel l> homem. Durante parte do ano o marido obtém alguma renda com a extração de borracha ou da raiz de timbó na floresta vizinha. Em 1947 êle teve um excedente de cêrca de mil quilos de farinha de mandioca que rendeu para a família Cr$ 1. 600,00, quantia essa acrescida de mais Cr$ 400;00 provenientes da extração da borracha. Foi essa a renda. total, em dinheiro, da família. .

Em sua barraca quase não existem móveis. A co­zinha tem uma mesa e dois caixotes de madeira que lhes deu um comerciante. Um banco de madeira subs­titui as cadeiras. O homem e sua mulher "guardam as poucas roupas que possuem em um baú de folha pin­tada. (9) A casa é iluminada por três pequenas Iam~

(9) :B:sse tipo de baú é usado em todo o Brasil rural, tanto para carregar objetos, como para esquife de crianças e recém-nascidos.

172

Page 173: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

parinas de querosene que produzem uma fumaceira preta e pouco efeito têm sôbre a escuridão. A mulher tem uma única caçarola de metal e duas panelas de barro, para cozinhar. Embora possuam três garfos, em geral, só comem com colheres. Há um prato de folha para cada membro da família, cinco xícaras pequenas de café, eom pires e dois copos de vidro. Tanto o ma­rido como a mulher têm a sua própria rêde, mas as crianças dormem em uma só.

A família gasta, em média, Cr$ 135,00 mensais com alimentos e outras necessidades. São fregueses de um posto comercial que fica na desembocadura de um tri­butário do braço principal do Amazonas. Os preços dêsse posto comercial são ainda mais elevados do que os dos armazéns de Itá, o que faz com que a família "C" pouco receba em troca de seu dinheiro. Suas compras limitam-se, normalmente, a açúcar ( 4 quilos por· mês), sal (1 quilo), um litro de querosene, um pe­queno pedaço de tabaco, café (2 quilos), duas caixas de fósforos, três quilos de carne sêca e duas barras de sabão de lavar roupa. Carne fresca, com exceção do produto da c·aça, só é comida quando a família vai a Itá ou durante alguma festa em que se mata um porco. Feijão, arroz, pão, goiabada e outros alimentos, comm1s nos lares bi;asileiros, para êles constituem um luxo. As poucas roupas que possuem são excessivamente ca­ras; um corte de tecido ordinário para um vestido de mulher custa Cr$ 100,00 e a fazenda necessária para uma. calça de homem, cêrca de Cr$ 75,00. As roupas da fa­mília "C" limitam-se, pois, ao mínimo neces!:!ário. Nem a mulher, nem o marido, possuem sapatos; êle só tem um terno para as ocasiões de festa e ela, um vestido bom que é cuidadosamente guardado para as datas especiais. Sua roupa de todos os dias é velha e ras­gada. Seu :filhinho, de oito anos de idade, anda nu

173

Page 174: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

pelo quintal e a menina, com dez anos, tem dois vestidos esfarrapados.

A família "C'', como as famílias "A" e "B'', tem dívidas. O negociante de quem compram, tem direitos sôbre a terra que cultivam, sendo também o dono da~ estradas de borracha em que o marido extrai êsse pro­duto. O negociante lhes adianta gêneros e mércadorias, em troca de farinha de mandioca e borracha. Rara­mente dispõem de qualquer quantia em dinhefro. As vêzes conseguem pequenas importâncias vendendo uma pele de animal ou um alqueire (;30 quilos) de farinha de mandioca para algum regatão que faz comércio ao longo do rio. Quando querem contribuir para a festa anual de São Pedro, em Jocojõ, têm de dar borracha ou produtos da roça. Apesar de o trabalhador rural de Itá fornecer grande parte da alimentação necessária à sua família com os produtos de suas roças, da caça,. da pesca e com os frutos que colhe na floresta, o preço dos alimentos que precisa adquirir, como feijão e arroz, ultrapassa o seu poder aquisitivo. A maioria das fa­mílias rurais come mal e atravessa períodos de semi­-inanição. A baixa posição social das famílias de lavra­dores e seringueiros dos distritos rurais de Itá decorre, principalmente, de sua pobre condição econômiea.

Apesar dessas grandes diferenças locais dos níveis de vida das classes mais altas e mais ·baixas, não há em Itá o contraste marcante entre os extremamente ricos, com seu luxo e ostentação, e os extremamente pobres, tão característico dos grandes centros urbanos <lo Brasil. Em comparação com a pGpulação rural de lavradores e seringueiros e a Gente de Segunda da ci­dade, os "brancos" de Itá podem, realmente, ser con­siderados ricos; mas num conceito mais amplo, mesmo sua classe mais alta, com exceção dos proprietários da

J74

Page 175: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Casa Gato, é pobre. Em resumo, tôda a comunidadr, de Itá tem um nível de vida extremamente baixo, principalmente quando comparado com o de uma pe­quena cidade de igual tamanho dos Estados Unidos ou da França.

IV

Embora em Itá a posição social esteja lntimamente relacionada à posição econômica, muitos outros fatôres contribuem para a determinar. Existem indivíduos classificados como Gente de Primeira que possuem rendas menores do que outros incluídos entre a Gente de Segunda. Há também pessoas classificadas entre a Gente de Segunda que possuem renda suficiente ,para serem incluídas entre a Gente de 'Primeira, mas que não possuem outros requisitos necessários. Raimundo Gon­çalves, por exemplo, que recebe ordenado do govêrno federal, como capataz do aeroporto de Itá, recentemente construído, e que emprega homens para cultivar grandes roças de mandioca, é classificado por todos como Gente de Segunda. Dona Branquinha, a profes­sôra, apesar de morar em uma grande casa na Rua "Primeira", tem apenas uma quinta parte da renda de Raimundo Gonçalves. Ela ganha unicamente o sufi­ciente para comer, e, assim mesmo, parcimoniosamente; entretanto, em qualquer relação dos "brancos" de Itú, o nome de Dona Branquinha é sempre um dos três ou quatro que primeiro são lembrados. .As razões pelas quais Dona Branquinha é sempre incluída na classe mais alta e Raimundo Gonçalves na Gente de Segunda, são de natureza não-econômica. São diferenças de fa­mília, de educação, de posições alcançadas na comuni­dade e de atributos pessoais. Em Itá, como em outras sociedades humanas, os fatôres de posição social tendem

175

Page 176: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

a se acumular; isto é, um homem de alta posição eco­nômica, geralmente, também pertence a uma alta fa­mília, com educação superior e que exerce uma posição de liderança na sociedade. Um homem pobre, geral­mente, descende de uma família de origem baixa, tem. menos educação e mais dificuldade em atingir urna posição de destaque. O que determina sua posição de­finitiva é uma combinação de critérios vários de clas­sificação.

Os casos de Dona Branquinha e Raimundo Gon­çalves demonstram a importância de uma variedade de fatôres. Dona Branquinha provém de uma "Boa família"; descende do barão de Itá. Conquanto seu pai fôsse pobre, foi companheira de infância de Dona Dora Cesar Andrade e outras meninas da Gente de Primeira. Foi a Belém fazer seu curso primário. E apesar da instabilidade de sua vida conjugal (enviuvou três vêzes), sempre levou uma vida decente. Lutou muito para educar os dois filhos que freqüentaram escolas secundárias em Belém. Foi, provàvelmente, a pouca sorte que teve em seus casamentos que determinou o grande interêsse que dedica à religião. Quando se dissolveu a Irmandade de São Benedito, ficaram com ela os seus arquivos. Quando Itá não pôde mais manter um padre, Dona Branquinha começou a dirigir, na. Igreja, as orações das Vésperas e dos Domingos. Sem­pre que um sacerdote visita a cidade, Dona Branquinh1t convida-o a hospedar-se em sua casa. O padre de uma localidade vizinha pediu a Dona Branquinha que se encarregasse da igreja de Itá. Aos poucos, os lavra­dores e seringueiros, que queriam fazer oferendas a São Benedito, começaram a levá-las à casa de Dona Branquinha, pedindo-lhe que acrescentasse seu nome à lista dos doadores. Diz-se que, em certa ocasião, Dona Branquinha chegou a ter em suas mãos mais de "cem

176

Page 177: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

contos" de donativos para a igreja. Com êsse poder, resultante de sua posição de líder religiosa, Dona Bran. quinha logo se tornou uma espécie de árbitro social. Ela critica as maneiras e a conduta moral da gente da cidade que teme que suas opiniões sejam transmitidas ao padre. Foi Dona Branquinha quem contou a êste que a dança, na festa anual de Nossa Senhora das Dores, promovida por uma pequena irmandade de Itá, "era uma verdadeira orgia". Aliando-se ao padre, U combate as pequenas irmandades da zona rural. Na\ q1ialidade de lí..9.er. religio~a, Dona Branquinha con­quistou uma posição social em Itá, muito superior à da sua família direta.

Raimundo Gonçalves, por outro lado, veio de fora. Mudou-se para Itá há apenas cinco anos atrás, proce­dente do Alto Amazonas. Conquanto seja alfabetizado, nota-se, em sua caligrafia, em _sua ortografia e em sua maneira de falar, que êle só cursou uns dois anos de escola. Nada se sabe a respeito de sua família, mas: ó óbvio que não descende da aristocracia. Em pri­meiro lugar, executa trabalho braçal. Quando dirige os serviços de· limpeza do aeroporto, Raimundo, às Yê­zes, trabalha junto com os operários; em suas roças Raimundo e sua mulher freqüentemente ajudam a lim­par o terreno ou a descascar as raízes de mandioca para fazer farinha. Em segundo lugar, embora tenha, segundo os padrões de Itá, urna boa renda, suficiente para manter a mulher e oito filhos, continua a morar na Rua "·Terceira". Quando se mudou para Itá, foi morar em ·uma barraca. Aos poucos, nela foi intro­duzindo melhorias, até que tanto sua aparência como sua construção se tornaram melhores do que muitas das residências da rua "Primeira". Todavia, sua localiza­ção é de segunda classe e continua sendo urna "bar­raca". Em terceiro lugar, Raimundo e sua família

177

Page 178: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

continuam a se portar diante dos "brancos" de maneira que os define, claramente, como Gente de Segunda. É respeitado por seu trabalho árduo e por sua posição econômica, tanto pela Gente de Primeira como de Se­gunda; entretanto êle e sua mulher são tímidos e hu­mildes na presença de pessoas da classe alta. Tira sempre o chapéu quando se dirige a Manuel Serra Freire e sua mulher fica constrangida diante de Dona Branquinha; é sua maneira de se mostrar educiado. Finalmente, embora Raimundo e sua família tenham roupas melhores que uma família comum da Gente de Segunda, gosta de andar descalço e sua mulher rara­mente usa seus melhores sapatos e vestidos. Não é pois necessário consultar a sua árvore genealógica para se saber que Raimundo vem do "povo".

Êsses fatôres - família, educação, maneiras e comportamento - são de pequena importância para estabelecer diferenças entre as várias camadas que for­mam a classe baixa da sociedade de Itá, isto é, entre os elementos da mesma 1que residem na cidade, os la­vradores e os seringueiros. Como já dissemos anterior­mente, os citadinos de tôdas as classes sociais acham que os residentes das zonas rurais têm de ser, por fôrça, menos educados em suas maneiras. A gente da cidade critica a moral dos lavradores e seringueiros da zona rural. Contam-nos, com um misto de admiração e cen­sura, que o líder da aldeia de Jocojó, João Povo, vive há anos, abertamente, com a mulher legítima e coru EI amante, Ermina, de quem tem vários filhos. Contam histórias do caboclo que descobriu que podia casar duas vêzes, uma na igreja e outra no civil. .Comentam sô­bre a freqüência com que, nos distritos rurais, os casamentos têm de ser realizados na polícia, em virtude da queixa do pai de uma menor contra seu sedutor. Além disso, como não dispõem de escolas, a gente da

178

Page 179: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

zona rural .é quase totalmente analfabeta. Ainda assim, a linha divisória entre a classe mais baixa das cidades e a população rural e entre os lavradores e sering11eiros não é tão fortemente acentuada. Muitos seringueiros transferem-se para uma área agrícola n a gente da lavoura tem-se mudado para as Ilhas a fim de colhêr borracha durante os anos de alta dos preços dêste produto. Muitos citadinos têm morado em zonas rurais. Em grande parte, as diferenças entre essas camadas mais baixas decorrem de fatôres tais como ocupação, renda, moradia e padrões de vida. Mas a diferença entre os "brancos" e as camadas mais baixas é determinada por atitudes profundamente enraizadm; e padrões de comportamento que se tem de aprender e aplicar na prática se se quiser passar de um grupo para o outro. A mobilidade vertical de uma para outra camada da classe mais baixa é relativamente fácil; não há grandes barreiras que o impeçam na consciência de grupos, nem no comportamento que se espera dos mem­bros de cada camada.

A transferência da classe mais baixa para a mais alta, porém, é difícil e pouco freqüente. As oportuni­dades educacionais são pràticamente inexistentes para a população rural e as classes mais baixas têm dificul­dade em manter seus filhos na escola, mesmo para um curso de três anos. Melhor educação só podem dar a seus filhos os que têm sólida situação financeira para enviá-los a Belém ou a Santarém onde as escolas ofe­recem educação primária completa e curso secundário. O progresso econômico é mais difícil para a população rural do que para a classe baixa das cidades. A perma­nência dos métodos pouco eficientes da "queimada'', herdada dos índios, a falta de equipamento agrícola moderno, a terra relativamente pobre, os baixos preços pagos pelos produtos da lavoura e os preços relativa-

179

Page 180: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

[mente altos de todos os artigos importados, o rígido sistema comercial baseado na dívida, e outras dificulda­des dessa economia extrativa e ~.-rrícola quase nômade, tornam muito improvável a possibilidade do indivíduo subir na escala econômica. Além do mais, mesmo que algum membro da classe mais baixa adquirisse alguma instrução e conseguisse livrar-se da armadilha quase inevitâvel do sistema de dívidas e melhorar sua posição econômica, teria ainda que enfrentar a. necessidade de aprender novas maneiras e novas normas de comporta­mento. Uma tal pessoa descobriria também que a.

, lembrança da baixa origem de sua família seria uma 1 barreira à mobilidade vertical. Na sociedade de ltá, o em tôda a sociedade amazônica, a mobilidade vertical, ela classe mais baixa para. a mais alta, é proeza difícil. Como em outras sociedades de classes rigorosamentf! distintas, e principalmente nas pequenas cidades, a lem­brança da baixa origem é uma barreira quase impossível de se transpor. Em geral, a única maneira de um indi­viduo conseguir subir na hierarquia social é mudar-se para outra cidade.

A trágica história de João Porto que lutou heroica­mente para subir, tanto econômica como socialmente, servirá para ilustrar as dificuldades da mobilidade so­cial. João nasceu de pais pobres na zona agrícola perto de Itá. Seus pais mudaram-se para a cidade quando êle ainda era pequeno e João pôde freqüentar a escola durante quase três anos. É, portanto, alfabetizado, embora leia e escreva com alguma dificuldade. Conta atualmente perto de trinta e cinco anos; é casado e tem uma filha. Quando ainda rapaz, era tido como traba­lhado1•, esperto e honesto. 'frabalhou como lavrador, seringueiro e empregado de Lobato Cesar Andrade, dono da Casa Gato, que parece ter-lhe dedicado grande ami­zade. Há uns dez anos atrãs, com a ajuda financeira

180

Page 181: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de Lobato, João conseguiu comprar um pequeno sítio situado às margens do Itapereira, afluente do Ama­zonas, a cêrca de meia hora de marcha da cidade. Suas terras tinham três estradas de borracha, uma parte de baixada perto do Amazonas e parte de terra firme para o cultivo da mandioca. Trabalhando a terra, ajudado por seu cunhado, Jorge Dias, colhendo borracha de suas estradas, e trabalhando como diarista na construção do posto de saúde, João conseguiu pagar sua terra em poucos anos. Durante os primeiros anos da segund:.! guerra mundial, quando a borracha estava na alta e os preços da mandioca relativamente elevados, João tinha crédito, ou saldo, nos livros da viúva Cesar An­drade. Um belo dia o govêrno estadual tomou medidas destinadas a estabelecer uma cooperativa agrícola que permitiria aos lavradores locais comprar as ferramentas de que tanto necessitavam e vender seus produtos por melhores preços. João foi um líder do grupo que tentou organizar a cooperativa. Tinha planos para comprar maquinaria, para exterminar a saúva e para fabricar farinha de mandioca. João tinha seus três filhos na escola e sua família andava relativamente bem vestida. Estava subindo a escada - pelo menos eco·· nômicamente.

Mas a cooperativa falhou por falta de apoio oficial. Em 1942 João perdeu o filho de sete anos e tôda a fa­mília contraiu malária. Desde então sua mulher tem sido uma doente crônica. Devido à doença da família, João perdeu :vários dias de trabalho; não pôde plantar tanta mandioca quanto nos anos anteriores e teve que deixa1• a exploração das estradas de borracha a cargo do cunhado. Depois de um ano mau, ficou devendo nova­mente. Por volta de 1948 os preços da bortacha haviam caído e, embora João e seu cunhado houvessem plantado grandes roças de mandioca, ainda continuava a dever.

181

12

Page 182: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Dizia o povo que um fantasma lhe havia amaldiçoado a casa, pois morrera seu segundo filho e a mulher continuava doente. Ainda possuía a terra, mas o seu estado de espírito, :ri.aquele ano de 1948, era o de um derrotado. Discorria interminàvelmente sôbre a impos.­sibilidade de qualquer um "melhorar sua situação" em Itá. Seu sonho de se tornar proprietário de terras e comerciante, de visitar Belém e dar educação a seus filhos parecia irrealizável. João era um homem amargo.

E, no entanto, a gente de Itá parece acreditar em. histórias de êxito. Pelo menos, contam casos, como o de um simples marinheiro ou de um seringueiro que se tornaram homens ricos e importantes. Enéas Ramos, por exemplo, contou que seu genro se tornou urn impor­tante negociante no rio Tapajós. ~sse genro, José Dias da Silva, era um marinheiro pobre que trabalhava a bordo de um dos numerosos barcos fluviais que fazem a travessia do Baixo Amazonas. Trabalhando, conse- · guiu galgar a posição de camareiro de bordo. Depois, com o auxílio de seu padrinho, Manuel Paiva, um por­tuguês dono de um grande posto comercial perto de Itá, José transferiu-se para um emprêgo melhor a bordo do navio a motor "Moacyr". De vez em quando, apa­recia em Itá, geralmente durante as férias. Numa dessas visitas, namorou e se casou com uma das filhas de Enéas Ramos. À medida que foi ficando conhecido em Belém, conseguiu obter mercadorias a crédito de. uma das grandes casas comerciais e estabeleceu-se como comerciante às margens do Tocantins. Venceu e hoje ocup<?. uma alta posição social em uma pequena cidade do ·Tocantins. Seu padrinho, segundo nos conta Enéas, convidou várias vêzes José Dias da Silva para voltar a Itá. Ofereceu-lhe uma .~ande porção de suas terras, com estradas de borracha, pára explorar, mas "êle não quis trabalhar nas terras de outro homem; só voltaria

182

Page 183: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

se pudesse comprar sua própria terra e adquirir sua própria casa comercial'', disse-nos o sogro.

Tôdas as histórias de sucesso na mobilidade econô­mica e social que se contam na localidade referem-se ao êxito de algum jovem em algum outro lugar, nunca em Itá, graças ao auxílio de um padrinho, parente ou patrão benevolente, ou qualquer outro golpe de sorte. A migração para Belém ou Manaus, ou para alguma outra pequena comunidade do Vale Amazônico, não só elimina a lembrança da baixa origem de família como permite a um indivíduo das classes mais baixas formar novas relações, escapando, assim, às pessoas da classe. mais alta que se habituara a acatar. Sabe-se de alguns, filhos de Itá que conseguiram vencer nas cidades maiores. Êsses poucos, entretanto, evidentemente, têm. pouco desejo de voltar à sua cidade na tal, mesmo para uma simples visita. Um médico muito conceituado de' Belém nasceu e passou seus primeiros anos de vida em Itá e há mais de vinte anos não visita essa cidade. São raros, entretanto, os filhos de Itá que obtiveram êxito nas grandes cidades; lá também são rigorosas as bar­reiras sociais e Itá não tem meios para dar aos seu:5 jovens uma sólida educação básica que lhes permita subir na escala econômica e social. A maioria dos que emigram de Itá para as grandes cidades de Manaus e Belém tornam-se operários de fábrica ou trabalhadores mal remunerados que integram a classe baixa urbana.

As dificuldades da ascensão econômica e social na ' sociedade d~ Itá fortalecem a crença, tão comum em todo o Brasil, de que só um golpe de sorte pode levar ao 1

êxito econômico. Um h.~ 1~e. m só pode enriquecer se: ganhar na loteria, se ti~~ a sorte de encontrar um ' bom negócio, ou se descobrir ouro enterrado há séculos pelos missionários. Hoje em dia, raramente se ven-

183

Page 184: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

dem bilhetes de loteria em Itá, e o jôgo do bicho não tem eneontrado patronos na eidade nestes últimos tem­pos. Estas duas modalidades de jôgo, entretanto, for­mam parte integrante da cultura de Itá. Bem que as pessoas gostariam de eomprar um bilhete de loteria ou "apostar em um bicho" se fôsse possível. Contam ca­sos de amigos que ganharam no jôg·o do bicho ou na loteria, nas grandes cidades. Todavia, o que mais enriquece o folclore de Itã são as histórias de tesouros escondidos. São infimeras as histórias reais de homens que passaram anos cavando o solo a procura de tesouros que lhes foram revelados em sonho. Diz-se que Lobato Cesar Andrade, que durante muitos anos foi o comer­ciante mais importante de Itá e talvez o mais rico, obteve seu primeiro impulso na vida ao encontrar um tesouro enterrado. Segundo a crônica, Lobato sonhou uma noite que havia um pote de dinheiro enterrado bem em frente de sua casa. O sonho revelou-lhe o lu·· gar exato e até mesmo a profundidade em que se encor:­trava o recipiente do dinheiro. Lobato ouviu as pala­vras: "O dinheiro está lá à sua espera". Durante a noite dirigiu-se ao lugar indicado e desenterrou 0

dinheiro mas nada contou a ninguém na ocasião. Fi." cou-se sabendo da sua sorte porque um de seus empre­gados viu-o contando o dinheiro. Logo depois Lobato mandou rezar uma missa na igreja. Sua sorte, entre­tanto, não se limitou a encontrar o tesouro escondido. Devido ao seu dinheiro pôde casar com Dona Dora Cesar Andrade, filha do rico comerciante, e herdar o negócio. A gente de Itá não acredita que se possa enriquecer pela acumulação lenta de dinheiro. Acre­dita na sorte, ou, como reza o ditado popular de Itá, "Quem quer que tenha enriquecido, ou herdou ou roubou".

184

Page 185: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

V

O Brasil é conhecido através do mundo pela sua democracia racial. O preconceito e a discriminação raciais são relativamente moderados em todo o país,j· em relação ao que existe nos Estados Unidos, no Sul da África e na maior parte da Europa. Isto não quer dizer que não exista nenhum preconceito de raça ou que as características físicas não sejam símbolos de posição social e, portanto, barreiras ou estímulos à mo­bilidade social. Quer dizer, porém, que as relações de raça são essencialmente pacíficas e harmoniosas. En­tretanto, as atitudes para com os diversos grupos raciais e ·as relações entre êsses grupos raciais na sociedad~ amazônica refletem os diferentes aspectos da história aa Amazônia e da sociedade regional.

Em quase todo o Brasil, os índios logo cederam lugar aos escravos africanos como principal fonte de trabalho. Por conseguinte, os descendentes dos escravos negros formaram a grande parte das classes mais baixas da sociedade contemporânea. A medida que se apagava a lembrança de sua antiga situação de escravo na so­ciedade colonial, o índio se foi tornando uma figura romântica e, hoje, é motivo de orgulho para muitas famílias aristocráticas do sul do Brasil o fato de po­derem contar índios entre seus ancestrais. Na Ama­zônia, por outro lado, os colonizadores não eram suficientemente ricos para comprar muitos escravos africanos. Os poucos negros que chegaram até essas comunidades, como a de Itá, durante o período colo­nial, devem ter sido de valor inestimável, homens que precisavam ser instruídos e tratados com o máximo cuidado - ou então já eram livres. Na Amazônia, em sua maioria, os escravos sempre foram índios. O

185

Page 186: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

comércio dêsses escravos índios, que se iniciou no prin­cípio do período colonial, continuou, evidentemente, na Amazônia, durante grande parte do século dezenove. W. E. Bates descreve especificamente a escravização indígena nos meados do século passado. Na pequena nldeia de Egá, no Alto Amazonas, êle viu escravizados "indivíduos de pelo menos dezesseis tribos diferentes; em sua maioria haviam sido comprados, ainda crianças, dos chefes nativos. Essa espécie de comércio escrava­gista, apesar de proibida pelas leis brasileiras, era tole­rada pelas autoridades". O próprio assistente de Bates "resgatou" duas crianças indígenas que tinham sido arrebatadas de suas famílias e que, como nos conta Bates, morreram pouco temp9 depois de chegarem <t

Egá, apesar de seus esforços para curá-las. (10) A escravização indígena perdurou ao longo dos tributários do Amazonas até mesmo durante nosso século. i'l escravatura é, portanto, um fenômeno relativamente recente no Vale Amazônico e os descendentes dos es­cravos índios da Amazônia ocupam uma posição eco­nômico-social inferior, comparável à do negro em outras regiões do Brasil.

Em Itá estão representadas as três especies racrnrn que compõem a população brasileira, isto é, o Europeu, o Africano e o índio. 'l'odos os cruzamentos possíveis das três raças ocorreram em tal proporção que a clas­sificação da população de Itá, quanto ao seu tipo físico, é extremamente difícil, senão cientificamente impossível. Grosso modo, entretanto, sua população parece constituir-se de cêrca de 15 por cento de euro­peus, 50 por cento de misturas de europeus com negros e índios em várias proporções, cêrca de 25 por cento

(10) W. E. Bates, The _Naturalist on the River Amazon, pp. 278 e segs.

186

Page 187: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de ameríndios e cêrca de 10 por cento de negros. ( 11) Não cremos que qualquer um dêsses indivíduos classi­ficados de europeus, negros ou índios seja geneticamente puro ; foram classificados de acôrdo com características físicas aparentes. (12) Nossas observações gerais de Itá, bem como o testemunho histórico, indicam que, geneticamente, traços do ameríndio predominam nessa população mestiça.

A gente de Itá estabeleceu suas próprias categoriaH em que classificam os concidadãos quanto ao tipo físico. Dessas categorias as mais comuns são bra11co para os de tipo físico, aparente, europeu ou caucasóide; moreno• para as misturas de vários tipos; caboclo para os que apresentam características físicas, aparentes, do índio; e p1·eto para os de tipo físico, aparente, do negro. O têrmo mulato, tão freqüentemente usado em outras re­giões do Brasil, só é empregado em Itá no gênero feminino para designar uma mulher atraente (por exemplo, wina m1ilatinha bonita ou 1ima nrnlata boa). Como na maior parte do Brasil, o têrmo "negro" é l?.. raramente empregado e, quando o é, em tom de raiva. Quando empregado a respeito de alguém que tenha traços físicos denunciadores de descendência negra, o rótulo de negro ruim é um tremendo insulto. O têrmo: pardo, tão comumente empregado nos jornais brasi­leiros e nos censos oficiais para designar pessoas de várias misturas raciais que não são n'itidamente negras,

(11) A classificação de 202 adultos, quanto à sua apa­rência racial, revelou os seguintes resultados: 50% mestiços, 17% brancos (europeus), 23% caboclos (índios) e 10% pre· tos (negros). Um censo separado realizado pelas autoridades sanitârias, de 305 pessoas de Itá, relacionou 71% de pardos, 19% de brancos e 10% de negros.

(12) Race and Olass in Rural Brazil, ed. Charles Wagley (UNESCO, Paris, 1952), p. 122.

167

Page 188: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

européias ou índias, s6 é usado em !tá por alguns fun­cionários do govêrno.

O critério mais importante para se proceder a essas classificações em !tá é a qualidade do cabelo e a quantidade de pelos no corpo. O branco tem cabelo fino e liso e barba e.errada. O caboclo tem cabelo preto e grosso; "sua barba consta de três fios de cabelo no queixo e seu cabelo fica sempre em pé malgrado todos os esforços para o pentear". O cabelo encarapi­nhado do preto é chamado de quebra pente; as pessoas riem quando contam que êsse cabelo arranca os dentes do pente quando o preto tenta penteá-lo. Outros cri­térios que às vêzes servem de indicação de tipos raciais são o nariz chato e os lábios grossos, indicativos de ascendência negra; e os olhos puxados, que indicam ascendência indígena. Às vêzes, menciona-se a cor da pele, mas o diagnóstico mais comum é o cabelo. Diz a gente de !tá que a cor da pele e os traços fisionômicos não são fatôres seguros: "enganam a gente".

A regra empírica, geral, para o Brasil - "Quanto mais clara a pele, mais alta a classe ; quanto mais es­cura, mais baixa a classe" - pode-se dizer que foi feita para !tá. .A.li a maioria da primeira classe, quanto ao aspecto físico, ou é européia ou mestiça, com grande predominância de ascendência européia. A maioria dos grupos das classes mais baixas (a segunda classe das cidades, os lavradores e seringueiros) são, quanto à aparência física, mestiços com ancestrais predominantemente índios ou negros, ou são de tipo físico aparentemente puro de índio ou negro. A tabela que anexamos a seguir apresenta a aparência racial e a classe social de 202 adultos de !tá, os pais e mães das famílias incluídas nos nossos estudos de famílias acima mencionados. Na primeira classe, 53 por cento (ou 16 pessoas) do total foram classificados de brancos, 4:4 por

188

Page 189: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

cento (ou 13 indivíduos) de morenos, 3 por cento (ou .1 indivíduo) de caboclo e nenhum preto. Das 172 pessoas dos três grupos da classe mais baixa tomados juntos, cêrca de 10 por cento (ou 18 indivíduos) foram classificados de brancos, 51 por cento (ou 89 indiví­duos) de mestiços, 27 por cento (ou 46 indivíduos) de indios, e 12 por cento (ou 19 indivíduos) de pretos ou negros (vide o quadro na p. 190).

Em Itá os descendentes de índio~ e negros conti­nuam a ocupar as posições mais baixas da hierarquia social. Apesar do número relativamente grande de homens

1livres de ascendência indígena e negra que

habitavam o Vale Amazônico no décimo nono século, os habitant~s de ltá que possuem características físicas de índios, negros e mestiços descendem de escravos. Como um grupo, não conseguiram, durante a última metade de século, subir na hierarquia social. Em Itá, onde os efeitos da educação e da industrialização em massa ainda não se fizeram sentir, as características 1

físicas de índios e negros ainda são um símbolo. de baixa posição social e de descendência escrava. A apa­rência física européia é um símbolo de descendência dos senhores de escravos aristocratas.

Entretanto, existem indivíduos de todos os tipos raciais em tôdas as camadas sociais. O prefeito de ltá, que é, naturalmente, classificado de "branco" ou Gente de Primeira, tem a pele cor de cobre e as maçãs do rosto altas e salientes do indio. A viúva Dona Dora Casar Andrade, a pessoa que ocupa, talvez, a mais alta posição social em Itá, é mulata escura. Seu marido era negro. O carregador e bêbado da localidade, Osvaldo Costa, no outro extremo da escala social, descende cla­ramente de europeus, tendo pigmentação clara e barba cerrada. Seu pai, recordam algumas pessoas, foi um

.189

Page 190: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

CLASSIFICAÇÃO DE 202 ADULTOS, SEGUNDO SUA RAÇA E SUA CLASSE SOCIAL

Classe Camada Social MASCULINOS FEMININOS

-

/ Brancos Morenos Caboclos Pretos Total Brancos Morenos Caboclos Pretos Total

Brancos Classe

1 %1

ou Mais N. % N. % N. % N. % N. % N. º' 1'( . % N.

Primeira 'º Alta

Classe

·1 1-7 50 G 42,9 1 7,1 - - 14 9 56,2 7 43,8 - - - 16

1

' Segunda

54,4 6 11,5 Classe

4 8,7 25 lú 21,7 7 15,2 46 5 9,6 27 52 14 26,9 52

Classe

r l 1 Mais Lavradores 2 6,9 14 48,3 9 31 4 13,8 29 1 3,8 16 61,6 8 30,8 3,8 26

Baixa

Serin-

1 1

gueiws 2 22,2 4 44,5 2 22,2 1 11,1 9 4 40 3 30 3 30 - - 10

1

TOTAL 15 15,3 49 50 22 22,5 12 12,2 98 19 18,3 53 51 25 24 17

6,7 104

1

Page 191: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

imigrante português. Há outros casos de mestiços escuros, e mesmo de alguns caboclos, na classe mais alta, bem como de tipos físicos de europeus, incluídos nos grupos da classe mais baixa. As pessoas de tipos físicos não-europeus que figuram na classe mais alta são bastante numerosas para indicar que as caracterís­ticas raciais não são barreiras intransponíveis à ascen­são social. A posição social e a designação de classe são determinadas por fatôres econômicos e sociais. O tipo físico é ·um diagnóstico importante, mas pouco seguro, da posição social.

Talvez devido à, enorme variedade dos tipos raciais que formam sua sociedade, a gente de Itá parece ter um?, percepção aguda das características físicas. Quando se descreve uma determinada pessoa, é comum dizer-se "aquêle branco" ou "aquêle preto", e assim por diante, da mesma maneira por que diríamos "aquêle sujeito baixo e gordo". A rel~tiva inexistência de pre­conceito ou discriminação racial não quer dizer que as pessoas não se apercebam da aparência física. Pelo contrário, parecem ter muito mais consciência dos me­nores detalhes das características raciais do que nos Estados Unidos.

Onze pessoas da localidade foram solicitadas a classificar, de acôrdo com o tipo físico e nas quatro categorias aceitas em Itá - branco, moreno, caboclo e preto - vinte indivíduos amplamente conhecidos. O bêbado da "localidade, o chefe da dança alegórica do Boi Bumbá que se festeja anualmente, o professor, um trabalhador da Prefeitura, e outros indivíduos, ·conhecidos de todos, foram incluídos na lista. A res­peito de alguns dêsses indivíauos, cujas características físicas eram claramente negras ou européias, a opinião· foi unânime quanto ao tipo físico. Por exemplo, Alfredo

_191

Page 192: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Dias, piloto de uma lancha estacionada em Itá, cujos cabelos, traços fisionômicos e pele escura não permitem qualquer dúvida de que é negro, foi classificado dr3 preto por nove pessoas, embora duas delas achassem que êle deveria ser designado como moreno, apesar de seus traços negróides Também foi quase unânime a opi­nião sôbre aquêles cuja posição social e características eoincidiram em um certo sentido. O filho adotivo da viúva Cesar Andrade foi considerado branco por dez pessoas e moreno por apenas uma. Tem a pele clara e a barba cerrada.

Por outro lado, nem sempre as pessoas concordam quanto à classificação racial de indivíduos cujos traços físicos não são tão definidos, ou que são claramente de descendência racial mestiça, ou cujas características físicas chocam, por assim dizer, com a posição social que se lhes reconhece. Assim, pois, Dona Branquinha foi classificada de branca por cinco pessoas e de morena por seis. O vice-prefeito foi classificado de branco por três pessoas, de caboclo por três e de moreno por cinco. É um homem corpulento cuja ascendência mestiça f. claramente composta das três espécies raciais, mas sua aparência é mais a de um mestiço índio-europeu. Ao classificarem Osvaldo Costa, cinco pessoas em onze relacionaram-no como caboclo, apesar de suas feições acentuadamente européias, que as demais levaram em consideração, classificando-o de branco. "Como pode Osvaldo ser um branco?" exclamou um dos informantes. referindo-se à sua baixa posição social. Inversamente, Dona Dora Cesar Andrade foi classificada de morena por nove pessoas, enquanto duas outras a consideraram branca. Dona Dora era filha de "pai branco e mãe negra", ponderou um dos homens, "mas o dinheiro lhe clareia a pele". E insinuou que, se Dona Dora fôsse de baixa posição social, poderia até ser classificada de

192,

Page 193: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

preta. O conflito entre a aparência racial e a pos1çao social reconhecida lembra-nos uma conhecida expressão brasileira: "Um negro rico é branco e um branco po­bre é negro", e a história contada por Henry Koster, o inglês que percorreu o Brasil no século dezenove. Ao perguntar se não era mulato determinado capitão­mor, seu informante lhe respondeu: "Êle era, mas já não é mais". Quando Koster pediu que lhe explicasse isso, respondeu-lhe o informante: "Então um capitão­mor pode ser mulato?" (13) A posição social pode, em muitos casos, sobrepor-se às características físicas, apa­rentes, na classifica$ão da "raça" dos indivíduos.

Uma série de conceitos e valores culturais estereo­tipados persiste ainda em Itá, exprimindo a posiçiío social de pessoas de diferentes estirpes raciais da socie­dade colonial. A tez clara e as feições finas do europeu, por exemplo, são consideradas belas. Na sociedade cscravagista do passado era mais vantajoso para as crianças herdarem as feições de seus pais europeus do que das escravas; suas mães, índias ou negras. Em Itá as mães gabam freqüentemente "o nariz afilado, a pele clara e o cabelo fino" de seus filhos. E, como acentuou Freyre, o homem português parece ter sido especiaJ­mente atraído pela mulher índia ou mesmo negra; essa atração, segundo êlc, parece ter suas raízes na. idealização da beleza mourisca. (14) Os, homens de Itá consideram a morena, incluindo nessa classificação desde a morena clara até a mulata, o tipo feminino mais atraen'te. Gostam dos "cabelos lisos e compridos da Tapuia" (índia), das feições regulares da européia. e de uma pele escura. As mulheres, por sua vez, prefe­rem os homens mais claros. Nos tempos coloniais era

(13) Traveis in Brazil, 2~ ed. (Londres, 1816), p. 391. (14) The Masters and the Slaves, pp. 11 e segs.

193

Page 194: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mais conveniente para uma índia ou negra ser concubina ou espôsa de um europeu. Emília, uma jovem descen­dente de índios e portuguêses, declarou claramente que não se casaria com um negro "nem mesmo que fôsse perfumado". Gostaria de se casar com um "moreno claro". Entretanto, Marcos Dias, rapaz de vinte anos, filho do negro Alfredo Dias, e que é mulato escuro, foi considerado bonito por muitas mulheres "apesar da sua côr e· do seu cabelo "ruim".

Todavia, a despeito das preferências que externam, as pessoas procuram cônjuges do mesmo tipo físico. Dos 82 casais que conhecemos em Itá, 56 tinham o mesmo tipo físico - isto é, eram ambos brancos ou pretos, etc. Os outros 26 casais em que marido e mu­lher foram classificados em categorias físicas diferentes, eram constituídos por pessoas das categorias que mais se assemelhavam quanto à pigmentação. Eram casa­mentos de um branco com uma morena, de um moreno escuro com uma preta, ou de um preto com uma ca­bocla. Nos casos por nós observados não havia, por exemplo, casamentos entre pretos e brancos.

Êsses casamentos entre pessoas do mesmo tipo físico ou entre pessoas de côr de pele mais ou menos aproximada, não são determinados por qualquer res­trição aos casamentos inter-raciais. Decorrem do fato de que, em Itá, as pessoas 1geralmente preferem casar dentro da mesma .camada social ou a mais próxima possível. Como as pessoas de uma mesma camada social

1 têm geralmente o mesmo tipo físico, o casamento dentro da própria camada social determina uniões entre pes­soas de tipo físico mais ou menos semelhante. Que os casamentos entre pessoas de tipos físicos diferentes não são proibidos, ou mesmo contrariados, foi-nos asseverado por informantes de Itá que se lembram de vários casos

194

Page 195: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de homens brancos que se casaram com mulheres de tipo físico indígena ou negro e de pretos. e caboclos que se casaram com brancas. Em Itá, a pouca segre­gação que existe baseia-se mais na classe social do que na raça, seja ela definida física ou socialmente.

Os conceitos firmados pela gente de Itá sôbre as habilidades inatas das pessoas desta ou daquela cate­goria "racial" também revelam a posição de cada um dêsses grupos na sociedade colonial. Dizem em Itá que o branco é sempre "bom nos negócios" e qualquer branco que chegue à comunidade será automàticamente considerado "intelig~nte e bem educado", evidentemente um hábito remanescente dos tempos em que a maioria dos europeus eram latifundiários aristocratas, senhores de grandes seringais, ou funcionários da Capital. Con­tam os informantes de Itá, com certa ironia, que alguns estranhos que chegaram à localidade, apesar de serem brancos, andavam pobremente vestidos e eram analfa­betos. Ao pedir um favor, a gente de Itá geralmente chama o outro de "Meu branco", têrmo que indica. grande respeito.

Como em outras regiões do Brasil, e como, afrís, em outras regiões do Novo Mundo, as pessoas de paren­tesco misto, negro e caucasóide (o moreno de Itá e o mulato de outras regiões) são consideradas traiçoeiras, irascíveis e diffoeis de serem levadas. Principalmente as de pele mais clara, "que parecem quase brancas", têm fama de possuir "mau gênio", expressão empre­gada para designar uma pessoa irritável, de humor variável, fàcilmente encolerizável, e não para definir seu caráter moral. Ninguém em Itá gostava de um dos médicos da Saúde Pública, mulato escuro, que lá esteve eêrca de três semanas à espera de um navio que o levasse ao seu pôsto. A princípio várias famílias

19á

Page 196: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

convidaram-no a visitá-los e os homens procuravam atraí-lo para uma prosa, em vista de ser êle médico e, portanto, um hóspede de grande prestígio. Entretanto, logo descobriram que êle era brusco e exageradamente agressivo. Criticava tudo em Itá e se queixava de que era uma cidade insípida. Em breve a atitude da gente da cidade se modificou. "Quando um moreno escuro torna-se médico", disse-nos um homem, "fica orgulhoso e procura comportar-se como um branco". Muitas vê­zes as pessoas se esquecem de seus preconceitos sôbre os diversos tipos físicos, mas, quando há motivo para criticar alguém, a êles recorrem para justificar seus sentimentos.

A quantidade e a variedade d~as idéias estereoti­padas que existem em Itá a respeito do preto parecem estar em estranho desacôrdo com o pequeno número de negros que compõem sua população atual. Há uma verdadeira auréola de prestígio em tôrno dos pretos velhos. Foi um grupo de "pretos velhos" que liderou '1 famosa irmandade de São Benedito, o santo mais famoso e milagroso de todo o Baixo Amazonas. Foi a profunda devoção e a habilidade dêsses "pretos ve­lhos" que fizeram da irmandade de São Benedito a grande fôrça que hoje r~presenta em Itá. "Os pretos velhos começaram a morrer e os "brancos" começaram a tomar parte no culto a São Benedito'', eis como pes­soas de todos os grupos raciais explicavam a relativa decadência e desorganização atual da irmandade. Além do mais, dizem que a pequena aldeia de Jocojó foi habitada quase exclusivamente por "pretos velhos", embora a gente que hoje vive lá tenha a mesma apa­rência que o resto da população da comunidade de Itá. Êsse fato explica à gente de Itá porque a festa anual de São Pedro é tão bem comemorada em Jocojó e por­que a irmandade do santo local ainda é tão poderosa.

196

Page 197: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

"Devemos ii:ito à sabedoria e à devoção dos "pretos ve­lhos de Jocoj6" 1 diz o povo.

O preto ·é também conhecido como um grande con. versador e um ótimo contador de histórias. Dizem que os "pretos velhos'' que viviam em Itá na geração pas­sada sabiàm mais hist6rfas do que qualquer outra pessoa e as contavam melhor do que ninguém, havendo mesmo um ditado popular que diz que "se alguém fala muito, é preto". Maria, uma morena clara casada com J uca, é excelente contadora de histórias e, ao saber que· estávamos interessados em ouvir as lendas e os mitos da Amazônia~ as pessoas imediatamente nos envia­ram a ela. "Conta tantas histórias que quase chega a ser uma preta", disseram-nos. Outras pessoas que nos contaram hist6rias, freqüentemente diziam tê-las ouvido de um "preto velho" que morrera há muito tempo. E como exemplo do negro contador de histó­r.ias, apontavam Roque, um preto retinto que narrava cóm muita clareza suas experiências do tempo em que era s~ringueiro nos trechos mais distantes dos afluentes do Amazonas e que, na realidade, contava hist6rias admiràvelmente. As pessoas desculpavam a exatidão meio quvi<Josa das hist6rias de Roque, dizendo que êle era um "preto que gostava de falar".

Em Itá o negro é conhecidó, ainda, como especial­mente espiritúoso e astuto. E o homem negro é famoso por sua gránéle potênéia sexual. Possui grandes órgãos genitais, razão por que dizem ser êle muito apreciado pelas mulheres de todos os grupos raciais. Uma série de histórias pornográficas contadas entt:e os homens de. Itá salientam tôdas essas qualidades do negro. Em várias delas o negro ·mantém uma aventura sexual com uma mu1hyr branca1 a mulher de seu amo - ou do seu patrão se a história se referfr à época atual. ,As h.is-

.197

13

Page 198: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tórias giram em tôrno da fiabilidade eom que o negro engana seu amo, que suspeita da ii:ventura mas é incapaz de surpreender o par. Os homens contam as proezas sexuais dos pretos que conhecem e sua extraor­dinária capacidade sexual. A mulher negra e a mo­rena escura também são tidas como possuidoras de maior desejo sexual do que a cabocla ou a branca. Mas n astúcia do negro não se limita às situações relativas às suas proezas sexuais. Contam-se histórias de como um preto logrou seu amo que pretendia castigá-lo por não trabalhar, e como outro resolveu a questão com um dono de armazem que lhe cobrou em excesso as mercadorias que adquiriu.

~sses conceitos estereotipados de que o negro é um bom contador de histórias e de que é dotado de extraor­dinária potência sexual assemelham-se, na.realidade, aos preconceitos que existem na América do Norte a res­peito do negro. Também, no sul dos Estados Unidos, contam-se numerosas piadas sôbre os negros, muitas vê­zes pornográficas. (15) Sem dúvida a semelhança dêsses conceitos estabelecidos decorre da tradição da escravatura negra, comum ao sul da América do Norte e ao norte do Brasil. Mas aí termina a semelhança. A figura do "preto velho", bom contador de histórias não é absolutamente a do "Tio Remus" que suavemente repete os contos populares para um auditório mais jovem. Em Itá a figura que se evoca é a do pitoresco "raconteur" de histórias de todos os gêneros, tanto as de salão como aquelas destinadas exclusivamente aos ouvidos masculinos, nas rodas de bares.

O conceito firmado sôbre a capacidade sexual do homem negro pode bem ser resultante da inveja dos

(15) Gunnar Myrdal, An American Dilema (New York, 19{4), p. 39.

198

Page 199: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

outros homens de Itá, como parece sê-lo no sul dos Es­tados Unidos. Mas, como acentua Gunnar Myrdal, no sul da América do Norte, não serve "como parte das medidas de contrôle social destinadas a auxiliar a prevenção das relações sexuais entre homens negros e mulheres brancas". (16) É exatamente essa situação que constitui o enrêdo de muitas histórias "escabrosas" e tanto os casamentos legítimos como as ligações extra­conjugais entre homens negros e mulheres claras são ocorrências comuns em Itá. E essas histórias que se eontam sôbre o negro nem ao menos servem para "pro­var (sua) inferioridade"; (17) pelo contrário, têm por fim provar sua qualidade superior, isto é, sua astúcia. Em Itá não são histórias narradas por uma casta. branca sôbre uma casta inferior: são histórias contadas por gente de todos os matizes raciais sôbre seus conter­râneos. Em Itá os conceitos firmados sôbre o negro apresentam-no sob um aspecto favorável. Sem dú­vida revelam a inferioridade do negro diante do branco, mas atribuem-lhe muitas qualidades que são altamente apreciadas pela sociedade de Itá.

Ao mesmo tempo, a gente de Itá menoscaba o ne­gro, mas de certa forma cordial e humorística. Conhe­cem e usam brasileirismos amplamente difundidos que menoscabam e depreciam o negro como, "se o negro não suja quando entra, suja quando sai". ( 18) Ma.;; essas expressões podem igualmente ser empregadas pelos pretos a respeito de si próprios e por qualquer pessoa, num tom de brincadeira, para arreliar algum amigo íntimo de · evidente ascendência negra. J uca, por exemplo, cuja mãe era uma conhecida "preta velha",

(16) Ibid., p. 108. (17) Ibid., p. 39. (18) Cf. Wagley, op. cit., e Donald Pierson, Negroes in

Brazil. A Study of Race Contact in Bahia (Chicago, 1942).

199

Page 200: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

muitas v~zes atribui seus maus hábitos à sua ascen­dência negra. "Falo demais porque sou preto", disse, fazendo rir os que o visitavam. "Eu acabaria com .essa 'faça" (os negros), enxertou certa vez nu~a peça popular em que desempenhava um papel importante, "mas o diabo é que eu também sou da mesma quali­dade". .As queixas de Juca contra sua ascendência negra sempre fizeram rir, pois todos sabiam· o orgulho tj_ue tinha de !!Ua mãe. .Ao que sabemos, nin~uém em· Itá se' envergonha de descender de negros e em sua tradi'Ç~ é _grande o prestígio dos "pre_tos -velhos" ..

·os conceitos do povo de Itá sôbre o tapitia ou ca­boclq (tipo físico do ameríndio).,· por outro lado, não s~o . üió" favoráveis g:Üa.nt~ os' do ne~o. o caboclo . é pi:q.tado como bom caça<!or e pescador. Tem uma sen­l?ibiljdade Jôda especial par1.1 pi; }1ábjtq~ ·d9~ animais t'

sabe quase por instinto onde e como caçar ou pescar. Ninguém tem lE)Jllbrança de um caçador que não fôsse um ".caboclo com apenas três fioE? dg cabelo no queixo". Enéas Ramos, quandQ .m.oço, era co-p.heci.do como exce­Jente caçador. Nasceu e foi criado na zona rural perto .de· Itá ónde ced11 aprendeu a caçar, mas o povo atribui su~ habii'ídade ao fato de "ser ·êle tapuia;'. Êsses C',oil.ceitos são bastante inofensivos, pois a habilidade _para caçar é uma coisa útil e admirada em Itá. E'ntre.­ta:r;ito os têrmos caboclo e tapitia são empregados em tom depreciativo; as pessoas .não os empregam quando fl?~ ;diti~em; dii:et_amen.t: a , indivíduos de c1.1racterís~icas .f1s1cas md1genas. '1 N'ao e uma palavra dura", disse­nos Enéas Ramos, que era apontado como um represen­tântê· típico dessºe tipo - físico,-~ ""mas deixa a gente triste".

O t&rmo, como foi dito antes, tem duplo sentido - um que significa baixa posição social e outro que

200

Page 201: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

signifíca características físfoas do ameríndio. Além disso, muitos dos conceitos a respeito do caboclo ou tapuia são depreciativos. O caboclo é considerado preguiçoso: "Não plantam roças, vivem d~ venda ele um pouco de borrach11 e pescando para comer". Diz-se que o caboclo é tímido . porque vive isolado na floresta. "Preferem viver como animais, longe dos outros, no fundo das florestas", disse certo homem. Entretanto o caboclo é considerado manhoso e extremamente des­confiado. Diz o ditado popular que "o caboclo des­confiado arma a sua rêde mas dorme embaixo dela". Os comerciantes dizem que o caboclo precisa ser vigiado em qualquer transação; será muito capaz de introdl1Zir uma pedra no centro de uma ·grande bola de borracha crua para lhe aumentar o pêso ao vendê-la ao nego­ciante. Venderá timborana ao incauto comerciantf> que pensará estar adquirindo tirnbó, raíz com que se fabricam os inseticidas, e com a qual se assemelha, ii.pesar de não ter· o menor· valor. );:sses conceitos sôbri' o caboclo não se limitam às ·pessoas do tipo físieo em questão (ameríndio) ; estendem-se freqüentemente ·a todos os seringueíros da zona rural. Como muitos observam, os seringueiros rurais, em sua grande maioria, são tàpuias · Õu ··caboclos do ponto- de vista físico, mas; mesmo aos inorãdorés da. cid'!l.dé que· pe~tenqem a êssH tipo fisieo1 atribuem-se·. as qli_alida~es d.e timide~, pl'e­gui~a, -·habilidade para a caça e a pesca e a ardileza do caboclo. · · ·

As p,essoàs descendentes do amei:índio, ao contrário dos negros, não gostam que se mencione sua ascen­dência indígena. Era com.um ver-se crianças que brín­cavam defronte das casas de Há bulirem com alguma mulher de tipo· físico de cabocla. Chamavam-na tapuia e índia e ~la então respondfa, "Sumam-se daqui, seus pais também são índfos". Na sociedade -amazônica· o

201

Page 202: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

índio, muito mais freqüentemente do que o negro, era o escravo da sociedade colonial. Segundo os europeus, o índio era um selvagem nu, inferior ao escravo afri­cano, mais dispendioso. Hoje em dia, as características físicas de índios são, portanto, um símbolo não só de descendência escrava como também de origem social mais baixa, nos tempos coloniais, do que a do negro.

VI

O sistema de relações de raça que se formou em Itá fornece uma base relativamente favorável e pro­pícia ao desenvolvimento de uma democracia social e econom1ca. Ao contrário do qne acontece em muitas áreas coloniais do mundo, não existe, -quer em Itá, quer em qualquer outra comunidade brasileira uma "sepa­ração de côr" que suscite entre os nativos (.geralmente de raça mongolóide ou negróide) sentimentos profundos l' violentos contra a casta européia dominante. 'A so­ciedade brasileira evitou a formação de uma "sociedade de castas", como a dos Estados Unidos, onde a rigorosa separaç'ão entre negros e brancos tem sacrificado tão duramente, tanto a nação quanto os indivíduos. Se al­gum dia melhorar o padrão de vida de Itá, bem como seu nível de educação, a gente de côr, que agora ocupa as posições mais baixas da sociedade, poderá melhorar sua posição econômica e social, apesar de suas orig·ens raciais. Tanto a gente de côr, como tôdas as demais pessoas de Itá poderão elevar sua posição social, desde que melhorem o nível de educação, suas ocupações, sua situação econômica e as relações de família.

A transformação econômicia e social, entretanto, poderá ameaçar a permanência dessa tradição brasileira de democracia racial. Nas grandes metrópoles do país,

Page 203: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

já há indícios de discriminação, tensões e preconceitos entre as pessoas dos diversos tipos raciais. (19) Há, portanto, o perigo de que, ao melhorar sua posição eco­nômica ·e sua educação, a grande proporção de gente das raças negra e indígena ameace a posição dominante dos "brancos" (muito embora êstes também sejam mes­tiços) e transforme o fator raça em critério de posição social. Além do mais, à medida que comunidades ru­rais brasileiras, como a de Itá, forem estreitando suas relações com o mundo comercial e industrial do oci­dente, sofrerão o impacto de uma nova ideologia sôbre as relações de raça. Afinal de contas, os técnicos, os administradores, e mesmo os cientistas, não são mais do que o produto de uma civilização que, durante os últimos quatrocentos anos, tem pregado a desigualdade das raças. É bem possível que, juntamente com suas técnicas, seus instrumentos e seus conceitos habituais, inculquem também a desigualdade das raças. Mas, uma vez advertidas dêsses perigos e dfSSas ciladas, Itá e as demais_ COil!_U_nidad!lS. _b~ilf)i~as_1 _poderão usufruir os benefícios da transformação têénicã-e de maiores faci­lidades educacionais sem perder sua rica herança de democracia racial.

A estrutura das classes sociais da região amazô­nica brasileira é, entretanto, um obstáculo que precisa ser superado por qualquer programa destinado a pro­mover a transformação social e econômica. A alta sociedade, isto é, os descendentes dos proprietários d~ terras e dos· barões da borracha dos tempos coloniais e de prósperos comerciantes, estão satisfeitos com a situação presente. Desconfiam de todo e qualquer prog-ramà que possa determinar transformações básicas

(19) Race Relations tn Bra.zil: São Paulo, por Roger Bastide, e Race Relations in B1·azil, Rio de Janeiro, por L. A. Costa Pinto, Oourier, Unesco, Paris, Vol. 5, Nos. 8-9, 1952.

203

Page 204: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

1 . - ' • -- - . na sóéiedáde ·amazônica. Conseguiràm juntar, por meio de suas .indústrias extrativas, uma boa fortuna que lhes permite viver em Belém, Manaus e mesmo nó estran­geiro. Puderam enviar seus filhos a outros centros para serem educados. Qualquer programa de desen­volvimento econômico e de assistência técnica interfe­riria, inevitàvelmente, com êsses "aristocratas" e com a cre_scente classj! média da região amazônica, que é constituída pelos grupos profissionais, pelas autori­dades e funcionários públicos, comerciários, etc. Em Itá, qualquer programa sanitário ou agrícola teria _que ser estabel~cido através da primeir_a classe, pois é ela constituída pelas autoridades governamentais e os dirigentes comerciais da ~omunidade. Qualquer inicia­tiva que dependa totalmente, quer dessa "classe média", quer dos aristocratas regionais, pou,co efeito terá sôbre a região. A classe mais alta de Itá e a classe médi<! regional cons~rvam muitos. dos valore_s sociais da .antJgn ari~tocracia rural,. Os ,brasileiros das _classes mais altas dªs cigades fazem pouco caso da gep.te das pequenas ei9-ad.eª e pouco conhecem_ do chamado "interior". o ideal de todo funcionário do govêrno federal o.u .~ta­qual lotaçlo no ." in.t~rior" é .ser transferido pj:lra a êi(l.aàe. r Como ª· cíasse média e a classe ma!13 alta dflS ciãaães, ?. primeira classe· de Itá despreza o trabálho braçal. De~cophecem os. proble~as· e Ó13 valores de séus c9nte:r:râ.n~os da -ciâ.i;se mai.s baixa _...:. -a segµnéla .classe d_aey pequenas cidad<;is, o.s lavradores e. seringueiros que vivem dos :produtos da floresta nas zonas rurais. · ·O abisrµo entre ~ camada mais alta_ e a mais baixa na sociedad"e amazônica é imenso. .As inovaçoes introdu­zidas por intermédio dêsses grupos da classe mais alta e da classe média em geral não levam em conta a massa que compõe a camada mais baixa da sociedade ama­zônica.

-204

Page 205: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

__ .A posição. social ~m tôdas as sociedades. humanas baseia-se numa combinação de patrimônio hereditário e realizações pessoais. Apesar das diversas transforma­ções que se processaram desde os tempos coloniais, a sociedade amazônica ainda empresta grande importância aos direitos here.ditários e há poucas oportunidades para as conquistas pessoais. O sistema de classes, grandemente cristalizado, que perdura desde o período colonial, está-se modificando com extrema lentidão. Mas, à medida que se oferecerem maiores facilidades educacionais e sanitárias e maiores oportunidades eco­nômicas .a um número <maior da população, a importância. da posição social conferida pelo-nascimento dará lugar àquela adquiriiia pelo esfôrço pessoal. Isto provocará uma reorganização- da hierarquia social da Amazônia ·e determinará. desajustamentos e desilusões pessoais.. É o ·preço que a gente de Itá terá que pagar pelo "pró­gresso". Mas a modificação do. tradicional -sistema d.e c]JI~s_es:;;n.er.mllli:~i:=tambéni. a majoi:- .utilizaçãg~ do.s:. récur-sõs"-humanos do Vale Amazôiiiêõ.-· - - •· - -- ··

Page 206: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

... b. OS ASSUNTOS DE

FAMÍLIA EM,,UMA COMUNIDADE AMAZÔNICA.

A família numerosa, estreitamente unida, é uma das mais importantes instituições da sociedade brasi­leira. Quando um brasileiro diz, minha família, refe­re-se, geralmente, a um grande grupo constituído, não só por seus próprios parentes, como também pelos de sua mulher. Em geral, à unidade menor, chama de

206

Page 207: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

"minha mulher e filhos", reservando a palavra "fa­mília" para o círculo mais amplo dos parentes. A :família compreende, geralmente, os primos em primeiro, segundo e até terceiro grau. Os primos em primeiro grau são também chamados "primos-irmãos", enquanto os de segundo e terceiro grau são simplesmente "pri­mos". O têrmo "tio" e "tia" também pode ser empre­gado em relação aos primos dos pais. A família de um brasileiro da classe média das cidades chega às vêzes a se compor de mais de cem parentes e, no meio da aristocracia tradicional, há pessoas que podem contar, literalmente, centenas de parentes. Nesses grandes círculos de .família, a intimidade é maior entre os pa­rentes mais chegados. O círculo mais íntimo de tias, tios e "primos-irmãos" é, em geral, o que mantém relações mais freqüentes e afetuosas. Para muitos bra­sileiros a vida social desenrola-se, principalmente, na. intimidade dessa extensa família. Nas festas de ani­versários, batizados, formaturas, enterros e em outras ocasiões, a família sempre se reune e em certas ceri­mônias de casamento congrega-se todo um novo círculo de relações. No Rio de Janeiro, em São Paulo e mesmo nas cidades amazônicas de Belém e Manaus, a pre­mência de espaço faz com que grandes grupos familiares se dispersem por tôda a cidade, mas as visitas fre­qüentes, os telefonemas e as constantes reuniões de família maritêm intacto o grupo. (1) Em qualquer eme~gência na vida de um membro da família todos os demais -se reunem para oferecer seu auxílio e soli­dariedade.

Gilberto Freyre descreveu o papel das grandes fa­mílias patriarcais na vida colonial da região costeira

(1) No Rio de Janeiro há uma tendência entre parentes para comprarem apartamentos no mesmo edifício.

207

Page 208: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

do noraP.ste dó B;âsil. Na sociedade rural dos tempos coloniais, o aristocrata morava em sua fazenda, cercado dos filhos e filhas casados e dos netos, de alguns pa­rentes distantes, que dêle· dependiam, e de seu:s escravos - todos, por assim dizer, membros da família. Os ca­samentos constituíam alianças entre as grandes .famílias, sendo freqüentes os matrimônios entre primos-irmãos ou entre tios e sobrinhos. (2) Tentava-se, muitas Yêzcs, orientar um dos filhos mais jovens para o sacerdócio a fim de que a capela patrimonial ficasse sob a jurisdição espiritual de .um padre da família. As questões políticas .eram subordinadas às injunções familiares. Era a família ·tão importante na sociedade que, como diz Gilberto Freyre: "É a família e não o ilrdivíduo e muito menos o Estado ou qualquer compa­p.hia comercial .que, .desde o século dezesseis; tem sido o ~rande fator· da co~onização no Brasil; sua unidade produtiva, o capital que. desbravou as terras, fundou as fazendas, comprou os escravos, o gado e os imple­!Ilentos; e, na política, foi .ela a fôrça social que se firmou como a aristocracia .mais poderosa das .Américas. S.ôb:re_ a. mesma. ·pode-se .. dizer. que ·o· rei· de Portugal r.einou, pràticamente, sém dominar". (3) · · ~ Na região amazônica as famílias não eram tão ricas 9u pod.erosas como os grandes grupos patriarcais do nordeste. colonial ; contudo, tinham .g:cande importância na política, na economia e na vida social da região. Ainda hoje a maioria das companhias comerciais per­tence a grupos de parentes e, na política, as relações de. família exercem grande influência. Depois de cada eleição fica a burocracia abarrotada de parentes dos novos eleitos. A família é o centro da vida sq,cial. Quem ·vai a Belém ou a Manaus pode achar sua gentE!

(2) The Master and the Slaves, p. 261. (3) Ibid., p. 27.

Page 209: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

pouco hospitaleira pelo fato de quase todos os acon­tecimentos sociais ocorrerem dentro do círculo familiar. Entretanto, uma ve21 que o visitante fôr aceito pela fa­mília, su~ vid~ SO!!ial poderá tornar-se muito intensa. Apre$entado por um amigo, a seus parentes, êstes, por sua vez, o apresentarão a outros. Talvez, mesmo, re­ceba cartas de apresentação a outros membros da fa­mília re..,identes em outras cidades.

II

Pessoas de tôdas as classes sociais de Itá compar­.tiÍham o· ideal brasileiro de um grande e unido grupo 1'aniiliar. .Referem-se às familias ilustres e têm cons­ciência do valor d~s relações de família. Em Itâ, éntretanto, estas não são tão numerosas eÔmo as da classe média das cidades e da aristocracia da região. A migração constante, parà · Belém, para os seringais di'stantes e para outras regiões do Brasil determinam a perd'a· de contacto· com os· parentes. !Jm vista de suas ~lhores condições econômicas, as familias aas classes

talta . 'êlilt" "ds-êiâãdéS'~brasilêiras -emigram - menos, do que as, ;iã8c6muiiifü1_des'·rurâis-. -sempi'e:quee· põs-~ s}vel,--os fírasd~1rõspermanecem perto de suas .famílias. Em 'Itá, porem, salvo uma ou'. Q.ua$ exceções, todos .possuem rendas relativamente precárias e, de um mo­mento para: outro, podem senti:.: a necessidade de pre­cisar partir em busca de condiÇões mais favoráveis e está.veis. Não ·possuindo for.tu.na ou propriedades, nem mesmo estabilida!le econômica, O$ parentes pouco ou nenhum auxílio -podem oferece.r. As grandes fami-

~ lias brasileiras, por conseguinte, são mais Wií'as em co­mun'Tãad'es ~onio. ~ ~e ltá.

~09

Page 210: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Nessas localidades rodos têm parentes em outras cidades. Até mesmo Manuel Serra Freire, descendente de uma das "melhores famílias" de Itá, é o único de quatro irmãos que ainda lá reside. Em 1948 recém. voltara à sua cidade natal. Um de seus irmãos é funcionário civil do exército brasileiro, outro tem colo­cação no Rio de Janeiro e o terceiro "nunca se esta­beleceu em lugar algum; trabalhou para companhias comerciais em vários lugares até sua morte, em Belém'', há alguns anos atrás. Serra Freire mora com a mãe e a irmã em Itá, tendo um tio (cunhado de sua mãe) e um primo-irmão a pouca distância da cidade onde são proprietários de uma casa comercial. Atualmente são êles seus únicos parentes na comunidade; a maior parte de sua família reside em Belém e em outras ci­dades. Na época de seu pai, quando Itá era mais próspera, a família desfrutou de importância política e era .extremamente numerosa, a julgar pela árvore genealógica que nos exibiu.

Enéas Ramos, que pertence à Gente de Segunda da cidade, conta também com grande número de parentes que há muito tempo se transferiram de Itá. Sua fa­mília era bastante numerosa: cinco irmãos e duas irmãs. Quando tinha êle cêrca de dez anos, mudaram-se para Monte AlegTe onde se fixaram por algum tempo. Dois de seus irmãos lá ficaram com um tiQ e uma tia quando a família voltou para sua lavoura no Igarapé Itapereira, próximo de Há. Possui ainda família em Monte Ale­gre, diz êle. Um outro irmão partiu pouco depois para se dedicar à extração da borracha nos seringais do Alto .Amazonas, não mais regressando. Seu irmão mais velho casou tarde e não deixou filhos. Enéas, porém, tem vários "sobrinhos e sobrinhas", filhos de uma de suas irmãs. .Através de Anastácio Ramos, seu primo e o melhor flautista da região, Enéas tem ainda muitos

210

Page 211: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

outros parentes. De suas cinco filhas e um filho, duas casaram-se e moram em Itá, as outras mudaram-se para Belém, Santarém e Rio Tapajós com seus maridos; seu único filho deixou Itá há muitos anos e quase nunca lhe escreve. Entretanto, Enéas considera-se um. homem feliz; possui, diz êle, uma "grande família". Conse­guiu contar vinte e cinco parentes na comunidade de Jtá, entre próximos e afastados. Em comparação, po­rém, com os grandes grupos de família das c1as"ses" alta é-média de Belém, sua família é pequena.

Na zona agrícola da comunidade de_Itá, entretanto, o círcul.Q._de_~ l.amITí~. º .JJmífowi maior- do que entre os- habitantes da área urbana. A renda proveniente da lavoura é ínfima -ná Ãmazônia, se bem que estn. constitua ainda uma ocupação relativamente estável. As roças garantem às pessoas, pelo menos, o mínimo necessário à subsistência e, portanto, os que as pos­suem dependem de dinheiro para a obtenção de ali­mentos, em menor escala do que os 1moradores da cidade ou os seringueiros. A necessidadE) de emig_r.ai: é. _po.r­tanto menor entre os _lavradores_ ~ ê&.tes. p_ossuem. gran­des famílias - mais de acôrdo com o ideal brasileirC' do que -as "aos habitantes pobres da cidade.

Na aldeia agrícola de Jocojó, as árvores genealó­gicas indicam que o parentesco formou uma complep:a teia de relações entre seus habitantes. Valentino, um dos líderes da aldeia, tinha como vizinhos suas quatro irmãs casadas, com seus maridos e filhos. Além disso sua mulher era sobrinha de João Povo, personagem mais importante do povoado. Era, portanto, ligado ao grande grupo de parentes do povo. Também se aliara, pelo casamento, a Teodosio, outro chefe de uma grande família do povoado. Numa população total de pouco mais de cem pessoas, êsse único homem, Val~ntino, estava ligado por laços de família a bem mais da me-

~11

Page 212: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ta de do grupo. João Povo podia também reivindicar. parentesco com mais de oitenta roceiros por descen­dência direta, ou por afinidade.

Os seringueiros da Amazônia, conforme dissemos, são conhecidos por seus hábitos nômades. Mudam-sé :freqüentemente, na esperança de escapar àos seus cre~ dores e de encontrar estradas de borracha em que as eondiÇões sejam melhores do que aquelas em que traba­lham. O seringu"eiro, por conseguinte, freqüentemente deixa seus parent~s, o que faz com que nas zonas de ex­~i..d.'L..hnrras:ha da comunidade de Itá'"ãS!íí:iíí1tias­~inda. menores dÕ(jUe ·as -Oaêídadt:ru,- casos em que o pai vive e trabalha com os filhos e há outrps ~m que dois ou mais irmãos ~pioram um grupo de r."S.tradas de borracha contíguas; mas, em geral, o serin­gueiro conta com poucos ou nenhum parente,, Sob êstc ponto de vista não é um brasileiro típico. Por ser ume. atividade de pouca estabili~ade econômica, a ex­tra_ção da borracha não proporciona base sólida para .uma grande família. Em Itã; sõmente entre os lavra­dores, que gozam de maior estabilidade, podem as pes­'l'lQas estabelecer, com segurança, amplos lai;os de família.

Todavia, mais em harmo~ia com os ideais brasi1e1-ro13i os parentes em Itá são tão unidos quanto no .resto do país. Nai; rela.ções- sociais normais, tem-se lá a .impressão de se estar movendo dentro de pequenos .Gírci;ilos de família. Logo depois de lá, ~hegarmo.s, em J 948, pqr . exemplo, torn~mo-nos- bons amigos dp Ia ... '-':t:ador Jorge Porto, Ao. preGisarmos de uma pesi;ma J?ara fazer a limpeza da casa, êle nos recomendou um primo seu. J.\{aii:; tarde apresentou"nos a seu cunhado, João. Dias.. Tornou-se uma de nossas mais. i:;eguras fontes de !nformação sôbre-té5:.Jiicas agrícolas e proble­.mas do pequ~no lavrador de J tá. Sl!a sogra, mãe de

. - ------ ----. ·212 .. -

Page 213: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

João Dias, recebeu-nos em casa um dia, e conosco man­teve longa conversa sôbre o folclore local.

Quando precisávamos viajar pelas redondezas, um meio irmão de João Dias estava sempre pronto a nos arranjar Üma canoa e remâdores, se necessário. Tanto Jorge' Porto como João Dias tinham, nas vizinhanças rurais, alguns parentes afastados (um "primo", uma "tia", ou um "tio") que sempre nos recebiam com a máxima cordialidade. 'rambém na aldeia de J ocojó, João Povo pediu à sua fãmília que nos acolhesse bem, de sorte que a maioria dos moradores da aldeia nos abriam as portas. Além disso, Enéas Ramos nos disse que poderíamos sempre apelitr para sua família. Em

IItá, como no resto do Brasil,)o parenJ.ffil:.CLCOnstitui um fator importante - pãra - cf-esfa1ieTeéimento de relações pessoais.

III

Como acontece na maior parte do mundo latino, a gente de Itá estende suas relações, além do círculo de família, por meio do compadresco. ( 4) E como, para os padrões brasileiros, o círculo familiar da gente de Itá não é grande, talvez ela se utilize dessas relações mais freqüentemente do que os moradores das grandes cidades. É como se buscassem assim uma compensação para o número relativamente pequeno de parentes que possuem. O povo ele Itá é católico, como a maioria dos latinos. De acôrdo com o ritual da igreja católica, os pais de uma criança convidam um homem e uma mulher para padrinhos de batismo de seu filho, advindo daí um forte laço de amizade, não só entre o afilhado

(4) Compadresco (adjetivo) e compadrio (substantivo) são têrmos empregados na constelação das relações entre pais e afilhados.

213

14

Page 214: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

e os padrinhos, como também entre os padrinhos e os pais da criança, que se tornam compadres (pai e pa­drinho) e comadres (mãe e madrinha). E'ssa tripla relação - entre padrinhos e afilhados, entre pais e filhos e entre pais e padrinhos - é extremamente im­portante na maioria dos países da América Latina e nos países latinos da Europa. Os padrinhos assumem a responsabilidade pelo bem estar material e espiritual da criança. E estas devem respeito aos padrinhos -"ainda mais do que a seus pais", como nos explicou um morador de Itá. Os pais e seus compadres e co­madres devem manter uma relação de respeito e auxílio mútuos e de íntima amizade. Ajudam-se reciproca­mente, dando um ao outro confôrto financeiro e moral. As relações sexuais entre comadre e compadre são con­sideradas incestuosas; indivíduos dos dois sexos, assim relacionados, podem manter relações de amizade, mas sem qualquer suspeita de má conduta sexual. Na re­gião amazônica é comum ouvir-se dois homens se cum­primentarem com a saudação: "Como vai, compadre~" bem como um homem referir-se respeitosamente à "Minha comadre, Maria". As crianças beijam as mãos de seus padrinhos, para lhes pedir a benção, ao que a madrinha ou o padrinho respondem, "Deus te aben­çoe, meu filho".

Nos grupos da classe alta e média das grandes eidades brasileiras as relações de compadresco servem geralmente para ampliar o círculo, já bastante extenso, de parentesco ou para reforçar os laços de algum já existente. Por exemplo, o diretor de uma companhia convida um sócio, de quem é amigo, e sua senhora para padrinhos de seu filho ; ou poderá convidar algum primo e sua mulher, rico ou politicamente influente. No primeiro caso forma novos vínculos, tanto para si como para o filho e, no último, fortalece os laços que

214

Page 215: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

os unem ao primo. No Brasil tem-se ainda o hábito de convidar um padrinho para a crisma; ( 5) c nos casamentos, tanto a noiva quanto o noivo convidam um casal para "padrinho e madrinha de casamento". Assim, no curso de sua vida, uma criança brasileira pode adquirir padrinhos no batismo, na crisma e ao se casar. O rapaz ou a moça compartilham, de certo modo, os padrinhos do outro cônjuge. De acôrdo com êsse ritual do casamento, uma pessoa ao contrair núp­cias pode esperar relacionar-se com, pelo menos, outras sete. Além disso, um mesmo adulto pode ser convi­dado várias vêzes para padrinho de batismo, crisma ou casamento, aumentando, assim, o número de relações de parentesco.

A fôrça dessas relações de compadresco, acrescidas às de família, manifesta-se grandemente na vida social, econômica e política do Brasil. Os compadres geral-

' mente prestam favores políticos. e econômicos, uns aos outros e aos seus afilhados. É comum o têrmo "afi­lhado polítieo" para designar alguém que tenha a pro­teção de alguma figura influente na política. ·urna manobra política muito mais duradoura do que dis­pensar agrados e festas às crianças é a de assumir a função de padrinho de batismo. Um velho e experiente político da região amazônica, por exemplo, guardava em um caderno de notas os endereços e datas de ani­versário de seus trezentos ou quatrocentos afilhados. Estavam êles estrategicamente espalhados por todo o Estado, e tanto êsses afilhados como seus compadres. eram eleitores certos e cabos eleitorais com que contava. (6) Em comunidades como a de Itá, em que é tão

(5) Um menino ganha um padrinho e uma menina uma madrinha.

(6) Nas zonas rurais do norte do Brasil, as relações de compadrio não "são despidas de importância e reduzidas a

21~

Page 216: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

generalizada a instabilidade econômica, o sistema de <:ompadrio parece ter proliferado. I1á, como em tôda a região amazônica, além dos compadres (7) de ba, tismo, há os "compadres de fogueira". Tanto no dia de São João como no de São Pedro, em fins de junho, costumam-se acender grandes fogueiras, por todo o Brasil, em tôrno das quais se celebram as festividades. Soltam-se balões, queimam-se fogos de artifício, assam-se 1.Jatatas e cantam-se toadas especialmente compostas para a ocasrno. Na Amazônia, enquanto a fogueira vai-se tram;formando em cinza, podem-se acumular novos pa­drinhos, afilhados e compadres, segundo o caso. Um homem convida um bom amigo, que tenha meios de ajudá-lo, para seu compadre. Um rapazinho convida um adulto para seu padrinho ou, no caso de uma jovem, uma madrinha. Essa relação é estabelecida por um ritual muito simples. Os dois, cada um de um lado du. fogueira, passam três vêzes por cima do fogo com as mãos dadas e fazem juntos um juramento. Êste, do qual há várias versões, é o seguinte:

"São João disse, São Pedro confirmou,

uma simples fórmula de saudação", como acontece nas re­giões central e meridional do país, segundo Antonio Candi­do (cf. The Brazilian Family, em Brazil: Portrait of Half a Oontinent, T. Lynn Smith and Alexander Marchant, eds. (N. York. 1951, p. 308). Segundo minhas observações pessoais, mesmo nos grandes centros urba.nos como o do Rio de Jal}eiro, as relações de compadrio são, talvez, menos sólidas, e foram certamente modificadas pelas condições industriais das ci­dades, mas ainda têm grande valor e utilidade na socie­dade brasileira. Um padrinho já não é mais um "segundo pai", mas ainda fará favores, se assim desejar, a seu afi­lhado, mesmo nas grandes cidades e centros urbanos.

(7) O termo compadre é aqui empregado para designar genericamente tôdas as relações do sistema, isto é, compadre, comadre, madrinha, padrinho e afilhada.

216

Page 217: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Que nosso Senhor Jesus .Cristo mandou A gente ser compadre Nesta vida e na outra também".

Essas relações feitas "sôbre a fogueira" não criam tantos compromissos como as do batismo. Certas pes­soas, apanhadas de surprêsa, aceitam o convite por mera educação. Posteriormente, não reconhecem essa relação. No dia de São Pedro do ano de 1948, por exemplo, um jovem casado foi convidado para padrinho por três mocinhas. Aceitou, explicando que seria grosseria recusar. Mais tarde tratava o caso como brincadeira, ora sauµando-as com o nome de "minha afilhada" ora chamando-as normalmente pelo nome de batismo. Outros, entretanto, encaram essas relações com maior seriedade, podendo ser compadres de fogueira tão íntimos e permanentes quanto os de batismo. João Povo, por exemplo, convidou um homem de Itá para seu compadre, várias semanas antes da véspera ·de São João. Combinaram os dois comemorar juntos a ·festa e, durante a noite, realizaram o ritual da fogueira. Em seguida tratavam-se com o mesmo respeito, a mesma cordialidade e sentiam-se obrigados ao mesmo auxílio mútuo, como se tivessem batizado os filhos um do outro. Essa faculdade de ampliar os laços de parentesco nos dias das festas juninas aumenta, consideràvelmente, o número de pessoas que compõem o círculo de compadrio do indivíduó. Muita gente, em Itá, disso se prevalece para alargar seu círculo de relações pessoais se­guras. (8)

A solidez e o grau de intimidade das relações de compadrio estão condicionados a vários fatôres - à

(8) Ãs vêzes, as pessoas "confirmam" seu parentesco ou uma relação jâ existente de compadrio "sôbre a fogueira".

217

Page 218: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

constância da convivência freqüente entre os indivíduos em questão, à conveniência ou não da continuação dessas relações, do ponto de vista material ou social e aos sen­timentos pessoais dos interessados. Em vários casos que observamos em Itá, as pessoas haviam perdido o contato com seus padrinhos ou compadres. Ouvíamos freqüentemente contar que o padrinho de batismo de uma criança se mudara para outra cidade e nunca mais lhe escrevera ou o visitara. Em outros casos, entretanto, em que havia razão para manter essas relações (se o padrinho era um comerciante ou um político, por exem­plo, a quem fôsse conveniente um grande número de relações em tôda a região), o padrinho não se esquecera do afilhado ou de seu compadre. Vários amigos nossos de Itá 1_1arraram casos de padrinhos ou compadres seus que se haviam mudado para outras pequenas cidades ou para Belém e que sempre lhes mandavam presentes de aniversário. Tôda a vez que êsses compadres pas­sam por Itá, visitam os afilhados e seus pais. As rela­ções de compadrio entre as pessoas da comunidade são, entretanto, estreitas e íntimas; entre amigos, primos, entre um comerciante e seu freguês, ou entre vizinhos, tais relações são, geralmente, calorosas, estáveis e de respeito mútuo. Se moram perto, os afilhados visitam diàriamente seus padrinhos, para lhes pedir a benção e lhes fazer pequenos recados que são retribuídos com presentes e balas. Sempre se esperam presentes dos padrinhos nas datas de aniversário e pelo Natal. Os afilhados são íntimos da casa de seus padrinhos que consideram uma espécie de "segundo pai". Os compa­dres costumam emprestar um ao outro pequenas quan­tias de dinheiro; trabalham juntos nos puxirões; auxiliam-se mutuamente nos consertos de suas casas; e passam juntos as hQras de lazer. As comadres coo­peram na fabricação da farinha de mandioca, tomam

218

Page 219: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

conta das crianças umas das outras, ajudam-se mutua­mente a preparar grandes refeições nas ocasiões de aniversários e visitam-se freqüentemente. Tais visitas são mais espontâneas, sem receio de ciúmes, entre os casais unidos por laços de compadrio do que entre vi­zinhos ou parentes distantes, pois não se concebem relações sexuais entre um homem e sua comadre.

Juca e sua mulher, Ana, mantêm s6Iidas relações de compadrio com Ernesto e sua espôsa Maria. Há vários anos, desde que pularam a fogueira de São João, os dois homens tratam-se de compadres, sendo, além disso,~ bons amigos e vizinhos da Rua "Segunda" em Itá. Alguns anos depois, Ernesto e a mulher convi­daram Juca e Ana para padrinhos de batismo de seu filho adotivo, fortalecendo e reafirmando velha amizade e as relações de compadrio. Juca e Ernesto plantàm juntos suas roças e, a fim de poderem construir uma g-rande barragem para peixes, reuniram os seus recur­sos. As duas mulheres trabalham juntas tôdas as semanas no preparo da farinha de mandioca, atividade em que são auxiliadas por Juca e E'rnesto. Quando êste e Maria resolveram patrocinar a festa de Santa Maria, organizada por uma irmandade religiosa de uma zona ntral vizinha, Juca e Ana levaram quase tôda a semana ajudando-os a preparar a comida para a festa. Juca emprestou a Ernesto cêrca de Cr$ 100,00 e Ana cedeu a Maria seus utensílios de cozinha, suas xícaras e pires para servir o café. Juca e Ana compa­receram à festa e, o dia todo, ajudaram os compadres a servir aos convidados. Os dois casais visitam-se quase diàriamente e conhecem lntimamente os problemas e dificuldades um do outro. Quando seu marido foi prêso em conseqüência de uma bebedeira, Maria ime­diatamente mandou chamar o J uca; êste, conhecendo a fraqueza do compadre pela cachaça, conseguiu persuadir

219

Page 220: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

o funcionário da polícia a soltar Ernesto sob sua res­ponsabilidade. Essas quatro pessoas têm outras relações de compadrio, tanto do batismo, como de fogueira; entre tôdas, porém, o laço de amizade que une os dois casais foi considerado o mais íntimo. Como a estrutura do parentesco natural, a instituição do compadrio pro­}Jorciona um meio de se estabelecerem íntimas e seguras relações pessoais; mas, como no parentesco, o potencial dessas relações pode não ser desenvolvido. Nem com· padres, nem primos são obrigados a manter relações íntimas ou afetuosas, e certos parentes ou certos com­padres sempre são mais chegados do que outros.

Juca, Ernesto e suas famílias aproveitam ao má­ximo o potencial das relações de compadrio, levando uma .vida de amizade e colaboração. Amba~ as famílias pertencem à classe mais baixa da cidade e têm, aproxi­madamente, a mesma renda e posição social na comuni­dade. Suas relações de ·compadrio são, portanto, recíprocas e fortalecidas pela ajuda mútua. Nenhum dos dois compadres dispõe de maiores meios para pro­teger o outro, e Juca não possui qualquer fortuna ou influência política que lhe permitam prestar qualquer auxílio especial a seu afilhado. Muitos compadres, como os que acabamos de descrever, são membros da mesma camada e da .mesma classe econômico-social. Por outro lado, as relações de coinp·aano estabelêc~-~; mais freqüentemente em Itá entre indivíduos de posi­ção econômica e social diferente - entre membros dos grupos da classe mais baixa e da mais alta. A gente pobre acha que uma das maneiras de conseguir alguma vantagem para os filhos é convidar um comerciante, uma autoridade do govêrno ou alguém de prestígio e de boa situação econômica para padrinho de batismo de seus filhos. Talyez, também, o compadre de melhor posição social e de maior fortuna ajude e proteja o

220

Page 221: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mais pobre. Nesses casos a iniciativa parte sempre da família de classe mais baixa, que- convida o indivíduo ou o casal da classe mais alta para padrinho. Essa forma de compadrio é a mais comum em Itá, conforme atestam numerosas relações dêsse gênero que nos foram apontadas por representantes de diversas classes sociais em nossas pesquisas. Os chefes de família classificados do "brancos" tinham, em média, 28,1 afilhados; isto é, foram convidados nessa proporção a servirem de pa­drinhos. (9) Em compensação, os chefes de família classificados de classe baixa da cidade (isto é, Gente de Segirnda) tinham em média, apenas, 4,2 afilhados.

Em Itá, quanto maior o prestígio e a fortuna, maior o número de afil11ados e compadres. De fato, pode-se mesmo dizer que o número de afilhadàs e compadres que uma pessoa pode reivindicar é um índice de sua posição social. A freqüência com que uma pessoa é convidada para padrinho on para pular a fogueira de 1São João ou São Pedro é um reflexo de sua posição social, econô­mica, política, bem como de suas condições de nasci­mento. Dona Dora, proprietária da Casa Gato, cuja renda e posição social talvez sejam as mais altas de Itá, dizia ter 142 afilhados e mais de trezentos compadres e comadres, pais e mães dêsses afilhados. Outro pode­roso comerciante da comunidade reivindicava cem afi­lhados e um negociante rural tinha sessenta e seis. Dona Branquinha, a professôra que não dispõe de re­cursos financeiros à altura de sua posição na classe mais alta, só conseguiu contar dezesseis afilhados. Nem tôdas essas numerosas relações de compadrio das pessoas da classe mais alta eram com famílias da classe mais

(9) Nesses afilhados estão incluídos tanto os de batis­mo como os de fogueira, quando êstes foram reconhecidos como tal.

221

Page 222: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

baixa; entre as primeiras há também uma tendência a convidar para padrinho e compadre alguém mais alta­mente colocado na hierarquia econômica e social. Dêste modo formam-se fortes laços entre famílias importantes da própria comunidade e das comunidades vizinhas. :$sso sistema de compadrio, porém, proporciona, princi­palmente, um meio de consolidar as relações entre as várias camadas da sociedade de Itá.

As relações de compadrio entre indivíduos de ca­madas sociais muito distintas são, naturalmente, menos íntimas do que entre pessoas da mesma posição econô­mica e social. O fato de ter Dona Dora tantos afilhados e compadres significa, naturalmente, que essas relações são forçosamente atenuadas e enfraquecidas pela pró­pria quantidade. Não é possível que ela se possa lem­brar dos nomes de todos os seus afilhados e compadres. Conserva um caderno de notas em que, no correr dos anos, lhes foi relacionando os nomes a fim de não os vir a esquecer. Freqüentemente, surgem rapazes na Casa Gato, alegando serem afilhados de Dona Dora ou de Lobato, seu falecido marido. Dona Dora consulta então seu caderno (que evidentemente não é completo) perguntando ao rapaz sua idade, seu nome e os dos pais, e a data em que foi batizado. Se se convencer de que ela própria ou Lobato realmente o batizaram, oferecer-lhe-á hospitalidade e pedirá ao gerente da Casa _Gato que lhe forneça crédito, caso o rapaz deseje extrair borracha.

Os compadres e comadres, fregueses assíduos da Casa Gato, são bem conhecidos de Dona Dora. Quando lá vão a negócio, são convidados a tomar café ou a fazer refeições em sua casa. João Povo, por exemplo, o líder da comunidade vizinha do Igarapé J ocojó, é compadre de Dona Dora que, juntamente com Lobato, lhe batizou o filho mais v.elho. Sempre que vai a Itá,

222

Page 223: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

João Povo come em casa de Dona Dôra. Esta o respeita e não dá ouvidos aos mexericos sôbre os seus compli­cado's negócios de família (durante anos êle manteve, ao mesmo tempo, mulher e amante). João Povo mandou o filho morar com Lobato e Dona Dora a fim de .que o menino pudesse freqüentar a escola da cidade, nada pagando, entretanto, aos seus compadres. Quando êste finalmente voltou a J ocojó, Dona Dora queixou-se, em tom de brincadeira: "Meu compadre roubou nosso afi­lhado". João Povo levou vários fregueses à Casa Gato, sendo, pois, um valioso compadre para seu proprietário. Atualmente a gente de Jocojó tem feito suas compras e vendas em outros armazens e postos comerciais e Dona Dora queixa-se a seu compadre por permitir à "sua gente" agir assim.

Falando sôbre seu falecido marido, disse-nos Dona Dora que muitos de seus compadres o procuravam sempre para indagar em quem deveriam votar. No dizer da gente de Itá, Lobato manteve-se sempre afas­tado da política e sempre procurou conservar-se neutro durante as violentas campanhas políticas e nas eleições de 1930. Dizia que a política era prejudicial ao ne­goc10. Afirmam todos, entretanto, que os políticos locais sempre tiveram atitude amistosa para com êle. Certa ocasião moveu uma campanha silenciosa mas eficaz contra um candidato a prefeito que o havia pre­judicado. Com a quantidade de fregueses compadres que possuía, ·controlava numerosos eleitores. Ainda

~oje os políticos locais procuram o apoio de indivíduos om numerosas relações de compadrio, pois estas tam­ém concorrem para consolidar o intercâmbio comercial

~ político, e fortalecem as relações entre o comerciante p seus fregueses seringueiros e lavradores. Entre membros de uma mesma classe constituem relações de auxílio recíproco; entre membros de classes sociais

22S

Page 224: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

diferentes, proporcionam uma "ponte" que fortalece o intercâmbio econômico e social por meio de um vínculo pessoal consagrado pela igreja e pela tradição. ·

IV

Ao contrário das grandes mansões dos aristocráticos fazendeiros do nordeste colonial do Brasil, com seus numerosos parentes e criados, descritas por Gilberto Freyre, (10) a maioria das casas de Itá consiste em uma família nuclear: um homem, sua mulher e seus filhos. A gente de Itá, em geral, acha inconveniente a vida em comum de parentes consangüíneos ou contra­parentes, apesar do grande valor que dão a um grande círculo de família. Várias pessoas nos afirmaram que não gostariam de morar com seus sogros. Os homens, principalmente, achavam que morar na mesma casa com os sogros só traria complicações. Outros, entretanto, como acontece em qualquer lugar, reconhecem as van­tagens de partilhar a casa com parentes que os ajudem nos afazeres domésticos e a cuidar das crianças. Uma jovem mãe, por exemplo, disse-nos que gostaria de mu­dar-se de Itá para morar "em casa de minha sogra", em umâ cidade do Baixo Amazonas. "Lá estarei me­lhor", disse-nos, "ela é boa parteira e me ajudará a cuidar das crianças. Se meu marido não se portar di­reito, sua mãe me ajudará a aconselhá-lo". Em Itá bã casas em que habitam diversos parentes tão tranqüi­lamente como se se tratasse de uma única família. Enéas Ramos reside em uma pequena casa com filha, o genro e os dois netos, e Dona Dora, proprietária da Casa Gato, hospeda uma irmã mais moça, solteira, três

(10) Vide The Maste:r anà the Slaves.

224

Page 225: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

filhos adotivos e outra irmã casada,- seu marido e filhos. Nas zonas rurais não é comum ver-si uma filha casada e seu marido, ou mesmo um filho casado e sua família, residindo com os pais. De maneira geral, todos pre­ferem ter seu próprio lar e ser econômicamente indepen­dentes dos parentes.

Nas casas de uma única família o pai é, teorica­mente, o chefe absoluto. Uma das principais razões pelas quais a vida cm eomum de várias famílias não dá bom resultado é o receio de que, mais cedo ou mais tarde, haja atritos entre os chefes. Para a sua família. direta, a palavra do pai deve ser artigo de lei. Êste não deve a ninguém satisfação de seus atos. Tôdas as noites deverá rezar, de pé, diante do pequeno altar, ao canto da sala; a mulher e os filhos ajoelham-se atrás. Só êle deverá preocupar-se com as finanças da família, e a êle compete fazer tôdas as compras, mesmo as de gêneros alimentícios de necessidade diária. Os arma­zens de Itá são pontos de reunião dos homens que lá batem um papo e tomam um trago enquanto se encar­regam das compras para o jantar. Também cabe ao homem resolver todos os negócios. O pai é o úniM responsável pelo sustento da família e o comentário maic_; humilhante que se pode fazer sôbre um homem é que "sua mulher pesca" - isto é, precisa contribuir para o sustento da família. Um homem deve ter filhos do sexo masculino, pois êstes são úm símbolo de masculi­nidade. As atividades sexuais, extra-conjugais, de um pai de família são toleradas e êste poderá mesmo ter filhos ilegítimos. As mulheres sorriem e fazem alusões a essas atividades muito masculinas--de seus maridos. João Povo, por exemplo, é considerado "bom pai e bom marido", embora todos saibam que êle mantém duas famílias - uma de sua mulher legítima e outra de sua amante que mora a apenas alguns quilômetros de

225

Page 226: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

distância. Os maridos de Itá são extremamente ciu­.mentos e às vêzes surram as mulheres à simples sus­peita de algum namôro. Em caso de adultério, espe­ra-.se que matem tanto a mulher como o amante. Contaram-nos um caso de duplo assassinato cometido por Joviano Gomes·há vários anos atrás. Certa noite, ao voltar da roça, encontrou êle a mulher nos braços do amante. Ficou "cego" e matou ambos com uma faca, entregando-se depois à polícia. Alguns meses mais tarde o juri o absolveu. A mulher fôra desonesta e "êle tinha todo direito de fazer o que fêz", comenta­ram nossos informantes.

Paralelamente a êsse tipo de marido e pai domi­nador e agressivo, a mulher e mãe, no conceito de Itá, deve ser suave, sossegada e passiva. Nunca deve falar demais, pelo menos em presença do marido. É muito trabalhadeira dentro de casa e mesmo na roça, quando necessar10. Nunca se senta à mesa com o marido; fica de pé para o servir e aos demais homens presentes. A mulher nunca participa dos assuntos econômicos; deve ser inteiramente dependente do marido. Até mesmo Dona Dora, a rica viúva, jamais fixou um preço ou completou uma transação comercial. Êsses são assuntós masculinos que aos homens compete resolver. Quando combinamos fazer as refeições em sua casa, concordou, mas declarou que só seu cunhado poderia fixar o preço. Quando estudávamos os orçamentos domésticos das fa­mílias de Itá, era necessário que tanto o marido como a mulher estivessem presentes às entrevistas. Era a mufüer quem sabia as quantidades de alimentos gastos nas refeições, mas sàmente o marido estava a par do preço dos gêneros, roupas e outras necessidades. As mulheres devem ser virgens ao casar e nada devem saber sôbre sexo. Na opinião dos homens, uma mulher deve com o marido aprender tudo o que sabe a respeito

226

Page 227: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de sexo, mantendo-se fiel a êle .durante tôda a vida. As boas mulheres não devem ser vistas muito freqüente­mente nas ruas, nem convém que façam muitas visitas, mesmo a outras mulheres, sem os seus maridos. Tal liberdade poderia lançar dúvidas quanto à sua condnü1 moral.

Em Itá, como aliás em tôdas as comunidades do mundo, há, entretanto, uma grande distância entre o ideal e~ a realidade - entre o que a gente prega e aquilo que faz. Todavia são êsses padrões ideais de comportamento do marido e pai, e da mulher e mãe, que determinam, em grande parte, o comportamento na prática. Êsses ideais fornecem uma série de regras que todos almejam seguir - mas que nunca o conse­guem. Como no resto do munpo, poucos são os maridos e as mulheres l'deais. Raros são os homens que cólise­guem ser a figura dominadora, central, de sua família nuclear, como poucas são as mulheres tímidas e pas­sivas que personificam o tipo ideal. Muitos homens representam êsse papel, dando ordens à mulher e aos filhos diante de outros, e muitas mulheres servem seus maridos à mesa, principalmente quando há visitas. As mulheres absüêm-se das atividades comérciais, pedindo aos homens que comprem os alimentos, e evitam encon­tros com outros homens nas ruas. E'm público, tanto um quanto outro, representam os papéis que lhes atribui a sociedade.

Na intimidade da família, entretanto, as coisas assume:rp. aspecto diferente. Homens e mulheres dis­cutem negócios. Na realidade as mulheres conhecem perfeitamente o preço de tudo. Dona Dora, apesar de i;:eus protestos em contrário, é a verdadeira fôrça da Casa Gato, e seu cunhado, o gerente, com ela discute os negócios e lhe espera pacientemente pelas decisões.

227_

Page 228: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Juca entrega todo o dinheiro a Ana, sua mulher, para que esta o guarde. Dirige as finanças da família apenas em público, pois é Ana quem lhe diz o que deve com­prar no armazem e que lhe dá o dinheiro para as compras. Com exceção de alguns empregados de escri­tório, que vivem do ordenado, e de um pequeno número de donos de armazens e negociantes, a maioria dos ho­mens precisa do auxílio das mulheres para ganhar a vida. Nos grupos da classe mais baixa da cidade e das zonas rurais; quase tôdas as mulheres ajudam os ma­ridos nas roças, plantando e colhendo mandioca e são elas que fabricam, pràticamente sozinhas, a farinha de mandioca. Muitas até extraem a borracha, encarregan­do-se das estraclas de seus maridos quando êstes adoe­cem e, às vêzcs, defumam também o látex. Muitas mulheres de seringueiros pescam enquanto os maridos percorrem as estradas.

Participam ainda dos assuntos municipais, havendo algumas em cargos públicos na cidade de Itá. Dona Filomena é funcionária do posto de saúde. O agent(' do correio é a espôsa do agente da coletoria estadual. Dona Branquinha e sua prima exercem o cargo de professoras públicas e Dona Maria, mulher de Bibi Marajó, é a encarregada do cartório de registros civis. Também nos negócios tomam parte as mulheres de Itá. A espôsa do padeiro com êle divide as responsabilidades de seu negócio e, embora as mulheres geralmente não sirvam nos balcões dos armazens, Dona Débora, casada com o único comerciante judeu qlie ainda reside em Itá, sempre se encarregou da compra de mercadorias e da venda de produtos para os exportadores da cidade. Ao morrer o marido, ficou· à testa do negócio até que o filho crescesse e pudesse substituí-la.

As viúvas são particularmente competentes no que constitui idealmente o ·setor de atividade do homem.

228

Page 229: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Dona Catita Dutra, cujo primeiro marido morreu há mais de dez anos, é figura de destaque em um distrito rural. É o principal produtor de farinha de mandioca. Durante vários anos contratou homens para a limpeza das roças que possui às mal'!gens do Igarapé Baca, as quais serviram ao seu próprio sustento, ao do filho pequeno e das filhas adolescentes. Agora estas estão casadas e o filho é um rapaz forte e sadio, que, com os dois genros, ainda. com ela trabalham no preparo e plantação das roças: As filhas ajudam-na a fabricar farinha de mandioca que vendem no comércio. É voz corrente que Dona Catita é quem dirige as atividades da família, bem como os trabalhadores contratados; a farinha que produz é conhecida como "a farinha de Dona Catita". A venda do produto, entretanto. está a cargo de um de seus genros.

Dona Veridiana, mãe de João Dias, também é a cabeça de sua família. Casou-se duas vêzes, ficando com filhos para sustentar após a morte dos dois ma­ridos. Criou quatro, graças aos seus próprios recursos econômicos. Trabalhou como empregada doméstica para ns autoridlfdes públicas e, auxiliada pelos filhos, plan­tava roças. A medida que os meninos cresciam, con­tribuíam para o sustento com o trabalho na roça e com empregos provisórios obtiidos na cidade. Três dêles ainda residem em Itá e acatam os conselhos de Dona Veridiana em tudo o que se refere às suas atividades econom1cas. Certa vez ao indagarem se seu filho de vinte anos, que se achava ausente, gostaria de trabalhar como canoeiro em uma viagem de três dias, ela respon­deu em nome do rapaz, assegurando: "Êle concor­dará; amanhã estará lá, pronto para viajar".

É coisa sabida que as viúvas têm tendência a do­minar os filhos. Isto se dá com Dona Catita, Dona

229

15

Page 230: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Veridiana, Dona Dora e Dona Maria. A mãe de J osê e Bibi Marajó, Dona Veridiana, guardava o ordenado do filho solteiro quando êste trabalhava no serviço de saúde pública, só lhe dando o que achava que êle devia gastar. Dona Dora exerce autoridade absoluta sôbre o filho adotivo, rapaz de vinte e sete anos que trabalha na Casa Gato sem remuneração fixa e recebe apenas o que, segundo ela, deverá gastar, fora as roupas e alimentos que lhe dá. Dizem as más línguas que êle "rouba o necessário para seus divertimentos". Dona Dora também mantém sôbre o rapaz uma constante vigilância. Ao saber que êle mantinha uma aventma .com uma mulher de um distrito rural das vizinhanças, proibiu-o de visitar o distrito em questão, além de mandar dizer à mulher que não se aproximasse da cidade. Os dois irmãos Marajó disseram-nos que só permaneciam em Itá em vista das obrigações que tinham para com a mãe viúva e que, após a morte da velha, deixariam a cidade. Bibi queixou-se de ter perdido um ·bom emprêgo que arranjara em um bar, numa loca­lidade vizinha de Belém, por culpa de sua mãe que o obrigara a voltar para Itá. Tanto Bibi, como José, respectivamente com trinta e oito e quarenta anos .de idade, acham que devem aceder aos desejos maternos.

Outras pessoas de Itá falaram-nos ainda da "dita­dura" exercida por suas mães: o quadro que pintam é o de uma vida doméstica em que a mãe velha e viúva domina a cena familiar. Juca, por exemplo, lembra-se de que sua mãe, Efigrnia, tivera nove filhos e, conquanto apenas três atingissem a idade adulta, "nós a respei­távamos e sempre obedecíamos às suas ordens". Era aleijada de um braço, tendo-se queimado gravemente com querosene quando ainda criança. "Mas trabalhou para nos criar", explicou-nos Juca. Quase não se lem­bra do pai, que viajava constantemente para os serin-

230

Page 231: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

gais, antes de sua morte. Era Efigenia ótima cozinheira e, nessa qualidade, empregava-se CQm os "brancos''. Muito severa com os filhos, obrigava-os a serem "es­cravos de São Benedito" e a executar as tarefas da Igreja e das festas dos santos. Fazia-os freqüentar a escola e arranjava-lhes pequenos biscates, cuja remune­ração guardava. "Morreu com oitenta e oito anos por­que um morcego mordeu-lhe o pé'', disse-nos Juca, demonstrando grande admiração pela sua longevidade e .fôrça de caráter.

Enéas Ramos lembra-se também da mãe como per­sonagem central da família e _figura predominante de s~us primeiros anos de vida. Declarou francamente : "Ela era o chefe de família. Enquanto meu pai vivia, ajudava-o a resolver tôdas as questões. Depois que êle morreu, err. Paulo, meu irmão mais velho, quem a auxi­liava. Nada decidia sem o consultar. Os outros filhos iam vê-la sempre que os chamava" e "ao se diri­girem a ela, permaneciam de pé". Exigia a velha qu13 tôdas as manhãs os filhos viessem "lhe pedir a bênção", e tôdas as tardes, à hora das "vésperas" rezava pe]a família - mesmo antes da morte do marido. A mãe resolveu até mesmo quando êle deveria casar-se e cleu todos os passos para o seu primeiro noivado que, mais tarde, Enéas rompeu. Quando, finalmente, se casou, foi com sua mulher residir em casa da mãe e, tanto êlc como o irmão mais velho permaneceram ao seu lado, trabalhando, ·até quando ela morreu.

A imagem da vida de família que se vislumbra observando-se os fatos, e que se deduz das histórias contadas pela gente de Itá, é muito diferente do quadro ideal das relações de família. Em lugar do homem dominador, controlando e sustentando sõzinho a família. é a mulher, freqüentemente, sua figura central. Pouco$

231

Page 232: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

homens, em Itá, são ".iolentos, mesmo no caso de adul­tério por parte das mulheres, como o retrato que se pinta do homem latino, ciumento e dominador. · Case­miro Oliveira, para citar apenas um exemplo, não pra­ticou qualquer violência, muito embora sua mulher mantivesse abertamente uma aventura. Acabou conse­guindo que ela saisse de casa para ir viver com o amante. "É uma história triste", disse-nos. "Ela não se portou corretamente e tenho pena de meus filhos que moram com ela, porque não estão aprendendo a ler e a escrever". Casemiro perdera a dignidade; sabia que se riam dêle e o chamavam de "cornudo" e persistia na recusa de aceitá-la de volta. Mas, apesar de tudo, não recorreu à violência. A despeito do ideal latino e brasileiro do macho dominante, em sociedades como a de Itá, as mulheres são forçadas a participar de grande parte da responsabilidade e da autoridade da família. Quando os homens se ausentam, como são freqüente­mente obrigados nas sociedades em que a situação eco­nômica é pouco segura e instável, as mulheres não 1êm outro remédio senão substituí-los. Quando passam. meses a fio nos seringais, ou emigram à procura de trabalho deixando para trás as famílias, as mulheres geralmente se transformam na figura dominante do grupo familiar.

Os padrões ideais de comportamento, em Itá, são os da velha aristocracia dos latifundiários do Brasil. Só poderiam ser totalmente atingidos na sociedade es. tável de fazendeiros do século dezenove e dos aristocratas. das grandes cidades brasileiras - nunca pela grande maioria da população do Brasil. Tais ideais estão, evidentemente, tão em desacôrdo com a realidade da sociedade de Itá, quanto inatingíveis são também na vida moderna de cidades como o R.io de Janeiro e São Paulo.

232

Page 233: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

V

A diferença entre o comportamento real e o ideal também se faz sentir, na sociedade de Itá, em questões de noivado e casamento. Em todo o Brasil rural o conceito ideal de "noivado" é o de uma série de prepa­rativos formais que levam ao casamento. As moças devem ser cuidadosamente resguardadas, e nunca dei­xadas a sós com homens que não sejam parentes pró­ximos. A mãe deve sempre acompanhar as filhas às festas, observando-as enquanto dançam, não as per­dendo nunca de vista. Aos jovens não é permitido vi­sitar as moças, a menos que entre .êles haja algum compromisso secreto - a que chegaram depois da troca furtiva de bilhetes ou de palavras durante os passeios na praça, à noite - quando então o rapaz poderá encontrar um pretexto para visitá-la em sua casa. De­pois que um pretendente visita a moça várias vêzes, os pais esperam que êle se declare oficialmente. Uma vez aceito pela jovem e pelos pais, os dois ficam noivos, e começa então o verdadeiro noivado. O rapaz poderá visitar su?. noiva e sentar-se junto dela na sala, em presença de algum outro membro da família, e tem permissão para passear com ela na praça, à vista de todos. Podem conversar de janela - a moça debruçada sôbre o parapeito da janela que dá para a rua e o rapaz apoiado na parede da casa. A medida que o noivado prossegue o" rapaz pode ser convidado a fazer as refei­<.;Ões com a família da noiva e conversar depois do jantar ness?. mesma sala, onde, tradicionalmente, trans­corre quase tôda a >'ida da família brasileira. O noi­vado deve ser relativamente longo: um a dois anos, ou mesmo mais. A noiva prepara o enxoval e o rapaz

233

Page 234: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

trabalha a fim de conseguir estabilidade econom1ca e <:star assim em condições de sustentar a família.

No Brasil, o casamento é, por lei, um ato civil. Tem de ser celebrado por um juiz, antes de poder ser realizado pela igreja. Teoricamente, portanto, há uma cerimônin civil, celebrada por um juiz, seguida, no mesmo dia ou no dia seguinte, de uma segunda ceri­mônia realizada, na igreja, por um padre católico. Na região rural, entretanto, dá-se maior importância à cerimônia religiosa do que ao casamento civil. Social-

--;-ente o casamento não é totalmente reconhecido en­quanto não se realiza na igreja. Como na maior parte do mundo ocidental, essa cerimônia é pretexto para grandes festas, havendo geralmente uma recepção na casa da noiva. Tiram-se fotografias da noiva com seu véu e oferecem-se presentes. De maneira geral, é o ponto alto da vida de uma moça brasileira. Esta deve ser virgem - até mesmo ignorante dos fatos da vida sexual. Tradicionalmente, considera-se que o noivo foi "finalmente pescado", por assim dizer; o casamento é a ocasião da vida em que se decidiu a "assentar" e . criar família. Deve possuir grande experiência sexual dos tempos de solteiro. Para a maioria dos brasileirm;; da zona rural não se concebe que um homem case a fim de satisfazer às necessidades sexuais.

J!lssc conceito ideal de noivado e casamento é mais 011 menos generalizado em Itá, mas só é realmente pra­·ticado, em parte, por alguns representantes da primeira classe. Pelo que Dona Branquinha conta de seu pri­meiro casamento, parece ter-se aproximado bastante dêssc ideal. Outros habitantes de Itá recordam-se de que o marido de Da. Branquinha teve entendimentos com os pais dela, que ela teve um noivado formal de quase um ano, tendo-se casado tanto na igreja como

234

Page 235: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

no civil. Ninguém duvida de que fôsse virgem ao se casar embora, acrescentam, fôsse meio "levada" quando solteira. "Dançava o samba no pavilhão público'' quando soavam os bumbos para as festas de São Bene­dito. Tal procedimento era considerado suspeito para uma moça solteira de boa família. Os demais. casa­mentos que nos foram descritos parecem ter ficado um pouco aquém dêsse padrão ideal. Quando um dos altos funcionários públicos da municipalidade contraiu núp­cias, em 1948, foram cumpridas tôdas as formalidades, mas dizia-se que a noiva não era vir·gem e que o noivo estava disposto a fazer vista grossa a essa falha indes­·culpável, "porque o pai da noiva era rico". "Não são coisas que se levem a sério", disse-nos uma pessoa da cidade. Em 1948 a irmã de Serra Freire estava noiva e êste andava irritado porque o noivo ainda não se dera ao trabalho de "falar com a família'', isto é, não havia feito o pedido formal aos pais da noiva. Só se faziam preparativos para a cerimônia religiosa e a gente da cidade comentava que o futuro noivo, residente de uma pequena cidade mais ao sul do rio, já era casado no civil. Dos quinze casais da primeira classe que entrevistamos durante nossos estudos das famílias de Itá, nove afirmaram serem casados no religioso e no civil, três apenas no civil e três, sàmente na igreja. Dois ou três dos que alegaram ser casados tnnto no civH como no religioso, (11) só realizaram a ceri '11.Ônia civil,

(11) Digo ."alegaram" propositadamente, porque não se pode confiar nessas declarações, sem verificar sua proce­dência nos registros civis da capital do Estado ou em poder do bispo, residente em outra cidade da Amazônia. Acredi­tamos que, se verificássemos cuidadosamente tôdas essas declarações, as cifras verdadeiras nos revelariam maior nú­mero de casais unidos apenas no religioso e de "amasiados", em tôdas as camadas da sociedade.

23S

Page 236: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

segundo nos informaram pessoas da cidade, muito de­pois da religiosa ou mesmo depois do nascimento dos filhos. Outros somente realizaram a cerimônia religiosa vários meses após a consumação do casamento e da ce­rimônia civil, uma vez que· o padre católico vai a Itá apenas duas ou três vêzes por ano.

Nos grupos da classe mais baixa da comunidade de Itá, tanto nos distritos rurais como urbanos, o casamento diverge ainda mais dos padrões ideais "normais" do Brasil rural. Noventa e um casais dos grupos da classe mais baixa (Gente de Segunda da cidade, lavradores e seringueiros) foram entrevistados a respeito do casa­mento. Em todos os casos êste datava de, pelo menos, sete anos e aparentava ser estável na ocasião. Dêsses, apenas vinte e dois alegaram ser casados no civil e no religioso; oito eram casados só no civil e trinta o oito na igreja. Vinte e três dos noventa e um casais confessaram francamente que viviam "amasiados", sem qualquer consagração civil ou religiosa. Entre os que alegaram casamentos legítimos, muitos haviam vivido amigados durante anos, antes de realizarem a cerimônià civil ou religiosa. A maior freqüência dos casamentos religiosos evidencia os valores aceitos pela gente mais velha de Itá e de outras comunidades amazônicas. Prova também, como muitos sabem no Brasil, que a Igreja, em seu zêlo de santificar essas uniões ilegítimas, muitas vêzes celebra a cerimônia religiosa antes do civil. Os jovens de Itá estão perfeitamente cientes de que a cerimônia civil cria responsabilidades legais e que estabelece compromissos que devem ser cumpridos sob pena de prisão, notando-se uma tendência crescente entre as moças, e principalmente entre ~s suas famílias. para exigirem a cerimônia civil.

"\· Predomina no Brasil a idéia de que os homens não sentem o desejo de casar. Várias pessoas nos expli-

236

Page 237: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

earam que os rapazes assumem a contragosto as pesadas responsabilidades de uma união permanente, renun­ciando com relutância às suas aventuras sexuais. Às vêzcs a insistência da própria família basta .para os levai· ao casamento. Enéas Ramos contou-nos que quando sua mãe soube das visitas que êle fazia a uma prostituta de Itá e que lrnvia contraído "doença" (gonorréia), chamou-o c lhe disse: "É hora de você se casar". Tomou as providências imediatas, obrigan­do-o a falar com o pai de uma moçà, sua vizinha, pe­dindo-a em casamento. Como em muitas outras culturas, o casamento em Itá é considerado um meio de fazer um rapaz "assentar". Geralmente, entretanto, não são os pais do rapaz e sim os da moça com quem êle manteve alguma ligação que conseguem obrigá-lo a casar.

Os pais, em Itá, provàvelmente em virtude de sua própria experiência quando jovens, têm absoluta con­vicção de que todos os rapazes alimentam más intenções a respeito de suas filhas. Estão também persuadidos, f' certamente com me_nor razão, de que uma moça não pode resistir às propostas de homem algum, a não ser que esteja acompanhada. É indispensável, portanto, que suas filhas sejam mantidas sob vigilância e que todos os homens que delas se aproximem sejam enca­rados com desconfiança. As jovens de Itá não gozam, pois, de qualquer liberdade de ação ou movimento. Não lhes é permitido dançar, salvo se acompanhadas por algum membro adulto de suas famílias. É-lhes proi­bido sair de casa à noite. Não podem andar livremente peln cidade, ou pela vizinhança, nem mesmo durante o dia, a não ser aos pares ou em grupos. É escusado dizer que as jovens se irritam com tais proibições. [ Passam, portanto, a desejar o casamento como o único, meio de conseguirem um mínimo de lib<Jrdade. Dada a pouca oportunidade que têm de serem cortejadas,

23í

Page 238: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

namoram às escondidas, e a necessidade de agir secre­tamente, pelo menos até que o rapaz se ache em condições de "oficializar o noivado" pedindo-as em casamento, freqüentemente leva a relações sexuais pré-conjugais.

Um caso típico é ilustrado pelo que nos contou Maria Silva, que reside atualmente em Itá, onde é viúva respeitada. Gostava de Raimundo Amazonas; trocavam bilhetes. Encontraram-se secretamente para conversar, ao dirigir-se ela mna tarde à casa de um seu parente. Como haviam combinado, Raimundo foi à sua casa em visita à família, mas os pais não aprovaram o rapaz. Duvidaram de que pretendesse realmente casar-se com a jovem e, mesmo que assim o desejasse, não acredita­vam que Yiesse a dar bom marido. Como acontece em muitas histórias tristes de amor, proibiram a pequena de falar com Raimundo. Resolveram, então, os dois encontrar-se secretamente na mata. Raimunpo fez­lhe promessa de casamento e 1\faria a êle se entregou, "para obrigar papai a consentir no nosso casamento". Logo depois engravidou. Começaram então as "náuseas pela manhã" e dores de cabeça, notando a mãe que a moça já não tinha menstruações. Chamada a curan­deira que receitava ervas medicinais para menstruações irregulares, a velha percebeu o estado de Maria, arran­cando-lhe a confissão. "Os remédios de nada adian­tarão", disse-lhe a curiosa, "temos que esperar para ver se será uma costureira ou um caçador!" Maria sentiu-se "tão enverg0nhada que queria morrer''. A velha, porém, desculpou-a, alegando: "Isto acontece com muita gente, mesmo com as filhas dos "brancos". Diz Maria que o pai a surrou até vê-la caída no chão, chamando-a de todos os nomes feios que sabia. "Mas depois da surra senti-me aliYiada", confessa hoje.

Mais tarde explicou ao pai que Raimundo tinha-lhe oferecido casamento, mas que não "·queriam casar na

238

Page 239: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

polícia". Chamado pelo velho, Raimundo o foi ver imediatamente. Diante das ameaças de prisão e vio­lências físicas, prometeu que se casaria. Durante algum tempo, Maria continuou a viver junto da fa­mília que, assim como os padrinhos, nunca a amaldiçoou ou renegou. Evitava andar pelas ruas para esconder seu estado, mas logo todos adivinharam o que aconte­cera. Continuou a trabalhar na roça com os pais até que êstes a proibiram de executar trabalhos pesados . .A princípio, evitava Raimundo, com quem "estava zan­gada" por não ter cumprido imediatamente a promessa de casamento. Finalmente, 'Raimundo encontrou uma barraca de cobertura de palha e os dois para lá se mudaram. Dois ou três meses mais tarde, por ocasião da festa de São Benedito, durante a visita do padre a Itá, casaram-se na igreja. Faltava pouco tempo para Maria dar à luz. Nasceu a criança, uma menina. Seu pai afeiçoou-se à netinha, ficando tristíssimo ao morrer a criança, dois anos mais tarde. Disse-nos l\faria que "pretendia dá-la" ao avô, já que êste tinha maior amor à criança do que Raimundo.

Como acºontece com a maioria dos casamentos dêsse gênero, o de Maria e Raimundo teve duração efêmera. Logo convocado para o serviço militar, Raimundo deixou a cidade para servir em Belém e nunca mais voltou. Disseram a Maria que "estava vivendo" com outra mulher (também de nome Maria) com quem de­pois se casou no civil. Mais tarde, Maria viveu durante anos com outro homem. Não foi feliz, porém, e um belo dia abandonou-o. Resolveu "nunca mais se meter com outro homem". Hoje Maria Silva é uma das diri­gentes de uma irmandade religiosa e muito admirada por suas prendas domésticas. Desviou-se das normas ideais de sua mocidade, mas num sentido em que se espera que desviem as mulheres de sua classe.

239

Page 240: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Os noivos, em Itá, são tão freqüentemente forçados ao casamento que isto já se tornou quase uma prática normal. Quando lá estivemos, em 1948, realizaram-se os casamentos de cinco casais dos distritos rurais, pe­rante o gerente da Casa Gato que também é o juiz de paz interino. Todos os cinco foram "forçados pela polícia". Haviam sido arranjados pelo pai da noiva, em colaboração com a polícia, depois que a moça fôra deflorada. Em todos os casos o rapaz só consentira após a apresentação da queixa ao chefe de polícia pela família da no.iva. (12) Essas queixas, geralmente, são suficientes para que se efetue o casamento, pois além de a moça estar ansiosa por se casar, o rapaz em geral já se sente atraído. O casamento satisfaz os pais da moça, e a comunidade em breve se esquece dos detalhes desagradáveis. No dia da cerimônia a noiva usa um véu branco, se pode comprá-lo ou pedir emprestado a alguém, e o noivo gasta quantias enormes com bebidas e comidas para os ami,gos que comparecem para come­morar o acontecimento.

Na cidade corre que três quartos dos casamentos de lavradores e seringueiros são realizados "na polí7 eia". Um dos fatôres que contribuem para isto, se­gundo J uca nos explicou, citando numerosos exemplos de tais casamentos entre pessoas nossas conhecidas, é a despesa com o casamento civil. O juiz de paz e o tabelião nada cobram quando o casamento é ordenado pela polícia. Se um par casa-se "de pedido", "terá que trabalhar quase um ano para juntar o dinheiro

(12) No código penal brasileiro o defloramen.to é crime passível de prisão, mas para o chefe de polícia de Itá essa lei é de difícil aplicação. Geralmente as moças em questão não são menores perante a lei (isto é, têm mais de 18 anos de idade). Por conseguinte, o máximo que a polícia pode fazer é ameaçar de prisão.

240

Page 241: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

necessário", embora a taxa não seja mais do que uns duzentos cruzeiros. "Se se casarem "na polícia" é mais barato e evitam essa despesa" disse-nos J uca.

Nem todos os casos de defloramento de menor, entretanto, são levados ao conhecimento do chefe de polícia. (13) Muitas vêzes, como no caso de Mar.ia Silva, o casal já combinou o casamento, e se a moça engravida, bastam umas palavras duras do pai para que o mesmo se realize. A família mantém os fatos em segrêdo. O casal passa então a. viver em comum e o casamento pode até não se efetuar. As vêzcs, muitos anos mais tarde, após o nascimento de vários filhos é que terá lugar a cerimônia na igreja ou no civil. (14) Muitas dessas uniões são tão estáveis quanto os casa­mentos perfeitamente sancionados pela igreja e pela lei. Outras, entretanto, são aventuras impetuosas e de pouca duração. Em alguns casos há disputas amargas entre pai, filha e marido. Muitas vêzes o rapaz, obri­gado a um casamento que não deseja, lanc;a mão de qualquer pretexto para romper com a espôsa. Como no caso de Maria Silva, o marido encontrará uma des-

(13) Os arquivos algo desorganizados da polícia de Itá só apresentavam 41 casos de "defloramento de menor" du­rante um período de dez anos (1933-1943), apesar de nos te­rem sido relatados mais de dez, só em 1948, pelos informan­tes locais.

(14) A legalização ou santificação dessas longas uniões é fenômeno antigo no Brasil e aceito, tanto pela Igreja, como pelo Estado. · A êsse respeito conta-se uma história deliciosa. Um brasileiro muito conhecido ia casar-se com uma viúva, mãe de uma menina de dez anos. Por êste ou aquêle motivo, a viúva se esquecera de contar ao padre seu estado civil. Durante a cerimônia a menina, de repente, gritou, "mamãe". O padre hesitou. O noivo, com multa presença de espírito, e não querendo interromper a cerimônia para explicações, sussurrou para o padre: "E' uma velha ligação que estamos legalizando, Padre". E a cerimônia prosseguiu.

241

Page 242: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

culpa para sair da cidade à procura de emprêgo mais lucrativo, deixando para trás sua mulher.

A ligação ilegítima de Ana Botelho e João Inácio, por exemplo, provocou brigas violentas com o pai da jovem. Ambos vinham tendo relações sexuais secretas há vários meses, quando foram descobertos pelo pai. A.o comunicar que iria viver com João Inácio, Ana foi impedida pelo pai. Uma noite, João Inácio, acompa­nhado dos quatro irmãos, foi "buscar a moça". O pai · resistiu. Não o querendo ferir, os irmãos retiraram-se, deixando a moça. No dia seguinte, entretanto, Ana fugiu sõzinha em uma canoa, ao encontro de seu amante. Isto se deu em janeiro. Em junho ainda vivia com João Inácio, sem que se houvesse realizado o casamento. O pai queixou-se ao chefe de polícia e êste mandou advertir João Inácio de que o prenderia se o casal não fôsse a Itá para efetuar a cerimônia civil. Ao aparecer João Inácio sozinho em Itá, o chefe de polícia pren­deu-o por vinte e quatro horas com o fim de o assustar, marcando-se o casamento para agôsto. Muita gente duvida que êsse enlace se realize jamais, pois os dois habitam uma área distante, num pequeno tributário do Amazonas, onde as ameaças dificilmente se concre­tizarão. Porém o pai de Ana ainda se mostra enfure­cido contra a filha e João Inácio. "Ela não passa de uma prostituta", disse-nos, e nega-se a recebê-la eni casa. Entretanto, quando uma de suas irmã.s mais moças adoeceu, Ana voltou para visitá-la. Disseram­nos que, nessa ocasião, pediu a bênção ao pai e que êste não a recusou. Conquanto declare que não abrirá as portas a Ana ou João Inácio enquanto não se casa­rem, no dizer de muitos, dentro de poucos meses terã~ feito as pazes.

Os homens negam-se, às vêzes,. a casar com mu­lheres com as quais viveram, alegando que não eram

Page 243: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

virgens quando as conheceram. Hesitam em contrair casamento até com aquelas que têm certeza que só a êles se entregaram. Um dêsses moradores de Itá argu­mentou, de maneira algo brutal, que se uma moça deixou um homem possuí-la sem casamento, o mesmo fará com outros, pois seria provável que sucumbisse à tentação, como aconteceu no seu caso. Só em raras exceções, poderá uma moça "que não é virgem" espe­rar um casamento civil ou religioso. Da mesma forma, um homem que descobrir na noite de núpcias que sua mulher não é virgem, terá o direito de abandoná-la imediatamente. Foi o que se deu com Pedro Silva, marinheiro de uma lancha da Saúde Pública, atracad.a em Itá. Casou-se êle com Clara, "com tôda a pompa'':, como dizem na cidade. Gastou cêrca de Cr$ 2. 500,0ô em roupas para si e para a noiva, taxas para as ceri­mônias civil e religiosa e mais as despesas de festa. Foi um casamento espontâneo, "de pedido". Na noite do casamento, entretanto, Pedro descobriu que Clara não era virgem. "Ela já havia sido possuída'', disse êle. Na manhã seguinte denunciou sua espôsa ao pai e recusou-se a viver com ela. Passado mais de um ano continuava ainda desiludido com as mulheres e não queria saber de Clara. Contaram-nos ainda outros ca­sos de mulheres que "tinham sido devolvidas aos pais" por não serem virgens na ocasião do casamento e de três outras que hoje vivem amigadas e que têm filhos do seus amásios. Tratava-se, segundo nos informaram, de moças ábandonadas pelos maridos na noite do casa­mento. Segundo os padrões ideais, uma moça só pode esperar casar-se, se virgem. (15)

(15) Essas atitudes e êsses valores culturais refletem­se nos têrmos empregados em relação às mulheres de Itá: moça é empregado a respeito de qualquer mulher que tenha

243

Page 244: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

A grande porcentagem de umoes ilegítimas, a quantidade de casamentos efetuados contra a vontade do noivo, às vêzes sob pressão da polícia, e o grande valor que se dá à virgindade, talvez mesmo o "ato dt! devolver a noiva ao pai", fazem com que, em Itá, as relações conjugais sejam extremamente instáveis. (16) Embora essas uniões· ilegítimas sejam aceitas pela co­munidade, ninguém deixa de reconhecer que carecem de sanção legal ou religiosa. Os homens abandonam com freqüência suas companheiras, ou mesmo mulheres com as quais foram obrigados a se casar. A instabilidade econômica dos indivíduos da classe mais baixa da<; cidades, do lavrador, e principalmente, dos seringueiros, contribui grandemente para essa instabilidade conjugal, e talvez seja a causa fundamental da relutância com que tantos dêles aceitam as responsabilidades de uma família legítima. Necessidades de . caráter econômico forçam-nos a deixar a comunidade de Itá para irem extrair borracha no Território do Acre ou em algum

atingido a puberdade e que seja virgem, a casadoira; rapa­riga, a respeito de qualquer uma que já não seja virgem, desde aquela respeitável que vive em comum com um ho­mem sem ser casada, até a prostituta; e viúva, a respeito da­quela que já foi casada, quer no civil, quer no religioso.

(16) Das 3.360 pessoas acima de 20 anos, na municipali­dade de Itá, e segundo o censo de 1940, apenas 1.577 eram "casadas" e 190 "viuvas" ou "viuvos". Das 5.124 pessoas em tôda a municipalidade, relacionadas como "solteiras", apenas 3.721 tinham menos de 19 anos, restando pois 1.503 de 20 anos ou mais. Não sei qual o critério usado no emprêgo da pala­vra "casamento", provàvelmente refiria-se ao legítimo. Nes­te caso, quer dizer que o número de pessoas que se unem, quer ilegitimamente, quer em cerimônias religiosas, perfa­zem quase 50 por cento da população. Poucas pessoas em Itá, acima de 20 anos, vivem sem qualquer forma de relação marital. As mulheres devem se casar aos 18 ou 19 anos e os homens, aos 20 ou pouco mais.

244

Page 245: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

outro seringai mais ao norte do rio; comumente fir.:am presos por <lívidas à nova comunidade ou sentem-se ,por el?. atraídos e nunca mais voltam. Outros emigram :r->ara Belém e, às vêzes, também para as metrópoles do sul do país, em busca de emprêgo. As mulheres são, assim, freqüentemente, abandonadas, eom filhos para criar, por maridos que partem à procura de melhor situação econômica. Eis porque, em Itá, elas desem­penham geralmente o papel de chefe nas famílias que não têm homens adultos. Têm, às vêzes, inúmeros com­panheiros pela vida afora, os quais vão partindo - ou morrendo - deixando-as com filhos para criar e sus­tentar. Foi o que aconteceu com Dona Catita, Dona Viridiana e Dona Efigênia, a que nos referimos acima, viúvas que se viram obrigadas a assumir o papel ativo e dominante de chefes de suas famílias. (17) Claro está que os valores e padrões ideais de comportamento ela gente de Itá não se coadunãm com as realidades de sua sociedade.

(17) T. Lynn Smith, em Brazil: People and Instit11tions (Baton Rouge, 1946), refere-se à tendência manifestada nas regiões fronteiriças do Brasil de apresf:ntar maior número de homens do que de mulheres. Em 1920, havia no Territó­rio de Acre 171,3 homens para 100 mulheres, e no Estado do Amazonas, 177,5 homens para 100 mulheres (op. cit., p. 213). A região amazônica ê, sabidamente, uma zona que os homens buscavam sem as suas mulheres, que haviam abandonado .. A comunidade que estudamos, entretanto, não é uma comunidade fronteiriça nesse sentido. O censo de 1940 revelou um índice mais ou menos equilibrado de homens e mulheres (isto é, 3.557 homens para 3.524 mulheres) no mu­nicípio. As zonas de produção da borracha, principalmente em época de alta de preços, atraem emigrantes do sexo mas­culino, mas, em compensação, as zonas agrícolas perdem-nos em virtude dessa emigração.

245

Page 246: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

VI

A idéia que a gente de Itá nos dá da maneira apropriada de educar as criauças e do tratamento que estas recebem dos pais é, de várias maneiras, semelhante à que se vê no mundo ocidental. Os pais devem amar e proteger os filhos e êstes, por sua vez, devem respei­tá-los. Tanto os homens como as mulheres de Itá dis­~eram-uo! que desejavam filhos. Os homens preferem menino~ e nos revelaram o orgulho que sente um pai em possuir um filho que preserve o nomé ela família.

1 As mulheres parecem desejar muitos filhos, sem di.<i­tinção de sexo. Nossos amigos de Itá chamaram-nos a

'atenção para ~ freqüência com que os casais sem filhos adotam crianças, como prova de que todos as desejam. Os pais .parecem ter orgulho de sua prole; gostam de vesti-los de cetim, rend~ e fitas. No primeiro auiYer­sário de seu filho, uma mulher de Itá ofereceu uma festa para os amigos e fez tm1•enorme bôlo com uma. velinha, doces e gulodices para os com1idados, cerveja. e cachaça, danças e música pela noite adentro, parru os amigos e parentes. Estava orgulhosa de seu behê. Teõricamente, as pessoas acham que as criauçus preci­sam de afeto, cuidados e proteção. Não gostam de cas­tigos corporais. Embora nos mostrassem a palmatória destinada a sovar a inão das crianças desobedientes, nunca vimos alguém usá-la. Um homem eontou-nos­~omplacentemente que havia feito uma palmatória para assustar seu netinho e que o meuino a despedaçara.

A gente de Itá diz que as crianças não devem executar trabalhos pesados porque "seus ossos são moles"." Enéas Ramos, por exemplo, era de opinião de que não se deviam deixar os meninos trabalhar na roça cem machados, ou outro qualquer instrumento pesado,

246

Page 247: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

antes de atingirem os dezessete ou dezoito anos de iclallc. Disse-nos que não permitiu que seu filho cultivasse a roça enquanto não completou quinze anos. E mesmo então só executava serviços leves, como plantar e colher a mandioca. Só quàndo completou dezoito anos, clisst> Enéas, permitiu ao filho ajudá-lo nos trabalhos mais pesados, como preparar e destocar o terreno. Seu SO·

brinho, porém, precisara executar tarefas pesadas "jú. aos quatorze anos". Por êsse motivo "nunca criara corpo", explicou-nos. Contou ainda que sua própria mãe obrigava-o a estudar música (aprendeu flauta de ouvido) até a idade de quase vinte anos, não lhe per­mitindo qualquer trabalho pesado. Dá-se o mesmo eom as meninas; estas não 'devem carregar pêso até se casarem, aos dezoito anos de idade. As cria11ças devem ser impedidas de executar trabalhos braçais e precisam ser cercadas de afeição. Se assim forem tra· tadas, mais tarde retribuirão aos seus pais. Têm para com êsses uma grande dívida e cabe-lhes sustentá-los na velhice. Em Itá, como em todo o Brasil rural, ensina-se as crianças a pedirem a "bênção" aos pai~ tôdas as manhãs e à noite; segundo a norma ideal, o filho deverá continuar a pedir a bênção dos pais du· ran te o resto de sua vida, bem como submeter-se à autoridade paterna, mesmo depois de adulto.

:l!:sses padrões ideais da "criança protegida" e do "pai respeitado" estão, entretanto, muito longe da rea­lidade. Essa teoria de que a criança não deve ter permissão para executar trabalhos braçais é puramente aristocrátic·a. A situação econômica instável da maioria dos habitantes de Itá, a instabilidade de suas relações conjugais, e a conseqüente desunião das famílias não proporcionam nma.- situação propícia à proteção da criança. Em algumas famílias da classe mais alta que têm empregados, as crianças não têm necessidade de

247

Page 248: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

executar trabalhos domésticos. Em tôdas as famílias da classe alta as crianças não fazem qualquer trabalho manual - isto é sinal de baixa origem. As pessoas ele tôdas as classes bem gostariam de preservar os filhos de todo e qualquer trabalho; mas o mais que podem fazer é agradá-los de vez em quando, gastando quantias relativamente elevadas para lhes dar roupa, presentes, ou festas de aniversário. Na realidade, a maioria das crianças tem que trabalhar duramente. desde bem cedo. As meninas, a partir dos seis ou sete anos de idade, carregam água do rio para as necessi­dades da casa. Ajudam na cozinha, lavando pratos, moendo café, preparando a comida e limpando a casa. A filha de Juca, de onze anos, ajudava a lavar a roupa, passava, trabalhava com a mãe na fabricação da farinha. de mandioca, descascando as raízes, penPirando a massa e girando a grande roda do moinho. Excluindo suas horas de aula (de cêrca de oito horas da manhã ao meio-dia) e as horas ·gastas nas inúmeras tarefas caseiras, restavam a Chiquinha apenas umas duas horas, no fim do dia, para os brinquedos.

Mas, também os meninos se ocupam. Começam a trabalhar na roça com os pais aos dez ou doze anos e, nessa idade, já podem pescar para ajudar â suprir a despensa da casa. Enéas Ramos, entretanto, censurava seu vizinho, Raimundo Mendes, por .permitir que o filho de dez anos remasse enquanto êle pescava e por deixá-lo pescar sõzinho até tarde da noite. Nessas famílias de. lavradores é comum ver-se um menino de doze anos arcar com todo o trabalho da roça e substituir o pai na estrada de borracha quando êste está doente. Mas os meninos são sobretudo solicitados a fazer um sem número de recados e a executar uma infinidade de pe­quenas tarefas que os adultos consideram desagradáveis. O comentário feito, certa vez, em brincadeira, por um

248

Page 249: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

brasileiro de que "os últimos escravos do Brasil são os garotos", é um fato em !tá. Os adultos levam o dia fazendo êsses meninos de nove a treze anos correrem de um lado para outro. "Vá buscar meus cigarros!". "Leve êste embrulho para casa!" "Está chovendo l deixe, que o Joãozinho vai buscar o seu g'Uarda-chu­va !" "Vá lá fora c apanhe o machado que cu esqueci" - essas são apenas algumas das ordens que pais, pa­rentes e até amigos íntimos da família dão aos meninos no transcorrer de um dia. Os garotos só têm tempo para brincar se conseguem fugir d{! perto dos adultos. Quando querem se divertir, portanto, reúnem-se, à tar­dinha, nos confins da cidade.

A freqüência com que se adotam crianças, em Jtá, está, por conseguinte, diretamente relacionada à sua utilidade. Muitos de nossos conhecidos nessa cidade tinham filhos de criação. Juca e sua mulher, que não possuíam filhos, adotaram uma menina de um ano. Outro casal sem filhos, Ernesto e Maria, perfilharam um bebê, pouco antes de lá chegarmos, em 1948. Do­mingos Almeida, cuja mulher estava grávida, tinha também um filho adotivo de quatro anos. Orlando e sua mulher Diquinha, que mantinham um.a pensão, ado­taram dois - um menino e uma menina. Bibi Ma­rajó e sua mulher têm um filho adotivo de dez anos. A professôra Dona Branquinha criou várias filhas ado­tivas, além de seus dois filhos legítimos. E Dona Dora, cujo filho único morrera há alguns anos atrás, adotara, durante tôda a sua vida, doze crianças. Em 1948 com ela moravam três delas: Raimunda, cujos pais eram parentes distantes de Dona Dora e viviam em outro Estado; Liberato, menino de oito anos, que perdera pai e mãe e Catarina, de onze anos, cujo pai, seringueiro, pedira a Dona Dora que cuidasse da menina. Também Filomeno, homem de recados da Casa Gato, e Manuel

24!>

Page 250: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

que lá trabalhava como escriturário, eram filhos ·ado­tivos de Dona Dora e foram criados em sua casa. Seus outros filhos de adoção, àquela época, estavam espa­lhado~, alguns nos distritos rurais, outros em Belém.

1 Quase sem exceção, tôdas as famílias de certa estabili­dade econômica em Itá possuiam filhos adotivos. E em quase todos· os postos de comércio Jos distritos rurais de !tá que visitamos, o comerciante e sua mulher nos apresentavam seus "filhos de criação".

Essas crianças·são geralmente muito bem tratadas. Os casais que as adotam consideram-nas verdadeiros filhos. Foi o que se deu com Juca e Ana, e Ernesto e

. Maria que adotaram, respectivamente, uma filha e um ·filho. A gente da Amawnia dá grande importância à educação. A grande maioria dos . pais adotivos faz questão de que seus filhos fr~qüentem a escola, d~sde que os recursos o permitam, naturalmente. Acham também que, além de "instrução", têm obrigação de dar às crianças que adotam, "educação", isto é, boas maneiras, e são muito severos quanto ao "respeito" que estas devem sempre demonstrar pelos demais. Aos pais adotivos compete ainda dar instrução religiosa aos seus pupilos, fazendo-os rezar tôdas as noites com a família. Quando podem, enviam as crianças à Igreja para rece­berem uma instrução religiosa mais convencional. Em Itá, as crianças assistem ao ofício religioso das "véspe­ras", dirigido por Dona Branquinha, e, quando há um padre na cidade, ao catecismo e à missa. É também obrigação dos pais adotivos "ensinarem seus filhos a trabalhar". Como, geralmente, tais crianças são de origem econômica e social inferior à de seu8 pais ado­tivos, quase sempre filhos de pais pobres, recebem ta­refas manuais - carregar água, rachar lenha e lavar a casa e. outros serviços menores.

250

Page 251: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Nas famílias da classe mais alta de Itá, onde há filhos legítimos e_ad!ltivo_s~ J.âo_&fil..es..ilJtimos que fl!mfil o ir.aba~~ Liberato, por exemplo, filho ado­tivo de Dona Dora, de dez anos apenas, tinha que tomar conta dos seus sobrinhos. Levava horas, pacientemen·· te, balançando-os na rêde e vigiando-os enquanto brin­cavam. Nos poucos momentos livres que lhe restavam depois da escola e de vigiar as crianças a seu cargo, era constantemente ocupado por sua mãe adotiva ou Jlelo gerente da Casa Gato em recados. A família que residia nos fundos da nossa casa em Itá tinha um filho adotivo de cinco anos que vivia ocupado, rachando lenha, carregando água, esvaziando baldes, procurando a te­soura da "vovó", etc. A mãe da família constantementei ralhava com êle aos berros que se ouviam lá de casa. De vez em quando sua "avó" dava-lhe uns croques por­lp1e êle custava muito a aprender. Tal procedimento, entretanto, é muito raro em Itá. As vêzes ameaçava-o de devolv,ê-lo ao pai "se não corrigisse os modÓs". Na maioria das casas de família da classe mais alta essas crianças adotivas ocupam uma posição inferior. São um rneio-têrmo entre o parente pobre e o empre~ado não remunerado. De fato, na cidade de Belém, é cos­tume ant'igo nas famílias de posse "adotar" crianças das cidadezinhas do interior. Garantem assim empre­gados para sua casa e, ao mesmo tempo, dão à criança um ofício ou uma profissão. Mas, nas famílias mais' pobres de Itá, tôdas as crianças trabalham muito. Pol' conseguinte, o tratamento dispensado aos filhos ado­tivos ó absolutamente igual ao· que se dispensa aos ver­dadeiros.

A freqüência da adoção de crianças na região ama­zônica está diretamente ligada à pobreza e aos altos índices de mortalidade da população. A vida humana é absolutamente incerta na Amazônia. É comum ver-se

251

Page 252: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

marido e mulher morrerem subitamente de malária, ou outra epidemia, deixando dois ou três filhos pequenos. Como não existem instituições públicas, e como as crian­ças, geralmente, não têm um grande círculo de parentes, precisam ser adotadas por outras famílias. De ácôrdo com o que dissemos antes, a insegurança da situação econômica da maioria dos homens freqüentemente causa.. a dissolução do casamento. ~ mulheres abandonadas pelos maridos, m:uitas vêzes têm necessidade de "dar" um ou mais de seus filhos. As vêzes um. casal de la­vradores ou seringueiros pobres "têm mais filhos do que podem sustentar" e então "dão" os mesmos, para que possam ter benefícios materiais e educação. Muitas pessoas que viajaram para essas áreas longínquas da Amazônia receberam oferecimento de crianças. "Leve a criança com o senhor para sua terra (Rio de Janeiro ou Belém) onde êle pode receber educação", disse uma mulher, nas vizinhanças de Itá, oferecendo um meni­ninho, todo encolhidinho no meio de várias crianças. Dona" Dora contou-nos o caso de um casal de serin­gueiros que viajara vários dias para lhe dar sua filha portTue tinham ouvido falar da sua bondade e do seu interêsse pelas crianças que adotava. Contaram-lhe a· situação econômica de desespêro em que se encontravam, que a menina não tinha comida suficiente para se ali­mentar, e que não estavam em condições de lhe dar qualquer instrução. Pediram-lhe que ficasse com a menina e não houve jeito de aceitarem qualquer recusa. Quando, afinal, Dona Dora consentiu, o casal partiu para um seringal ao norte do rio e nunca mais voltou.

Como meio de cuidar de órfãos e crianças aban­donadas, êsse sistema de adoção depende da existência de um grupo econômico-social capaz de assumir a res­ponsabilidade de numerosas crianças, e de condições. sociais que façam dessas crianças elementos úteis de

252

Page 253: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

uma família. Quando tais condições desaparecem, como aconteceu no sul do Brasil e nas nações mais industria­lizadas, criam-se instituições públicas. Em Itá, porém, como aliás cm tôda parte, a adoção também é motivada pelo desejo de certos casais de terem filhos. Um casal sem filhos da classe mais alta de Itá, por exemplo, pediu à mulher de um seringueiro que estava grávida que lhes desse a criança assim que nascesse. O bebê lhes foi entregue com poucos dias e só sentiam, disseram êles, ter que contar-lhe mais tarde que fôra adotado. Muitos pais adotivos conservam grande afeição pelos filhos, mP.smo depois que se vão embora. Dona Bran­quinha contou-nos o quanto sofreu quando sua filha adotiva fugiu com Samuel, filho do dono de um dos armazéns de I tá. Dona Dora aproveitava-se de tôdas as oportunidades para mandar frutas, peixe e outros presentes para um de seus filhos adotivos que se mu­dara para Belém a fim de trabalhar em uma companhia de transporte aéreo. Da mesma forma, muitos filhos adotivos lembram-se de seus pais com verdadeir{> ca­rinho e respeito.

Um dos casos mais extraordinários de adoção em Itá revela êsse desejo sincero de possuir prole, bem como a facilidade com que as pessoas "dão" seus pró­prios filhos. O caso ocorreu poucos meses antes de chegarmos à comunidade. Maria, uma jovem de cêrcu de dezenove anos, foi abandonada por seu amante quan­do ficou esperando criança. Durante os últimos dias de gravidez, segundo o relatório do médico da Saúde Pública de Itá, Maria foi vítima de graves hemorragias. O médico conseguiu mandá-la, às pressas, para um hos­pital na região do delta, onde a criança nasceu pre­maturamente e morreu. Embora não tivesse marido, e um filho constituísse para ela verdadeira carga, a jovem ficou desolada. Uma mulher que ocupava o

25:-J

Page 254: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

leito vizinho e que tivera seu sétimo filho, compadece\l· se de l\faria e acabou por lhe dizer que ela e seu 'marido "não podiam alimentar tantas crianças" e ofereceram­lhe o recém-nascido. Com surpresa dos médicos (recém­chegados do sul do Brasil), Maria aceitou a criança com o maior entusiasmo. Voltou para Itá orgulhosa de seu bebê. Durante quase um ano trabalhou como em­preg!}.da doméstica para uma das "primeiras famílias" de Itá para sustentar a criança. "Juntou-se" depois a um jovem lavrador, dono de umas plantações de mandioca perto do Igarapé Itapereira, não muito longe da cidade, dizendo-nos: "1lJle me ajudará a sustentar o meu filho".

Essas freqüentes adoções e a facilidade com que os pais dão seus filhos em I tá não podem, portanto, ser explicadas unicamente pela pobreza ou pelo serviço que essas crianças prestam aos seus pais adotivos. Na Amazônia, como no rest'o do mundo, a adoção tem suas razões humanas. Entretanto, cm muitas partes do mun­do, a mãe que desc;;e seu filho com tamanha facilidade seria considerada desprovida de sentimentos maternais, pois, em muitas sociedades, mesmo as mulheres extre-

' mamente pobres apegam-se desesperadamente aos seus filhos (18). Na Amazônia compreende-se que se "dêem" as crianças pois isto resulta em benefícios para elas. E, em Itá, a atitude dos pais adotivos para com seus filhos é muito diferente da que se observa em outras sociedades ocidentais. Nos Estados Unidos, por exem­]'.llo, os pais adotivos, geralmente, procuram conhecer os "antecedentes" da criança que vão adotar, pois re­ceiam que ela mais tarde "dê em droga" por causai

(18) Em Itá a ilegitimidade ou o fato de ser mãe sol­teira não constitu·em estigmas como, por exemplo, nos Esta~ dos Unidos; as mães, portanto, não são obrigadas a se des­fazer de seus filhos.

254

Page 255: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de su?. hereditariedade biológica. A gente de Itá· não teme que os filhos de criação possam tornar-se desvia­dos sociais ou deixem de vencer na vida devido à sua progenitura. Acreditam mais na influência do ambien­te social do que na hereditariedade. Além do mais, cm Itá, essas maneiras de encarar a adoção e a doação do crianças parecem refletir a atitude fundamental dos pais para com as crianças. Os pais amam seus filhos, mas conformam-se em entregá-los a outros se, devido ;'t sua extrema pobreza, com êsse gesto, lhes propor­cionarem felicidade. Conseguem considerar e amar os filhos como personalidades independentes, e não como projeções de sua própria personalidade e de suas am­bições.

VII

Qualquer programa de reforma social tem que se basear no perfeito conhecimento da vida de família da sociedade visada. Isto se aplica, sobretudo, a um pro­grama que implique na modificação de hábitos, valores ou atitudes, que são inculcados na intimidade da vida familiar. Pode-se tentar promover modificações em uma comunidade e nos membros que a constituem, atra­vés de escolas, centros de saúde, ou vários outros meios administrativos, mas se tais medidas estiverem em de­saeôrdo com os padrões de c9mportamento e com os valores predominantes na intimidade da família, terão poucas probabilidades de êxito. Pode-se, por exemplo, ensinar noções de higiene nas escolas e o centro de saúde poderá pôr· em prática um excelente programa de edu. cação pública, Ilias, se êsses ensinamentos não penetra­rem no seio da família e não forem também por ela adotados, só serão aceitos "em teoria" e pouco efeito exercerão sôbre as crianças. Além do mais, é neces-

255

Page 256: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sário que as pessoas responsáveis pela promoção de tais 'programas levem em consideração o papel ideal a ser desempenhado por cada membro da família, tanto quan­to o comportamento propriamente dito dos mesmos. Em Itá, por exemplo, o ideal é que o marido, que con­trDla as finanças da família, faça êle próprio tôdas as compras. Sua opinião, portanto, é importante no que se refere à alimentação da família; qualquer programa destinado a inculcar melhores hábitos alimentares em Itá deverá prever a educação, tanto do marido, que com-

1 pra os alimentos, quanto da mulher, que os prepara. 'fodavia, é preciso que se leve em conta a distância que vai do comportamento ideal ao real. Em Itá, são real­mente as mulheres que têm maior influência sôbre a.o; questões de família, sendo muitas delas o seu verda­deiro sustentáculo. Isto quer dizer que um programa -educativo que precise da cooperação da família deve. visar não só ao marido como à. esposa.

Além disso, quando se formulam os planos e se executam os programas de transformação social de qual­quer comunidade ou região, tem-se que levar em consi­deração as diferentes formas em que uma determinada instituição ou tôda uma escala de valores e atitudes se manifestam nos diversos .grupos econômico-sociais. Na Amazônia, a forma ideal da família,' os padr9es • .l:ideais de comportamento de s~us membros e os valores considerados na vida de família são os da alta ,Classe·

' aristocrática da região. Na aristocracia regional -uma classe que não existe em Itá - êsses ideais são mais perfeitamente atingidos do que em Itâ. Entre os descendentes dos grandes proprietários de terra da região, na classe comercial, entre os líderes políticos e os burocratas mais altamente colocados, a grande. fa­mília, com centenas de parentes, é uma instituição vi:va, bàsicamente necessária às suas relações sociais, comer-

256

Page 257: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

<:1ais e políticas. Para se poder pertencer, sem res­trições, a êsse grupo social da Amazônia é indispen­sável conhecerem-se os sobrenomes e o parentesco dos seus membros. Se um indivíduo sabe que seu sócio é um da Gama Martins ou um Costa Azevedo, (19) jú conhece sua posição social, econômica e política na sp­ciedade regional. Essas grandes famílias controlam a vida social, eçonômica e política e já enredaram de tal maneira suas relações de parentesco, pelo casamento, que formaram extensos grupos de família, tanto nos negócios como no govêrno.

Nas pequenas localidades e nos distritos rurais da região amazônica êsse ideal da grande e unida famífü•~ brasileira é raramente alcançado. Como as pessoas são pobres, não possuem as propriedades e os interês­ses econômicos que tendem a manter unidos os grandes círculos de família. Os parentes mudam-se para outras cidades e perdem-se de ·vista. A gente pobre da cidade, o pequeno lavrador e o seringueiro de Itá, têm famílias relativamente pequenas. E, como não contam com o apoio de u~ _gr!l~~c~!'ct:@: !am1har, dao grande-ii'il­põrfância ao compadrio. A instàfülifüfde ec-õnômica gerou em Itá as ·frágeis relações cÔnjugais que eho­eam essencialmente com os ideais transmitidos pela tra­dição aristocrática. Entre êsses brasileiros da zona rural, a família é, na realidade, um elo fraco no seu sistema social e a causa de muitos ma1es sociais da comunidade.

(19) :S:sses nomes são fictícios, naturalmente, mas du­rante uma visita a Belém ou a Manaus ficam-se logo conhe­cendo os nomes das famílias importantes.

257

Page 258: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

6. A GENTE r_rAMBÉM SE DIVER.TE.

Os meses de inverno, que, em Itá, vão de janeiro. ~ abril, são tediosos e monótonos. O aguaceiro prende a gente dentro de easa, as ruas da eidade fieam enla-1lleadas e, às vêzes, parcialmente inundadas. O rio e

258

Page 259: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

seus pequenos afluentes cre.j!Cem e transbordam. Tal como acontece durante o inverno rigoroso dos climas temperados, no inverno tropical da região amazônica os moradores de Itá são obrigados a permanecer dentro de casa. E, como nas zonas temperadas, uma série de festas comemora o fim dos enfadonhos meses de inverno. Foi, realmente, essa analogia no ciclo climático que, no norte do Brasil, preservou a tradição das velhas festas portuguêsas da primavera, dentre as· quais des­tacam-se as de junho (Santo .A.ntonio, São João e São Pedro) que foram transplantadas de Portugal para o Novo l\Iundo onde, hQje, -marcam o fim das chuvas, como em sua terra de origem marcam o início da pri­mavera. Todos os anos, em maio e junho, quando, 110

Vale Amazônico, os rios voltam aos seus leitos e as chuvas diminuem, começa a estação sêca; realizam-se então inúmeras festas que, na comunidade de Itá, cul­minam com a de São Benedito, no dia 24 de dezembro. Entre 13 de junho, dia de Santo Antonio, e 27 de de­zembro, ao se encerrarem oficialmente as comemorações da festa de São Benedito, realizam-se, naquela comu­nidade, mais de quatorze festas religiosas. Dessas, apenas três são comemoradas na cidade; as demais reaw lizam-se nos distritos rurais. Conquanto sejam tôdas em honra a algum santo, a Igreja reconhece apenas duas: a de São João e a de São Benedito. As outras são consideradas "profanas" pelo padre que, periodica­mente, visita Itá.

As festas "profanas" são organizadas, nos vários distritos rurais, por irmandades religiosas. Essas irmandades assemelham-se às "Ordens Terceiras", tão comuns no Brasil; não são, porém, sociedades benefi­centes, nem se subordinam à Igreja, a cujos regula­mentos não estão sujeitas, razão pela qual os padres católicos as combatem. Entretanto, apesar dessa opo-

259

Page 260: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sição, são elas numerosas »os distritos rurais. Constituem mais do que simples associações dos devotos de um determinado santo, pois promovem a organização formal do povoado rural em que estão estabelecidas. Já que a maioria dos habitantes (tanto homens, como mulheres) de uma aldeia são comumente membros dessas irmandades, seus dirigentes são os líderes natu­rais e os indivíduos de maior prestígio da comunidade. Os administradores de uma irmandade típica consistem, geralmente, em um procurador, um tesoureiro, um secretârio, uma zeladora, o mestre-sala e o andador. Cada irmandade é instituída em homenagem a um determinado santo, do qual possui uma imagem e um estandarte ostentando o símbolo do orago, além de ins­trumentos musicais - tambores, matracas, e um ras­pador, - de que se serve a folia ( 1), cuja função consiste em ir de casa em casa, todos os anos, cantando e pedindo contribuições para a sua festa. O "santo" permanece na casa de um dos administradores, ou, no caso das irmandades mais bem organizadas, em uma capelinha. Seus membros pagam uma pequena jóia, que em rgeral não vai além de um cruzeiro por ano. Mantêm as irmandades um registro em que inscrevem suas normas e regulamentos, os nomes de seus adminis­tradores, a relação de seus membros e, o que constitui uma irregularidade, as atas e a escrita de suas ativi­dades e operações.

A função principal das irmandades rurais é orga­nizar a festa anual do santo a que são dedicadas. Essa festa é, às vêzes, precedida pela folia. Nessas ocasiões os administradores da irmandade levam a imagem do

(1) A folia, cujo sentido geral é a dança rápida, marcada pelo acompanhamento dos tambores, refere-se, nessa região, tanto ao grupo dos músicos quanto ao dos devotos que pe­dem contribuições para o santo e as atividades da irmandade.

260

Page 261: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

santo, numa canoa especialmente enfeitada, em visita a outras aldeias e distritos rurais. Em seu percurso, vão parando de casa em casa e, ao ritmo dos tambores, das matracas e do raspador, cantam em homenagem ao santo e pedem donativos. Uma folia pode durar todo um mês ou alguns dias apenas.

A festla propriamente dita dura dez dias; come~ çando nove dias antes e terminando no dia da festa do santo. Embora constitua responsabilidade da irmandade inteira, escolhem-se todos os anos aquêles de seus membros que atuarão como juízes e mordomos e que deverão encarregar-se das despesas e responsabi­lizar-se pelas diversas comemorações. Cada fase dos festejos tem seus juízes e mordomos, em número de dois, - um homem e·uma mulher, geralmente um casal. O casal responsável pelo primeiro dia, em que é erguido um enorme mastro votivo, é conhecido como "juízes de mastro". Os juízes da festa são responsáveis pelas comemorações das vésperas do dia do santo. Os mor­domos, também conhecidos como noiteiros, organizam as atividades e as despesas dos dias que medeiam entre a ereção do mastro e o próprio dia do santo.

As atribuições dos mordomos limitam-se a oferecer. café e bolo de mandioca aos que comparecem à ladainha. Nas raras ocasiões em que se realizam danças durante r. novena que precede o dia do santo, uma flauta e um violão, tocados por dois membros da irmanqade, constituem a orquestra. Entretanto, as despesas com os juízes da festa são extremamente altas em relação à renda média das pessoas que para elas contribuem. São êles os patrocinadores das fases dos festejos que con­gregam o maior número de participantes. O dia da festa do santo constitui o ponto alto dos festejos, de­vendo, portanto, ser comemorado de mane~ra tôda

261

17

Page 262: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

especial. Os juízes devem providenciar alimento para todos os que dela participem; comprar fogos de arti­fício; pagar os músicos para tocar no baile, a noite tôcla; e fornecer aguardente, pelo menos, às autoridades e aos convidados mais importantes. A despesa média de um casal ele juízes de mastro varia de Cr$ 500,00 a Cr$ 800,00; a de um casal de mordomos é, geralmente, de Cr$ 200,00; e a dos juízes da festa, é de Cr$ 800,00 a Cr$ 2.000,00 ou mais.

Essas festas rurais, conquanto organizadas sob o pretexto de comemorações religiosas em homenagem a um santo, constituem alegres reuniões sociais para tôda a família. Uma dessas festas típicas é a que se realiza todos os anos em Maria Ribeiro, em honra à sua padroeira, Santa Apolonia. Maria Ribeira é um distrito, tipo povoado, com umas doze casas de cobertura de palha em volta de uma praça de forma irregular. Existe nessa praça um grande barracão, aberto dos lados, com chão de terra batida. Chamam-no ramada, e nêle se dança durante as festas. Como a irmandade local não tem capela; a imagem de Santa Apolonia é guardada em uma dependência da casa de alguma autoridade. Santa Apolonia é comemorada em Maria Ribeira no dia 28 de agôsto e, segundo o costume local, os festejos começam no dia 18 do mesmo mês. Nesse dia os moradores das proximidades, e até mesmo os da cidade de Itá, começam a chegar cedo, pela manhã, para a solenidade da ereção do mastro. Viajam em canoas carregadas até às amuradas, com seus pequeno·s baús de lata em que guardam as roupas de festa, suas rêdcs e outras bagagens, com alimentos c, às vêzes, uma. garrafa de aguardente. Cada canoa que chega faz-se anunciar, soltando foguetes ou gritando. A medida que as canoas vão encostando no pequeno porto de Maria Ribeira, os homens escondem cuidadosamente seus remos

262

Page 263: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

entre o mato, pois sabem muito bem que no fim do dia, ao se encerrarem as comemorações, ou de madru­e , depois de uma noitada de danças, não são res­peitados os direitos de propriedade dos remos pela gente que está com pressa de voltar para casa. Ao chegarem mais e mais visitantes, formam-se grupos separados de homens e mulheres que procuram os locais ao longo do riacho em que se possam banhar sossegadamente, fazer toilette e trocar de roupa para os festejos da tardinha e da noite. No grupo dos homens nota-se geralmente uma garrafa de bebida e, à medida em que vão trocando de sapatos, vestindo calças limpas, camisas brancas c casacos, riem, conversam e tomam seus tragos.

Durante a festa êsses banhos são muitas vêzes repetidos dnas vêzes por dia. Uma das impressões mais fortes que dali leva o forasteiro é o asseio do povo. Sente-se o cheiro de roupa limpa e os perfumes 'naturais da floresta amazônica. l\Iesmo quando está quente o dia, tem-se a impressão de frescor, pois as pessoas ba­nham-se e vestem-se sempre especialmente para cada f1mção religiosa e cada dança que se realiza. Apenas os perfumes baratos, com que se borrifam tanto os homens como as mulheres, perturbam a atmosfera extremamente agradável.

Por volta de meio-dia a folia, composta de músicos e cantores da irmandade, começa a percorrer as casas de Maria Ribeira. Cedo já havia visitado as vizinhan­ças para pedir contribuições. Vai agora de casa em casa, solicitando donativos dos moradores do poYoado. Diante de cada casa, seus componentes entoam uma estrofe em que pedem permissão para entrar. A dona da casa ajoelha-se diante da imagem de Santa Apo­lonia, recebe-a das mãos de seu portador e leYa-a para sua casa, colocando-a em um altar, improvisado na

2fi3

Page 264: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ocasião com a máquina de costura ou um caixote de madeira. Ajoelha-se então e reza para a santa. Aca­bada sua oração, a .folia torna a cantar em louvor à santa. Em seguida a dona da casa oferece-lhes sua contribuição - dinheiro, uma galinha, um abacaxi, uns poucos quilos de farinha de mandioca, ou alguma outra coisa qué possa ser vendida em leilão no dia da festa da santa. O dirigente da irmandade, encarre­gado da comemoração, acompanha a folia a fim de arrecadar os donativos de casa em casa. À tardinha, já a folia visitou tôdas as casas do pequeno povoado, chegando então a hora da inauguração oficial das comemorações.

A ereção do mastro marca a inauguração oficial dos festejos. Um poste de cêrca de oito metros de altura, previamente preparado, estâ pronto na floresta, a pouca distância do povoado. O mastro é decoradõ com folhagens e abacaxis inteiros, amarrados, em tôda a extensão do poste, com pequenos intervalos. Ao cair da tarde é carregado nos ombros dos homens jovens que, acompanhados pelos juízes de mastro e os músicos da folia, o levam para o local em frente à residência que serve de capela. Ali é erguido. Soltam-se fo­gÜetes e a folia, que acompanha os juízes e os mem­bros da irmandade, dá várias voltas à roda do poste, cantando hinos à santa. Ao fim dessas cerimônias, a imagem é levada para o altar 'da capela e o mestre­sala conclama todos para as orações da tarde.

Essas orações, como todos os serviços religiosos das festas, são conduzidas por um irmão leigo da irman­dade, .geralmente o mestre.,sala. Os padres católicos não comparecem nunca, nem é sua presença desejada. Certa ocasião, disseram-nos, o padre resolveu assistir à festa, apesar de, tôdas as dificuldades que lhe puseram os membros da associação. :Explicaram-lhe que. havia

26~

Page 265: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

pouca comida e que o tributário do rio não era nave­gável senão por uma canoa muito pequena, sem nenhum confôrto. Não lhe podiam prometer uma casa decente. Mas o padre ficou firme em sua determinação de assistir à festa. Mandaram-lhe, então, uma canoa que fazia tanta água que êle teve de desistir e retroceder depois de várias horas de viagem. Se o padre estivesse presente, disseram, não teria havido danças. e bebidas na festa.

Em Maria Ribeira o mestre-sala conduzia os ser­viços em latim, sendo cada versículo repetido pelos componentes da folfo.. Em seguida uma jovem dirigia as orações e, quando estas terminavam, o mestre-sala continuava a rezar em latim. Consistiam as orações em repetições seguidas de rniserere nobis, ;icompanhadas pelo ritmo surdo dos tambores da falia. Era êste, cm geral, o teor das orações da tarde, que se repetiam todos os dias durante a novena, e dos demais serviços reli­giosos celebrados na capela no dia da festa da santa. Terminados os serviços, o grupo formava uma procis­são da capela até o pavilhão, onde <J mestre-sala convi­dava os juízes de mastro a se sentarem enquanto a f ol·ia. cantava uns versos de agradecimento aos juízes pro­motores da festa. :Êstes, então, abriam o baile. Dan­çavam juntos a 1mão de sarnba, dando início aos festejos. Os tambores batiam o ritmo do samba e todos aderiam à dança. Depois da primeira dança, que fom de ser sempre um samba, eram os tambores substituídos por uma .orquestra composta de uma flauta, um violão, um ou dois cavaquinhos e talvez um sacudidor. Ser­via-se o jantar, primeiramente aos administradores da irmandade, aos juízes, mordomos e ao grupo da folia; em seguida, à orquestra e aos convidados espalhados por varias mesas. E as danças prosseguiam pela noite adentro, até o amanhecer.

2(}5

Page 266: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Durante a noite os homens, de vez em quando, esgueiravam-se por entre a multidão, até os esconderijos de suas garrafas de aguardente - "para tirar a poeira dos olhos", como diziam. l\fas raramente bebiam em excesso. Também, nessas festas, quase não se regis­tram violências e desordens. As mulheres, de vez em quando, afastavam-se do baile para darem uma olha­dela !is crianças que ficaram dormindõ em suas rêdes, armadàs nas cêrcas do pavilhão de danças,· ou 11a3 casas da vizinhança. As vêzes, um ou outro adulto aventurava-se a descansar ou tirar um cochilo na rêde, mas o barulho da música e do arrastar de pés sôbre o piso de madeira, as risadas e a conversa dos festeiros, continuavam pela noite adentro. Na manhã seguinte, depois de tomar um cafezinho e de comer um bôlo de beiju, retiravam-se os visitantes.

Nas oito noites da novena holwe rezas tôdas as tardes, ao pôr do sol. O mordomo de dia forneceu os foguetes que se soltavam no início e no fim das orações, bem como café com bolos para os assistentes. Durante tôda a novena os mordomos só tiveram que pagar música para dançar em duas ocasiões e, assim mesmo, por poucas horas. Houve muita alegria nesses dias de festa mas, cm geral, foram poucos os assis­tentes; a gente de l\faria Ribeira estava muito ocupada, preparando-se para o clímax. dos festejos.

No dia 27 de agôsto, véspera da festa de Santa Apolonia, chegaram a l\faria Ribeira mais de cem visi­tantes de distritos rnrais vizinhos e da cidade de J!á.,J Ao cair da tarde, o grupo da folia retirou da capela a imagem da santa, colocando-a em uma canoa profu­samente enfeitada com estandartes e bandeirolas de papel. Era che.gada a hora da "Meia-Lua", procissão náutica de canoas que trançam, de um lado para outro,

266

Page 267: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

formando um oito no pequeno rio que corre defronte da aldeia. O grupo da folia, que levava a santa na canoa capitânia, tocava tambores e dirigia a cantoria. Soltaram-se foguetes em profusão. ·Terminada a Meia­IJua, a folia levou a imagem a várias casas em que se hospedaram visitantes, para angariar novos donativos. Por volta das 8 horas da noite o mestre-sala anunciou o início das orações da tarde. Findo o serviço reli­gioso, que fôra mais apurado do que de costume, for~ mou-se um círio (procissão em . que todos carregam velas), que se dirigiu lentamente da capela para o pavilhão de danças. Nessa noite os juízes da festa dan­çaram o primeiro samba enquanto os demais observa­vam. O baile popular que se seguiu foi extraordinària­mente animado, prolongando-se por tôda a noite e até o sol alto, no dia seguinte. E depois de um breve descanso, o baile recomeçou. Era o dia de Santa .Apolonia e as danças continuaram por tôda a manhã, até à tardinha.

Havia mais gente na véspera do dia da Santa do que no primeiro dia dos festejos, em que foi erguido o mastro. O jantar, oferecido pelos juízes da festa e por êles servido com a ajuda de seus compadres e pa­rentes próximos, começou às nove horas da noite e prolongou-se até à madrugada. Uma mesa substituía ou'tra. .Alguns dos visitantes só puderam ser convi­dados a sentar muito depois de meia-noite. Mataram-se quatro porcos que foram servidos com enorme quanti­dade de . farinha de mandioca, açúcar, café e aguar­dente. Os juízes, marido e mulher, haviam feito a promessa de l\rcar com as despesas da festa qur, incluindo-se os gastos com os músicos (que tocaram tôda a noite e o dia seguinte) subiram a mais de Cr$ 2.000,00. O marido, antecipad(amente, plantara, havia um ano, uma grande roça, certo de que, com a

267

Page 268: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

proteção de Santa Apolonia, cons~<YU1na pagar o ven­deiro que lhe fiara os foguetes, o café, o açúcar, o querosene e outros artigos. Tivera também que pedir" emprestado o dinheiro para pagar os músicos. É uma questão de honra para os juízes não deixar ninguém sem comida e proporcionar música enquanto o povo tiver vontade de dançar - mesmo que assim se sobre­carreguem de dívidas que levarão dois ou trêS anos para saldar.

Lá para o meio da tarde o mestre-sala interrompeu as danças para anunciar o leilã.o dos objetos e dos alime~tos oferecidos ao santo, e os membros da irman­dade apregoaram as prendas. Um dêles, que tinha fama de engraçado, bancou o leiloeiro enquanto outro anotava os lances. Foram vendidos nesse leilão Yários cachos de bananas, abacaxis, sacos de farinha de man­dioca, uma galinha de raça, uma garrafa de aguar­dente, um estojo de barba embrulhado em papel de presente como "surprêsa", dois bolos dentro de caixas coloridas, e várias outras miudezas. :Êsse determinado leilão rendeu apenas Cr$ 50,00 mas têm havido ocasiões em que a competição é tão cerrada em tôrno dos artigos desejados (principalmente das "surprêsas") que o preço sobe muito além da expectativa. (2) O produto do leilão é aplicado pela irmandade em reparos e de­coração de sua capelinha.

Depois do leilão os membros da irmandade retira­ram-se para escolher os patrocinadores da festa do ano st\g"Uinte, dentre os candidatos para juiz de mastro, mordomos e juiz da festa que já haviam sido sondados.

(2) Em um leilão realizado na cidade de Itá, em bene­ficio de um clube de saúde, houve lances até de Cr$ 50,00 • por uma melancia, Cr$ 20,00 por um abacaxi e Cr.$' 60,00 por um simples bolo, etc. No calor da competição as pessoas iJ.Cabaram por pagar mais do que podiam.

268

Page 269: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Entre êsses candidatos, alguns haviam feito promessas à santa e apresentaram-se oferecendo serviços. Em :Maria Ribeira, no ano de 1948, a seleção foi simples, pois Dona Dora Cesar Andrade, que comparecera nos últimos dias da festa, oferecera-se para juíz de festa, no ano seguinte; um outro comerciante e sua mulher consentiram em servir de juízes de mastro e outros casais aceitaram a incumbência de mordomos nas noites da novena. Os nomes dos novos juízes e mordomos foram inseridos na Ata e, depois de rezadas as Vés­peras, apresentaram-se ao lado dos juízes atuais de maneira a que todos os presentes os pudessem conhecer. Depois das orações da tarde, recomeçaram as danças c1uc, como de costume, se prolongaram até a manhã se­guinte. Na última noite, considerada o ponto culmi­nante dos festejos, compareceram novos visitantes, especialmente para o baile.

Teve início na manhã seguinte o êxodo dos visi­tantes, com exceção de alguns poucos que permanece­ram até o meio-dia para a derrubada do mastro, cerimônia simbólica da terminação dos festejos. En­quanto a folia cantava ao ritmo de seus instrumentos de percussão, os homens subiam ao poste empunhando machados e, um a um, vibravam golpes no mastro até derrubá-lo. Todos então lhe retiravam as folhagens e com elas improvisavam vassouras para a limpeza simbólica da praça e das casas dos membros da irman­dl:tde. Isto feito, lotavam as canoas que os levavam de volta às suas casas. Remavam vagarosamente, exaustos, depois de ·dançarem durante duas noites consecutivas. Muitos estavam de ressaca e, depois de uma festa tão cansativa, tanto os moradores da cidade, como os visi­tantes, dormiram todo o dia seguinte.

Nos meses de verão é comum ver-se as famílias da comunidade de Itá comparecerem a várias dessas festas

26!)

Page 270: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

rurais das redondezas. Só na aldeia de .Jocojó, reali­zam-se quatro festas durante essa estação. Ninguém precisa de convite, porque todos têm pelo menos um amigo, parentes, ou compadres em tôdas essas aldeias. A gente da cidade também a elas comparece e, como no caso acima citado, serve freqüentemente de juíz ou mordomo, nas festas da santa organizadas nas aldeias rurais. Raramente assistem às festas que se realizam fora da comunidade de Itá. Acham que os bailes des­sas localidades distantes geralmente degeneram em farras, com bebedeiras e brigas. As festas que se rea­lizam dentro da área da comunidade, entretanto, con­gregam a "nossa gente", como dizem êles. Tais festas não só proporcionam distrações para os habitantes da cidade e das aldeias, como ainda contribuem para uni­ficar a comunidade, estabelecendo, com essas relações sociais, um elo entre a gente da cidade e os habitante;; das zonas rurais. Tanto as irmandades como as festas que elas patrocinam são instituições Sociais de grande importância para a comunidade de Itá.

II

Santo Antonio, padroeiro de Portugal, é também o santo padroeiro de Itá. O mais querido, entretanto, o mais famoso e o mais venerado no Brasil, onde é conhecido como o "santo preto", é....,S_ão.)3e~. sua imagem é popular em todo o Baixo Amazonas onde é êle considerado o protetor especial dos seringueiros.

).'Em Itá é êle o "santo do povo", enquanto o santo ela ,Primeira Classe e dos "brancos", escolhido pelos ibé­,ricos, fundadores de Itá, é Santo A.ntonio, que não se

jtornou popular entre a gente que veio posteriormente 1ª constituir a maioria da população - os índios, os

270

Page 271: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mestiços e os negros. Entretanto, por ser o padroeiro oficial da cidade, o padre católico estimula o culto do Santo Antonio e empresta todo seu apoio à festa quo no mês de junho se realiza cm sua homenagem, sendo uma das maiores que se celebram na cidade.

Mas· a festa de São Benedito, comemorada cm de­zembro, é, sem sombra de dúvida, a mais importante e a mais concorrida de Itá, e sua fama espalhou· se por tôda a região.

Cêrca de uma geração atrás, as festas em home­nagem a êsses dois santos eram organizadas por irman­dades semelhantes às que hoje existem nas localidades rurais. As irmandades <las cidades eram mais ricas e possuíam maior número de sócios do que as dos distritos rurais; tanto a de São Benedito, como a de Santo .Antonio mantinham cemitérios para enterrar os seus mortos. Ainda hoje' existem êsses cemitérios. Devido à posição social dos devotos de Santo Antonio, suá irmandade compunha-se de "brancos'', enquanto a de São Benedito era constituída por "gente do povo" -a segunda classe, os lavradores e os seringueiros. Es­pecialmente devotos de São Benedito eram os pretos velhos que dizem terem sido os líderes da irmandade. Hoje em dia, ambas só existem de nome. Todos os anos, antes das festas de Santo Antonio e. São Benedito, publica-se um aviso com os nomes dos sócios da irman­dade que as patrocinam, bem como os dos juízes e mor­domos. O· padre católico é sempre escolhido, pelas duas, para advogado de seu santo. Os outros diri­gentes são pessoas que ocupam alguma posição oficial, como o prefeito, a professôra pública, ou o agente da coletoria federal, ·ou mesmo coinerciantes importantes. Os juízes e mordomos são sempre os mesmos todos os anos e pertencem à camada mais alta da sociedade de

271

Page 272: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Itá, na realidade, mas quem organiza os festejos é dona Branquinha, a dedicada professôra, auxiliada por outras senhoras da alta classe. Para arcar com as des­pesas da festa, faz-se uma coleta entre a gente da ci­dade, sendo geralmente mais importantes as contribui­ções dos comerciantes a quem êsses festejos sempre beneficiam. Os que contribuem com as maiores quantias são promovidos· a mordomos da irmandade. Na reali­dade, entretanto, essas irmandades deixaram de existir: não possuem um quadro de sócios e sua diretoria consiste, unicamente, nos patrocinadores da classe mais alta, relacionados no aviso publicado.

Por haver, outrora, pertencido a .uma poderosa irmandade, o grupo da folia de São Benedito é o único que ainda permanece organizado. A fol.ia é composta, principalmente, de mulatos e negros da classe mais baixa, descendentes dos "negros velhos", grande:> devotos do santo. Há uni mestre-sala,· um encarregado das mensagens do santo e músicos (tocadores de tambor, um tocador de matraca e um de raspador) que apren­deram seu mister, bem como os versos e cantigas tra­dicionais, com os antigos detentores de seus postos, à época em que a irmandade era uma associação organi­zada. :Êsses membros da folia de São Benedito conside­ram sua a imagem do santo: "Foi-nos tirada por do127 Branquinha e o padre". Hoje em dia o padre nao permite mais que o grupo da: folia retire a imagem da igreja. As antigas. jornadas que outrora faziam por todo o Baixo Amazonas com o santo, cantando em seu louvor e angariando donativos, estão hoje reduzidas a uma pequena procissão através da cidade, organizada pelo padre e dona Branquinha. O grupo da folia só pode seguir a procissão atrás da imagem no próprio dia da festa do santo e, atualmente, já não tem mais permissão para ir de casa em casa, carregando-a e

272

Page 273: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

pedindo contribuições, assim como também já não pode dançar e cantar dentro da igreja como antigamente o fazia. A festa de São Benedito, que antes fôra diri­gida e organizada pela irmandade, passou agora a sê-lo pela Igreja oficial. (3)

A festa de Santo Antonio é comemorada com 0

formalidades. O padre católico que nessa ocasia:o vai a Itá não aprova a mistura de religião e prazeres, motivo pelo qual são pràticamente nulos os aspectos festivos das celebrações. A festa segue os mesmos moldes dos festejos rurais. Antigamente havia o dia da ereção do mastro, seguido de uma novena que encerrava a festa do santo. Hoje em dia, o mastro é raramente erguido, mas os devotos da classe mais alta ainda rezam a novena. No dia de Santo Antonio há missa e procissão e realizam-se numerosos batismos c casamentos, pois êsse é um -dos dois dias cm que se tem certeza de estar presente na cidade um padre ca· tólico. Nessa ocasião concentram-se em Itá várias cen­tenas de pessoas. Os negócios multiplicam-se nas lojas e os comerciantes armam barraquiuhas para a venda de refrescos e bolos. As vêzes, furtivamente, organi­za-se um baile, contra a vou ta de do padre, e geralmente! faz-se um leilão em que se vendem os presentes ofere· cidos ao santo. Na opinião de dona Branquinha a festa de Santo Antonio "não dá para pagar as despesas de decoração da igreja".

Em compensação, a festa de São Benedito não só paga a de<:oração da igreja para as duas festas, como ainda fornece meios para os reparos que se tornem necessários durante o ano. Por ser São Benedito o

(3) Eduardo Galvão, The Religion o/ an Amazon Com­munity (inédito, tese para o Ph. D., Universidade de Co­lumbia, 1952).

273

Page 274: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

protetor especial dos seringpeiros, muitos dêles doam ao santo o produto do primeiro dia de sua colheita. Em um ano normal êsse donativo vai além de mil libras de borracha bruta. Os barcos que passam por Itá soltam foguetes em homenagem ao santo e freqüen­temente param a fim de lhe oferecer um donativo. Tanto a gente da cidade como os moradores da zona rural da comunidade de Itã oferecem presentes ao seu santo favorito em retribuição às graças reêebidas du­rante o ano e à medida que se aproxima o dia da festa aumentam as oferendas. Estas consistem em borracha, uma vitela, farinha de mandioca, galinhas, porcos e quase tôda sorte de produto vendável. Dona Branquinha recebe os donativos e relaciona-os ao lado do nome do doador, em um livro, onde, posteriormente, também anota a quantia pela qual foram vendidos cm leilão, na festa de São Benedito. Em dois anos dona Branquinha pôde pagar as despesas de decoração da igreja para as comemorações e juntar cêrca de Cr$ 40. 000,00 para os consertos da mesma. "Santo Antonio mora na casa de São Benedito e à sua custa", queixa-se o povo. Dona Branquinha, entretanto, acha que êsses fundos "pertencem à igreja" e dêles presta contas ao padre, mas assim não pensa o povo para quem o dinheiro é propriedade de seu santo.

Antigamente São Benedito recebia ainda mais do­nativos do que hoje. Nos anos de alta da borracha, em relação à economia de Itá, era fabulosa a renda do

1 santo. Nessa época a irmandade costumava mandar o grupo da folia levar a imagem do santo em duas longas viagens para angariar contribuições e donativos. Era ela colocada em um altar provisório armado em um grande barco remado pelos membros da irmandade. Navegavam cêrca de 125 milhas, rio acima, parando em cada núcleo residencial e em cada posto comercial,

274

Page 275: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

cantando e rezando para o santo e recolhendo doua­tivos. De volta a Itá, o grupo descarregava sua coleta de ·borracha, iiado, porcos, farinha de mandioca e outros presentes e continuava, rio abaixo, só voltando às vésperas do dia em que se erguia o mastro que marcava o início das festividades. A volta c1a folia era sempre ansiosamente esperada e os velhos contam com grande orgulho histórias dos milagres operados por São Benedito nessas expedições. Atualmente, "São Benedito é pobre", explicou um devoto, "porque o padre não permite mais que a imagem saia da igreja com a folia".

Outrora as comemorações de São Benedito, corno as de Santo Antonio, seguiam os moldes tradicionais de ereção do mastro, das orações ao cair da tarde durante a novena, de danças, da procissão náutica da Meia-Lua, das representações do grupo da folia de­fronte de cada casa e do corte do mastro votivo e da limpeza das casas. A festa era, nesse tempo, diferente da que se realiza hoje nas zonas rurais; era mais esnw­rada e muito mais concorrida. Atualmente, muitas fases dos festejos foram abreviadas e mesmo supri­midas, devido ao severo contrôle exercido pela Igreja Católica. Como no passado, entretanto, as pessoas começam a cheg-ar a 1.0 de dezembro e a multidão aumenta dia a dia até 8 de dezembro, data em que é erguido o mastro. Pelo menos umas mil pessoas das localidades rurais e dos municípios vizinhos assistem à inauguração da festa. Em 25 e 26 de dezembro, no auge das comemorações, reunem-se em Itá mais de duas mil pessoas - quase quatro vêzes a população da cidade. Para alimentar todos os visitantes, armam-se barracas nas ruas e serve-se suco de assaí, doces e refrescos. Em tôdas as casas de Itã recebem-se convidados e até mesmo pensionistas. Outros dormem nos barcos cm

275

Page 276: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

que viajaram e outros ainda, desafiando a possibilidade de chuvas, penduram suas rêdes ao ar livre, debaixo das árvore.~.

Dança-se tôdas as noites. Para entrar, pagam os homens cinco cruzeiros, mas as mulheres entram de graça. A música é fornecida por uma orquestra que consta de uma flauta, um violão, um cavaquinho e um raspador. Tôdas as noites, e por todo o dia nos últimos dias dos festejos, dança-se o samba no pavilhão ao compasso dos tambores. O samba dançado nessa ocasião e nas festas rurais é diferente do samba das cidades, tanto no ritmo como nas próprias evoluções. O samba do velho estilo de Itã é dançado pelos casais, mas os pares de estranhos dançam afastados, sem que seus corpos se toquem. Seus passos são curtos e arras­tados, os corpos eretos, e um simples balanço de braços para estabelecer o equilíbrio. O ritmo é rápido, sendo os tocadores de tambor substituídos de tempos a tempos. A danr,:a é pràticamente contínua. O samba no pavi­lhão é uma tradição da festa de São Benedito e ali se reunem as pessoas para "dar uma volta" e apreciar os dançarinos exímios. A ordem é mantida pelo grupo da folia e os demais membros da irmandade que não permitem que os homens dancem eom os chapéus na cabeça e proibem bebidas no recinto. O pavilhão é a principal atração da festa, mas atualmente começa-se a demonstrar preferência pelo "baile pegado", como denominam a dança moderna, e essas danças comerciais desviam muita gente do pavilhão.

Sob a direção do mestre-sala, Benedito Torres, descendente de um dos "negros velhos", a folia de São Benedito ainda se reune para ensaiar durante a noite, várias semanas antes da festa. São muitos os bons tocadores de tambor, bem como de raspador e matraca.

276

Page 277: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Todos conhecem os versinhos ( 4) que se devem cantar em cada fase da festa e ainda se postam diante da igreja na ocasião da ereção do mastro cantando, de vez em quando, durante os festejos, uma alvorada ao romper do dia e uma Ave Maria ao cair da tarde. Mas só nas vésperas do dia de São Benedito cantam em frente às casas angariando donativos e o padre permite-lhes carregar apenas o resplendor em lugar da imagem. No dia 24 de dezembro a folia canta durante a procissão da Meia-Lua, seguindo com o santo na pri~ meira canoa e acompanhando a imagem de volta à igreja, quando novamente entoam seus louvores à porta do templo.

Em Itá, com exceção da missa de meia-noite, quase não há comemorações de Natal, que é eclipsado pelo auge dos festejos de São Benedito, de 24 a 28 de dezembro. No dia 24 realizam-se as procissões e as cantorias do grupo da folia e no dia 25 dança-se o samba. As atividades da folia foram atualmente sus­pensas durante o dia de natal, a pedido do padre. Cedo, no dia 26, há uma missa para São Benedito e à tarde tem início o tradicional leilão das prendas que geralmente continua até tarde no dia seguinte. O samba e as danças prosseguem ininterruptamente nos dias 26 e 27. No dia 28 de dezembro derruba-se o mastro ao som dos cantos do grupo da falia. As folhas que serviram para decorar o mastro são muito pro-

(4) O líder, que é o mestre-sala, famoso por sua bela voz, canta a introdução e os músicos fazem côro no refrão. Uma "alvorada", para só citar um exemplo, tem as seguintes palavras:

18

Alvorada! Alvorada! De manhli de madrugada ainda o folilio canta "Madrugada" Grande tino tem o galo para cantar "Madrugada!"

277

Page 278: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

curadas pela gente da cidade e pelos visitantes, para fins medicinais. Conserva-se ainda em Itá o costume de varrer as casas dos juízes e dos mordomos ao fim dos festejos, apesar de que essas pessoas são patrocina­dores apenas de nome. No dia de Ano Bom, depois de escoado o fluxo de visitantes, os comerciantes ofe­recem um baile à gente da cidade "porque ganharam muito dinheiro". Acontecendo imediatamente antes do início das chuvas do "inverno", o dia de São Benedito c·onstitui o evento mais importante do ano.

III

.As festas de junho - Santo Antonio (dia 13), São João (dia 24) e São Pedro e São Paulo (dia 29) - são das mais características e tradicionais do Brasil. Como a maioria dos elementos tradicionais da cultura nacional brasileira, o norte do país conserva a forma típica dessas comemorações. Lá, os dias de Santo Ant9nio, São João e São Pedro constituem pretexto para reuniões sociais e comemorações, seguindo os costumes herdados de Portugal e posteriormente modi­ficados no processo de adaptação às novas condições. Nessas ocasiões faz-se sempre uma grande fogueira de São João, à volta da qual se reunem as famílias bra­sileiras e seus amigos para comer doces, batata-doce assada, bolos de mandioca e outras iguarias tradicio- · nais. Em tôrno da fogueira soltam-se foguetes, bom­binhas e fogos de artifício e, à noite, balões de papel. Cantam-se velhas canções. Nas cidades e vilas reali­zam-se, nesses dias, bailes e festas. Nos grandes centros metropolitanos, como o Rio de Janeiro, Recife e Belém, todos vão à festa vestidos de caipira. Essas festas. principalmente a de São João, são festejos caracterís-

278

Page 279: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ticos da roça, motivo pelo qual a gente da cidade se veste de caipira para imitar a velha tradição rural, tal como na América do Norte é hábito vestir-se à moda da roça para dançar quadrilha.

Em Itá, como em outras comunidades do Vale Amazônico, as festas de junho são comemoradas de maneira característica e tradicional. Santo Antonio, como acima dissemos, é uma grande festa religiosa; nesse dia não há muito divertimento profano. Mas nas vésperas do dia de São João e São Pedro, podem-se ter fogueiras em quase todos os jardins de Itá. Sol­tam-se poucos fogos, porque na cidade só se encontram rojões e êsses são especialmente usados nas procissões religiosas. As pessoas, entretanto, reunem-se em volta das fogueiras para conversar, dançar e convidar. os padrinhos de fogueira, alargando assim o seu círculo de segurança pessoal. Geralmente realizam-se bailes populares na cidade. Na vila de J ocojó, o dia de São João é comemorado pela irmandade local. Nessas ocasiões a representação do Boi Bumbá e, às vêzes, do Cordão de Passarinho, alegram o espetáculo. O Cordão de Passarinho há vários anos não tem sido apresen­tado em I tá. É uma lenda ingênua de um passarinho morto por um caçador que a fada ressµscitou. É sem­pre representada por um grupo de rapazes e moças das melhores famílias, mas nunca foi muito apreciada pelo povo que prefere o Boi Bumbá. Esta comédia do folclore tradicional é representada por atores locais em várias cidades do norte do Brasil e em quase tôdas as comunidades amazônicas nessa época do ano. Mesmo em Belém várias companhias apresentam o Boi Bumbá em junho e julho.

O enrêdo da peça é conhecido de todos. É a bis-· tória de um simples lavrador que atira no boi favorito de um vaqueiro. O velho Francisco, como se chama o

279

Page 280: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

lavrador, é o personagem central do drama que geral­mente se apresenta vestido com os trajes de um serta­nejo do Nordeste. Em Itá, Francisco, que tem uin papel cômico, usa uma máscara com um enorme nariz. O chefe dos vaqueiros e seus companheiros choram a morte do boi e procuram em vão capturar o velho Francisco. Finalmente, o vaqueiro convoca os índios, que em Itá são caracterizados pelos rapazes mais jo­vens, enfeitados com tintas e penas vermelhas de arara e munido.s de arco e flecha. Depois de batizados sãO' os caboclos (o têrmo é aqui empregado para designar os índios) despachados para capturar Francisco. São guerreiros famosos, certamente o conseguirão. O va­queiro exige que Francisco cure seu boi ; então êle convoca os "médicos" - Dr. Aguardente, Dr. Caruncho­º Dr. Remédio. :íl:ste último dá ao boi (pelo menos na versão representada em Itá) um purgativo de pi­mentas, carunchos, folhas de rosas e diversas outras ervas medicinais. Depois manda que o velho olhe debaixo da cauda do boi para ver se o purgativo está surtip.do efeito. No instante em que Francisco olha, o purgativo atua. O boi levanta-se cheio de vida e ener­gia e termina a peça.

Antigamente Itá mantinha dois ou três grupos que representavam o Boi Bumbá na época das festas, em junho. Nesse tempo existia entre êles um desafio para ver quem apresentava as fantasias mais luxuosas e os atores mais originais. A princípio cada grupo possuía um curral, espécie de teatro ao ar livre. Hoje em dia existe apenas um grupo que representa nas ruas. :íl:ste grupo, conhecido como Dois de Oiro, é dirigido por Paulo Azevedo, cujo título é amo de boi ou, às vêzes, mestre de boi. Paulo desempenha tam­bém o importante papel de chefe dos vaqueiros. Em 194'8 êle acabava de voltar a Itá depois de vários anos

280

Page 281: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de ausência, desgostoso por ter sido prêso depois de beber demais durante uma representação. Em conse­qüência, teve que ensaiar vários novos atores, pois du­rante sua ausência muitos dos antigos se haviam mudado. Começou os ensaios em princípios de maio, ensinando aos atores seus papéis com um caderninho em que copiara tôda a peça. Explicou-lhes cuidadosa­mente suas partes com a sabedoria de vários anos de experiência. Muitos dos atores, entretanto, já vinham representando o mesmo papel ano ap6s ano. Juca, por exemplo, que caracterizava o velho Francisco, e o pró­prio Paulo eram veteranos.

As palavras da peça são faladas e cantadas. São as mesmas empregadas por outros grupos de Boi Bumbá, mas Paulo introduziu algumas variações na sua versão. Além disso, os atores muitas vêzes aumen­tam suas partes ou improvisam, de acôrdo com as cir­cunstâncias. J uca, que é tido por espirituoso, é conhecido por suas improvisações e exagera constante­mente a representação. Explicará, por exemplo, muito recatadamente, que Catarina, sua mulher (geralmente representada por um homem), foi a culpada de ter êle atirado no boi: "Ela está grávida e só queria conier filé de boi". Um dos momentos mais altos da peça é aquêle em que Francisco e os índios se insultam mu­tuamente. Canta Francisco:

Eu não gosto de caboclos nem que seja meu parente. Todo caboclo tem de costume roubar os teréns da gente.

E os índios respondem em côro : Quem quiser pegar Chiquinho Faça fogo no caminho. O Chico tem de costume acender seu cachimbo.

281

Page 282: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

:flsses versos são tradicionais e nunca deixam de provocar risos na audiência, apesar de terem sidc, ouvidos vêzes sem conta. Entretanto os momentos mais alegres são aquêles em que J uca se afasta do seu texto e comenta algum acontecimento loca\ ou destaca alguém da audiência para vítima de suas piadas. "A única coisa útil do SESP", diz êle ao ver aproximar-se o médico, "é o DDT". E, como avistou um antropólogo americano, improvisou: "Eu também sou americano e americano não pode ser negro". (7) O boi também é motivo de muita gargalhada. É feito de "papier­mâché" e pano engomado esticado sôbre uma armação de bambu. Tem chifres na cabeça tôsca e é enfeitado com guirlandas de flores de papel colorido. Em seus flancos traz pintadas as palavras "Dois de Oiro". Dois rapazes animam o boi e como em geral a cabeça se desconjunta da anca do boi a assistência se diverte. Essa cena foi especialmente cômica certa ocasião em que os rapazes haviam bebido um pouco demais e desandaram a correr atrás das moças na assistência.

O grupo do "Dois de Oiro" representa quase tôdas as noites, de 12 de junho, véspera da festa de Santo Antonio, até depois de 29 de junho, dia de São Pedro. Todos os anos o chefe do grupo convida alguma perso­nalidade influente para patrocinar o Boi Bumbá. Em 1948 os patrocinadores foram Orlando e sua mulher, Diquinha, proprietários da pensão de Itá. Os ensaios realizaram-se em sua casa e êles pagaram as despesas de fabricação e decoração do boi. Nesse ano, a primeira representação do grupo foi defronte de sua casa.

Depois da primeira representação qualquer pessoa pode convidar o grupo para representar cm frente n

(7) Juca é mulato escuro mas se diz preto. Caçoa das supostas fraquezas atribuidas ao negro.

282

Page 283: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sua residência. Tôdas as famílias da Primeira Classe sentem-se obrigadas a solicitar uma representação e muitas insistem mesmo para tê-las em suas casas. Em cerias noites, principalmente nos dia.lc:; ~ festa dos três santos, o grupo representa várias vêzes. Como retribuição, o dono da casa em que é feita a represen­tação oferece ao grupo um donativo, "a língua dos bois'', como é chamado. A "língua", geralmente em­brulhada em um envelope, varia entre Cr$ 10,00 e Cr$ 50,00, conforme a situação financeira da família. l!:l também costume convidar os principais atores pam entrar depois da representação e lhes oferecer um copo de cerveja ou de licor caseiro, ou mesmo um traguinho de aguar.dente. Tôdas as representações são muito concorridas. O dono da casa oferece cadeiras -e refres­cos aos amigos, parentes e compadres. Os demais juntam-se na rua para assistir à função.

Os fundos arrecadados durante as representações não são pagos aos atores. Êstes pagam as despesas de suas fantasias e tomam parte na festa pelo prazer de representar. (8) Antenor Porto, por exemplo, que representou o papel de índio, gastou cêrca de Cr$ 100,00 com os preparos de sua fantasia e perdeu vários dias de trabalho no posto de saúde, a fim de podel' tomar parte na peça. Os donativos oferecidos ao gmpo são entregues aos patrocinadores que assim recuperam as despesas de construção do boi e outras (como re-

(8) De acôrdo com os conceitos de comportamento fe­minino mantidos em Itá, as mulheres não tomam parte no Boi Bumbá. E' um homem, como foi explicado acima, que representa o único papel feminino da peça. Algumas moças, entretanto, participaram do "Cordão de Passarinho", repre­sentação patrocinada pela alta classe e severamente fiscali­zada pelas respectivas famílias.

283

Page 284: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

frescos para os atores durante os ensaios). Os fundos arrecadados nas representações devem pagar ainda as despesas de uma festa que se oferece aos atores e seus inúmeros amigos no dia da matança do boi, depois da última representação da temporada. Nessa· festa o patrocinador mata o boi com uma faca e os convidadofl "bebem o seu sangue"; isto é, para manter a tradição, o patrocinador abre um barril de vinho colocado em baixo do boi e o vinho (sangue do boi) é recolhido em jarras e servido aos participantes. Em Itá o vinho é caro, mas pelo menos uma g"arrafa tem que ser tomada ... antes de que se o substitua por cerveja e aguardente. Na festa da "matança", geralmente depois da festa de São Pedro, no fim do mês de junho, há música e danças ; sua data exata depende da vontade dos patrocinadores do grupo. O Boi Bumbá é uma das funções mais apreciadas dos festejos de junho, mas ao se findar o mês o povo já está um pouco caceteado com a ·repe­tição das representações. Entretanto, todos os anos, ao se aproximar o mês de maio, esperam ansiosamente pelo mê~ de junho e o Boi Bumbá.

IV

Além dessas festas e feriados obrigatórios, as fa­mílias de Itá oferecem festas, jantares e bailes aos amigos e parentes durante todo o ano. Uma das ma­neiras de distrair os vizinhos e parentes é o tr~balho coletivo para limpeza da roça no comêço do verão. Êsse trabalho cooperativo, o lauto almoço, as bebidas e às vêzes as danças depois de terminada a tarefa, transformam a labuta em divertimento. As reuniões sociais, entretanto, são geralmente organizadas no Brasil

284

Page 285: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

por ocasiao de um casamento, um batizado, uma pri­meira comunhão e principalmente nos aniversârios. Em tôda parte, o aniversário de nascimento é uma data que deve ser lembrada e comemorada pela família e os amigos. Nas cidades recebem-se telegramas e visitas dos amigos e parentes e as donas de casa têm um ca­derninho em que tomam nota dos vários aniversârios a fim de não se esquecerem de nenhum. No dia do aniversário de qualquer de seus membros, as familias brasileiras esperam visitas à tardinha. Parentes ·e amigos comparecem e levam as crianças; e mesmo que seja de uma criança o aniversário que se comemora, também os adultos visitam a família. A mesa é .sun­tuosamente posta com sanduiches, bolos e doces tradi­cionais, como bala de ovo, trouxinhas de noiva, toicinhos do céu, olhos de sogra e bombocados. Servem-se também refrescos, chocolate e chã. As crianças, ves­tidas com suas melhores roupas, entopem-se de gulo­seimas. A recepção da tardinha prolonga-se comu­mente até o jantar, que é regado a vinho e, às vêzes, há danças para os jovens. Quando as famílias não podem custear uma grande recepção, oferecem um almôço ou um jantar em homenagem ao aniversariante em que se servem vários pratos acompanhados de vinho ou cerveja. Por mais modesta que seja a família, um aniversário no Brasil é ocasião de festa.

!Qomb os demais brasilei!'_QS.-·a gente de It.á faz grandes despesas pará- º:festejar seus aniversários. Quando a familia tem recursos há sempre alguma espécie de comemoração para cada um de seus mem­bros. Os pratos que se servem em Itá não são tão complicados e numerosos como os que se oferecem nas casas da alta classe do Rio de Janeiro, mas vêem-se à mesa muitos doces e iguarias tradicionais. O almôço

285

Page 286: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

do meio-dia é uma das maneiras mais comuns de sei festejar um aniversário; às vêzes oferece-se uma festa à noite, com dança e ·uma mesa repleta de doces e salga­dos, com guaraná, cerveja, vinho, licores e outras bebidas. Nessas ocasiões as pessoas mostram-se, às vêzes, exces­sivas em suas demonstrações de hospitalidade. Gastam mais do que podem, chegando mesmo a contrair dí­vidas a fim de oferecerem uma festa em que nada falte. Sempre, nesses almoços e festas, os anfitriões pedem desculpas pela insignificância da comida que oferecem, quando, na realidade, ultrapassam todos os limites para oferecer muito mais do que seus convidados podem consumir. A gente de Itá é extraordinàriamente hos­pitaleira, mas a sua hospitalidade não é de forma al­guma modesta e simples.

Na ocasião do primeiro aniversário de seu filh'o adotivo, por exemplo, l\Iaria, a jovem mãe solteira cuja história contamos em outro capítulo, contratou músicos para tocar uma serenata matinal para o bebê e, ao romper do dia, ela e seus amigos soltaram numerosos foguetes em homenagem à criança. Ofereceu um grande almôço para mais de vinte amigos, com bife, pato no tucupí, vários outros pratos e uma infinidade de be­bidas. A tarde as visitas encheram sua pequena casa e, mais tarde, pagou uma orquestra para tocar para os que quisessem dançar até a meia-noite. Nessa oca­sião Maria trabalhava como empregada na casa de um funcionário do govêrno estadual e sua renda mal atingia Cr$ 100,00 por mês, com comida. Para oferecer essa festa contraiu uma dívida de cêrca de Cr$ 1. 000,00. Conquanto achassem que ela se excedera e não pudes.., sem compreender como as casas comerciais lhe houves­sem concedido tanto crédito, todos admiraram a hospi­talidade de Maria e a largueza com que tudo organizou.

286

Page 287: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Em outra ocasião Orlando ofereceu um almôço em 11omenagem à mulher, Diquinha, no dia de seu aniver­sário. Deveria ser um almôço íntimo, para uns poucos amigos, disse Orlando, mas convidou vinte e três pessoas, tôdas pertencentes à Primeira Classe. Foram convidados o prefeito, o agente da coletoria federal, o secretário do govêrno municipal, o médico da saúde pública e outras personalidades. Os amigos menos importantes e os vizinhos foram convidados para dançar à noite. l\fuito embora a festa fôsse em sua homenagem, Diquinha não se sentou à mesa. Ela e sua irmã trabalharam sem cessar todo o dia anterior e a manhã da festa, nos preparativos. A mesa do almôço estava literalmente coberta de carne, pato no tucupí, peixe e outras iguarias. Abriram-se várias garrafas de cerveja e mais de uma dúzia de garrafas de vinho e havia três sobremesas. A refeição foi se,,,"'llida do brindes e discursos e todos se levantaram para brindar Orlando e Diquinha e oferecer felicitações pelo aniversario. No fim falou Orlando, pedindo desculpas pela sua pobre hospitalidade e brindando os convi­dados. Às quatro horas da tarde, depois de estarem à mesa mais de três horas, os convidados se despedi­ram para irem dormir em suas rêdes, sendo convidados a voltar para o baile, à noite. As despesas do almôço e do baile montaram a vários meses da renda de Orlando e sua mulher.

À noite compareceram à festa umas cinqüenta pes­soas ou mais. Uma orquestra do lugar tocou choros, marchas e sambas ·até bem depois da meia-noite. Todos envergavam suas melhores roupas e, conquanto esti­vesse fazendo muito calor, os homens dançaram de pa­letó. As mães acompanhavam as filhas. As senhoras sentavam-se em cadeiras ou em bancos arrumados de

287

Page 288: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

um lado da sala e os homens, de pé, formavam um grupo do outro lado. A cada dança que começava, os homens atravessavam a sala para convidar a moça de sua escolha. Todos se comportavam com a máxima formalidade. As dez horas as senhoras foram convida­das a comer pastéis e beber vermute, arrumados em uma mesa na varanda da sala de jantar. Mais tarde os homens beberam cerveja e vermute com aguar­dente. Depois dêsse intervalo a festa se animou. Zeca Marajó anunciou uma quadrilha que êle "marcou'' numa mistura de português e mau francês - como tinha aprendido com seu pai. Depois de uma hora de quadrilha os convidados pareciam cansados e recomeçou a dança aos pares. Todos acharam muito alegre a festa de Orlando e Diquinha, mas em comparação com outras festas de aniversário oferecidas por famílias residentes na Rua "Terceira" e nas localidades rurais, foi certa­mente uma função cerimoniosa. Em algumas festas oferecidas por pessoas de posição social mais baixa, as danças prolongam-se até de madrugada e os vizinhos e amigos bebem contlnuamente a saúde de seus anfitriões· desejando-lhes muitos outros aniversários. As festas de aniversário são talvez o tipo mais freqüente de reu­niões sociais em Itá. Satisfazem uma necessidade humana básica de despertar interêsse no próximo, além de proporcionarem distração para todos que a ela:-; comparecem.

V

Na cidade de Belém considera-se !tá uma cidade cacete. A gente da cidade que por ali passa de barco ou permanece alguns dias, espanta-se como pode alguém viver num lugar tão enfadonho. Cinemas, não existem.

288

Page 289: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

A cidade não pode manter um clube onde a alta classf; possa reunir-se para dançar, como na maioria das ci­dades maiores elo Brasil. As raras tardes de domingo, em que se realizam jogos de futebol entre os dois times locais, têm pouco interêsse para os moradores dos grandes centros urbanos, que são geralmente admira­dores de algum time profissional que joga habitual­mente diante de milhares de espectadores num imenso stadium. Em Itá, até o Carnaval que se festeja antes da Quaresma, e que os brasileiros das grandes cidades comemoram de maneira tão pitoresca e alegre, parece ser monótono. Alguns representantes da classe alta dançam nas ruas como o viram fazer em Belém, e em uma das noites de carnaval talvez haja algum baile, ainda assim limitado aos componentes da classe mais alta. Em comparação com a procissão do círio que todos os anos se realiza em Belém, até mesmo a festa de São Benedito pouco interêsse desperta. Como na maioria das pequenas cidades, o ritmo da vida é lento em Itá e são poucas as modalidades de divertimento. A maneira de sua gente se divertir deve parecer esqui­sita. e antiquada aos moradores das grandes cidades.

Os habitantes de Itá, entretanto, não acham enfa­donha sua comunidade. Procuram o prazér, como o entendem, através das suas formas tradicionais de recreação. Conquanto esta seja, em qualquer lugar, um importante aspecto da vida de comunidade, no Vale da Â.mazônia, onde uma pequena população se espalha por uma área imensa, as reuniões sociais são ainda mais necessárias para quebrar a solidão da exis­tência humana. Além do mais a gente de Itá não procura exclusivamente se divertir, mas entremeia o prazer com o trabalho. Organizam festas de trabalho coletivo e bebem e cantam enquanto trabalham. As

289

Page 290: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

festas ele seus santos e dos aniversários de sua gente proporcionam o motivo de importantes incentivos indi-· viduais e coletivos. ÂB pessoas gastam tôdas as suas economias e fazem até dívidas para serem patrocina­doras de uma festa de santo ou oferecerem uma grande festa de aniversário. A recreação está intimamente ligada à sua religião e à organização de sua comuni­dade ; as irmandades religiosas rurais têm como função principal a realização das festas de santo, mas são também entidades ·sociais, básicas, nas comunidades rurais. Qualquer educador, técnico ou administrador encarregado de planejar ou executar um programa de renovação social e econômica terá que levar em conside­ração o significado e a função dessas !ormas tradicionais de recreação da sociedade de Itá.

Opondo-se às irmandades e às festas rurais, o pa­dre católico e a Igreja oficial estão combatendo uma importante instituição social, sem levar em conta seu grande valor potencial para a própria Igreja e a co­munidade. Todos sabem que a cooperação dos líderes de uma comunidade é indispensável a qualquer pro­grama de ação coletiva. Os dirigentes dessas irman­dades rurais são líderes importantes nas localidades rurais; sua cooperação seria inestimável para a Igreja ou para qualquer outra organização preocupada com os problemas de comunidade. As irmandades da zona rural de I tá podiam perfeitamente desempenhar novas funções; os líderes das mesmas poderiam, por exemplo, se).'. persuadidos a apoiar programas de saneamento, agrícolas e educacionais. O govêrno brasileiro e suas várias agências administrativas deveriam utilizar-se dêsses líderes e de seu poder. Realmente, em qualquer iniciativa tendente a estimular o senso relativamente fraco de coesão social que existe em I tá, seria aconse-

290

Page 291: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

lhável tentar reorganizar as irmandades decadentes da cidade, dedicadas a São Benedito e Santo Antonio. Êssas associações 'poderiam fornecer a ·base para orga· nização da comunidade de uma maneira já familiar à sua gente.

Ouve-se freqüentemente gente da cidade e de fora queixar-se de que o caboclo da Amazônia é indolente. Essas pessoas citam sua própria experiência. "Quando os caboclos recebem salários altos trabalham menos dias'', dizem. Queixam-se de que o caboclo negligencia suas roças e a coleta da borracha por causa das "orgias" a que se entrega nas festas religiosas. Sem dúvida, a temporada das festas é a época em que se devem limpar novas roças e plantá-las e em que se deYe co­lhêr a borracha. Por conseguinte as festas, na Ama­zônia, estão em conflito com a época de maior atividade econômica. Mas, enquanto persistirem os atuais pa­drões econômicos, o povo terá que repartir o seu tempo entre o trabalho e os divertimentos durante os meses de verão. Essas festas, porém, são grandes incentivos econom1cos. A gente na Amazônia deseja ardentemen­te melhorar sua vida material, mas deseja ainda mais prestígio e consideração qos seus semelhantes, o que encontra quando patrocina uma festa religiosa ou quan­do são os anfitriões numa festa de aniversário em que recebem parentes e amigos. Trabalharão com_ mais afinco para ganhar dinheiro com essa finalidade do que para satisfazer suas necessidades mínimas. As melhorias materiais, tais como radios, aparelhos elé­tricos, ferramentas agrícolas mecânicas, roupas baratas e alimentos importados, geralmente são inexistentes nas zonas rurais da Amazônia ou, quando são encontradas, estão além das posses do povo; por conseguinte, tais melhorias pouco incentivo oferecem. Quando as pcs-

291

Page 292: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

soas são privadas de seus próprios meios de diverti­mento e hospitalidade, como acontece em várias comu­nidades amazônicas, sentem pouco desejo de ganhar dinheiro além do est1ritamente necessário para satisfazer as necessidades físicas. As pessoas não prezam apenas o confôrto material; fatores intangíveis, como recrea­ção e hospitalidade, podem ser tão apreciados como um padrão de vida material mais elevado. ~sses incen­tivos e valores é que freqüentemente são. desprezados pelos administradores "práticos", responsáveis por pro­gramas de desenvolvimento econômico.

292

Page 293: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

7. DA MAGIA À CI:mN­CIA.

Na nossa civilização, as explicações de natureza científica e naturalística têm pouco a pouco substituido as explicações de ordem mágica e sobrenatb.ral dos fe­nômenos e ocorrências. Essa mudança básica em nossa concepção universal teve início há séculos e ainda segue. o seu curso com rapidez sempre crescente. Há rela­tivamente bem pouco tempo, acreditava-se que a chuva tinha uma 'orígem sobrenatural e que a malária resul­tava do ar mefítico ou de miasmas. Empregavam-se fórmulas mágicas e orações para se conseguir chuva necessária às colheitas e freqüentemente se lançava mão de precauções nocivas para evitar a malária,' tal como dormir em um quarto hermeticamente fechado a fim de impedir a entrada dos ares noturnos. Hoje em dia,

293

19

Page 294: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

atribui-se a chuva a causas naforais, podendo-se mesmo provocá-la por meio de experiências cientificamente controladas. Sabe-se agora que o mosquito anófeles é o responsável pela transmissão da malária e a ciência ensinou-nos a combater a doença controlando o inseto. Exemplos semelhantes podem ser observados em quase tôdas as esferas de nossa vida. À medida que se expande o campo da ciência, a parte da experiência humana que depende de explicações mágicas ou mesmo de "simples bom senso" vai constantemente âiminuindo.

~sse processo de modificação não ocorreu com igual rapidez em tôdas as camadas culturais, nem foi em qualquer ocasião tão completo quanto o poderia ser. Mesmo nas nossas grandes metrópoles, as crenças em magia persistem face aos conceitos científicos mais mo­dernos. Evitamos usar o número "13" em edifícios pú­blicos e muitos dentre nós evitam pass,!lr sob uma escada de mão. A ciência não conse.,1111iu penetrar total e "profundamente" nas grandes massas da população, nem se difundiu "exteriormente" até os que vivem nas áreas marginais de nossa civilização. Em Londres, Paris, Nova York e Rio de Janeiro ó considtrável o número de indivíduos que possuem apenas uma idéia vaga do conceito bacteriano da doença. Nas zonas re­motas de qualquer país ocidental, são inúmeras as su­perstições com relação à agricultura, saúde e outros se­tores da vida humana. Destituído de conhecimentos a respeito dos solos, da genética das plantas e de outros princípios científicos de agricultura, o lavrador esta­belece uma relação entre a fase da lua na época da plantação e o êxito de sua safra de batatas, e a mãe relaciona a doença de seu filho com o olhar fixo de um forasteiro a quem atribui "mau olhado". Tanto a ciência como a magia dependem de causa e efeito. Na magia, entretanto, a relação é estabelecida por analogia,

294

Page 295: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

uma invenção da mente humana, enquanto na ciência a relação existe no mundo natural e pode ser experi­mentalmente determinada. Por conseguinte, com a di­vulgação dos conhecimentos científicos, as relações má­gicas e fortuitas, estabelecidas pela tradição, cedem lugar, pouco a pouco, aos ensinamentos científicos. A magia, porém, não se submete fàcilmente à ciência. As pessoas não abandonam com facilidade suas crenças tra­dicionais, mesmo em face de explicações mais racionais, uma vez que a experiência lhes confirma os pontos de vista gerais. Hesitam em adotar teorias novas que não submeteram à prova. Conseqüentemente, os novos con­ceitos, para serem aceitos, devem ser apresentados em têrmos que estejam ao alcance dos pontos de vista gerais mantidos pelos indiYíduos em questão. Sem um conhe­cimento dessa concepção .geral, o inovador social pode encontrar dificuldade em lançar o que, a seu ver, é uma idéia racional.

O Brasil, com sua herança cultural formada pela fusão das culturas da Europa, da África e do Amerín­dio, possui sua parcela bem característica de crenças

· populares e práticas de magia. A região amazônica, isolada por tanto tempo dos centros da técnica e da ciência, conservou muitas crenças e magias dessas três tradições culturais. Certa.e; crenças medievais ibéricas permaneceram muito tempo após 11averem desaparecido em Portugal e numerosos conceitos e costumes de ori­gem ameríndia ainda são hoje conservados na Ama­zônia pela população rural. A despeito do pequeno número de escravos a:fricanos que vieram para a Ama­zônia, os costumes <la África também influíram sôbre as crenças populares da re.,IYÍão. Em muitos casos, po­de-se fàcilmente atribuir uma determinada série de crenças a uma dessas três culturas. Por exemplo, os conceitos e práticas peculiares ao feiticeiro ou char-

295

Page 296: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

latão, ou pajé, como é chamado na Amazônia, são de orígem ultidamente ameríndia. Há porém outros ele­mentos e complexos que parecem ter sido originados por mais de uma herança cultural. Dão a impressão do se haverem fundido nas práticas e costumes de duas ou três dessas tradições, passando a assumir as feições características da cultura popular amazônica. A cren­ça em Matinta-pereira, indivíduo que, à noite, se trans­forma em fantasma, para citar um só exemplo, é pro­vàvelmente uma combinação da crença européia· em lobisomens com os conceitos dos índios amazonenses sôbre os temíveis espíritos das selvas. Não obstante. a sua orígem, as crenças populares da Amazônia cons­tituem um importante aspecto da concepção geral do homem rural, simples, da região. Tais crenças, aliadas ao procedimento usual a elas associado, freqüentemente determinam a aceitação ou a rejeição dos conceitos cien­tíficos de importância vital para a transformação téc­nica do Vale Amazônico.

II

A população de Itá é católica como a maioria do povo brasileiro. Lá existe uma família judia de orí­gem marroquina, remanescente de um grupo que se es­tabeleceu naquela zona durante o período áureo da borracha e apenas quatro ou cinco "crentes", como são chamados os protestantes, entre tódos os habitantes da comunidade. Essa homogeneidade na fé religiosa é um importante fator para a solidariedade e união dos indivíduos de tôdas as raças e classes sociais. Os pre­ceitos da Igreja Católica Romana proporcionam pa­drões ideais de comportamento em muitas situações da

296

Page 297: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vida. Teõricamente todos são iguais perante a Igreja. Em Itá, porém, não há um sacerdote residente. Os sacramentos da igreja só estão à disposição dos mem­bros da comunidade quando o padre de uma comuni­dade situada rio acima visita a cidade durante as festa::; de Santo Antonio e São Benedito. Os sacramentos da confissão, comunhão, missa, batismo, crisma, matrimô· nio e extrema-unção só podem ser ministrados nessas ocas1oes. Além disso, quando o vigário da paróquia vi­sita a comunidade, é considerado um estranho. Em muitas comunidades da Amazônia, o vigário é geral­mente um missionário estrangeiro - um Franciscano da Alemanha, um monge Salesiano da Itália, um Do­minicano francês ou, mais recentemente, um padre da ordem Maryknoll dos Estados Unidos. O sacerdote que­visita regularmente Itá é um alemão cujo conceito ri­goroso sôbre o catolicismo não lhe granjeia grande po­pularidade entre os habitantes da localidade. Mesmo no passado, porém, quando o padre que servia era um brasileiro nato, a população o encarava com grande desconfiança. Os homens suspeitam das intenções de um padre que se encerra durante horas no confessio­nário com suas filhas e esposas; desconfiam de que se utilize dos fundos da igreja para fins pessoais. Assim, pois, em Itá, como em muitas outras comunidades bra­sileiras, a população tem pouco contato com a igreja oficial. Os homens, em particular, demonstram sempre um grande antagonismo em relação à igreja. Embora qualquer padre seja respeitado ex-ofício, e exerça con­siderável influência, os sacerdotes em geral não são lí­deres poderosos na maioria das comunidades brasilei­ras, como freqüentemente acontece em outros países ca­tólicos latinos.

As atividades religiosas de Itá, assim como as vá­rias outras comunidades da Amazônia, são entregues

297

Page 298: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

à responsabilidade da própria população. A liderança e direção são exercidas pelos devotos locais. Dona Branquinha, a professora, zela pela igreja, dirige as ladainhas e leciona catecismo às crianças. Nas locali­dades rurais vizinhas, são as irmandades religiosas, des­critas em um dos capítulos precedentes, que organizam e promovem as a1Jividades religiosas. Em tôdas as co­munidades brasileiras existem "beatas", isto é, devotas como Dona Branquinha (e algumas vêzes. "beatos"), que são importantes líderes religiosos na comunidade. Tais mulheres "moram na igreja", no dizer do povo. São os ârbitros religiosos e, não raro, morais, de suas comunidades. Em Itá, Dona Branquinha é a tesou­reira da igreja, recebendo donativos para os santos. Dedica a maior parte de seu tempo e atenção a assun­tos religiosos, chegando mesmo a associar os sentimentos religiosos às suas aulas regulares na escola. Algumas pessoas acham graça nisso, alegando que ela tenta pagar os pecados cometidos na sua juventude, e algumas lín­guas ferinas lançam dúvidas quanto à natureza de suas relações com o padre. Comenta-se meio a sério que um antigo padre é o pai de seu segundo filho. Dona Bran­quinha, porém, desprezando êsses mexericos, zela pelo seu rebanho e queixa-se de sua falta de religião e da "profanidade" de suas atividades religiosas.

O fato de n igreja não exercer o devido contrôle sô­bre a vida religiosa de Itá não significa que a sua po­pulação seja anti-religiosa. Pelo contrário, os habitan­tes professam ser "bons católicos" e, a seu modo, o são. Entretanto, o conteúdo Qe ~ma religião inclill; muitas variações locais de crenças ibéricas arcaicas, as quais, embora não entrem em conflito direto com a ideologia ortodoxa contemporânea, freqiientemente co­locam em segundo plano muitos de seus preceitos domi­nantes. Deus e Cristo são adorados, porém a Virgem

298

Page 299: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Maria e os santos têm maior relêvo na religião local. Além disso, a devoção de seus habitantes concentra-st: nos santos cujas imagens podem ser encontradas na igreja do lugar e nas pequenas capelas das localidades rnrais vizinhas, tais como as de Santo Antonio, São Benedito, São João, Santa Apolônia e a da Virgem J\faria, que o povo identifica com as imagens. Cada santo é considerado uma divindade local. Santo An­tonio e São Benedito, cujas imagens ocupam o altar mor da igreja matriz, chegaram mesmo a ser vistos :1 noite caminhando pelas ruas. O pai de Juca contou­lhe ter avistado os dois santos passeando certa noite sob as mangueiras da rua principal; usavam hábitos de monge e dirigiam-se à igreja, onde os viu entrar. Uma luz acendeu-se no interior e em seguida a igreja voltou às escuras. No dia seguinte foi êle até a igreja e exa­minou ambas as imagens, verificando que tanto Santo Antonio como São Benedito tinham areia nos pés. Em outra ocasião, um soldado viu dois homens caminhando pela rua, altas horas da noite, e como não atendessem à sua ordem de alto, fez fogo. Ambos continuaram caminho e êle os reconheceu como os dois santos, tendo o zelador da igreja no dia seguinte encontrado um ori­fício produzido por bala na imagem de Santo Antonio. Outras imagens do mesmo santo, em localidades pró­ximas, não são consideradas idênticas pela população. A igreja de Arumanduba possui um São Benedito "m~s não é igual ao nosso'', informou-nos um cidadão de Itá, "talvez seja um filho do que está na nossa igreja. O nosso é um "pretão" e nunca sorri como o pequeno" (o da igreja de Arumanduba). (1)

(1) A história da vida de São Benedito, como é rela­tada em Itá, representa-o com a tez escura e como um "es­cra.vo da casa de Nosso Senhor" - tendo a mesma côr e

299

Page 300: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Para o povo de Itá, os santos são protetores, po­deres benevolentes aos quais podem pedir auxílio e pro­teção. O adultério, o roubo, o assassinato e outros crimes não são punidos pelos santos e o povo rara­mente sente necessidade de pedir perdão por tais pe­cados. :f!::sses são assuntos controlados pela lei e pela opinião e julgados por normas seculares. A atitude apropriada em relação aos santos é a do respeito e o único pecado a .que êstes infligem punição é a "falta de respeito". Es~a atitude significa, na ·opinião da população, que se devem oferecer orações aos santos, comemorar condignamente sua festa e cumprir as pro­messas feitas. Lã ninguém se lembra de que um santo tenha jamais castigado alguém por haver infringido um dos Dez Mandamentos, porém todos se recordam de casos em que o castigo foi dado por quebra de pro­messa.

A promessa é a principal maneira de se obter a proteção de um santo ou seu auxílio nos momentos de crise. De certo modo, até as ladaínhas, as procissões e outras cerimônias coletivas em homenagem a um san­to são consideradas promessas. A comunidade, as lo­calidades vizinhas e as confrarias de fiéis mantêm uma :promessa permanente a fim de assegurarem a felicidade

categoria dos antepassados da maioria das pessoas da classe mais baixa. Uma versão conta que S. Benedito trabalhava na cozinha do Senhor, à cuja mesa :.iervia, assim como à de outros santos. Sentia pena dos mendigos que esmolavam à porta da cozinha e dava-lhes pão. Os outros santos conta­ram ao Senhor que Benedito furtava, tendo o Senhor se escondido atrás de uma porta e ao ver Benedito sair com um embrulho contendo pão para os mendigos ordenou-lhe que o abrisse. Benedito, assustado, disse que o embrulho continha flôres e, ao abri-lo, o pão havia-se convertido cm flôres. O Senhor ficou satisfeito. "Era um bom patrão e repreendeu os outrqs santos por fazerem intriga."

300

Page 301: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

do grupo. Sem tais cerimomas, o santo retiraria sua proteção. Em Itá, entretanto, a maioria das promes­sas assumem a forma de contratos individuais. Um devoto promete, por exemplo, que caso seu :filho :fique curado de uma doença grave, êle fará uma novena ou servirá de juiz no dia da festa do santo. Um homem prometeu a Santa Luzia que faria uma novena em sua 11onra todos os anos se ela o auxiliasse a abandonar. a bebida, pedindo-lhe que o cegasse se algum dia voltasse a beber.

Outro exemplo foi-me relatado por Juca. Na sua meninice fôra vítima de uma grande ferida aberta, cau­sada por picada de inseto. Sua mãe; grande devota de São Benedito, prometeu que o faria "escravo de S. Benedito" se ficasse bom. A infecção resistiu à cura durante 3 anos, mas seis semanas apenas depois da promessa Juca ficou bom. Como escravo de São Be­nedito terá que oferecer um dia de trabalho ao santo durante tôda sua vida, executando tarefas tais, como reparos na igreja ou limpeza do pavilhão onde se rea­liza o baile da festa do santo. Nos tempos de moci­dade de J uca, os escravos de São Benedito estavam sujeitos a uma disciplina rígida; se não trabalhassem ou orassem para o santo, eram obrigados pelos líderes da confraria a se ajoelharem diretamente sôbre pedre­gulho a fim de fazerem penitência. Oferecer um filho ou filha como escravo de São Benedito era, antigamen­te, uma pro"messa séria, hoje muito rara.

Em Itá raramente se ouve falar de promessas dra­máticas e excêntricas, tão comuns em outras· partes do Brasil. Na árida região nordestina do país, a popu­lação comumente promete caminhar centenas de léguas, que às vêzes exigem 20 dias de viagem, para Visitar santuários famosos e milagrosos como os de Bom Jesus

301

Page 302: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

da Lapa ou S. Francisco de Canindé. Cidadãos de grande projeção social oferecem, como promessa, acom­panhar descalços a procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém. As vêzes sobem de joelhos os 365 degraus que levam à igreja de Nossa .Senhora da Penha no Rio de Janeiro. Em Itá, todavia, as pro­messas são menos extravagantes. Uns prometem do­nativos, outros prometem servir de juiz durante a festa ou oferecem novenas ou um "ex-voto'', isto é, uma efí­gie do órgão do corpo que êle curou. Em Belém, assim como em outros grandes centros do norte do Brasil, reproduções die braço,s, pernas, cabeças, dedos, seios e até órgãos internos são moldados em cêra para serem oferecidas ao santo em cumprimento a uma promessa.

, 1 Em Itá, essas reproduções são esculpidas em madeira. Até à ocasião em que o missionário alemão ordenou sua remoção, por considerá-las profanas, essas escul­turas do corpo humano podiam ser observadas no altar da igreja de Itá.

A falta de cumprimento de uma promessa, sendo considerada uma falta de respeito, desperta a ira do santo, que espera uma retribuição pelos seus favores e proteção. Citam-se casos, em Itá, de pessoas que fo­ram punidas por deixarem de cumprir suas promessas, .João Mendes, por exemplo, prometeu a São Benedito o equivalente de seu pêso em borracha crua se ficasse curado de suas enxaquecas. Obteve a graça pedida, mas no ano seguinte, quando a "folia" lhe visitou o armazém angariando donativos para S. Benedito, João i\fondes modificou os têrmos da promessa. Disse que se havia comprometido apenas a dar o "pêso do santo", isto é, de sua imagem, em borracha. Ninguém lhe pôs em dúvida a declaração, porém, quando a imagem de São Benedito foi colocada na balança com a borracha, verificou-se que pesava tanto quanto o próprio João

302

Page 303: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Mendes. O santo operara um milagre; forçara o ho­mem a cumprir a promessa original. Outro homem que prometera um novilho ao santo entregou o menor e mais magro de seu rebanho. Quando a canoa que carregava a imagem afastou-se. do sítio, o boi mais forte da manada desgarrou-se e atirou-se nágua, acom­panhando a canoa. Os membros da "folia" apossaram­se de um segundo novilho e o puseram na canoa, pois entenderam que S. Benedito ficara contrariado e pu­nira o homem, obrigando-o a presenteá-lo com dois animais em vez de um só.

Algumas vêzes os santos são mais severos em seus castigos para com aquêles que quebram promessas. Enviam doenças, pragas para as plantações e má sorte nos negoc10s. De vez em •quando o santo ofendido manda um aviso. Certa vez, quando a imagem de São Benedito. era transportada para Abaeté, localidade onde há especialistas em pinturas de imagens, a bordo de uma embarcação fluvial, o capitão do navio colocou o santo juntamente com o resto das bagagens. Logo ao deixar Itá, o pilôto descobriu que o leme estava desgovernado, sendo a embarcação apanhada de lado pela corrente. A tripulação sentiu que iria espatifar-se de encontro à margem. Um residente de Itá, porém, lembrou-se do santo e informou o capitão acêrca de seus poderes. A imagem de São Benedito foi apres­sadamente removida do porão e colocada em um altar improvisado. em uma das cabinas. A embarcação imc­diataniente retomou o rumo certo. Os santos curam 1

doenças, mandam boas colheitas, protegem o seringueiro cm suas estradas e protegem os barqueiros contra os perigos da navegação, ajudam as pessoas a encontrar objetos perdidos e as jovens a conseguir maridos e pro­movem o regresso ao lar dos pais de família amantes .. de aventuras. Executam uma infinidade de ações ca- li

303

Page 304: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ridosas, mas ao mesmo tempo são ciosos de seus direitos, esperando uma retribuição pelas graças e a proteção que concedem.

Como em tôdas as co_munidades latino-americanas, acredita-se que certos santos possuem poderes e atri­butos especiais. Santo Antonio é casamenteiro, sendo :por isso especialmente invocado pelas jovens que an­seiam por marido. São Cristovão, como em outros lu­gares, vela pelos navegantes; São Tomás favorece os lavradores; Santa A polônia é a padroeira dos dentes, auxiliando aquêles que padecem de tais dores. Nossa Senhora das Dores protege as parturientes e São João e São Pedro são amigos dos amantes. São Benedito, como já foi mencionado, é o protetor especial dos se­ringueiros e todos os anos muitos dêles doam o pro­duto do primeiro dia de colheita da borracha ao seu protetor. Além disso, quase todos os residentes de Itá veneram um Sa.nto que provou ser particularmente in­dulgente para com êles ou suas famílias. Cada família tem no mínimo uma pequena imagem ou, às vêzes, um grande quadro do santo ou santos de sua especial de­voção. Nossa Senhora das Dores é a devoção de i\laria Silva. Apareceu-lhe, uma noite, em sonho, numa oca­sião em que havia em Itá numerosas famílias atacadas de febre e, graças à sua proteção, nem Maria, nem sua família contraíram a epidemia. Por êsse motivo, Maria e seus amigos organizaram uma pequena con­fraria para render culto · à santa. J uca desfruta da proteção especial de Santa Luzia que o ajudou a livrar­se da embriaguez. Muitos acham que seu protetor es­pecial é o santo do dia em que nasceram ou de quem têm o nome. De fato, as pessoas dão aos filhos o nome dos santos que julgam ·ser seus guardiães. Em Itá, o número de Beneditos e Beneditas atesta a populari­dade do santo. Na verdade, embora tenham devoção

304

Page 305: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

por outro santo, todos em Itá, uma ou outra vez, re­correm a S. Benedito. Conquanto Santo Antonio seja o padroeiro oficial da cidade, a população local crê que S. Benedito é quem realmente protege a comuni­dade e sua fama estende-se por uma grande região. As histórias das curas por êle efetuadas não têm fim. O número de presentes que se podem ver diante da imagem, o volume de donativos oferecidos todos os anos e a afluência de pessoas que assistem à festa de São Benedito são uma prova de devoção a êsse santo, am­plamente difundida em tôda a região do Baixo Ama­zonas. Não se passa um dia sem ·que se ouça em Itá o ruído produzido pelos foguetes lançados em honra de S. Benedito por um barqueiro de passagem.

III

Além dêsse conjunto de crenças católicas, os habi­tantes de I tã crêem em poderes sobrenaturais e rea­lizam práticas mãgicas de origem aborígine. Os por­tuguêses descobriram como sobreviver na nova terra, souberam explorar o meio, embora estranhos, subtrain­do-o ao contrôle das populações nativas; todavia, du­rante o processo, adquiriram muitas crenças aborígines. Estas foram perpetuadas na nova cultura formada à medida em ·que os grupos eram desmembrados e domi­nados pelos .recém-chegados. Os pontos de vista gerais do mestiço e do caboclo amazônico foram assim con­vertendo-se numa intrincada amálgama de ideologia nativa e européia. Não é, pois, surpreendente .que os aspectos da religião nativa relacionados à selva, ao po­deroso rio, à fauna e à flora, e às atividades do homem em sua exploração do meio, constituam hoje parte das crenças populares de Itã e de outras pequeninas comu­nidades da Amazônia.

305

Page 306: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O sistema religioso das tríbos Tupís, que tanto in­fluenciaram a cultura popular amazônica, não dava grande destaque aos ritos minuciosamente organizados e conduzidos por um sacerdote, como o faziam as reli­giões das populações nativas, mais complexas, do Méxi­co e do Peru. Sua religião não obedecia a um sistema organizado, não possuindo um panteão bem. definido ou uma ideologia religiosa altamente sistematizada. A origem dos fenômenos naturais e das partes práticas foi atribuida a uma série de heróis lendários da cultura. Um dêles, Mairá-Monam, ensinou à humanidade as téc­nicas da agricultura e um outro, Monam, criou o céu, a terra, os pássaros e os animais. Tupan, mais tarde identificado pelos missionários cristãos como o Deus cristão, era uma figura secundária que comandava o relâmpago, o trovão e as chuvas. Essas figuras ances­trais não eram adoradas como fôrças sobrenaturais ativas. Em seu lugar, era a uma série de espíritos da selva e almas do outro mundo que se atribuia o poder de causar a má sorte, as doenças, as derrotas na guerra e as desgraças em geral e era essa categoria de po­deres sobrenaturais que se devi~ adorar, apaziguar e controlar. Um dêles, Yurupara, descrito como um pe­rigoso duende das selvas, foi comparado pelos missio­nários cristãos ao Diabo. Acreditava-se que atraia os caçadores para as pro:fm1dezas das selvas até que fi­cassem irremediàvelmente perdidos. Outro ainda, Curupira, pequena criatura com aspecto humano, com os pés voltados para trás, protegia os animais. selva­gens e punia os caçadores. Os povos tupis tinham ter­ror mortal às almas do outro mundo e acreditavam que elas tomassem a forma de animais - um sapo, pássaro ou lagartixa - e vagassem durante a noite.

Essas crenças religiosas nativas entravam inevi­tàvelmente em conflito com a ideologia cristã que for-

306

Page 307: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

nccia outras explicações para a orígem das coisas. Os missionários decidiram-se a combater as crenças pagãs, ensinando às populações os conceitos ortodoxos do ca­tolicismo. Os nomes dos heróis da cultura indígena de­sapareceram, sendo substituidos pelos de Deus, do diabo e dos santos. Todavia, os colonizadores e missionários dos séculos XVII e XVIII acreditavam, êles próprios, em lobisomens, feiticeiros e demônios; seus pontos de vista a respeito do mundo sobrenatural eram, a muitos respeitos, semelhantes aos dos nativos. Uma vez que os demônios das selvas e os espíritos maléficos perten­ciam a um mundo novo e estranho e não contradiziam diretamente a ideologia católica ortodoxa, não era di­fícil aos colonizadores e missionários acrescentar essas entidades perigosas e apavorantes das selvas e do rio à sua própria bagagem de crenças mágicas. Os novos demônios e espíritos, segundo a descrição dos nativos, correspondiam de modo geral aos da crença medieval ibérica. Assim, os pontos de vista. universais nativo e europeu fortaleceram-se mutuamente e se fundiram de modo a. formar a concepção geral da cultura po­pular amazônica.

Os indígenas de língua tupí da selva amazônica de­pendiam dos feiticeiros ou charlatães, aos quais deno­minavam p<Jl!Js, para protegê-los contra os demônios~ curarem suas doenças e aliviá-los das desgraças cau­sadas pelos maus espíritos. :f!lsses feiticeiros, ou pajés, caracterizavam-se por traços peculiares que os distin­guiam dos leigos. Con,"lta que eram possuidores de temperamento nervoso e altamente excitável. Ao se comunicàrem com os espíritos que controlavam, en­travam em transe e até mesmo em crises catalépticas. Tais transes eram provocados pela tragada de grandes quantidades de tabaco e pela dança e canto ao rítmc do matraquear de uma cabaça. Os indígenas acredi-

307

Page 308: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tavam que tôda doença tinha uma origem magica ou sobrenatural; resultava de um castigo impôsto por um espírito das selvas, alma do outro mundo ou magia negra dos feiticeiros. Os pajés curavam tais doenças por meio de massagem, soprando fumaça de tabaco sôbre o corpo do doente ou extraindo o pequeno ob-

· jeto (um osso, uma pedra, ou mesmo uma lagartixa) introduzido no doente pelo espírito ofendido. Os pajés desfrutavam de enorme poder ent're seu povo. Após o ano de 1500, sucederam-se vários movimentos renovadores entre as tríbos tupis, liderados por pajés que prometiam o retôrno à "terra lendária dos heróis tradicionais", terra essa onde os habitantes não teriam que trabalhar e onde gozariam de juventude eterna. (2) Vários grupos migraram rio acima, no Amazonas, para áreas situadas acima da foz do Rio Negro, a fim de escaparem aos europeus e irem em busca dessa terra lendária.

Até boje podem-se encontrar pajés entre as popu­lações mistas da Amazônia. Na realidade, êles exer­cem atualmente seu ofício entre a população rural ama­zônica através da maior parte do Vale. Controlam, como no tempo dos nativos, as almas do outro mundo e os espíritos perigosos das selvas. O povo continua a crer em poderes sobrenaturais e acredita-se que sejam necessários feiticeiros para enfrentar tais poderes. Pode-se encontrá-los em Santarém, e sobretudo em ô bidos onde se concentram; até mesmo nos distritos operários de Belém e Manaus existem indivíduos, qu~ se denominam pajés, que professam uma crença es­pírita, misto de aborígine e moderno. Nenhum pajé

(2) Alfred Métraux, "Les Migrattons Historiquea de8 Tupi-Guarani", Journai de la Société des Am6rican'8tes de Paris (1927), XIX, 1-45.

308

Page 309: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vive atualmente em Itá, porém há vários nas locali­dades vizinhas, a quem os moradores da cidade fre­qüentemente consultam, procurando conselhos e pedin­do a realização de alguma cura. Algumas vêzes per­suadem-nos a ir secretamente à cidade. Essa visita, entretanto, tem que ser mantida em segrêdo porque o médico sediado em Itâ empreendeu há anos atrás uma campanha contra os pajés, acusando-os de praticar a medicina sem licença, um dêles tendo sido prêso em conseqüência. Desde então, os pajés agem clandesti­namente, com medo das autoridades. Estas, por sua. vez, alegam que aquêles são "selvagens supersticiosos e sem cultura", criminosos que devem ser banidos da comunidade. A maioria das pessoas nega haver jamais procurado o auxilio de um pajé, mas, mesmo assim, alguns dêles vivem nas redondezas de Itá e são figu­ras populares e sempre ocupadas. Uma autoridade municipal, segundo consta, procurou certa vez um pajé para obter uma cura. Na realidade, é êle temido e respeit.ado/ tanto pela 'População urbana, como pela rural e geralmente as autoridades fingem ignorar suas atividades.

Nenhum dos feiticeiros que habitam Itá, entretan­to, é um grande pajé. Os grandes pajés, no consen­so geral de Itá, vivem há cêrca de uma geração e ti­nham o título de "sacacas". Homens famosos como Joaquim ·Sacaca, que dizia ser um indígena do alto Rio Negro, Fortunato Pombo, que habitava as vizinhanças de Jocoj6 e Lúcio, falecido há cêrca de 10 anos, eram pajés "sacacas". (3) Dizia-se que êsses poderosos fei­ticeiros tratavam familiarmente numerosos espíritos que

(3) O autor não conhece uma tradução para o têrmo "sacaca", embora seja o nome dado a uma tribo indígena que outrora habitou a Ilha de Marajó de onde talvez proce­dam vários pajés famosos.

309

20

Page 310: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

os ajudavam em suas curas; eram capazes de percorrer enormes distâncias sob a água e permanecer mergu­lhados durante dias e até semanas. ~sse dom que pos­suíam distinguia-os dos pajés menos poderosos qne hoje servem a população de Itá. Corre que os "sacacas" usavam- a pele de uma cobra grande durante suas via­gens sob a água. Cada um dêles possuía um lugar particular à margem do rio, a que chamavam de seu "pôrto" e de onde mergulhavam no reino encantado das profundezas do R.io Amazonas ou para suas via­gens submarinas. O pôrto de .Joaquim Sacaca, por exemplo, consistia em um tronco de madeira com e:;­pinhos, sôbre o qual somente êle podia andar descal­ço. Um outro "sacaca" utilizava-se de um tronco ôeo como um túnel para entrar na água. Fortunato Pom­bo ·freqüentemente visitava outras cidades. Viajava de Itá para Santarém em alguns minutos e num h1s­tante realizava viagens por baixo dágua atlé às mais afas­tadas cidades amazônicas. Joaquim Sacaca ouvia fre­qüentemente o chamado de Luandinha, um espírito feminino que dizia ter sido uma grande cobra clágua, e então desaparecia por umas horas para passar algum tempo em sua companhia nas profundezas do Ama­zonas. Bolhas dágua eram vistas à tona à medida que descia ao fundo para a ela se reunir. Os espíri­tos chamavam Joaquim de "Pai" e dizia-se que os pajés "sacacas" não morriam. De acôrdo com o fol­clore, viviam eternamente em um reino encantado no fundo das águas, do mesmo modo que os feiticeiros das tribos indígenas tupis habitavam uma terra lendária no oeste.

Consta em Itá que um ·grande pajé pode estar anunciando seus futuros poderes quando grita alto no ventre materno. Em criança, mn pajé é diferente

310

Page 311: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

das demais; êle ou ela - pois as mulheres também po­dem ser pajés - é sujeito a acessos de raiva e a ataques. Demonstra precocemente sinah: de poderes sobrenaturais. Quando menino, Fortm1ato Pombo gostava de errar pelas margens do rio apanhando cama­rões e pequenos peixes com um arco e flecha de brin­quedo. Um belo dia desapareceu; a mãe lhe encontrou a camisa dependurada em um poste, próximo ao embarcadouro. Certa d~ que o filho se afogara, passou três dias chorando, ao fim dos quais Pombo reapareceu. A princípio recusou-se a contar sua aventura mas, por fim, mencionou os espíritos compa­nheiros que enco:t;ttrara nas profundezas da água, a comida e o charuto, "tauari", lindamente pintado que lhe haviam oferecido mas que rejeitara temendo nuncl). mais regressar. ( 4) Aos doze anos, Fortunato já havia efetuado uma cura. Um dia, ao visitar com sua mãe um menino moribundo, anunciou que êle não morreria . .Apanhou algumas ervas no quintal e disse à mãe que preparasse uma poção para o doente. IJembrando-se da visita anterior de Fortunato ao fundo das águas, a mãe obedeceu e pouco após o menino restabelecia-se. Daí por diante, a fama de Fortunato como pajé espa­lhou-se.

Outros pajés não se revelam tão precocemente. Via de regra os pais de crianças que dão mostra de

, possuir tais dons relutam em permitir que seus filhos se tornem pajés, tomando para isso as providências necessanas. Levam às· vêzes os meninos que apresentam tais síntomas a um pajé, rogando-lhe que afugente os

(4) O tema de Orfeu em Hades, sôbre o perigo de co­mer qualquer coisa no mundo subterrâneo, sob pena de não mais regressar, reaparece em tôdas as histórias relativas às viagens dos pajés de Itá ao fundo das águas.

311

Page 312: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

espíritos atraídos pela criança. Outros, que desejam que seus filhos se tornem pajés, levam-nos a um feiti­ceiro pod~roso para que êste estabeleça a relação entre os espíritos e a criança. Caso não se adote uma dessas duas medidas, a criança que demonstra tais sintomas talvez não tenha capacidade para resistir aos espíritos, vindo a morrer. Hoje em dia, pelo menos, as pessoas dizem que não querem que seus filhos se tornem pajés. Êstes são perseguidos pelas autoridades, estigmatizados de "pagãos" pelo padre e publicamente criticados pela · classe alta. Freqüentemente, porém, o indivíduo não pode evadir-se. Dona Benta, por exemplo, contou que sua filha se tornou pajé a despeito dos esforços de um velho colega que afugentou os espíritos e que, incerto dos resultados de sua cura, avisou aos pais que obser­vassem cuidadosamente a menina quando estivesse ao redor dos 15 anos de idade. A menina teve uma vida nornial até os 16 anos, época em que o pai faleceu. O choque obrigou-a a atirar-se na rêde, onde chorava e gemia de dor. Então, em meio aos gemidos de sua filha, Dona Benta ouviu uma voz de homem que dizia chamar-se Nerto, um espírito das trevas. Outras vozes uniram-se à de Nerto e através da filha anunciavam seus nomes. Algumas eram femininas, outras mas­culinas. Mais tarde a moça contou as conversas que ti­vera com os espíritos. ·Tinha ela o dom de predizer o futuro e efetuou diversas curas milagrosas. Aconse­lharam Dona Benta a que a levasse a um conhecido pajé para que fôsso devidamente instruída sôbre a ma­neira de lidar com os espíritos, a fim de evitar riscos. Dona Benta não permitiu que a mesma recebesse lições completas, temerosa da polícia e da opinião pública. Os moradores locais estão convencidos de que a morte da rapariga, vários anos mais tarde, ocorreu porque ela foi "levada pelos seus espíritos".

:n2

Page 313: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Algumas vêzes os sintomas manifestam-se tarde. Enéas Ramos disse-nos que ficou surpreendido quando sua filha mais velha evidenciou tais sinais, depois dos vinte anos. Vinha padecendo de graves dores de cabeça, chorando e gemendo durante o sono. Diversas "reza­deiras" e "benzedeiras", que aliam a seus métodos ervas medicinais, tentaram, sem sucesso, curá-la de suas dores. Certa noite ela se levantou da rêde e correu desordenadamente em direção ao rio, onde teria mer­gulhado se o pai e os irmãos não a impedissem. ~sse procedimento incontrolável ocorreu diversas vêzes antes que Enéas se decidisse a procurar um pajé. P.ste con­seguiu afugentar tcmporàriamente os espíritos, que, entretanto, logo retornavam. A jovem casou-se cedo, transferindo-se para Belém onde se tornou pajé. No­tícias de lá informam que Maria José, coroo é chamada, é agora pajé famosa e medium espírita em um distrito operúrio dessa cidade.

Embora muitas mudanças tenham ocorrido desde os tempos aborígines, a feitiçaria amazônica moderna demonstra a notável persistência da religião indíg1ma, apesar de mais de três séculos de influência cristã. Como os seus anteceimores indígenas, o pajé moderno da Amazônia dispõe de um cortejo de espíritos que o auxiliam; possui poderes de adivinhação, torna-se pos­sesso, entra em transe e efetua curas. Hoje em dia, seus poderes sobrenaturais benfazejos são principalmente "espíritos d~ profundezas do rio", com nomes brasi­leiros modernos, um santo, ou um "índio" (isto é, o espírito de um pajé indígena), de preferência aos ve­lhos demônios das selvas e almas do outro mundo dos Tupís. Atualmente, usa-se o álcool, juntamente com o tabaco, para estimular o transe. Um pajé poderá dançar e cantar segurando um chocalho sagrado, como o fazia o pay Tupí, ou poderá usar um feixe de

313

Page 314: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

penas vermelhas de papagaio, uma vara de ervas, ou mesmo um crucifixo, para o mesmo fim. Porém, as antigas técnicas de curar, isto é, o processo de soprar fumaça de tabaco sôbre o corpo do paciente, de fazer massagem ou de fingir que se extrai um pequeno objeto do corpo do doente, permanecem essencialmente as mesmas.

Um dos membros do nosso grupo de pesquisa foi tratado por um pajé de nome Sátiro, que não é um pajé poderoso P. pratica há poucos anos. Ascendino e l\faria de Lourdes, ambos residentes de Itá, são mais famosos. Os métodos de Sátiro não são tão tradicionais quanto os dos pajés mais famosos; êle, porém, iniciou a cura da maneira tradicional. Preparou uma mesa, cobrindo um pequeno caixote com uma toalha sôbre a qual colocou vários charutos longos, fabricados com tabaco local e enrolados em casca de árvore "tauari". Em se,,,1Y11ida fumigou um copo, soprando nuvens de fumo no seu interior, enchendo-o depois com aguar­dente. Pediu ao seu paciente que se estendesse na rêde próxima à mesa e começou a cantar, invocando, pelo seu próprio nome, cada um dos espíritos que o auxi­liavam. Subitamente um dos espíritos apoderou-se dêle e tanto sua voz, como a sua postura sofreram mudança imediata. óbviamente devia tratar-se de um espírito feminino, pois entoou seu canto em falsete agudo e seus movimentos tornaram-se graciosos.

Nesse momento Sátiro bem poderia ter utilizado seus poderes divinatórios, visto que os pajés, quando em transe, anunciam quais serão seus futuros pacientes e são até capazes de ler o pensamento do enfêrmo sob tratamento. Ascendino, por exemplo, leu os pensa­mentos de um de seus pacientes, dizendo-lhe: "Você pensa que eu sou ignorante e não acredita em mim".

314

Page 315: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O paciente sentiu-se embaraçado mas confessou que Ascendino acertara. Sátiro, entretanto, não utilizou tais poderes. Começou a fumar e a beber sem parar, eant;mdo na voz de sua "companheira" que, dizia êle, era :rtfariquinha - um espírito feminino das trevas. Deixou-nos e desceu pelo caminho que ia da casa até o riacho próximo. Aí, em pé dentro dágua, invocou outros espíritos . companheiros. Embora não usasse chocalho, segurava uma vara na mão com a qual fez uma cruz sôbre si mesmo e sôbre o paciente, ao regres­sar, tendo em seguida soprado fumaça de tabaco sôbre o corpo do doente, friccionando-lhe as costas onde se queixava de dores. Ascendino ou Maria de Lourdes teriam sugado a área dolorida. Finalmente, Sátiro apr·esentou seu diagnóstico: as dores não resuitavam de encantamento feito por um inimi~, portanto não podia mostrar um besouro ou um p~eno pedaço de osso. (Em outra ocasião, um pajé anunciou ter removido um besouro introduzido no corpo de seu paciente por bruxaria, soprou no interior de um copo contendo aguardente, cobrindo-o ràpidamente com um pires. Na manhã seguinte um grande besouro preto foi encontrado flutuando na aguardente). Disse Sátiro que as dores de seu paciente provinham de causas naturais - "wu ataque de ramo frio" - e recomendou uma dieta espe­cial e uma série de ervas medicinais. Por fim des­pediu os seus espíritos e retornou ao estado normal dizendo sentir-se exausto.

Sátiro continua aprendendo sua profissão. Eip::­bora desejàsse ardentemente possuir um chocalho, con­tou-nos que primeiro teria que adquirir o poder de viajar sob a água. Nas profundezas do rio espera êlc receber seu "maracá" da própria boca de uma cobra grande. Um pajé de maior fama disse-lhe que tambéni necessitava de um "espelho virgem" - um em que

315

Page 316: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ninguém se tenha ainda mirado - a fim de poder divisar os espíritos companheiros sem correr risco, durante as viagens debaixo dágua. Tentou Sátiro vá­rias vêzes, sem êxito, adquirir um dêsses espelhos, mas sempre alguém lhe olhava por cima do ombro quando a caixa que os continha era aberta na loja. Êle está i:;eguro de que virá a ser um poderoso pajé. Descul­pou-se por não poder ainda distinguir todos os seus "companheiros". "No comêço", disse êle, "é como uma floresta em que a gente sabe que há seringuefras, mas, como nenhuma estrada foi feita ainda, não se podem ver as árvores e ninguém sabe como chegar até elas". Acredita que Um. dia será capaz de viajar sob a água e visitar a cobra grande e que terá um "índio" entre seus espíritos companheiros, como Maria de Lourdes e Ascendino. Quem sabe, Sátiro talvez se torne ainda um "sacaca", com todo o prestígio de que desfrutavam êsses homens famosos da geração passada.

Os pajés modernos de Itá sofreram a influência do catolicismo e, como os leitores devem suspeitar, até certo ponto, do espiritismo que é praticado nas grandes cidades de Belém e Manaus. No entanto, a maioria dos pajés estabelece uma distinção entre o espiritismo e a verdadeira "pajelança". Dizem êles que os mediuns espíritas da cidade lidam com "espíritos do ar", vaga­mente considerados almas desmaterializadas, enquanto o pajé autêntico lida com "sêres da água". Os pajés não percebem tãô bem a diferença entre o catolicismo e a feitiçaria. Ao efetuarem suas curas usam livre­mente orações católicas e pseudo-católicas; persignam-se e às vêzes incluem um santo entre seus espíritos "com­panheiros".

Todos os pajés professam veementemente ser bons católicos e fiéis devotos de seu santo padroeiro especial.

316

Page 317: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Porém, no Vale Amazônico, ao contrário do que acon­tece entre as populações indígenas do Peru, Guatemala e México, não houve uma fusão completa entre o cato­licismo e os remanescentes dos ritos religiosos nativos. Em vez disso, a crença nos pajés e seus espíritos existe simultâneamente com o catolicismo e o culto dos santos. As duas correntes, o pajeísmo e o catolicismo popular, não entram em conflito; cada uma delas serve seu pró­prio objetivo. Os santos velam pelo bem estar geral da comunidade e,. através do mecanismo das promessas, con­cedem favores e até mesmo curas. O pajeísmo liga-se a influências mágicas, curando doenças causadas por poderes sobrenaturais maléficos e por bruxarias.

IV

Como as crenças ligadas ao paJe, a serie de peri­gosos sêres sobrenaturais que habitam as selvas e o rio, a que se refere a população de Itá, tem também

, origem essencialmente indígena. Como sucede no pa­jeísmo, a antiga crença religiosa indígena tem-se modi­ficado e fundido nos conceitos europeus análogos, intro­duzidos na Amazônia pelos portuguêses. Alguns residentes de ltá negam a existência de tais espíritos e sêres sobrenaturais, principalmente os que pertencem à classe mais alta que ouviram pessoas de fora ridicula­rizarem tais idéias, chamando-as de superstições e "bo­bagem de caboclo". Sobretudo na presença de mora­dores das cidades, os membros mais sofisticados da comunidade sentem-se envergonhados e fingem rir de tais noções. Mas, na realidade, quase todos em Itã, mesmo a maioria da classe alta, conservam sua crença nesses sêres perigosos. Quando correu a notícia, por , exemplo, de que a cobra grande de olhos luminosos

317

Page 318: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tinha sido vista no rio, próximo a I tá, nenhum descrente da classe alta se aventurou a navegar à noite em uma

rcanoa. Longe de serem velhas superstições postas de lado, as crenças nesses sêres sobrenaturais indígenas e europeus continuam vivas até hoje em Itá .

• Muitos ~:if:::LMderes estão di.r.e.12~nte ligados à .J!AÇ{l ~L_e§ca.. - à exploração do ambiente -natural. '.Êsse é o caso de Anhangá, ( 5) fantasma ou demônio que persegue os indivíduos na selva, segundo contam os caçadores e seringueiros. Anhangá aparece-lhes geralmente como um "inhambu", ave selvagem, mas pode tomar a forma de quase todos os animais. To­davia, como freqüentemente aparece sob a forma de .inhambu, êste é considerado "visagento", isto é, por­tador de azar. A única diferença entre o inhambu normal e o Anhangá é o modo de proceder e as penu­gens brancas do peito e penas vermelhas da cabeça, características dêste último. Tanto Jorge Porto como Juca já viram Anhangá sob a forma de inhambu. Jorge e alguns amigos achavam-se acampados be~ no coração da floresta, cortando madeira, quando ouviram um assobio agudo que se aproximava, dando por fim a impressão de partir de cima de suas cabeças, na tenda. Reconhecendo o som de Anhangá, Jorge aspergiu água benta sôbre si e seus companheiros a fim de o afugentar. (6) A experiência de Juca está mais de acôrdo com o padrão local. Vinha êle caçando inhambus com ex­cepcional êxito. ·Tôdas as tardes, depois de trabalhar em sua roça, caçava durante algumas horas, apanhando

(5) Anhangá na língua geral e na linguagem Tupí nativa significa "fantasma" ou "sombra".

(6) li:!e não explicou porque levava âgua benta na sua bagagem, porém freqüentemente os homens carregam uma garrafa dessa água nas longas viagens, para tais contin­gências.

318

Page 319: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sempre uma ou duas aves. Certa tàrde, porém, viu um Anhangá e atirou antes de o reconhecer. A ave tombou sôbre a cabeça do caçador e pesava de tal forma que o derrubou, deixando-o inconsciente. Teve sorte, dis­se-nos, porque o Anhangá não "roubara sua sombra", deixando-o às portas da morte. Após se haver salvo por um triz, Juca desistiu da caça, aterrorizado.

Como os inhambus, os macacos, especialmente o ...zuaribíL,. ou Alouatta camya, são temidos na selva. O guariba é também considerado "bicho visagento''. Alguns dêles, apesar da aparência de um animal. nor­mal, têm o dom de "roubar a sombra do homem". O seringueiro Antonio Dias relatou-nos seu encontro com um dêsses macacos malignos. Um dia ouviu alguém chamá-lo ao caminhar sõzinho pela floresta; voltando-se deparou com um grande macaco (Alonatta caraya) que avançava sôbre êle. Fugiu em pânico. As mulheres, especialmente, têm pavor ao guariba pois crêem que êle lhes invade as casas para as violentar. l\iuitas pessoas acreditam que êsses animais malignos são "mãe de bicho'', ser sobrenatural que protege os animais de cada espécie contra os caçadores ou pescadores que os des·· 1.ruam em grande quantidade. Tais sêres punem os caçadores e pescadores, roubando-lhes a sombra. .

O mais famoso dos espíritos da selva, entretanto, é o Curur1irª, pequena criatura cujos pés são voltados

Pâra trás. Vive no coração da mata de onde freqüen­temente se. ouve o seu silvo estridente. Dizem que tem especial predileção pela aguardente e o fumo. Atrai os caçadores para o interior da selva até que se percam sem esperança de regressar. O Curupira imita a voz humana; chama assim o caçador ou seringueiro que, acreditando ouvir o chamado de um companheiro, oo desvia de seu caminho. Todos em Itá ouviram falar do Curupira mas ninguém jamais o viu; nas localidades

319

Page 320: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vizinhas, há homens que dizem lhe ter ouvido a v.oz na floresta, sem jamais o ver, porém. Muitas pessoas, entretanto, contam casos de antepassados seus que esti­veram frente a frente com o Curupira. Enéas Ramos contou-nos um caso relatado por seu avô, que já era idoso quando Enéas era menino. Naquele tempo, o Igarapé Arinoá era cercado por uma floresta impene­trável: era um "reduto de Curupiras". Segundo reza a história, o avô de Enéas falou a um recém-chegado à eidade sôbre a caça selvagem que poderia ser encon­trada no braço superior do Igarapé Arinoá, e o homem resolveu ir caçar nesse local. Seguiu, armado de uma "cruz de cera benta" ao redor do pescoço e de um supri­mento dessa cera na mochila. Relatou mais tarde o encontro que tivera. Logo na primeira noite, ao amar­rar a canoa, vira o Curupira, descrevendo-o como uma criatura escura "da estatura de uma criança" e "pa­recido com um caboclinho". O Curupira porém não podia se aproximar porque a cera benta o repelia e o mantinha a distância. Pediu ao caçador que removesse a cruz do pescoço e, quanqo êste lhe atendeu, atacou-o. O caçador, porém, com um sôco violento, derrubou o duende; mas com um simples movimento o Curupira atirou o homem a tamanha altura que sua perna fra­turou-se ao cair. .Agarrou então o caçador a sua mo­chila, que continha cera benta, e foi êsse ato que o salvou. O Curupira tornou-se inofensivo. Mesmo assim, com a sua intensa "catinga" adormeceu o ca­çador que, ao despertar, viu-se deslizando corrente abaixo, na canoa, tendo ao lado uma flecha mágica. A partir dêsse dia transformou-se num excelente atirador,

1 jamais ·errando o alvo. Desde êsses tempos os Curu­Wiras abandonaram o Igarapé Arinoá e, à. medida fque os homens desbravavam a região, iam-se retirando mais para o interior da selva.

320

Page 321: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Ao contrário do Qurupirl!, a cg,Qxa grall.de ainda é vista pelos moradores de Itá. Acredita-se que ela pertença à família dos Boídeos e que seja uma "su­curiju" ou "jib6ia", que atingiu dimensões maiores que as normais e possui poderes sobrenaturais. Uma cobra grande pode medir de 40 a 50 metros de comprimento e é tão grossa que "os sulcos que deixa ao se arrastar no solo transformam-se em regatos". Crê-se que habita as partes mais profundas do rio e que se trate da "boiúna" ou cobra grande mencionada pelos pajés. Algumas vêzes surge à tona dágua onde todos a podem observar. Durante a nossa visita a Itá, em 1948, nin­guém se atreveu a pescar à noite durante tôda uma se­mana, porque uma cobra grande aparecera duas noites sucessivas no rio, bem em frente à cidade. Dois pes­cadores lhe viram os olhos luminosos, fitando-os na canoa e foram para as suas rêdes, tremendo de pavor. A cobra grande costuma aparecer nas noites de tem­pestade, durante o inverno ou na estação das chuvas. "Seus olhos brilham como os faróis de um barco fluvial". Diz o povo .que algumas vêzes ela se transforma em um "barco encantado" que foi visto várias vêzes, por muitos anos, pelo trapicheiro de Itá, Antonio Noronha. A "cobra grande navio" dirigiu-se diretamente para o cais público, com tôdas as luzes acesas e, ao se aproxi­mar, virou a jusante. Outra informação, fornecida por um seringueiro que viajava para Itá em uma canoa, veio confirmar as declarações de Antonio. Descansava êle em um. velho barracão quando ouviu o ruído do motor de uma embarcação fluvial e em seguida avistou o barco aproximando-se do cais abandonado. Era um grande barco, todo iluminado, vendo-se ao leme "um homem vestido de vermelho" (provàvelmente o Diabo). Subitamente, virou na mesma direção de onde viera. A relação entre o barco encantado e a cobra grande nunca

321

Page 322: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

foi completamente esclarecida pela população de Itá, mas todos sentiam que eram manifestações do mesmo poder perigoso.

Outra perigosa aparição é a 1\fatinta-nereii:B,. En­quanto o Curupira e Auhangá habitam o coração ela selva e as cobras grandes fazem do rio o seu "habitat'', Matinta-pereira aparece na própria cidade. É muito natural, pois, que as crenças que a êle se relacionam sejam de origem essencialmente européia. A descrição de Matinta-pereira assemelha-se muito ao conceito que, no Velho Mundo, se faz dos lobisomens. AJgumas pef;­soas em Itá dizem que Matinta-pereira é sempre uma mulher, outras, porém, alegam que aparece sob a forma masculina. Todos estão de acôrdo em que um indi­víduo pode se converter em um Matinta-pereira pelo seu próprio destino. Tal indivíduo ignora a princípio a sua sorte mas depois começa a ter pesadelos, emagrece e sua pele adquire uma tonalidade amarelada. l\Iatin­ta-pereira surge à noite, nas ruas ou nas proximidades das residências, sempre acompanhado de um pássaro preto como o carvão que é o seu bicho de estimação. Dizem alguns que "ao sair, deixa a cabeça em casa". Todos o temem porque "rouba a sombra" tra?.endo doenças e até a morte. Essa aparição pode ser captu­rada, desde que se façam rezas e se tranque a porta ao sentir que o Matinta-pereira se aproxima. Na ma-11hã seguinte, a pessoa-Matinta-pereira será encontrada sob a sua forma humana, sentada na soleira da porta. Pode-se também investir contra a aparição com chi­batas, verificando-se no dia seguinte que a pesson apresenta vergões no rosto. Um de nosso~ amigos de Itá alega ter capturado um Matinta-pereira há dez anos, usando o primeiro método; a jovem que apareceu à soleira de sua porta, na manhã seguinte, foi detida e encarcerada pela polícia.

322

Page 323: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O bôto de_jgua doce que habita a bacia amazônica. é também encantado e dotado de poderes mágicos e sobrenaturais. Os habitantes da Amazônia notararu uma série de semelhanças fisiológicas entre o bôto, que é um mamífero, e o homem e, do mesmo modo, muitas diferenças entre os mesmos e os peixes. Há dois tipos de bôtos conhecidos em Itá: o vermelho grande e o tucuxi que ó pequeno e preto. Diz-se que êstc· último é de certo modo benevolente; salva os que se afogam, levando-os até à margem e afugenta os ver­melhos quando êstes atacam as canoas ou os banhistas. A despeito da boa reputação de que goza o peque110 bôto preto, as pessoas acham mais prudente, entretanto, evitar tanto um quanto outro. Todos êles são cria­turas dotadas de grande poder mágico.

De fato, quase todo o corpo do bôto pode ser apro• veitado para algum fim mágico ou medicinal. Pode-se secar a pele para o preparo de uma fumigação utilizada no tratamento de mordidas de cobra ou feridas pro­duzidas por arraia. Outro tratamento consiste em ralar o dente ou osso do bôto dentro de um pó a ser aplicado sôhre a mordida ou ferida. Um dente de _Mto, pen~ durado ao pescoço de uma criança, curará" a qjarr.Wa, e da orelha pode-se fazer um amuleto que, prêso ao pulso da criança, lhe garantirá uma .boa audição. A gordura do bôto é importante ingrediente de um pre­parado contra o reumatismo e sua carne ó consideradu. um remédio específico contra a lepra. Os miolos são extremamente potentes e perigosos; uma pequena quan­tidade dêles - "o suficiente para passar no fundo de uma agulha" - adicionada à comida de um cachorro, convertê-lo-ít num excelente cão de caça e o torna.·ú imune à "panema". A mesma quantidade dada a um homem fará com que o doador adquira sôbre sua vítima. o mesmo contrôle que esta exerce sôbre seu cão. To-

323

Page 324: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

davia, uma porção maior dos miolos do bôto, colocada na comida de um homem, levá-lo-á à loucura e lhe atrofiará o cérebro. O penis e o ôlho esquerdo do búto podem ser sêcos e ralados a fim de formarem um pode­roso afrodisíaco. Um pó preparado com "carajuru" (7) e penis ralado pode ser espalhado sôbre o penis do homem, logo antes do coito. Diz-se que produz uma ereção tão grande e continuada que faz com que a mulher atinja várias vêzes o orgasmo e "torne-se quase alucinada pelo seu amante". Um homem que se utilizn dêsse preparado poderá possuir a mulher sempre que a desejar. O ôlho esquerdo do bôto pode também ser ralado e o pó, usado como uma porção mágica de amor, que deve ser colocada na comida da mulher pelo homem que a deseja. Segundo muitas pessoas, secando-se a órbita do ôlho esquerdo do bôto, faz-se com ela uma "mira" através da qual um homem poderá espreitar a moça que deseja, fazendo com que ela se apaixone por êle. (8)

O bôto tem grandes associações com o sexo na mentalidade dos habitantes de Itá e de outras comu­nidades amazônicas. Acredita-se que o próprio animal tenha grande potência sexual e poderes mági,cos e corre que certos pescadores têm relações sexuais com fêmeas de bôto que matam na praia. Os órgãos sexuais da

(7) Planta selvagem Arrabidaea sp. De suas folhas ex­trai-se um líquido vermelho.

(8) A respeito dessa superstição conta-se uma anedota engraçada: um jovem da cidade que viajava em uma em­barcação fluvial apaixonou-se por uma mocinha, sua compa­nheira de bordo. Ao passarem por Santarém, o rapaz com­prou a órbita ocular de um bôto, através da qual resolveu espreitar a moça; porém, ao tentar fazê-lo, a moça saiu do seu raio visual e nêle surgiu a imagem do gordo capitão, cujas investidas amorosas o rapaz passou o resto da viagem tentando evitar.

324

Page 325: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

fêmea são notàvclmente semelhantes aos da mulher e proporcionam prazer tão intenso ao homem, diz-se, que se o animal não o afastar de si êle prosseguirá em coito até morrer. Em lt'á, porém, os habitan1es acham que as mulheres devem ser protegidas contra as inves­tidas dos bôtos machos. Diz-se que as mulheres são incapazes de resistir a um homem se por êle se senti­rem tentadas; do mesmo modo por que uma moça desa­companhada em Itá freqüentemente cai nas garras de um amante, é ela incapaz de resistir ao bôto macho. Julga-se que êste pode aparecer sob a forma de um bonito rapaz, geralmente vestido com um terno branco engomado, surgindo inopinadamente nos lares para se­duzir as mulheres, especialmente as virgens. Algumas vêzes apresenta semelhança física com o marido e tem relações sexuais com a espôsa que não percebe a mis­tificação. O bôto macho, na forma humana, só poderá ser reconhecido pelo fato de ter os pés virados para trás mas, de qualquer modo, nenhuma mulher lhe pode resistir. A medida, porém, que continuam suas relações sexuais com o bôto, as mulheres tornam-se magras e macilentas e podem até morrer se as não interrompe­rem. Se uma moça dá à luz o filho de um bôto, a criança deve ser imediatamente "devolvida ao pai" (isto é, atirada nágua), a fim de que o bôto não cause dano à mãe. (9) Numerosos casos de filhos ilegítimos são atribuídos ao bôto na região amazônica.

Juca contou-nos a história da espôsa de um amigo seu que foi seduzida por um bôto. Êsse amigo, qne

(9) Nossos informantes em Itá não conheciam nenhum caso local de infanticídio por êsse motivo, mas na última década vários casos dêsse gênero ocorreram na região do Baixo Amazonas, tendo sido um dêles julgado no tribunal de Belém.' Tanto o pajé que aconselhara a mãe a matar o filho, como esta, foram acusados de homicídio.

325

21

Page 326: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vivia em uma localidade rural vizinha de Itá, tinha por hábito pescar à noite. Numa dessas noites, um belo estranho veio à sua casa e lhe seduziu a mulher, voltando noite após noite. Êle de nada suspeitam, mas depois começou a notar que sua espôsa aparentava cai1saço excessivo e que se ia tornando macilenta. Observou também que cada vez que partia para a pesca, em sua canoa, um bôto o acompanhava a distância, vindo à tona freqüentemente e subitamente desaparecia. Ficou desconfiado e uma noite regressou mais cedo à casa. Ao entrar, pensou ter visto um homem correndo em direção ao rio, resfolegando como costumam fazer os bõtos. Na noite seguinte, quando o bôto o seguiu, atirou sôbre êle e viu uma mancha de sangue na super­fície da água, ficando certo de haver acertado a pon­taria. Sua espôsa começou imediatamente a aumentar de pêso e a perder a côr macilenta, mas o pobre marido, disse o Juca, caiu com febre e morreu pouco depois, enfeitiçado pelo amante-bôto de sua mulher.

Vários casos de bôtos que seduziram ou tentaram seduzir virgens ocorreram em Itá. Raimundo con­tou-nos como um bôto seduziu sua irmã que morrera .há alguns anos atrás. Viviam a êsse tempo em um barracão próximo ao rio. Durante várias noites tôda a família ouviu um estranho assobio, como se alguém estivesse chamando e uma noite sua irmã começou a entoar uma canção esquisita e ininteligível. Correram todos para o quarto da moça e a encontraram nua, lutando depois violentamente com êles quando a impe­diram de se atirar nágua. Raimundo viu de relance uma figura branca ao entrar na água, ouvindo logo a ~eguir o resfolegar de um bôto. Seu pai esfregou o corpo da filha com alho, substância repelente para todos os bôtos, e a rapariga acalmou-se. Os habitantes de Itá crêem que os bôtos desejam levar as mulheres

326

Page 327: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

para o fundo do rio e êsse parece ter sido o caso da irmã de Raimundo. Não pôde ser salva, entretanto, porque convivera durante demasiado tempo com o seu amante, morrendo pouco depois que êste a deixou. (10)

O bôto sente atração especial pela~ mulheres n1ens­truadas, as quais, por conseguinte, nunca devem viajar em canoa nessas condições. Se o fizerem, os bôtos machos seguirão a canoa tentando virá-la. .As vêzes nem é preciso que estejam menstruadas para os atrair. Uma mulher nunca deve olhar para um bôto quando êste aparece à tona, próximo à canoa, pois êle tentará raptá-la. Somente cravando-se uma faca no fundo da canoa, cortando-se a água com nm grande facão ou besuntando a pôpa com alho comum ou alho silvestre, consegue-se manter os bôtos a distância. Outras pessoas dizem que êles não toleram o cheiro da pimenta e, em Itá, a população ribeirinha queima às vêzes alho e pimenta quando as mulheres da casa estão menstruando, a fim de impedir a aproximação dos bôtos. :J!::stes, mais do que qualquer outro animal, são "encantados", e o macho é um sério concorrente sexual do homem. Em tôdas as grandes festas, dizem certas pessoas,· dois ou três dêles comparecem, dançando com as moças e acabando por seduzí-las.

V

Para ·o visitante, a população de Itá dá a impres­são de se preocupar exageradamente com doenças, riscos da gravidez, parto e outros processos fisiológicos.

(10) Se uma jovem enfiar um alfinête em seu amante­bôto, desencantá-lo-á e êle permanecerá para sempre sob a forma humana.

327

Page 328: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Gastam grande parte de seus recursos em drogas co­merciais como a "Saúde da Mulher" (preparado que alivia as dores da menstruação), Pílulas Carter para o Fígado e outras drogas que podem ser encontradas em quase tôdas as lojas e postos comerciais. Todos conhecem uma infinidade de ervas medicinais e mé­todos populares de tratamento das doenças. Durante tôda a nossa longa conversa com um morador de Itá, o assunto doença, curas e remédios, infalivelmente vem i\ baila. Anotamos centenas de remédios específicos locais, numerosos métodos de tratamento e meios de evitar as doenças. Até há uma década atrás, Itá (e a maioria das áreas rurais amazônicas) carecia quase por completo de assistência médico-científica. De tempos a tempos um médico de Belém visitava a loca­lidade a fim de atender os doentes e prescrever medi­cação. Eventualmente, um enfermeiro prático era designado para o posto de saúde mantido durante pe­quenos períodos pelo govêrno estadual. Até 1942, época em que o SESP designou um médico para Itá, fornecendo-lhe produtos farmacêuticos modernos, a população local dependia quase exclusivamente de drogas comerciais, remédios caseiros, plantas medicinais específicas e de seus curandeiros, para proteger contra

ias doenças e acidentes físicos. Com um regime ali­mentar inadequado, sem recursos de saúde pública ou assistência médica, destituída de conhecimentos cientí­ficos a respeito da transmissão de doenças e vivendo em um ambiente propício à sua propagação, a popu­lação de Itá sempre sofreu de péssima saúde. Não é pois de admirar que se preocupe tanto com o assunto.

' ' O conceito que os residentes de Itá _fazem da doença é de certo modo duplo, .Acreditam em causas naturais e geralmente aceitam de bom grado as expli­eações fornecidas pelo médico sôbre o motivo da doença;

328

Page 329: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mas ao mesmo tempo crêem que esta seja enviada pelos perigosos espíritos da selva e do rio, ou mesmo que seja resultado de um castigo impôsto por algum santo. Seus próprios remédios populares refletem êsse duplo conceito. O pajé cura por meio de fórmulas mágicas, extraindo partículas estranhas, com a ajuda de seus espíritos amigáveis, porém, receita também dietas espe­ciais e plantas medicinais. Do mesmo modo, as pes­soas, conquanto orem a seus padroeiros, pedindo inter­venção para uma cura, tomam também drogas comerciais e remédios locais. Muitas das crenças de ltá a respeito do tratamento de doenças são solidamente fundamen­tadas em fatos observados; outras, porém, baseiam-se em conceitos mágicos e sobrenaturais. Alguns dos métodos terapêuticos e remédios utilizados pelos habi­tantes de ltá e por curandeiros locais têm, pelo menos, uma boa base científica, enquanto outros são prejudiciais para o doente. De qualquer modo, quer sejam bons ou maus à luz da medicina científica moderna, o fato é que o povo de ltá conseguiu sobreviver no ambiente amazônico por vários séculos.

O parto é um processo perigoso. Embora não se disponham de dados referentes ao número de óbitos de­vidos ao parto ou ao número de natimortos, fomos informados sôbre vários casos de morte por parto. Quase tôdas as mulheres haviam perdido um filho na ocasião do parto ou tinham sido vítimas de abortos.

Em Itá a maioria dos partos são assistidos por "curiosas", como chamam às parteiras que, na locali­dade, são em número de quatro, além das seis outras das localidades vizinhas. Essas velhas que ajudam os partos e que geralmente se instalam nas casas para cuidarem da mãe e da criança durante 8 dias, cobram, em média., Or$ 50,00 pelo primeiro parto e apenas Or$

32~

Page 330: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

20,00 pelos subseqüentes. Durante sua estada, a par­teira tem direito às refeições e o marido é obrigado a mandar uma canoa para a trazer e levar de volta. Em sua maioria são viúvas que, como Dona ,Joaquina Costa, já tiveram vários filhos seus e vivem em casa de algum parente durante os pequenos períodos em que não têm clientes. Muitas são dotadas do poder de "benzer" e conlrncem inúmeras rezas que usam como encantamento para auxiliar as clientes. Aconselham-nas também du­rante a gravidez e sôbre a higiene da mulher durante a menstruação.

As mulheres não gostam de falar sôbre menstrua­ção, mas as parteiras são notáveis fontes de sabedoria a respeito dêsse assunto e outros aspectos da higiene feminina. Foram elas principalmente que nos informa­ram acêrca dêsses aspectos da vida de Itá. Os homens acham que as mulheres são pouco limpas durante a menstruação e as relações sexuais nesse período são consideradas perigosas à saúde rlo homem. (11) Acon­selha-se às mulheres que não tomem banho ou lavem

·os· cabelos nessa ocasião e que evitem comer frutas ácidas, como laranjas, limões e mangas. Acima ele tudo (l'eve:rü evitar os córregos e rios devido ao "caruara", artrópode semelhante à aranha que vive à beira dágua. O cheiro do fluxo menstrual, explicaram-nos algumas parteiras, irrita o "caruara" que atira flechas invisíveis quando as mulheres passam e estas, em conseqüência, sentirão as pernas e os braços inchados. Morena Porto foi atacada por um "caruara" durante a menstruação e contou-nos o tratamento prescrito pela parteira. Esta mandou-a friccionar o corpo com 11111 ungiiento prepa­rado com as folhas de várias árvores, misturadas ao

(11) Alguns homens acreditam que podem contrair go­norréia se tiverem relações sexuais com uma mulher mens­truada.

330

Page 331: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

óleo ela noz do "aratieu" e da "andiroba". Benzeuca, também (isto é, tocou-lhe a cabeça enquanto murmurava uma oração), para afugentar o "caruara". As mulheres também pedem às parteiras que lhes .receitem remédios para as cólicas da menstruação, fluxo menstrual ex­cessivo ou suspensão anormal das regras. Para êste ftltimo caso, Dona Joaquina receita, entre outras dro. p;as, uma poção feita de raízes da "abuta", (12) polpa da "buchinha" (13) e folhas de café, que deverá sn tomada duas vêzes ao dia. Algumas parteiras conhe­cem também métodos anticoncepcionais e métodos ele provocação elo abôrto, porém a maioria das pessoas é de opinião que não são muito bem sucedidas nesse ponto. Uma delas disse-nos que conhecia uma oração capaz de "atalhar" uma mulher e que a usara com uma cliente elo Igarapé Itapereira. Esta tivera três casais de gêmeos e não queria mais conceber. Receitara tam­bém chás de casca de "carapanaúba" (Apocinaccas), (14) ananás, polpa ela "buchinha" e casca de quina para provocar o abôrto, caso a oração falhasse.

A maior parte das parteiras diz que pode diag­nosticar o sexo da futura criança. Uma elas quatro ljUe vivem em Itá disse-nos que predizia o sexo ela eriauça pela maneira de andar ela gestante. "Se põe o pé esquerdo na frente em primeiro lugar como é há­bito das mulheres, será uma menina, porém, se começa a caminhar com o pé direito como os homens, será um menino". Tôdas as parteiras previnem a gestante e o marido (se êste ainda não o sabe) para q ne não to-

(12) Menispernaceas sp. (13) Consta que a polpa da "buchinha" contém um alca­

lóide forte. Ver Paul Le Cointe, Amazônia Brasileira: Ar­vores e Plantas Oteis (S. Paulo 1947). p. 81.

(14) Essa casca, segundo dizem, contém também um alcalóide forte. Ibid., p. 123.

331

Page 332: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

quem em carne ou peixe apanhados por outros, pois poderiam fazer com que o caçador ou pescador con­traísse "panema". .Aconselham a futura mãe a ter cui­dado na igreja, onde o cheiro do incenso lhe poderá provocar desmaios. (15) .As gestantes não devem co­mer bananas gêmeas (isto é, dois frutos reunidos) para evitar que lhes nasça um casal de gêmeos. Du­rante a gravidez, entretanto, as mulheres podem continuar no seu trabalho de preparar a .farinha, e mesmo carregar latas dágua do rio. Excetuando as poucas restrições acima mencionadas, a gravidez é considerada um período relativamente saudável.

Logo que a mulher começa a sentir as dores do parto, seu marido chama a parteira. Quando esta habita a grande distância, geralmente vem com ante­cedência para aguardar o nascimento. Algumas mu­lheres preferem dar à luz na rêde, numa posição semi-sentada, com as pernas para fora. Freqüentemente são amparadas sob os ombros pela parteira ou mesmo pelo marido, ao se sentarem na rêde que é aberta na. parte de baixo a fim de que a parteira possa aparar o recém-nascido. A maioria das parteiras, porém, não gosta que suas clientes utilizem a rêde, preferindo um enxergão feito de esteira e lençóis. Dizem elas que assim as mulheres têm maior apoio "para dar o puxo" ou para fazer fôrça durante cada contração. À me­dida em que vêm as dores a parteira faz massagem no abdome e nas coxas da mulher e lhe flexiona as per­nas. Se o parto estiver difícil, dá à parturiente chás e "garrafadas" (preparados de várias ervas, cascas e raízes, geralmente embebidas em aguardente). Durauk um dêsses partos difíceis, Dona Joaquina espalhou um ovo batido, misturado com açúcar, sôbre o abdome da

(15) O desmaio na igreja pode ser embaraçoso, portan­to, principalmente para uma moça solteira.

332

Page 333: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mulher, dando-lhe também a mesma mistura por via interna para a fortalecer. Utiliza uma mistura de vá­rios óleos de palmeira e folhas de plantas selvagens, preparando um ungüento que alivia as dores do parto.

Rezas e encantamentos são também usados pela parteira para ajudar as parturientes. Logo que a criança nasce, a parteira corta o cordão umbilical, a uma distância de "três dedos da mãe e três dedos da criança" e liga-o com um barbante cujas extremidade.e; são untadas com um óleo de palmeira e, em seguida, fricciona o umbigo da criança com suco de tabaco. Antigamente não se banhava o recém-nascido por receio à "doença do sétimo dia" (infecção do cordão umbili­cal) mas hoje em dia pode-se dar um banho môrno. Se uma criança nasce "adormecida" (aparentemenfo morta), a parteira lhe espalha com a ponta dos dedos um pouco de óleo de oliva ou qualquer óleo de palmeira sôbre a garganta e o peito; em seguida, com um cho­ealho ou duas peças de metal qualquer, faz barulho para "despertar" a criança. Para provocar a queda da placenta, Dona Joaquina sopra na boca de uma gar­rafa. A maioria das parturientes são enroladas em um grande lençol, logo após o parto, "a fim de mantê-las seguras'', evitando dessa forma que caia a "mãe de corpo" (prolapso do útero).

Depois do parto há um longo período de convales­cença durante o qual a mãe deve respeitar numerosos tabus pós-na:tais. A duração da convalescença depende .do sexo da criança, sendo de 45 dias para os meninos e 42 para as meninas. Nos primeiros 8 dias dêsse período, a parteira aconselha suas clientes a permanece­rem na rêde e, se possível; em um quarto escuro, en­quanto os restantes dias são passados em casa, evitando, de preferência, as tarefas pesadas e observando algumas

333

Page 334: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

restrições alimentares. Nesses 8 dias iniciais, por ·exemplo, a mãe poderá comer frango, não porém a espécie que tem pernas pretas e pescoço pelado, comum e:iR Itâ. Poderá comer um mingau feito de farinha de

- arroz e de mandioca, e a banana de São Tomé bem cozida não lhe farÍL mal. Deve tomar de preferência chás de ervas medicinais e mesmo depois dos 8 primeiros dias convém evitar certos alimentos fortes e prejudi­ciais, como ovos, carne de porco, frutas cítricas, feijões, peixes sem escamas e a maioria das caças. A carne , de animais reprodutores é considerada indigesta, espe­cialmente os que se achavam no cio ao serem mortos. Porém, a carne de vitela e de animais castrados é menos :forte e não oferece perigo. Durante tôda a fase de convalescença as mulheres não devem banhar-se no rio. Após 15 dias têm permissão para se lavar cm uma bacia dágua, mas se tomarem banho no rio antes do término do resguardo, diz-se que correm risco de serem im­pregnadas por algum peixe elétrico ou uma grande serpente.

Algumas parteiras aconselham os maridos a obser­varem um período de 8 dias de resguardo após o parto da espôsa, durante o qual não devem executar qualquer trabalho pesado, pois poderiam assim provocar "dores de corpo" na criança. Entretanto, poucos são aquêles que consideram necessária essa forma de "chocar" gran­demente modificada e que seguem tal prática.

Os partos assistidos por parteiras não são especial­mente limpos ou higiênicos. Recentemente, um médico do serviço ele saúde pública conseguiu convencer, pelo menos as parteiras residentes em Itá, a freqüentarem o pôsto de saúde para receberem instruções a respeito dos princípios elementares de higiene. Pediu-lhes que fervessem os lençóis, toalhas, ataduras abdominais e

334

Page 335: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tesouras, antes de usá-los. Essas noções modernas, se é que se pode dar crédito às parteiras locais, foram ado­tadas. O serviço de saúde forneceu uma pequena maleta a cada parteira, equipada com tesouras cirúr­gicas, gaze, esparadrapo, mercúrio-cromo e categute. Foram solicitadas a notificar ao médico todos os nas­cimentos, para preenchimento dos dados bioestatísticos. Uma velha parteira rebelou-se contra essas novas idéias e ficou horrorizada ·quando o médico sugeriu que desse suco de laranja e ovos à parturiente antes de terminados os 42 dias de convalescença, continuando a seguir os conceitos e métodos tradicionais. As demais parteiras, entretanto, sentiram-se orgulhosas de verem seu ofício reconhecido e atualmente chamam o médico com maior freqüência para as auxiliar nos partos difíceis.

Como acontece com o parto, a maior parte das doenças on acidentes em Itá são tratados por curan­deiros nativos e por meio de métodos tradicionais de medicina caseira. É grande a freqüência diária ao pôsto de saúde fundado, em 1942, pelo SESP, onde o médico dá agora consultas tôdas as manhãs. Os habi­tantes do lugar habituaram-se a visitar o pôsto quando estão doentes e chegam mesmo a chamar o médico a domicílio nos casos de acidente ou doença grave. Os moradores dos distritos rurais, mesmo os de fora <la área incluída na comunidade de Itá, freqüentam o pôsto para consultas. Os serviços prestados pelo médico são gratuitos, assim como os remédios que receita. Toda­via, uma vez que a função precípua do médico, na comunidade, é a de sanitarista e visto ter êle ainda duas outras cidades em seu distrito, pouco tempo lhe sobra para a assistência médica. Além disso, apesar da fila de pessoas que tôdas as manhãs esperam sua vez de consultar no pôsto de saúde, o SESP não pode atender a tôda a população urbana e rural dêsse enorme

335

Page 336: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

distrito. A maioria dos habitantes des,sa área, por sua vez, não está ainda acostumada a procurar cuidados médicos. Não obstante a presença do médico e sua crescente importância, a população continua procurando seus pajés, benzedeiras e rezadeiras para que lhe curem; as doenças.

:Êsses profissionais podem ser de ambos os sexos mas geralmente são mulheres. Como o pajé, possuem elas algum poder especial para curar, embora tais po­deres se manifestem de forma mais atenuada que os do pajé. É um poder que se torna evidente através de diagnósticos e curas sucessivas. Os seus tratamentos consistem geralmente em orações usadas como encanta­mentos e ervas medicinais. As orações, que elas em geral sabem de cor e que a maioria conserva em segrêdo, são específicos contra dores de cabeça, resfriados, diar­réia, febres e outras doenças e indisposições comuns e só têm poder para a benzedeira ou rezadeira que as utilizam. Algumas benzedeiras são especialistas. Uma delas é famosa pela cura de mordidas de cobra. A maior parte, porém, conhece a fundo as ervas medici­nais, além de numerosas drogas comerciais disponíveis no mercado local e que curam uma grande variedade de doenças. Na cidade de Itá há no mínimo uma dúzia dessas profissionais, pelo menos uma em cada localidade rural das vizinhanças.

Muitos dos remédios receitados pelas benzedeiras e rezadeiras são remédios caseiros comuns que podem ser aplicados por qualquer um que dêles tenha conheci­mento. As mulheres mais freqü~ntemente que os ho­mens conhecem os nomes e os usos dessas plantas. "Os homens sempre perguntam às suas mulheres", foi o que nos respondeu um homem quando lhe pedimos que nos explicasse o valor medicinal de uma planta. No quintal

336

Page 337: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de quase tôdas as casas de Itá,• há um caixote sôbre varas, denominado "jirau" e no ·qual várias dessas plantas são cultivadas. Estas, que algumas vêzes são confundidas com flores decorativas, são ervas medicinais - por assim dizer, o armário de remédios da família - que foram plantadas ou transplantadas a fim de estarem à mão em caso de necessidade. Além disso, quase tôdas as famílias de Itâ possuem vidros de re­médios feitos de raízes e cascas de árvores nativas embebidas em aguardente, conservando à mão um saco contendo suas ervas sêcas, cascas e raízes favoritas. Outras podem ser adquiridas nos armazens locais e postos comerciais. Há as folhas do "urubu caá" ( A.ristolochia Trilobata), as da hortelã, a casca da.. "japana branca" (Eupatorium ayapana), casca da falsa acácia, casca do "pracaxi" (Pentaclethra filamentosa),. a seiva da "caxillb"'llba" (F'·icus), folhas do abacateiro, folhas do manjericão (Ocimum minimum) e, literal­mente, centenas de outras plantas, cascas e raízes que se sabem possuir propriedades medicinais. Essas plan­tas são usadas em diversas combinações, dependendo freqüentemente da prática dos curandeiros que as receitam. Geralmente, entretanto, são preparadas e usadas sob a forma de chá, como infusões misturadas com aguardente, como remédios, "suadores", fumigaçõcs (a fim de produzirem uma fumaça considerada cura­tiva) ou banhos. Outras são tomadas como tônicos e há as que provocam vômitos ou têm propriedades pur­gativas.

Uma benzedeira de Itá pode receitar pràticamentc centenas de fórmulas minuciosas para êsses preparados. As folhas do manjericão aromático são usadas para um chá que se toma contra o resfriado comum ou a tosse. O suco da casca do "pracaxi", misturado com um pouco dágua, coado através de um pedaço de pano e deixado

337

Page 338: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

do lado de fora, à noite, para apanhar sereno, é um poderoso emético utilizado no tratamento de vermes intestinais. Para preparar um purgante forte "apanhe nove sementes do "piãoseiro'', ( .T atropha cureas), corte-as ao meio, jogue fora a pele que as envolve, amasse metade de cada semente e extraia o suco que deve ser ingerido com uma pequena ·xícara de café". Para os olilos inflamados, "rale a raiz do "japuí" e misture-a com leite materno - ou caso não disponha dêste, com a clara de um ovo, - colocando a mistura sôbre os olhos". O reumatismo pode ser tratado por meio de "um banho quente preparado com cana de açúcar ou folhas de manjericão expostas ao sol durante três dias e ao sereno durante três noites". A coqur­luche é tratada com folhas de "aturiá" (16) misturadas com algumas gotas de querosene. "A gordura do la­garto, misturada com um líquido feito com uma infu­são de espigas de milho, folhas de laranjeira e limeira e flores sêcas do sabugueiro (Sanibucus nigra)" é re­médio contra o sarampo. •Todos êsses chás, eméticos, purgantes e banhos exigem geralmente um período de resguardo, durante o qual é necessário evitar certos ali­mentos, exposição ao sol ou à chuva e trabalhos pesados. Depois de tomar o purgante de "piãoseiro" acima des­crito, a pessoa não deve comer peixe durante dois dias ou expor-se ao sol, à chuva e ao sereno. Após qualquer purgativo, o doente deve evitar olhar para qualquer folhagem verde até sentir os primeiros movimentos in­testinais e, depois de banhos medicinais, eméticos e pur­gativos deve abster-se dos alimentos tidos como indi­gestos. A idéia de que todo tratamento tem as suas próprias regras de convalescença é tão enraizada em

(16) Planta espinhosa, de longas folhas, que cresce nas margens baixas do rio (Machaerium lunatwm).

338

Page 339: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Itá, que o médico encontrou dificuldade em persuadir os clientes de que os remédios que receita não exigem dietas especiais, repouso e outros tabus.

Nem todos êsses remédios são específicos contra doenças, mas muitos dêles podem ser tomados como pre­ventivos ou como fortificantes para determinados fins. As mulheres tomam banhos em que misturam o feijão "cumaru" (17) a fim de despertar ciúmes nos maridos. Um preparado feito com a raiz da "umaparanga" trará boa sorte nos negócios. Existem também infusões para

· evitar os efeitos do "mau olhado" e para afugentar o morcego vampiro. Um banho quente com casa de cupim, misturada com ervas finas da floresta é um pre­ventivo contra bruxarias. Outros chás e ervas medici­nais são tomados para proteger as mulheres durante o longo período da gravidez e evitar que as crianças contraiam as doenças da infância. Existem vários afrodisíacos, como a raiz ou casca da árvore "mara­puana" (18), misturada com um pó preparado com o penis sêco do coatí (19) e tomado na água. Além dos remédios de uso interno, há os emplastros e métodos de tratamento. A liouba . .a as_úlceras tronicais, por exem­plo, são tratad~s com um empla"StrÕ--feito com um limão cozido, misturado com ferrugem raspada do ferro e colocada sôbre a ferida aberta. O leite da planta "apuí" ( Giittiferae), misturado com pimenta mala­gueta, forma um emplastro usado para qualquer maclm­cadura nos braços e pernas. As úlceras produzidas pela

(17) (Coumarouna odorata Aubl.) (18) Essa árvore fora do Amazonas é chamada de "ca­

tuaba" (Bignoniaceae) e sua casca é amplamente usada em todo o Brasil rural como afrodisíaco ou tônico para os "nervos".

(19) O coatí, animal parecido com o racoon americano, "nunca tem um penis mole", explicam as pessoas.

339

Page 340: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

sífilis são curadas com uma compressa feita de nitrato de prata (obtido na farmácia) e clara de ovo, ou então coloca-se um pedaço de cobre sôbre a úlcera. amar­rando-o bem apertado.

Conhecem-se também numerosas fórmulas para fu­migações. Estas são usadas para curar alguma doença, para evitar contrair uma endemia, afugentar o "assus­tamento", libertar as pessoas e objetos da parlema ou, simplesmente, para trazer felicidade ao iar. Algumas donas de casa tradicionais "fumtgam suas casas tôda!i as semanas." Dona Branquinha, a professora, segue essa prática todos os sábados e Dona Felícia Marajó, pertencente também à classe mais alta, tôdas as sextas­-feiras. Variam a fórmula de acôrdo com o fim. Uma das fórmulas para evitar epidemia é o "favo de uma determinada abelha, misturado com semente do "Oxi" e folhas sêcas da árvore "parapará", mistura essa que é queimada em uma vasilha de cerâmica. As fumiga­ções, segundo certas pessoas, devem começar sempre pela frente da casa, progredindo de cômodo em cômodo até a cozinha, lançando-se depois as cinzas na direção do poente. Hoje em dia, em Itá, a prátlca da fumigação não é tão usada quanto antigamente. Muitas pessoas adotam-na apenas para o tratamento da panema, po­rém várias fórmulas são conhecidas e às fumigações continuam sendo um método tradicional da medicina popular em Itá. Os amuletos e talismãs, com poderes para curar e proteger, são também incluidos na série de crenças. Fazem-se "almofadas" colocando-se diversas fórmulas e objetos em um saquinho que deve ser usado em tôrno do pescoço. Uma almofada de penas de "ja­curatú" (20) protegerá as crianças das doenças e os

(20) Variedade de jacu (Penelope jacquacu), grande ave selvagem.

340

Page 341: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

dentes do jacaré ou do bôto de água doce preservá-las­ão do "mau olhado" e da diarréia. Uma pulseira feita com as "Lágrimas de Nossa Senhora" (pequenas semen­tes vermelhas e pretas de uma árvore) protege a criança. contra o~ animais que lhe podem roubar a sombra, con­tra P. diarréia causada pela dentição e outros males. :t!lsse conjunto de crenças referentes às doe:r;iças, desgra. ças, acidentes e perigos de natureza mágica é, em Itá, realmente considerável. Os profissionais nativos -pajés, parteiras, benzedeiras e rezadeiras - possuem conhecimentos mais extensos que o leigo e capacidade pessoal para curar que se manifesta através do poder de suas orações. Todos os habitantes de Itá, entretan­to, especialmente as mulheres, conhecem a fundo sua medicina popular e a preocupação com os remédios é um assunto de interêsse permanente para a população Jocal. É um aspecto que tem grande destaque em sua cultura.

VI

Os pontos de vista gerais da população de Itá e de outras comunidades amazônicas estão em processo de transição. A transformação de uma cultura popu­lar apoiada em conceitos mágicos para outra que baseia sua concepção do universo em princípios científicos já ocorreu há algum tempo em muitos centros da civili­zação ocidental e está ainda se processando em várias das suas regiões remotas. Em Itá, êsse processo atin­giu um ponto que já foi alcançado há muitos anos pela maior parte das comunidades ocidentais. Porém, a mudança que se verifica em Itá, embora seja essencial­mente a mesma, difere profundamente da outra, sob vários aspectos. Com os meios modernos de comunica­ção e com a técnica de que dispomos atualmente, o pro-

341

22

Page 342: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

ce8so de transição em ltã é mais rápido e mais drástico. Não ocorre gradualmente. Lá as crianças estão habitua­das a ver os aviões que sobrevoam a localidade ou que pousam semanalmente no rio Amazonas para desembar-

1. ear passageiros, carga e correspondência e, no entanto, nunca viram um automóvel, sôbre o qual vivem a fazer perguntas: com que se parece, e como anda. O médico de Itá aplica a penicilina para curar a sífilis, a pneu­monia e outras doenças, em vez de banha de lagarto, raízes e folhas de plantas e cura sem o auxílio de rezas e encantamentos. De um conceito primário de que a malária é contraída ao se tomar um banho ou beber água estagnada, o povo de Itá é subitamente levado a crer que a doença é transmitida pelo mosquito anófeles e que suas casas devem ser expurgadas com DDT. Um doente pode ser tratado um dia com um purgante forte feito com cascas e raízes selvagens e no dia seguinte com um composto de sulfa ou com penicilina. Em Itã, os métodos e conceitos medievais e aborígines são subs-' tituidos bruscament'e pelos métodos ~ conceitos mais re­centes do século vinte, sem que experimentem a tran­sição gradual por que passou a ciência moderna.

Seus habitantes1 como os povos de qualquer parte do mundo, reconhecem prontamente as vantagens decor­rentes de métodos e instrumentos tão eficientes e produ­tivos. Ficam satisfeitos, por exemplo, com os resulta­dos do DDT. Não só a malária desapareceu quase in­teiramente da cidade, como o expurgo periódico com êsse preparado limpou suas casas de outros insetos. É um prazer hoje em dia sentar ao ar livre, à tardinha. Reconhecem que a penicilina é um remédio mais eficaz que as suas próprias drogas caseiras, porém custaID; mais a aceitar os conceitos científicos que determinam o expurgo das casas e outras inovações.

342

Page 343: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

,!]m .~l(lm_ento . ..no.YQ intr~§uzido nuJUa _cultura_.11ã~ substitui imediatamente o_.antigQ; as idéias e métodos llõvõSaevem integm-se no âmago da cultura anterior e, durante o processo, modificam-se a cultura e os pon­tos de vista gerais da população. Métodos novos podem ser impostos por fatôres externos, porém a mudança nunca é completa até que os novos métodos sejam in­tegrados no esquema de concepção da população em questão. O prefeito de uma cidade amazônica, por exemplo, explicou a um sanitarista que prestaria sua cooperação às obras de drenagem, ao programa de me­dicação da malária e ao expurgo com DDT "porque é de minha obrigação executar as ordens emanadas do govêrno." 1li;~egurou, porém, ao médico que "a malária ó transmitida pela água estagnada." Os moradores de Itá escutavam com atenção o médico e a enfermeira visitadora quando êstes lhes explicavam que seus filhos apanhavam o verme da opilação na terra, ao andarem descalços e brincarem na sujeira; aceitavam o vermí­fugo que o médico lhes dava para livrarem temporària­mente os filhos dos veunes,_norém nada faziam para ..clfuilli,~.:_ a. _ç~uSi""'da.ÍnfE'.cçã9:\ Certa vez, disse uma mulher, ao terminar o médico a sua palestra educativa: "meu neto tem vermes porque toma leite condensado demais" (de uma marca muito adocicada). Outros insistem em que os vermes resultam de alimentos muito "fortes", ôu provêm do medo causado pelos animais selvagens. .

Há um ditado corrente no Brasil: "Fé na Virgem e pé na estrada". Em outras palavras, ninguém de\·e. confiar unicamente na fé. .:Qste velho adágio é seguido pelos habitantes de Itá. Alguns aceitam as novas idéias científicas vindas de fora, embora ao mesmo tem­po receiem desfazer-se de suas crenças e práticas tra-­dicionais e muitos têm mais fé em seus curandeiros

343

Page 344: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

nativos do que no médico. Numa crise, "experimen­tarão" o último. Mariano Gomes, por exemplo, que ocupou o cargo de secretário do govêrno municipal há alguns anos, gabava-se de ter curso secundário. Era um dos maiores defensores do posto de saúde e dos benefícios da ciência médica moderna ; no entanto, ao adoecer gravemente procurou ao mesmo tempo o mé­dico do posto de saúde e Ascendino, o pajé, para se tratar, tendo o pajé vindo secretamente a ltá para lhe diagnosticar a doença. Disse êle que Mariano estava doente em conseqüência de bruxaria que "!> médico não sabia curar". São freqüentes os casos de pessoa11 que possuem fé aparente na ciência e que recorrem às prá­ticas de magia e, em Itá, a maior parte deias recorrem às ervas medicinais, aos curandeiros nativos e às fór­mulas sobrenaturais antes de apelarem para a ciência. Uma das queixas mais freqüentes dos médicos que pra­ticam na região amazônica é o estado em que se apre­sentam os pacientes quando finalmente os resolvem procurar. Acham-se desidratados devido ao uso dP. purgantes fortes e aos vômitos violentos e enfraquecidos pelas numerosas ervas medicinais e dietas rigorosas. Para a maioria das pessoas, quer por motivos econô­micos, quer pela distância ou quer, simplesmente, pela falta de fé na ciência, a medicina moderna representa um último recurso.

Entre os dois sistemas, entre as tradições popu­lares e a ciência, os conflitos são i1}evitáveis. Os mé­dicos, conscientes do choque entre ambos os sistemas, ::J~lsaram da cidad~ ?s pajés ~ue prosse~e1? secre­tamente em suas praticas nas areas rurais isoladas. Sem compreenderem os conceitos locais sôbre os alimen­tos perigosos e a necessidade de resguardo após tomar qualquer remédio, os médicos irritam-se com os pacien­tes que se recusam a comer frutas cítricas, ovos e outros

344

Page 345: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

alimentos "fortes", negando-se também a dá-los aos filhos. As pessoas afligem-se e zangam-se mesmo, quan­do os médicos riem-se de suas superstições e aconselham as mulheres a se libertarem de seus tabus pós-natais, expondo-se assim às doenças e aos perigos· sobrenaturais. Nem sempre os médicos ouviram falar da panema ou do "caruara", por exemplo, e se vierem a conhecê-los, sua tendência será para os desprezar como prova de ignorância de gente atrasada. Os engenheiros aborre­cem-se quando as turmas de operários se recusam a trabalhar nos dias 1.0 e 24 de agôsto, por não saberem que ê3ses são "dias aziagos". Estando a par das cren­ças da população com a qual trabalham, o médico, o engenheiro, ou qualquer um que procure introduzir noYos métodos e idéias numa comunidade do interior, estará em condições de evitar muitos conflitos. Mu­nido de tal conhecimento, poderá qualquer um explicar muitos conceitos novos em têrmos compreensíveis para a população e mais fàcilmente substituir muitos hábitos e crenças antigos.

Os novos métodos, técnicas e conceitos fundamen­tados na ciência só serão plenamente aêeitos quando as teorias científicas de sua motivação forem integradas na concepção universal de um povo. Alguns métodos poderão ser aceitos mecânicamente como práticos, espe­cialmente quando forem incutidos na população por al­gum fator externo. As pessoas poderão auferir gran­des benefícios de tais inovações mas, s~m. que compreefü Q.al11-i..:pqr ·8-r ·m,esmasi a.JIB§.e. de tais .atividades, é pouco provável que continuem a adotá-las, uma vez removida a pressão exterior. O povo de Itá tem satisfação em contar com fossas sanitárias, expurgo periódico com DDT, vacinação e outros recursos. É duvidoso, entre­tanto, que continuem sequer a cogitar de tais obras, caso o serviço de saúde seja extinto. Uma campanha

345

Page 346: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de saúde pública deve, portânto, incluir um programa de educação sanitária que tenha a modificar as crenças tradicionais enraizadas a respeito das causas e trata­mento de doenças e que demonstre a necessidade de manter recursos de saúde pública e os benefícios que dêles resultam. As crenças sôbre saúde e doença man­tidas pelo povo de Itá são parte de sua concepção uni­versal que inclui o culto dos santos, a fé nos espíritos das selvas e dos rios, nos pajés e nas parteiras, sua confiança nas orações e nos encantamentos e o seu conhe­cimento a respeito dos remédios caseiros preparados com ervas. Essas numerosas crenças e práticas fundem a magia com o conhecimento empírico. Trata-se ainda, fundamentalmente, de pontos de vista sobrenaturais, embora o conhecimento científico vá ganhando terreno sôbre a magia com crescente rapidez.

346

Page 347: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

8. UMA COMUNIDADE DE UMA ÁREA SUB­DESENVOLVIDA.

A melhoria das condições econômicas e sociais da~ chamadas áreas subdesenvolvidas do mundo exigirá a

~:p~:r:a~ão de ym_a _grªnde. ya:i:_ieqade de es.l?eciali§tas.i _ bem como êõnhecimentos sô·bre tôda a vasta extensão

347

Page 348: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de ciência mode:t:na. Necessitará do concurso de en· genhefros, sanitaristas, enfermeiras, agrônomos, educa· dores e outros técnicos em ciências aplicadas. Serão indispensáveis estudos e pesquisas por economistas, cientistas políticos, sociólogos,. ge6grafOS) especialistas em outros ramos das ciências sociãis e das humanidades. Os complexos problemas com que se defronta não po­derão ser resolvidos por qualquer disciplina científica isolada. Como outros ramos da ciência, a -antropoio­gia tem uma grande contribuição a fazer. Não oferece qualquer panacéia, mas possui um ponto de vista e u 'a massa de conhecimentos sôbre o comportamento humano que serão de grande utilidade para todos os que de algum modo são responsáveis pelos programas de desen­volvimento econômico e assistência técnica .. . Através dêste livro, oferecemos urna série de su­·'iestões que poderão ser úteis aos administradores e técnicos que trabalham nas comunidades rurais do Valo Amazônico. Não foram, entretanto, apresentadas de forma explícita as contribuições mais importantes da antropologia. Ocupou-se~ .!i.'.'.!.Q.....Ç91!!. !1 culturl! _de It!z._ e_o_ ~onceit_o_ antrQPo19gico da_ c_ultru:a .é. a .mais Ípl_portante _ c2ntri~µiç,ã_o que a anti:~.9l?Jlli!. .P..Q.de. .ofe­r~cer _ aos programas de assi!!.tência técnica. "Por cul­tura", diz Clyde Kluckhohn, "entende a antropologia todo o modo de vida de um povo, o legado social que o indivíduo recebe do grupo a que pertence. Ou pode a cultura ser compreendida como a parte do ambiente que foi criada pelo homem." (1) Como tôdas as cul­turas humanas, a de Itá inc:,lui as instituições econô­micas e religiosas, os costumes, o comportamento ha­bitual e as atitudes dos seus habitantes e, na realidade, tôdas as maneiras de vida que aprenderam como mern-

(1) Clyde Kluckhohn, Mirror for Man (New York, 1949) pg. 17.

348

Page 349: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

bros de sua sociedade e que transmitem à sua descen -dência.

O conceito antropológico de cultura encerra várias inferências. Acima de tudo, "o conceito de cultura levr. uma mensagem de esperança aos homens atormen­tados." (2) Se o atraso técnico e a miséria humana de certas regiões da terra fôssem devidos à heredita­riedade biológica do povo que as habita ou a obstá­culos climáticos indestrutíveis, os programas destinados h modificar essas condições estariam fadados ao fra­casso. Como, entretanto, as razões fundamentais do atraso técnico e dos baixos níveis de vida são nitida­mente ~ociaii!_ ~ culturai.S;- podem-se planejar e executar prograliiãs"· de transformações sociais e econômicas, mui­to embora êles provoquem questões de economia e polí­tica nacional ou internacional. Ainda citando Kluc­khohn, "são os homens que modificam suas culturas, ap.esar de que . . . em tôda sua história pass11.da ... tenham sido instrumentos de processos culturais de qnl" em grande parte não se deram conta". (3)

Estudando várias culturas diferentes, muniu-se o antropólogo de "um perfeito quadro comparativo de referências culturais". Tornou-se consciente do poder que possui cada cultura para determinar o comporta­mento do indivíduo e do grupo, da vasta extensão de valores culturais e da diferença das reações de cad&. cultura diante de i,ituações humanas análogas. Vá­ri~s pessoas que cooperam, quer no planejamento, quer diretament~ na execução dos programas de assistência técnica em países distantes, nunca viveram ou traba­lharam fora dos limites de sua própria cultura. Em consequência, aceitam como premissas universais os fun­damentos básicos de sua própria cultura, e em geral

(2) lbid., p. 44. (3) lbid., p. 43.

349

Page 350: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

esperam que os povos pertencentes a outras culturas reajam como êles próprios em qualquer determinada situação e que possuam os mesmos incentivos e va­lores. Muitas vêzes não compreendem o comportamento que dêles esperam as culturas estrangeiras. O "quadro comparativo de referências culturais" do antropólogo proporciona conhecimento das diferenças culturais e liberta o plancjador do etnocenti·ismo.

O estudo de diferentes culturas revela também que, sob vários aspectos, tôdas as culturas humanas são semelhantes. Em tôda parte a humanidade tem as mesmas necessidades e funções biológicas. Cada cul­tura humana tem uma maneira diferente de realizar a experiência unh·ersal da vida - nascimento, cuidados. da criança, educação, namôro, casamento, procriação, doença, velhice e até mesmo morte. Tôdas as culturas dispõem de métodos que assegurem pelo menos um mínimo de condições de sobrevivência: provêm alimep.­to e moradia, alguns métodos de defesa, mecanismos de contrôle social e outras necessidades absolutas do indivíduo e do grupo. Cada cultura humana possui, assim, um sistema econômico, normas que regulem as relações sociais; a família - de uma ou de outra forma - distrações e uma religião. Conquanto divirjam em conteúdo e intensidade, tôdas as culturas obedecem a um plano básico determinado pela semelhança univer­sal e as necessidades de todos os homens. A cultura de Itá difere da cultura de pequenas comunidades da Africa, Ásia, índia, Oceania e do Oriente Médio; tem, entretanto, os mesmos problemas e processos culturais básicos de outras culturas camponesas do mundo. Um estudo objetivo e aprofundado de uma ou mais culturas proporcionará melhor compreensão de um novo cenário humano em que se venha a ter necessidade de viver e trabalhar.

350

Page 351: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Finalmente, uma das grandes contribuiç_ões que a . an...tr.QpQ!og_il! oferece aos programas de assistência téc­nica decorre de seus métodos de pesquisa e do objetivo tradicional dessas pesquisas. Uma das grandes fôrça.S da antropologia social como disciplina científica re-1 side no conhecimento profundo e detalhado que adquire o investigador sôbre o pequeno grupo demogrâfico que estuda. Como seus métodos de trabalho de campo in­cluem observações pessoais minuciosas da vida diáriã, a partici.P.as.ik> na sociedade em estudo, além de longas ~êpetidas entrevistas com uma ampla seleção de in­divíduos, seu trabalho de pesquisa tem sido geralmente pouco extenso. Com raras exceções, os antropólogos têm realizado suas pesquisas de campo entre grupos de mil a duas mil pessoas. Têm estudado de forma

.:clássica grupos e povoados primitivos. É êste o caso Tos êstudos do autor entre as tribos indígenas brasi­leiras. .Somados, os grupos tribais não perfazem mais de duas mil pessoas e, conquanto certos povoados te­nham sido mais profundamente estudados do que outros, foi possível verificar as observações por meio do co­nhecimento direto da maioria dos vilarejos do grupo tribal. ( 4) Também neste caso estão os estudos de Raymond Firth sôbre a ilha Tikopia do arquipélago da Polinésia, modelos de técnica de pesquisa antropo­lógica, que incluiram apenas trezentas pessoas concen­tradas em umas poucas milhas quadradas. ( 5) A an­tropologia social quase poderia ser descrita como "a ciência da· pequena comunidade."

(4) Charles Wagley; e Eduardo Galvão, The Tenetehara Indiana of BrazU.

(5) Raymond Firth, We, the Tikopia (Londres, 1936) e A Primitive Polyneaian Economy (Londres, 1939). Em seu Elements of Social Organ~ation (Londres, 1951), p. 49, Firth salienta que o antropólogo social normalmente lida com pequenas populações.

351

Page 352: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

O estudo dessas pequenas comunidades muito con­tribuiu para nosso conhecimento da natureza da cul­tura. Em seus estudos de pequenos grupos tribais o antropólogo tinha que se transformar em um estu­dante da economia, da história, da estrutura social e política, da religião, da literatura e da língua do grupo tribal. Em conseqüência, aprendeu a considerar a cul­tura em questão como um sistema geral e a encarar cada aspecto isolado da vida em relação funcional com todos os demais. Os antropólogos aprenderam que cada cultura possui uma integração e uma harmonia interna e que os costumes e crenças, aparentemente es­tranhos e ilógicos quando isolados de seu contexto, são mais fàcilmente compreendidos em relação a todo o sistema cultural de que fazem parte. A intimidade das técnicas de pesquisa do antropólogo de campo torna-o sensível a minúcias de costumes e comportamentos que em geral passam despercebidos para os estudantes mais convencionais das culturas humanas.

Entretanto, quando o antropólogo se volta para o estudo de nações modernas e civilizações complexas, seus métodos de pesquisa exigem certas limitações. Em uma sociedade tribal cada bando ou cada povoado é pràticamentc uma réplica dos demais. Nessas socieda­des existe um mínimo de especialização : todos os ho­mens podem ser, por exemplo, pastores ou lavradores. Nas complexas nações modernas, cada comunidade cons­titui uma unidade especializada de um sistema social maior e mais complexo. Cada qual tem sua posição especial. na sociedade maior determinada pela economia, a posição física, a história e numerosos outros fatôres variáveis que entram na composição de uma nação mo· derna. Não se pode dizer, portanto, de nenhuma co­munidade que seja típica de uma nação, por mais cui­dadosamente que se a escolha. Cada comunidade con-

352

Page 353: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

tém apenas um pequeno segmento da cultura total de uma nação moderna. Além do mais, nas nações mo­dernas há instituições nacionais e regionais, como o sistema jurídico e político, e há grupos sociais que as subdividem em comunidades, que enquadram essas comunidades dentro da sociedade maior e que só podem ser compreendidos numa ·base nacional ou regional.

Quererá isto dizer que os métodos de pes'}uisa da antropologia não se podem adaptar ao estudo da cul­tura das complexas nações modernas? Pelo contrário, uma longa série de estudos de comunidades modernas confirmam a adaptabilidade dos métodos às socieda­des complexas, estudos êsses que contribuiram grande­mente para o nosso conhecimento das milturas nacionais complexas. Êsses estudos de comunidades provaram que não basta conhecer a estrutura fonnal de um go­vêrno nacional, a tendência de sua economia, ou outros importantes aspectos da vida de uma nação. Igual­mente importante é possuir um quadro completo de uma cultura, tal como funciona em determinada comunidade. Os estudos de comunidades mostram-nos como funcio­nam as instituições nacionais cm uma situação concreta. Proporcionam-nos um conhecimento dos problemas na­cionais, tal como se manifestam localmente e acrescentam uma nova· dimensão ao quadro convencional e algo i~a­nimado que tão comumente nos apresentam os econo­mistas, os políticos, os historiadores e outros.

II

Itá, como já foi dito, não é uma cidade perfeita­mente característica da Amazônia, diferindo, sob vários aspectos, de outras cc.munidades rurais brasileiras. f~ uma comunidade de citadinos, lavradores e seringueiros

353

Page 354: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

que vivem num ambiente tropical, baixo e. úmido, da Amazônia. Os lavradores de Itá, por exemplo, diferem dos que vivem nas áreas semitropicais e quase tempe­radas do sul do Brasil, dos que habitam o sertão árido e as costas do Nordeste. Diferem dos trabalhadores assalariados das fazendas de cacau, café, cana e chá, dos vaqueiros das fazendas do sertão nordestino e das estâncias dos pampas do sul. _Q~ . Jl!.ét9dos utilizados por um povo para a exploração de seu ambiente. _pró--- -- .. - - ~

_prio_ ~~~erminam muitos aspectos de sua cultura geral. Ademais, ·existem por todo o Brasil comunidades que mantêm mais cstlreito contacto' com os principais cen­tros econômicos e políticos do que Itá e que possuem melhores meios de comunicação com mercados regio­nais e nacionais. Nessas comunidades nota-se menos o modo tradicional de vida; nelas foram mais intensas· as influências dos grandes centros urbanos e mais rá­pidas as transformações culturais.

No entanto, são muitas as tradições que Itá possui ' em comum com numerosas comunidades rurais em todo

o Brasil. .certas instituições econômicas, sociais, reli­giosas e políticas ·que se notam na cultura de Itá decor­rem do fato de ser ela uma unidade de uma sociedade

~ nacional e de participar da cultura nacional brasileira. Muitos problemas comuns à maior parte do Brasil rural manifestam-se de forma local em Itá, e nela se encon­tram vários valores positivos da cultura nacional bra­sileira que devem ser prezados e protegidos contra as transformações sociais. Sob êste ponto de vista, o es­tudo de Itá é um estudo da Amazônia brasileira e do Brasil rural.

A gente de Itá é mais pobre do que a maioria dos brasileiros e vive mais isolada das grandes cidades mo­dernas do país. Talvez por êsse motivo tenha conser-

354

Page 355: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vado muitas tradições brasileiras que o forasteiro apren­deu a respeitar e com as quais o mundo muito teria que aprender. A primeira dessas tradições é a forma relativamente pacífica das relações raciais. Conquan­to a pele escura seja um símbolo de descendência de escravos e de baixa posição social em todo o Brasil, em Itá, como t'm quase todo o país, a raça ffofoa está longe de constituir uma barreira intransponível à mo­bilidade econômica e social. O preconceito e a discri­minação raciais são insignificantes quando comparados com a maioria das pequenas cidades do mundo. Ulti­mamente, entretanto, a discriminação racial parece ter-se intensificado em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outros centros industriais. Os 6rgãos legislativos. do govêrno federal, reagindo contra uma ameaça aos valores tradicionais brasileiros, julgaram indispensável votar uma lei que castiga severamente a discriminação racial.

\J..'v4~ Em Itá, !como em todo o BrasjJ1 mais de 90% d.o povo é cat6lico, e a comunidade não se divide em sei­tas religiosas. O catolicismo brasileiro é conhecido por sua flexibilidade, sua adaptação ao panorama brasileiro e sua incorporação de crenças religiosas africanas e in­dígenas. ( 6) 1Sente-se, entretanto, por todo o país, uma tendência para uma forma mais ortodoxa de catolicismo. Esta já se fêz sentir em Itá, nas pregações do padre católico que proibe festas "profanas". Conquanto Itá 1 tenha uma minoria protestante insignificante, várias seitas do protestantismo estão crescendo em outras co­munidades brasileiras. Essas seitas muito têm para contribuir, mas demonstrações antiprotestantes já cau­saram lutas religiosas em algumas comunidades rurais

(6) Vide Roger Bastlde, Religion anà the Church in Brazil, em Brazil; Portrait of Half a Conttnent, pp. 334-355.

355

Page 356: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

brasileiras. Também o espiritismo tem crescido ràpi­damente nos centros urbanos onde as pessoas perderam seu catolicismo tradicional em meio às suas numerosas fun~ões sociais. Manifesta-se uma tendência, que ainda não se fêz sentir muito intensamente em Itá, para a destruição da tradicional homogeneidade religiosa do Brasil.

Embora a instabilidade econômica esteja determi­nando em Itá necessidade de "famílias" menores do que as que comumente se encontram no Brasil, ainda se dá grande valor a extensas relações de família. Faz­se grande questão de atrair amigos para o círculo ínti­mo dos parentes, através do compadrio e do casamento. Em um mundo cm que os grandes círculos de parentes parecem desintegrar-se para dar lugar à pequena fa­mília conjugal, valoriza-se no Brasil a tradição de ca­lorosas e estáveis relações sociais entre os membros de um grande grupo familiar. As irmandades religiosas de Itá, que são uma variedade das Ordens Terceiras que fundaram e mantêm hospitais, asilos e outras ins­tituições .beneficcnte'3 em todo o Brasil, são importantes associações da sociedade brasileira que começa a desa­parecer em outras comunidades. As reuniões para o trabalho cooperativo, que em Itá são denominadas ptt­xirão, são generalizadas em todo o país e, sempre que se realizam, tornam o trabalho mais agradável. Como a maioria dos brasileiros do interior, a gente de Itá é franca e leal ; não desconfia de estranhos, mostrando­sc, ao contrário, curiosa a seu respeito e pronta a lhes oferecer hospitalidade. A hospitalidade, quase exage­rada, é um traço tradicional do brasileiro e a polidez esmerada e as maneiras educadas da aristocracia são também típicas da gente simples do campo. :Qsses e mui­tos valores, instituições e traços característicos da perso-

356

Page 357: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

nalidade, tradicionais no Brasil, existem ainda em Itá, embora alguns estejam sendo ameaçados pela moderna civilização comercial. Sua destruição seria um alto preço pago pelos benefícios da técnica moderna.

Muitos dos principais problemas do Vale Amazô­nico e talvez de todo o Brasil rural, também existem· em Itá onde o povo vive de uma agricultura primi­tiva de "queimada" e da extração de produtos da flo- 1

resta. O V ale Amazônico ainda possui uma "economia l colonial"; seu sistema econômico baseia-se na monocul- 1 tura e na produção de matérias primas para mercados distantes. Vários estudos sôbre o Brasil destacaram os inconvenientes da monocultura. Sua história econômi­ca é a história de uma série de "surtos" e "colapsos" devidos ao sistema da monocultura. Houve o surto do açúcar na costa nordestina, nos séculos dezesseis e de­zessete, o surto do ouro em Minas Gerais no décimo oitavo século, o surto do café em São Paulo no décimo nono e no vigésimo séculos e o surto da borracha no Vale Amazônico, além de vários outros surtos de pe­quenas monoculturas em diferentes regiões do país. Em todos os casos a prosperidade provisória baseava-se na venda de uma safra ou produção em detrimento de culturas e indústrias subsidiárias. E, depois de cada surto, havia sempre um "colapso" decorrente ela concorrência e da variação de preços no mercado mun­dial. Em todo o Brasil existem comunidades como a de Itá que 'foram outrora ricas e prósperas à época em que -seu açúcar, seu ouro ou sua borracha alcançavam altos preços. Hoje são pobres e atrasadas, como hoje, também, várias outras comunidades dependem de uma ou mais culturas comerciais ou de produtos de extração para sua subsistência. Como Itá, muitas dessas comu­nidades rurais não produzem o bastante para seu pró-

357

23

Page 358: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

prio consumo e os produtos de que dependem para comprar aquilo de que necessitam oscilam de preços de acôrdo com as oscilações verificadas na procura e nos acontecimentos internacionais. É uma situação econômica precária.

Não há nada de inerentemente errado na mono­cultura ou na produção para mercados distantes. Teo­ricamente, certas regiões do mundo podem ser produ­toras de alimentos, de matérias-primas ou d.e produtos manufaturados e podem umas depender das outras para o suprimento daquilo de que necessitam. Infelizmente, entretanto, nosso atual sistema econômico de troca não funciona com a eficiência, a lógica e a uniformidade que um plano lógico dessa natureza exigiria. É verdade que as regiões produtoras de matérias-primas são geralmen­te pobres em comparação com as que produzem produ­tos manufaturados. O Brasil encetou uma fase de in­dustrialização destinada a libertar um pouco o país da dependência dos produtos manufaturados estrangeiros, mas a situação de comunidades como a de Itá, é uma prova de que, antes de tudo, precisa ser desenvolvida a agricultura•em todo o país, a fim de libertar o povo da dependência de mercados distantes para os produtos alimentícios básicos de que necessita.

Como a maioria das comunidades que se lhe asse­melham, Itá não dispõe de meios de transporte e comu­nicação com os principais centros da região e da nação. O Brasil só possui metade da quilometragem de estra­das de ferro e três quartos da quilometragem de- es­tradas de rodagem da França, um país dez vêzes menor em superfície. Mesmo entre os dois grandes centros industriais de São Paulo e Rio de Janeiro, as ferrovias são vagarosas e inadequadas e só agora foi concluida uma rodovia moderna. Entre São Paulo e as ricas

358

Page 359: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

.áreas da fronteira de f:lanta Catarina e Goiás (7) as estradas de ferro são insuficientes para suprir o tráfego. Há várias localidades em que os produtos alimentícios se estragam por falta de transporte para um mercado em que são àvidamente procurados e em muitas co­munidades rurais isoladas os artigos manufaturados custam três ou quatro vêzes mais do que cm São Paulo ou no Rio de Janeiro. O rio Amazonas· proporciona um excelente sistema de transporte relativamente ba­rato para Itá e outras comunidades amazônicas, mas a maioria dos barcos fluviais em uso sãºo velhos. Um dos principais problemas do Brasil rural é o transporte.

Na maior parte d.o interior, a porcentagem de anal .. f:abetos na população é aproximadamente a mesma que a de Itá. O Brasil é um país de grandes extremos e contrastes. O edifício do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, é um dos mais modernos do mundo. Em São Paulo e no Rio de Janeiro existem laboratórios científicos e centros de educação superior que possuem professôres eruditos e famosos cientistas pesquisadores. Mas nem mesmo a educação prilllária é fornecida em muitas áreas rurais isoladas e, quando existem escolas rurais, os meios de que dispõem são parcos e insufi­cientes. Há falta de professôres no Brasil e os expe­rientes não querem postos rurais que geralmente pagam menos e oferecem menor confôrto. Mesmo os filho':! das famílias do interior que recebem educação sufi. ciente para serem professôres, permanecem na cidade,

(7) Estranhamos quando um lavrador brasileiro do In­terior do Estado de Goiás nos disse que se arrependia de ter plantado "grapefruits". Suas ãrvores produziam abundan­tes e deliciosos frutos. O mercado local, entretanto, era li­mitado e sua produção, tão grande, que era obrigado a pa­gar trabalhadores para enterrar as frutas podres a fim de suprimir o mau cheiro que lhe invadia a casa.

35!l

Page 360: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

onde é mais fácil o acesso econômico. A maioria do Brasil rural não dispõe dos mínimos meios educacio­nais para os seus habitantes. O Brasil potencialmente é uma das nações mais ricas do mundo, mas ainaa não utilizou o principal recurso de que dispõe : seu povp.

Até recentemente a situação sanitária do Brasil rural era notoriamente precária. Mesmo hoje, em mui­tas regiões do país, o povo do interior não dispõe dos meios modernos de proteção sanitária. Desde 1942 Itá tem sido melhor aquinhoada com serviços de saúde e assistência médica do que a maioria das comunidades rurais. O único médico que lá foi lotado pelo SESP, alia os deveres de sanitarista aos de clínico, o qu~ limita os cuidados médicos que pode dispensar às 25.000 pessoas, aproximadamente, residentes em seu distrito que abrange três municípios. Houve grande melhoria das condições sanitárias da cidade desde 1942, mas em Itá, como no resto do Brasil, essas condições ainda não atingiram os padrões do Ocidente. Mesmo nos arre­dores do Rio de Janeiro, o índice de mortes por tuber­culose era de 317,5 eni 100.000 cm 1941, o que constitui sete vêzes o dos Estados Unidos em 1940. O índice de mortalidade da sífilis era de 57,1 em 100.000, contra. 8,0 em 100.000 nos Estados Unidos. (8) Nas cidades amazônicas de Belém e Manaus, essas e outras moléstias prevalecem mais do que. no Rio de Janeiro e as con­dições sanitárias da maioria das comunidades rurais são ainda piores. A maior parte das cidades brasileiras não possui sistemas de fornecimento de água potável e rêde de esgotos, ou outras medidas de proteção sani­tária.

(8) Citado em Bra.ri1: Peop1e anã InstUutions, de T. Lynn Smith, p. 257.

3.60.

Page 361: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Um excelente grupo de sanitaristas brasileiros, treinados no Instituto Osvaldo Cruz do Rio de Janeiro <' no Instituto de Higiene de São Paulo, bem como em universidades estrangeiras, conhece perfeitamente as medidas sanitárias de que necessita o Brasil. São am­plamente capazes de fundar e administrar serviços mo­dernos de saúde pública, se para tanto lhes derem opor­tunidade. Um sanitarista de um dos Estados do norte do Brasil (diplomado pela Universidade de Minnesota) chamou a atenção para a situação um tanto ilógica do abastecimento de água em várias comunidades rurais sob sua responsabilidade. A maior parte das pessoas nas cidades utiliza água de fontes ou rios, carregada. em latas de cinco galões. Gastam, em média, uma lata por dia, pela qual pagam 1 cruzeiro ao carregador. "Se 400 famílias gastarem água nessa proporção," ex­plicou o sanitarista, "teríamos 400 cruzeiros por ditL ou 146.000 cruzeiros por ano. Um sistema simples de abastecimento de água para· uma cidade de 1.500 a 2.000 pessoas poderia ser instalado por cêrca de 400.000 cruzeiros. Nesta proporção seria pago em menos de três anos." Mas muitas famílias da sua comunidade não podiam pagar 1 cruzeiro por dia pela água. Essas comunidades não· têm crédito nem dinheiro para cons­truir um sistema de abastecimento de água, mesmo nessa base, a menos que recebam auxílio do govêrno federal.

Os brasileiros sabem também da necessidade de as.~i~tência médica das áreas rurais. Enquanto nas pe­quenas cidades e nas zonas rurais do interior existe um médico para cada 8.000 ou 10.000 pessoas. nas ci­dades litorâneas há um para cada 500 pessoas. Os es­tudantes das zonas rurais vão para as cidades para estudar medicina e nunca mais voltam. Preferem tentar a sorte nas grandes cidades a clinicar nas pe­quenas que não proporcionam uma boa renda aos mé-

361

Page 362: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

dicos. Só se poderá proporcionar assistência médica à grande parte dos brasileiros do interior, reunindo­se no serviço público a saúde pública e os cuidados mé­dicos (como fez o SESP em Itá).

A comunidade de Itá não é a mesma coisa que o município do mesmo nome. A comunidade (isto é, a área dentro da esfera social da cidade) tem cêrca de 2.000 habitantes, ao passo que em todo o município, a população é de mais de 7.000 pessoas. A área da comunidade compreende menos de um têrço da área total do município. Nessa diferença entre a comuni­dade e a unidade administrativa formal, o município, está um dos maiores problemas rurais do Brasil. Dis­pondo de poucos meios de comunicação, o município é geralmente muito extenso para poder ser eficientemente administrado. E, além disso, há pouco ou nenhum "esprit de corps" entre os ha,bitantes de um município. Com exceção dos moradores da sede - a cidade, que {o o centro do município e de seus arredores mais pró­ximos - há pouco patriotismo ou espírito de grupo em relação ao município. Os residentes do município de Itá, que moram distant_es da cidade pl'Õpriamcnte dita, raramente visitam Itá ou conhecem algum fun­cionário municipal. A celebrada• debilidade dos gover­nos lo~ais, por todo o país, decorre dessá[fa1ta de uni­dade social. ,

A maioria dos serviços públicos - como escolaii, comunicações, serviços de saúde e justiça - quando existem, são fornecidos pelo govêrno estadual ou federal. Nos municípios o povo acha que êsscs serviços lhe devem ser fornecidos, não tem a menor idéia de conquistá-los através de seus esforços conjugados. Existe geralmen­te certa animosidade entre os políticos de um município, mas a rivalidade é geralmente motivada por lealdades

Page 363: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

de família ou pela adesão cega às facções políticas es­taduais e não por divergências de opinião quanto a qualquer medida pública. Atualmente o govêrno fe­deral concede pequenos subsídios aos municípios, cêrca de cem mil cruzeiros por ano, a fim de estimular os empreendimentos públicos locais; e por fôrça da nova constituição de 1945 o prefeito e os vereadores são eleitos. Apesar dêsses esforços, ainda existe muito pouco espírito de comunidade no Brasil rural. (9) Em comparação com a situação predominante em outras áreas do mundo, os grupos locais oferecem pouca bast~ para atividades de comunidade.

Em Itá, como na maior parte do interior do Brasil, há antagonismo entre a cidade e o campo. A maioria dos fundos do município de Itá foram gastos na corn;­trução do enorme edifício da Prefeitura, na limpeza das ruas e em outras benfeitorias para o povo da ci­dade. Os serviços fornecidos ao município pelos go­vernos federal r estadual beneficiam mais a cidade do que a zona rural. Os comerciantes do município, que são os únicos moradores da zona rural que se manifes­tam, queixam-se amargamente da falta de escolas e de proteção sanitária e resmungam sôbre a necessidade de pagar 'impostos municipais. A gente da cidade tem pelo menos um pálido sentimento de pertencer a uma comunidade e considera, os que vivem fora de sua área, forasteiros e estranhos. Ademais, os líderes políticos locais são inevitàvelmente recrutados entre a gente da cidade; destarte a cidade controla as zonas rurais. O resultado é ·que, apesar de os povoados, as vilas e as ci­dades não serem incorporados em unidades governa­mentais separadas como nos Estados Unidos, a sede dos

(9) T. Lynn Smith, op. cit. pp. 613 e segs., salienta o poder da aldeia brasileira e a fraqueza fundamental da comuni­dade.

363

Page 364: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

municípios tem sempre a parte do leão nos benefícios proporcionados pelo govêrno. Por todo o Brasil a gente do interior e os habitantes de pequenos povoados saté­lites têm um sentimento de antagonismo para com os citadinos e seu govêrno local.

A população da comunidade de Há tem uma densi­dade média de apenas 0,5 pessoas por quilômetro qua­drado. Em todo o Brasil é constante o êxodo rural para as cidades. O movimento da gente de Itá e outras comunidades do Baixo Amazonas para Belém e o sul do país é ininterrupto. As cidades crescem à custa das zonas rurais. (10) Por êstc motivo, é perene cm Itá o problema da falta de braços, para cuja solução alguns brasileiros e observadores estrangeiros aconse­lham a imigração estrangeira. Entretanto, pelo que alí se observa, é evidente que a imigração precisa ser aliada ao desenvolvimento econômico para trazer qual­quer benefício às zonas rurais. Os imigrantes poderão contribuir para o desenvolvimento das comunidades di­fundindo novos métodos agrícolas e introduzindo novas culturas. Os japonêses que se estabeleceram perto da cidade de Parintins, à margem do Baixo Amazonas, introduziram o cultivo da juta que está se tornando uma das principais culturas do vale Amazônico. Com o atual sistema agrícola, entretanto, as culturas atuais e os meios de transporte existentes, é muito duvidoso que se possa fornecer alimento a um acréscimo da. população na maioria das comunidades do Brasil. Além do mais, os produtos comerciais não proporcionam uma

(10) O maior crescimento das cidades do que das zonas rurais foi especialmente grande entre 1940 e 1950. Enquanto ns populações rurais aumentaram de 16% (de 30.814.500 a 35.997.700), n população urbana aumentou de 60% de ..... 10.421.813 para 16.647.772). "Brazilian Btdletin", Brazman Trade Bureau (N. York), julho de 1951.

364

Page 365: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

renda cm dinheiro suficiente para permitir aos tra­balhadores um padrão de vida" decente.

Poucos imigrantes europeus se contentariam com o nível de vida proporcionado pela maioria das comu­nidades rurais brasileiras. Como os novos centros in­dustriais do Brasil oferecem melhores oportunidades e um padrão de vida mais elevado, a grande parte dos imigrantes preferiu estabelecer-se nas cidades. (11) A imigração, portanto, tende U.nicamente a acelerar o ge­neralizado êxodo' rural.

A população do Brasil está crescendo com incrível rapide;:, devido, entretanto, muito mais à superioridada de nascimentos sôbre as mortes do que à imigração estrangeira. (12) As comunidades rurais como a de Jtá contribuem para êsse rápido crescimento natural da população, muito embora, em vista de fornecerem população às cidades, sua própria população pareça manter-se relativamente estável ou mesmo diminuir. O Brasil não necessita da imigração, simplesmente para aumentar a população. Como se exprimiu um dos prin­cipais estudiosos da demografia brasileira, "a impor­tância de 20.000.000 de cruzeiros gasta em uma cam­panha pela redução da mortalidade infantil, principal­mente através da educação das mães sôbre a maneira apropriada de cuidar e alimentar seus filhos, talvez aumentasse a população do Brasil muito mais do quo se füsse gasta no financiamento de novos imigrantes." (13) A solução para êsse problema nas comunidades rurais, como a de Itá, não é o aumento da população

(11) Kingsley Davis, Future MigraUon in Latin Ame­rica - Milbank Fumt Qttarterly, N• 1, 1947, pp. 44-62.

(12) A população aumentou de 36% entre 1920 e 1940 e de 41.565.083 em 1940, para 52.645.457 em 1950.

(13) T. Lynn Smith, op. cit., p. 789.

365

Page 366: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

I . . t - ". ·1 OVl e sim uma nova orien açao econom1ca e soem . a e da Amazônia <' outros "espaços vazios do Brasil" per­manecem inexplorados porque o atual sistema econô­mico e os métodos de subsistência proporcionam um meio de vida a apenas uma pequena população. O pro­blema mais sério não é a falta de braços, mas a duvidosa capacidade de uma transformação do sistema produ­tivo do BraSil bastante rápida para acompanhar o crescimento da população.

Com exceção de umas poucas regiões do país, a po­pulação do interior do Brasil vive em casas espalhadas, perto de suas roças, das pastagens para os seus ani­mais e dos produtos que extraem. (14) Na maioria dos casos são os seus métodos de subsistência que tornam obrigatória essa forma de colonização. O sistema da queimada utilizada pelo lavrador de Itá torna-lhe mais conveniente viver isolado dos outros, pois lhe facilita a procura de floresta virgem ou capoeira alta todos os anos para plantar sua roça. O seringueiro de Itá mora perto de suas estradas de borracha. :i!::sse método de residência esparsa causa sérias dificuldades aos educa­dores, sanitaristas e outros administradores. É muito difícil instalar escolas nas zonas rurais, em um ponto de fácil acesso à população dispersa. Se se instalas­sem escolas em todos os arredores de Itá, algumas fa­mílias teriam que remar de três a quatro l1oras por dia para levar seus filhos à escola. A única solução seria um onibus escolar (no caso de Itá um ·barco), mas nas circunstâncias atuais o custo dêsse serviço seria. excessivo. É muito difícil proporcionar cuidados mé­dicos e medidas de saneamento a essas casas esparsas pois para chegar ao médico mais próximo as pessoas têm que viajar horas e às vêzes dias. Os médicos da

(14) lbid., pp. 404-405.

366

Page 367: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

saúde pública têm dificuldade em chegar a essas resi­dências tão dispersas para aplicar vacinas, para desin­feção com DDT ou para lhes dar instruções sôbre· hi­giene.

Em aldeias vizinhas como a de J ocojó, dentro da comunidade de Itá, não parece difícil encontrar solu­ção para essa dificuldade. Essa pequena concentração de lavradores amazônicos já conseguiu instalar uma es­cola para seus filhos. Recebem periodicamente a visita. do médico da saúde pública e já possuem uma capela, fornos e outros meios de fabricação da farinha de man­dioca. Como os lavradores alí vivem uns perto dos outros, organizam-se mais fàcilmente reumoes para o trabalho coletivo do que em outras aldeias onde as casas são mais disseminadas. Mesmo com aquêle dis­persivo e destrutivo sistema de agricultura, os seus ha­bitantes ainda conseguem encontrar terrenos de flo­resta para plantio das roças, perto de suas casas; e no entanto, se se utilizassem dos ricos solos das baixadas em vez de terra firme, a lavoura lhes proporcionaria uma base mais segura para o seu conjunto de aldeias. Em outras regiões do Brasil o sistema do arado oferc·· ceria uma base mais estável para a formaçãô de aldeias como a de J ocojó. A concentração da população rural em pequenas aldeias com um máximo de duzentas a trezentas pessoas tornaria fácil o desenvolvimento do Vale Amazônico.

Outra grande barreira ao desenvolvimento econô­mico do Brasil é o sistema arraigado das classes socio­econom1cas. No Brasil meridional as divisões de classe já se tornaram menos rígidas. A mobilidade social e econômica tornou-se mais fácil com o desenvolvimento da indústria e do comércio e com a formação de uma tremenda burocracia governamental. No Rio de Ja-

367

Page 368: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

neiro e São Paulo e em outros centros urbanos formou­se uma classe média composta de funcionários públicas, técnicos, trabalhadores do comércio e da indústria e outros. Nesses grandes centros urbanos uma nova classe alta, que se apoia no contrôle econômico e comercial e cujos antepassados só imigraram há uma geração atrás, está suplantando a velha aristocracia rural. .

Numa grande parte do interior do Brasil e em muitas cidades do Norte, entret!anto, sobrevive ainda, com umas poucas transformações básicas, o sistema de classes tradicionais. Os novos ricos do comércio e da indústria, e muitos membros das classes profissionais, uniram-se simplesmente aos descendentes da aristocra­cia rural na classe mais alta da região. Nas comuni­dades isoladas como a de Itá não existe essa "aristo­cracia"; ela faz .sentir sua presença, entretanto, com a propriedade da terra e de emprêsas comerciais e atra·· vés da influência política. Além disso, sua ausênci11. não significa que não exista um rígido sistema de di­ferenças sociais em Itá e outras comunidades rurais. Conquanto poucos membros da classe dos "brancos" ou Primeira Classe de Itá jamais consigam penetrar na "aristocracia", muito embora se mudem para a cidade, identificam-se com a classe mais alta da região. Lo­calmente os membros da Primeira Classe de Itá esta­belecem uma diferença rígida entre êles própt'ios e as camadas mais baixas - lavradores, seringueiros e moradores da classe inferior da cidade. As camadas mais altas dessas comunidades rurais brasileiras têm, como a aristocracia, o "complexo da nobreza" adquirido dos antigos senhores de terra. Os burocratas, as fa­mílias ele comerciantes e outros membros da classe mais alta das comunidades rurais em geral não desejam a transformação social. A educação das camadas mais

368

Page 369: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

baixas ameaçaria sua posição dominante. Em todo o Brasil rural a gente da cidade geralmente duvida da capacidade do caboclo, do tabaréu, ou do caipira, para adquirir educação e progresso social e econômico.

Finalmente, com') a gente de Itá, a idéia que a !naioria da população rural brasileira faz do mundo ê fantasmagórica. É geral irn Brasil o culto dos sant0s, a romaria a importantes santuànos, promessas aos san­tos para receber curas e bençãos, bem como o uso de c~rvas medicinais. Em algumas re;giões como a da costa nordeste, há fortes convicções de magia africana; em outras predomina a velha crença ibérica; ao passo que 11a Amazônia ainda persiste um forte resíduo das cren­\'US indígenas. Mas por todo o Brasil o sobrenatura­lismo e a ciência popular ainda constituem os principais elementos do conceito do mundo que faz a maioria da população rural. Conquanto êsse ponto de vista este­ja começando a desintegrar-se sob o impacto de uma ideologia mais moderna vinda das grandes cidades, ainda constitui uma barreira à transformação social. Enquanto uma concepção científica do mundo não su­plantar a atual concepção popular dos brasileiros do interior, a transformação econômica e social não po­derá integrar-se plenamente na vida brasileira.

:Êsses problemas brasileiros, e vários outros, muito numerosos para serem aqui discutidos, não poderão ser resolvidos por comunidades isoladas, embora sejam alí mais evidentes. Cada qual depende da transformação social e econômica da região e da nação - e mesmo de acontecimentos e relações internacionais. O povo de Itá ___ n~Q pode, sozinho, moàifioar a orientação de seu sistema econômico. Está_.e.nredado em um sistema co­Iiíercial e~nÍ. sifil~ma cl~ crédito .que- se desenvolveram em virtude da indústria extrativa da Amazônia. Para

369

Page 370: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

se modificar essa situação, é necessário que se procês­sem modificações gerais do exportador de Belém até o comerciante das áreas rurais e o seringueiro indepen­dente. Sozinhos não poderão os habitantes de Itá se alfabetizar; precisam de professôres e outros auxílios externos. Não podem curar suas moléstias sem conhe­cimentos e pessoal científicos, que não possuem. Não podem produzir mais alimentos sem noções e instru­mentos que terão de lhes ser fornecidos pelos centros mais "adiantados" do Brasil. O esfôrço de ·uma uni­dade de comunidades certamente facilitaria tais trans­formações e apressaria sua aceitação, mas, em geral, a modificação social deve originar-se na vida regional e em tôda a nação. Por conseguinte, à medida que se transformar o Vale Amazônico, Itá se transformará. A medida que se desenvolver o Brasil, mais próxi­mo estará o dia em que o homem se voltará para a Amazônia. O Brasil só desenvolverá suas grandes pos­sibilidades quando a política e os acontecimentos inter­nacionais criarem circunstâncias favoráveis.

III

A Amazônia brasileira é, fora de dúvida, uma áreaº subdesenvolvida. No modo de vida do povo de Itá temos um estudo-de-caso de como o povo consegue sub­sistir nessas áreas. Mas só se pode compreender o que significa viver em uma área subdesenvolvida do mundo quando se compara o seu padrão e o seu modo de vida. com os de outras áreas mais favorecidas do universo. Em comparação co_m Plainville, por exemplo, uma pe­quena comunidµde a:e sup-e°!'«fície a,proximadamente igual, no centro dos Estados Unidos, Itá é extrema-

370

Page 371: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

mente atrasada e primitiva. (15) Entretanto, a com­paração das duas comunidades torna claro que muitos aspectos do modo de vida de Itá proporcionam ao seu povo tanta satisfação quanto os de Plainville. Além disso, é evidente que muitos processos sociais que se verificam em Itá também estão ocorrendo em Plainville e que muitos do~-12-~rigo~ 91.ie o p~ogresso e as . reform~ ~- twazer a. ltá já são problemas contemporâneos em Plainville. Itá, na Amazônia brasileira e Plain­ville, nos Estados Unidos, têm problemas análogos, e o modo de vida de cada uma dessas comunidades dis­tantes, reflete os problemas de uma nação.

Como Itá, a comunidade de Plainville é considerada "atrasada" El "pobre". Plainville é isolada e "retrógra­da" quando comparada à média das cidades norte-ame­ricanas. Não é sede de município e está localizada em "Woodland County" (Município de Woodland) entre a zona sertaneja da cultura americana e as ricas terras agrícolas do norte da América. No tempo em que foi estudado, o município tinha cêrca de 6.500 habitantes. Plainville é um centro comercial e social e, como em Itá, a maior parte de sua população é constituida de lavradores que moram na zona rural das cercanias. A vila de Plainville propriamente dita tem apenas 275 habitantes. E, também, como em Itá, os moradores da cidade são comerciantes, profissionais, trabalhadores nos mais. variados ofícios e assalariados, além de alguns casais aposentados, viúvas e viúvos. A gente pobre da cidade de Itá depende mais da lavoura para prover à sua subsistência do que os moradores de Plainville, mas ambas são comunidades rurais.

(115) Os dados sôbre Plalnville foram tirados do livro Plainville, U. S. A., de James West (N. York, Columbia University Press, 1945). Exceto quando transcritos trechos do livro, omitir-se-ão os numeras das páginas.

3'(1

Page 372: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Ambas têm uma configuração de colonização esparsa, típica na América e diferente das pequenas comunidades da Europa onde os lavradores moram em uma aldeia e saem todos os dias para trabalhar em suas roças. Em Itá o lavrador e o seringueiro vivem junto do rio e nas margens dos tributários; em Plainville "uma rêde de estradas - geralmente intransitáveis em tempo chuvoso - também liga cada lavoura às suas vizinhas, ao seu próprio centro comercial e a tôda:. as outras cidades do município". (16) Por Plainville passa uma nova estrada de rodagem de cõncreto, que faz sua ligação com uma grande cidade a 135 milhas de distância. Uma estrada de pedregulhos, que atra­vessa o município de Woodland, serve aos que se dirigem à sua sede. Para Itá, a "estrada" de escoamento é o canal principal do Amazonas - único meio de comu­nicação, com exceção do avião semanal, com outras cidades do V ale e Belém. Dentro da própria área de It1' são os pequenos tributários que fornecem as prin­cipais vias de comunicação entre um e outro local.

O rio e seus tributários fornecem a Itá um exce­lente sistema natural de comunicações, mas seus habi­tantes não possuem meios suficientes de transporte, tanto dentro da própria comunidade, como para fora. No município de Woodland os lavradores possuem l. 000 automóveis e cêrca de 100 caminhões. "Os caminhões transportam a maioria da produção e do gado de Plainville para os mercados e entregam em Plainville a maioria da mercadoria que lá se vende". (17) Existe, ainda, uma estirada de ferro em Stanton, a apenas onze milhas para oeste. Em Itá as pessoas se locomovem em <ianóas, remando ou içando uma pc-

372

(16) IMd., p. 13. (17) IMd.

Page 373: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

quemr. vera quanáo fiá" vént'o' 8' favor. Uma ve~ po-r semana, em média, uma embarcação fluvial encosta durante algumas-horas na doca-municipal de Itâ; muitas. dessas embarcações são movidas·ª' lenha que levam horas carregando nos postos <iomerciais das docas, por- todo; o percurso. Um barco· fli:rVia.11. gasta; em médi"a; cinqo1

dias para ir de Itá a Belém.· m·o hã veíea~es d'e rodas; em Itá e a dependência absoluta do transporte fluvial prende o homem às margens do rio, o que faz que a áreP. do "interior'', distante do rio, seja deserta. A falta de meios de transporte terrestre faz com que o homem explore apenas uma parte de tôda a área da comunidade.

Em Itá também não existem meios de comunicação com o exterior. O posto telegráfico mantido pela. Companhia Amazônica, uma firma inglêsa, não exie1te mais e em 1948 o govêrno federal ainda não havia insta­lado na cidade uma estação, como na maioria das comunidades amazônicas. Com exceção de Belém e Manaus, não há telefones no Vale da Amazônia. Em Plainville, por outro lado, já existem telefones há qua­renta anos e hã sempre um jeito de se "mandar um telegrama por telefone". A correspondência chega a Itá nos vagarosos barcos fluviais e, uma vez por semana, pelo avião; é depositada no correio e as pessoas têm de ir buscá-la se sabem que há alguma coisa para elas, (18) mas em Plainville é entregue diàriamente. A mala postal rural, um serviço desconhecido no Brasil, serve 200 caixas postais e 286 famílias da zona rural. Plainville, nos Estados Unidos, pode ser considerada

(18) Em Itá uma carta pode ficar no correio durante dias e até semanas, porque a agente se esquece de avisar o destinatário de sua chegada. Só as pessoas que recebem correspondência regularmente indagam freqüentemente se há cartas para elas.

373

24

Page 374: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

"isolada'', mas os meios modernos de comunicação e transporte colocam essa "atrasada" comunidade norte. americana em estreito contato com o resto da região e do país.

No que diz respeito a melhorias materiais, o con­traste entre as duas comunidades demonstra como a gente de Itá dispõe de pouco equipamento técnico para lutar contra seu ambiente natural. Em Plainville apenas dois terç:os da população da cidade têm eletri­cidade e quase tôdas as fazendas usam . lampiões de querosene. 1Só três casas de Plainville têm banheiros com aparelhos sanitários de descarga e água corrente; a maioria das casas, tanto na cidade como na área rural, usam fossas sanitárias. Um "balde de á,,,"'lla", colocado em cima da mesa da cozinha, guarda a água utilizada para beber e lavar. A situação de 'Plainville está muito ahaixo da média de grande parte dos distritos rurais dos Estados Unidos, mas é muito superior à de Itá. Conquanto a maioria das· cidades amazônicas tenha, agora, uma ou outra forma dé luz elétrica, o velho gerador a lenha que fornecia eletricidade a algumas ·casas de Itá já não funciona mais. Todos usam lam­piões de querosene e na zona rural as pessoas geralmente só dispõem de uma lata com um pavio dentro. Em Itá a gente em geral bebe água retirada do rio, pois na cidade só existem três poços e todos em péssima condição. E até que o ~erviço de saúde pública cons­truisse fossas para a maioria das casas da cidade, todos satisfaziam suas necessidades no mato contíguo. O cio. próximo facilita os banhos; existem cabinas cons-

.. t!lJ.!Q.a~. sôbre o rio com degraus para se desí!·er até êle, que são utilizaaas por várias famílias para se banha­rem. Em Itá, entretanto, quase todos dese.Pn o rio ou ao tributário mais próximo para tomar seu banho diário. A gente de Itá é extraordinàriamente limpa;

374

Page 375: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

é na realidade mais limpa do que a gente de Plainville onde o ideal de limpeza é "um banho por semana" e onde "se diz que muitos homens passam todo o inverno sem tomar um banho sequer". (19)

Os habitantes de Plainville precisam aquecer suas casas durante o inverno da Zona Temperada e uma easa média dessa cidade tem um fogão a lenha na cozinha e um aquecedor na sala. Também a gente de Itá usa a lenha, mas apenas para eozinhar em seus fogões de barro ; lá ninguém tem fogão de ferro. Em Plainville, durante o verão, nas janelas e nas portas, eolocam-se telas contra as moseas, mais por questão de confôrto do que como medida sanitária. Mas em It~, onde o 'problema das moscas e outros insetos é pràli­carnente permanente, só se encontram telas no posto d~ saúde. As telas de arame não são encontradas nas Jojas da cidade e mesmo que o fôssem o seu preço seria inacessível para a média das famílias.

Os objetos domésticos, como pratos, utensílios de cozinha, talheres, copos de água e outros artigos "indis­pensáveis" nos Estados Unidos são vendidos à população do Plainville por um preço relativamente barato, no armazem, no "drugstore" e pela :Montgomery W arcl. (20) O estoque das lojas e casas de comércio de Itá oferece pouca variedade e tais objetos são tremenda­mente caros. Um copo de água ordinário custa cêrca de 6 cruzeiros e um pires e uma xícara, de qualidade inferior a qualquer dos ofereeidos nas lojas americanas dos Estados Unidos, custam mais de 10 cruzeiros.

Em Plainville também a gente se veste melhor e mais barato do que em Itá onde pouca gente compra

(19) Op. cit., p. 36. (20) Uma espécie de magazine como "A Exposição", a

"Sears" etc. (N. T.)

375

Page 376: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

roupa feita; usualmente compram cortes de fazenda para vestidos, camisas e calças. De tempos a tempos um alfaiate itinerante visita a cidade para fazer os ternos domingueiros dos homens. Conquanto os ternos tfo algodão que fabrica não sejam mais caros, em têrmos de dinheiro, do que os "trajes de cerimônia" de Plain­vi1le, o material é de qualidade inferior e apenas uns quinze ou vinte homens os podem pagar. Também. o tec-ido para um vestido simples, para calças e camisas, fica mais caro para a gente de Itá dv que o produto acabado em P1ainville onde um vestid0 caseiro, pronto, de tecido estampado, custava em média, em 1940. de 0,98 a 1,98 dólares. As mulheres de Plainville podem consultar catálogos e anúncios nos jornais e revistas e mesmo visitar as grandes lojas da Metrópole, podendo portanto vestir-se de uma maneira que "pouco difere das mulheres de qualquer outra cidade" da América. (21) Embora em Plainvill~ a roupa padrão dos homens seja o macacão, êles podem comprá-lo mais barato e de melhor qualidade do que os que as mulheres de Itã conseguem fazer para os seus maridos.

A população de Plainville conhece melhor o mundo exterior do que os habitantes de Itá. Cinqüenta por cento da gente da cidade e 50 por cento dos lavradores possuem aparelhos de rádio em Plainville, enquanto cm Itá só existem dois. Apenas duas famílias nesta última cidade recebem o jornal de Belém e muito poucas revistas são lá encontradas. No município de Woodland, um semanário local tem uma tiragem de 1. 000 exem­plares; e de dez a doze exemplares de um jornal da capital e cinqüenta de um diário de uma grande cidade ehegam lá todos os dias. A maioria dos lavradores de Plainville assinam um jornal agrícola e muita gente

(21) Ibid., p. 39.

376

Page 377: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

lê revistas semanais. Conquanto Plainville seja con­siderada uma comunidade "atrasada" para os Estados tinidos, mais de 90 por cento de se~s habitantes são alfabetizados, enquanto em Itá o índice de analfabe­tismo é o mesmo de todo o Brasil rural. Um dos con­trastes mais gritantes entre as duas comunidades de­corre dessa diferença. Oitenta por cento das crianças do município de "roodland freqüentam escolas. São transportadas em onibus, diàriamente, de uma extensa área para a escola de PlainviJle que agora fornece oitl) anos de instrução elementar e quatro de ensino secun­dário. Cinqüenta por cento dos que se habilitam cursam agora o ginásio onde, entre outras matérias, ministra-se instrução cívica, música e ensino profis­sional agrícola. Em todo o município de I tá só existem oito escolas pequenas que oferecem um curso 'elementar de três anos para 299 crianças, o que representa cêrca de 20 por cento das crianças entre sete e quatorze anos de idade. (22) A popnlação de Itá está privada de uma das armas fundamentais do homem da civilização CJcidental, isto é, a faculdade de ler e escrever.

Em Plainville o· cultivo da terra é literalmente "agrícola", enquanto o de Itá é "lavoura" ou cultivo manual. Tanto Itá como Plainville possuem, de modo geral, "solo de qualidade inferior". Existe uma área, em Plainville, de planície originalmente bastante fértil, porém, mais de 50 por cento do município de Woodland é constituído de terra pedregosa e monta­nhosa. Itá possui uma várzea fértil constituída de um solo pluvial potencialmente rico, mas é nos solos pobres de laterita, da terra firme, que são plantz19os os principais produtos. Já na segunda metade do dé-

(22) Os dados sôbre matrículas escolares em Itá refe­rem-se a 1945.

377

Page 378: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

cimo nono século, as planícies de Plainville eram cul­tivadas com o arado puxado por animais e um cultivador de fileira simples. Mais tarde apareceram os plan­tadores de milho, as capinadeiras de aço, as máquinas de moer, enfeixadores, debulhadores e outros imple­mentos mecânicos - e, mais recentemente, tratores (145 pessoas os possuem no município de Woodland) e os combinados (combines). O equipamento técnico do lavrador de Plainville inclui ainda inúmeros outros implementos e ferramentas, como máquinas separadoras, enxadas, ancinhos, e incubadeiras que podem ser escolhidos nos catálogos da Sears Roebuck ou da Mont­gomery W ard. O único instrumento semimecânico que os lavradores de Itá possuem é o{Cãi~ralador acionado a mão, tipo bicicleta, para õ -preparo da farinha de mandioca. Em outras regiões do Brasil existem comumente animais de carga (cavalos, burros e bois) e carros de boi, mas em Itá não há qualquer animal de tração. Em tôcla a comunidade de Itá não existe um único araclo. A maquinaria agrícola mecânica é apenas uma possibilidade remota para o lavrador <le Itá e, nas circunstâncias atuais, não pode ser conside-· rada nem mesmo uma possibilidade. As suas ferra­mentas limitam-se a um machado, um facão de mato e uma enxada. Em comparação com os métodos "atra­sados" de agricultura de Plainville, é evidente que a gente de Itá explora o seu ambiente com pouco ou nenhum auxílio da técnica moderna. Se os habitantes de Plainville fôssem obrigados a trabalhar sua terra de Zona Temperada com o equipamento precário de que dispõe o lavrador de Itá, sua comunidade se sen­tiria deprimida e sua região seria uma área subdesen­volvida .

. As diferenças de padrão de vida entre Plainville e I tá não podem ser ~ª-lculada~ em têrmos de dinheiro,

378

Page 379: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

apesar de estarem as duas na órbita de uma economia monetária. Os cálculos da renda agrícola das duas são decepcionantes, pois geralmente omitem muitas fontes de renda real, como pequenas tarefas, consumo de produtos naturais e produtos alimentícios cultivados para o sustento próprio. Entretanto a renda monetári:t indica, em geral, o que essas pessoas podem comprar \•m artigos comerciais. De acôrdo com as cifras do censo, em que o autor de Plainville, U.S.A. não tem muita fé, um quinto das famílias de lavradores do município de W oodland tem uma renda média de 145 dólares por ano. (23) A renda média, em dinheiro, das famílias de lavradores de Itá incluídas em nossa pesquisa, é de 300 cruzeiros por mês, ou 3. 600 cruzeiros por ano, pouco mais do que o quinto da população de renda mais baixa em Plainville, mas muito menos do que o próximo grupo de renda mais baixa das 230 fa­mílias daquela cidade, que é de 320 (*) dólares por ano. (24). Em ambas as comunidades os lavradores geralmente compram produtos vendidos nas "lojas", como roupas, artigos manufaturados, querosene e outros. ~sses produtos sempre foram mais caros na região amazônica, senão em têrmos monetários, certamente em relação à renda dos compradores. Todos os artigos importados pelo Vale Amazônico vêm de muito longe. e passam por várias mãos. Os lavradores de Itá, por­tanto, podem comprar menos com seus magros recursos do que os de Plainville.

(23) Na base ·em que foi feita a conversão do dólar (cêrca de 20 cruzeiros), Cr$ 2.900,00 (N. T.).

( ') Na mesma base, Cr$ 6.400,0~. (N. T. ) . (24) Além do mais êsses cálculos foram feitos em épo­

cas diferentes: em 1939 e 1940 em Plainville, antes da infla­ção nos Estados Unidos e em 1948 em Itá, depois de já se ·ter feito sentir a inflação no Brasil. ' ·

379

Page 380: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

As principais diferenças entrê ô padrão~ d~"' víd\e. das duas comunidades, entretanto, não podem ser ex;· pressas em têrmos de diiiheiro. Os lavradores de! Plainville como os de Itá, e como, aliás, os pequenos: lavradores de todo o mundo, vivem simultâneamente "em dois sistemas econômicos diversos, uma "economia ihóiie'tlif.ia!' e uma "economia de subsistência". (25) É·ef· .~ª!,?víli~ .qf!.ª~ todo mundo possui -~ª roça ~ ate mesmo· o' fil:td'1co.- Um homem de negocios da loca-lidade êr"iâ· ~â:fühêfü ~:f~6-S· e vacas. Além disso, têm· ôs lavrâdorés~ gálfo:hãs~ € óüt:t·â§ 2tVes domésticas, ovos, leite~ manteigâ,- fêgume§; tn'itas· é cà::t'Ife' qne produzem para o próprfo con8um·o. "'A :tnftfona; dos- Javradores (de PlainvÍlleJ é:tlã qtiàse tudo· rJ que- come". (26) E "a.e; conservas?' p'repatadas pelá pl'6pria dona de casa aumentam o :fegíme ãfím:en:tar· dos habitantes de Plain­ville- durante og :mesés de ínverno. "As mulheres orgulham-se de possuir de 100 n 400 potes (quarlo~, e meios gaiões J de "estoque". 11:sse "estoque" inclui ervilhas, tomates, !rufas· em conserva, geléias, compotas, "pickles" e outros produtos da roça on do pomar da família. Aléni dísso cÍilquenta alqueires C'') (biesliels) de hatatas são arinâzena.dos e:tn um celeiro ou "amon­toados"- fora eia éa:sa, em iim poço forrado de palha". (27) Em Piàinvíifo a príncípal carne é a do porco criado em casa e iratâdõ, qüei' pelo método tradicional de defumação ou peio nõV'o siste1na comercial de "fu. maça líquida". Conquanto os especfaHstas considerem deficiente o regime alimentar dos habitantes de Plain­ville, a comida é relatiY~me,ite ~bu11dante IllJ m11iori;t • r

(25) Op. cit., p. 40. (26) lbid., p. 41. (•) Medida de capacidade inglêsa, equivalente a 35.238

litros nos EE. UU. e a 36.367 litros na Inglater~à (N.T.): ,-(27) lbid., p. 37. • •

Page 381: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

da!f" ~~~'\s. Lá se dá grande valor à alimentação. Coiw cxcec;ão de P'-·2cos .;aso~ ex~r®10s, seria difícil classi.­fie&r o "valor" (sl\. uaçao fmane,eira) das famílias de Mvrtid~:tes: de Plainville P"los alimentos que comem. ~s· padPÕes· da economia agrária de Plainville, apesar de· soo~ ésWe1t'.â· l'elação com o mundo comereial ainda ~e õflenfamy em· grllnde. pa.Be,. para a. ~conomia de subRistêncfa.

Também os làVf'âd.ores ~de" Itã" prod-uzem ow reti:rzm. do ambiente em que vivêfu' gràüdc parte do que comem_ Mesmo na cidade muitas fànmlák1 têm no seu quintall árvores frutíferas e umas poucas g&Ilnhas. E, na classe~ mais alta, têm até roças plantadas ~ trabalhadore<>·1 assalariados. Nessas roça.e; planta-se sd6itetudo man-­dioca, mas nelas também se encontram bana~e outrasi frutas nativas que se plantam perto de casa. X, gente~ de Itá caça e pesca para suplementar sua dieta, cmtre-· tanto a tradição cultural da região amazônica nlf6> dáí. grande valor à lavoura como meio de subsistência. .él. tradição do plantio de uma variedade de produtos para~. o consumo da família, que parece ser (e ter sido no passado) tão acentuada entre os portuguêses e outros camponeses da Europa, talvez se tenha perdido com a transferência de elementos europeus para o Vale Ama­zônico. O sistema econômico colonial de extração de produtos naturais para os mercados estrangeiros parece­ter sufocado a tradição européia de se aliar a lavoura às outras atividades para a subsistência.

A maioria dos lavradores de Itá possui algumas galinhas magras, cujos ovos são, às vêzes, encontrados nos matos das redondezas, mas tão ariscas e selvagens <i.ue têm de ser mort~ f!. tiro se se quiser apanhá-las para comei;-. P~tos quase ninguém tem, pois dizem que as cobras e os jacarés devoram-nos. Quanto aos . .

Page 382: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

porcos, apesar de sua carne ser muito apreciada, pouco se vê nas zonas rurais. Conquanto não seja fácil encontrar, na floresta tropical, pastagens naturais para o gado, não é impossível preparar-se uma área para êsse fim. No entanto, apenas dois ou três lavradores possuem gado que geralmente vendem na cidade para. o abate. O leite que bebe um lavrador de Itá é con­densado e a manteiga que come é a salgada, de lata, e ambos são fabricados a milhares de léguas de dis­tância, no sul do Brasil. Alguns lavradores plantam cm suas roças de mandioca - mais como precaução -feijão, abóbora, pimenta e melancia, outros plantam milho e, ainda outros, algumas culturas de crescimento rápido nas terras alagadiças, durante os meses de verão. A preocupação do lavrador é produzir para o mercado - dispor de um excedente de mandioca para, vender depois de satisfazer suas próprias necessidades. Alguns vendem farinha de mandioca ao posto comercial, só para tornarem a comprá-la, mais tarde, ao esgotar-se sua própria produção. Essa tendência do sistema ecO·· nômico rural de produzir para o mercado comercial é sobremaneira acentuada, naturalmente, entre os serin­gueiros que, em sua maioria, dependem totalmente da venda de seus produtos para obterem crédito com o qual adquirem alimentos.

Além do mais, pouco se conhece, em Itá, sôbre métodos de preservação ou armazenamento de alimentos, apesar da grande importância dêsse sistema para urna região tropical. A farinha de mandioca pode ser con­servada meses, desde que não se a deixe mofar e a carne e o peixe são sêcos ao sol. Alguns doces de frutas podem durar muitos dias, mas a gente de Itá Pm geral só come frutas e legumes durante a estaçãu P antes que se estraguem. Comem carne fresca, quando há, logo depois de abatida. Lá não existe nada seme-

382

Page 383: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

lhante ao complexo de enlatamento e defumação da carne de porco que se nota em Plainville. Há um pe­ríodo de grande abundância de laranjas, bananas, mamão e frutos nativos e um período de absoluta escassez dos mesmos. O peixe é abundante durante ~.

estação sêca, mas na época das chuvas a população tem que comprar peixe sêco, salgado, ou sardinha em lata, nos armazéns da localidade. Muito mais do que o lavrador de Plainville, o habitante da .zona rural de Itá depende do alimento comprado.

Além disso, em comparação com Plainville, o la­vrador de Itá recebe pouco auxílio "de fora", isto é, do govêrno estadual ou federal. Conquanto, na pri­meira, haja grande oposição a qualquer "reforma", o agente municipal da "AAA" ( *) ensina-lhes os métodos modernos de agricultura e a "Farm Security Administration" (Administração do Seguro Agrícola) concede empréstimos "numa média que não chega a 500 dólares" às famílias dos lavradores. Durante a depres­são, há cêrca de vinte anos atrás, antes portanto do estudo que o antropólogo fez de Plainville, o escritório do Seguro Sociat~ concedia auxílios diretamente aps lavradores dessa comunidade e encaminhava as pessoas ao "WPA", (*) ao "CCC" (*) e ao "NYA" (*) que ali mantinham escritórios. Há também em Plainville clubes de economia doméstica e clubes 4H, (º) os primeiros para donas de casa e os outros para os filhoo; dos lavradores, organizados através dos esforços do

(•) AAA - Agricultura! Adjustment Administration. WPA - Work Progress Administration. CCC - Commodity Credit Corporation. NY A - National Youth Administration.

(*•) :Elsses clubes são organizações rurais para promo­ver não só recreação como diversas formas de trabalho, ma­nual e intelectual. (N. T. ).

383

Page 384: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

agente municipal. Em certa ocasiao houve uma fraca. tentativa, apoiada pelo Estado do Pará, para se formar uma cooperativa agrícola em Itá, mas não foi bem sucedida. De tempos a tempos reservam-se verbas nns orçamentos estadual e municipal para promover a agri. cultura, principalmente por meio de dis.tribuição de ferramentas manuais e algumas sementes aos lavradores. Não houve, entretanto, qualquer tentativa séria para a concessão de créditos governamentais, anuais, aos lavradores que continuam a solicitá-los, ano após ano, aos comerciantes locais. Além disso, os pequenos lavra­dores da Amazônia não dispõem de qualquer meio para obterem conhecimentos sôbre métodos agrícolas mo­dernos. Pode-se dizer, na realidade, que nem sabem que existem métodos melhores de agricultura.

Em Plainville, segundo o antropólogo James W cst, uma série de complexos característicos, por duas vêzes, "revolucionaram" a sociedade local". (28) O primeir9 foi o "arado que desbravou a planície" (por volta de 1870) e o segundo foi o automóvel (mais ou menos em 1912). Dificilmente qualquer dos dois causaria em Itá os mesmos efeitos, pois lá o sistema fluvial exige barcos modernos e não carros e os solos de terra firme, de qualidade inferior, se fôssem arados, tornar-se-iam pro­vàvelmente lixiviosos em muito pouco tempo. Mas o fato é que não houve qualquer transformação técnica dessa espécie.

Um terceiro complexo que talvez ainda venha a "revolucionar" a sociedade de Plainville é a agricultura científica. Segundo James West, "certa tarde, em 1940, o agente municipal e o professor de agricultma profissional concordaram, sem qualquer discussão, com a seguinte asserção (a respeito de Plainvillc): "Se

(28} Ibid., pp. 218 e segs.

384

Page 385: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

essa gente pelo menos acreditasse no que lhe dizemog sôbre agricultura e o praticasse, o padrão de vida de todo o município duplicaria em cinco anos". (29) James W est torna bem claro que é grande a resistência à agricultura científica em Plainville e que, longe de se beQ.eficiarem com o auxílio que recebem "de fora", os seus habitantes hostilizam as "novas idéias" e a "agricultura teórica". Paralelamente às técnicas e à agricultura modernas, existem ainda em Plainville numerosas prãticas e crendices do passado sôbre plantio, castração do gado, lavoura e outras técnicas de explo­ração. "Criticam" muito "os esforços do govêrno para ensinar o povo a conseguir um melhor padrão de vida com a terra medíocre de que dispõe". (30) Muitas das novas idéias sôbre agricultura e a maneira pela qual foram introduzidas, estão em absoluto con­i.;raste com os valores e as instituições locais. São muitos os conflitos entre "os velhos hã bitos" (locais e tradicionais) e os "novos hábitos" (vindos de fora), entre "a juventude" e a "velhice", entre a "agricultura de campo" e a "agricultura acadêmica", entre a "reli­gião dos velhos tempos" e a "religião fria" ou "falta de religião". Os inovadores, o agente municipal e outros, não tiraram o mãximo proveito dos líderes lo­eais. "O agente municipal, além de não tomar conhe­cimento da classe mais baixa e de seus líderes, pouco ou nenhum esfôrço faz para conquistar a influência dos romerciantes, dos membros de confrarias ou dos simples professôres públicos". (31) James West sugere a pos­sibilidade de se utilizarem as igrejas e os pregadores para, com a sua influência poderosa, introduzirem a

(29) Ibid., p. 11.

(30) Ibid., p. 11.

(31) Ibid., p. 218.

385

Page 386: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

agricultura científica. Na sua opm1ao êsse conflito resulta "de um parcial esgotamento devido à exaustão do solo e as necessidades que apenas se começam a sentir cm virtude de um impacto muito repentino de um sistema social, religioso e técnico "tradicional" com o mundo exterior". (32) Plainville defronta-se eQm o problema de realizar uma nova integração em face de renovadas influências externas. Como diz o autor de Plainville, U .S .A., "a reforma acarreta muitos riscos".

O impacto da agricultura moderna e outras influ­ências novas pode ser ainda mais desagregador na sociedade de Itá. As transformações que ali se operam são transformações de um modo de vida comunal, em que a técnica, as instituições sociais e a religião pouco se modificaram nos cem anos que precederam o vigé­simo século. É uma transformação do analfabetismo par?. a alfabetização, de um conceito fictício do mundo para a aceitação da ciência e de um sistema popular, tradicional, para uma modalidade ·brasileira da moderna cultura ocidental. Pode-se apenas vislumbrar um esbôço dêsse processo que, em Itá, ainda está para vir, no programa de saúde pública já em execução. · O mé­dico entrou em conflito com os pajés conquanto não possa fornecer todos os serviços que aquêles prestavam. Há conflito entre o uso das ervas medicinais e dos remédios modernos. E, na esfera da religião, já há choques entre a Igreja ortodoxa e a religião tradicional a respeito dos poderes das irmandades e dos festejos locais. Êsses e numerosos outros conflitos já são apa­rentes; multiplicar-se-ão, entretanto, muitas vêzes, à medida que a transformação social atingir a edu­cação, a agricultura, a nutrição, e outros setores da vida.

(32) lbid., p. 220.

386

Page 387: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Alguns são inevitáveis; muitos, porém, poderão ser evitados se se compreender que os novos conceitos introduzidos na sociedade de· Itá precisam ser inte­grados no modo de vida existente e que, no processo de transformação, muitos valores e instituições da velha e tradicional maneira de viver têm que ser con­servados, se não se quiser desorganizar por complete• sua sociedade. Haverá o risco de se perderem ali as ricas tradições culturais em troca de uma participação, em se.:,<1'Undo plano, na moderna sociedade comercial e industrial.

IV

A diferença entre os "Itaenses" e os "Plainvillers" ' do mundo não é uma simples questão de clima, de re­cursos naturais, de solos. Também não é uma questão de raça do povo que habita essas comunidades. O clima tropical oferece muitas dificuldades à vida humana, nenhuma, entretanto, insuperável, desde que se disponha de equipamento técnico apropriado. Certas regiões do mundo têm vantagens sôbre outras; possuem me­lhores solos para a produção das culturas desejadas, na ocasião, pelo mercado mundial ou têm recursos na­turais que o equipamento técnico tornou utilizáveis. Mas os principais fatôres que determinam a diferença entre as comunidades que apenas oferecem o mínimo necessário à subsistência e as que proporcionam maiores recursos às necessidades humanas são, em sentido am­plo,~is e ~1:1~ajs. Nêies não se incluem apenas a técnica, a economia, a organização social, a religião, o sistema de valores e outros aspectos da cultura, mas; também a relação entre a comunidade e os centros na-' cionais e internacionais de poder econômico e político.

387

Page 388: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Da lií~rfo. da Âmâz6nfai. <mrergem a-s- mrzões de sua atual eotmàq,ão "de atraso,,:. .A sociedade' e: a: cul­tura contemporáneas. de comunidades como a d"e' fiá são o produto dêsse processo histónfom. ~esde' º' d'êcii:no sexto século a região amazônicw, tem si'do uma área colonial, primeiro pertencente a Po1!'tugal e1 ~ seguir, do próprio Brasil que, durante mais de três séculos, foi um produtor de matérias-primas para mercados dis­tantes, sem uma justa compensação para êsses produto~. No primeiro século de domínio europeu, pouco havia na região que atraísse colonos e colonizadores. Pro­c:uravam os portuguêses riqueza rápida e não uma nova terra para construir seus lares. Os índios .amazônicos eram relativamente pouco numerosos e, assim, a Ama­zônia não era uma fonte inesgotável de escravos como a África. As tradições culturais do índio amazônico eram perfeitamente adaptáveis ao ambiente tropical, mas do ponto de vista técnico sua cultura era tão pri­mitiva que pouco tinha a oferecer aos recém-chegados além de como sobreviver na nova terra. Alguns pro­dutos nativos, como madeira de lei, canela, chocolate, urucu e borracha, interessavam aos mercados europeu~ e, assim, formou-se uma economia extrativa que sub­siste ainda hoje. Os nativos foram transformados em seringueiros escravos e, como em tôda sociedade escrava,

_Q_trabalho braçal tornou-se símbolo de baixa _posição ~: E surgiu uma aristocracia escravocrata, com­

posta de europeus recém-chegados e seus descendentes. Com a extinção da escravatura, e como a região

E>e tornasse extraorcHnàriamente próspera em conse­qüência de seu monopólio da borracha bruta, as dívidas financeiras substituiram a escravatura legal. Desen­volveu-se um ~a. colllf.i;:cial l:!_asead? _nQ. _ç_rédi_!.o e o sistema de classes colonial sofreu uma nova· inter­pretação fundada em distinções determinadas pela ri-

388

Page 389: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

queza oriunda da borracha. A nova aristocracia, os barões da borracha, só se interessavam em manter a exportação de produtos extrativos e se contentavam em l'Onservar o velho sistema nativo de cultivo do solo. Achavam mais barato utilizar a mão de obra humana do que introduzir novas práticas que a poupassem. Acharam mais fácil educar seus filhos no estrangeiro do que fundar estabelecimentos de educação no país. Procuravam meios para seu confôrto e divertimentos no Rio de Janeiro, em Paris e Lisboa, em lugar de criá-los em sua 'terra. Não fixaram raízes na Amazônia l~Ue consideravam uma moradia temporária em que po­diam acumular riquezas que lhes permitissem estabele­<:er-se alhures.

Depois do colapso da borracha, mudaram-se muitos dêsses "aristocratas" da região; vários outros, entre­tanto, ali estavam amarrados e foram obrigados a viver da melhor maneira possível. Permanecia o sistema de classes grandemente cristalizado, bem como a predomi­nância de uma economia extrativa para produção de matérias-primas para os mercados estrangeiros. Cas­tanhas-do-pará, azeite de dendê, óleos de pau-rosa e outros produtos florestais suplantaram a borracha. Assim como o escravo indígena era o último degrau na escala hierárquica da sociedade colonial, o caboclo rural é, hoje em dia, desprezado pelos descendentes de. aristocracia colonial e dos barões da borracha e até mesmo pela crescente classe urbana. Tanto os cita­dinos cultos, como a classe comerciária das pequenas (•idades amazônicas, empregam o têrmo "caboclo" para designar os lavradores e seringueiros analfabetos e semi­analfabetos das zonas rurais. Permaneceu em tôda a rPgião um sistema rígido de discriminação de classes que se baseia em critérios econômicos, familiares e educacionais. O Vale Amazônico continua a ser uma

389

25

Page 390: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

das áreas coloniais do _mundo.- Nunca, em sua hütória, teve -;;,cesso ao que de melhor oferece a técnica: ocidental . . "Runca pôde o homem da Amazônia utilizar-se dos c_onhccimentos e técnicas de que dispõem as r[Jgiões mais adiantadas para exploração e contrôle do mundo físico. A falta de equipamento técnico, a predomi-11ância de uma economia extrativa, um rígido sistema de classes e out'ros fatôres sociais e culturais combina­ram-se para manter a Amazônia no estado de atraso em que se encontra. Êsses fatôres sempre· constituiram barreiras mais sérias à transformação do V ale do que c·ondições de clima, solo ou as chamadas doenças tro-15icais. Existem barreiras erguidas pelo horriem, e não barreiras intransponíveis, que podem tornar impossível o desenvolvimento do Vale Amazônico.

Desde 1940 vem o Brasil revelando novo interêsse pela Amazônia. Em sua famosa "mensagem do Ama­zonas" disse àquele ano o presidente Vargas: "Nada nos impedirá de realizar, neste supremo esfôrço que rcpre~enta o vigésimo século, a mais importante tarefa. do home.,m' civilizado: a conquista e o domínio de gran­des vales de torrentes equatoriais, transformando sua fôrça cega e extraordinária fertilidade em energia disciplinada. A Amazônia, com o impulso fecundo de nossa vontade, de nosso esfôrço e de nosso trabalho, não permanecerá um simples capítulo na história do u,niverso, mas, na mesma base de outros grandes siste­mas fluviais, tornar-se-á um capítulo na história da civilização". Dê certo modo, a declaração de Vargas e_ra precursora do "Ponto Quatro" de Truman e do J?rograma de assistência técnica das Nações Unidas. Conquanto limitasse seu objetivo ao desenvolvimento interno de seu próprio país, o presidente Vargas pro­meteu tôda a escala de habilitações e conhecimentos

Page 391: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

técnicos modernos a uma área subdesenvolvida do Brasil.

O govêrno brasileiro, desde então, vem adotando medidas concretas para a realização dêsse ideal. Em 1942 foi criado o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), que tem sido freqüentemente mencionado neste livro, em cooperação com o Instituto de Assuntos Interamericanos, órgão do govêrno dos Estados Unidos da América do Norte. Foram enviados à Amazônia, tanto dos Estados Unidos, quanto do sul do Brasil, técnicos de saúde pública - médicos, engenheiros, enfermeiros e outros - já detendo o SESP um brilhante "record" na melhoria das condições sanitárias em todo o Vale. Desde então, formou-se o Instituto Agronômico do Norte e as antigas fazendas Ford, no rio Tapajós, f.oram transformadas em uma grande estação experi­mental dêssc Instituto. Além disso o govêrno federal fundou colonias agrícolas na Amazônia - uma perto de ]\fonte Alegre, no Baixo Amazonas e outra, mais acima, no rio Solimões. Três novos territórios foram criados em terras dos grandes Estados do Amazonas e Pará: Amapá, Rio Branco e Guaporé. Para êsses novos territórios e o velho território do Acre têm sido canalizados consideráveis fundos ·federais. A agricul­tura moderna tem sido estimulada, começando-se a ex­ploração de riquezas naturais. Nas novas capitais dêsses territórios federais foram instaladas acomoda­ções mqdernas, te~do sido melhorados os transportes entre Belém e Manaus. Para financiar êsses empreen­dimentos na Amazônia, a Constituição Brasileira de 18 de setembro de 1946 reservou uma verba "nunca inferior a 3 por cento dos impostos federais" para aplicação na região amazônica, durante um período mínimo de vinte anos. Novas influências têm-se manifestado desde 1940, estando iminente uma era de rápida trans··

391

Page 392: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

formação cultural. Esperamos que essa transformação não se efetue ao acaso e desordenadamente.

Deve-se declarar, todavia, que a região amazônica não será provàvelmente a região do Brasil que se desen­volverá mais ràpidamente. Existem outras áreas no oeste de Santa Catarina e Goiás e no sul de Mato Grosso que têm maiores e mais imediatas possibilidades. Possuem solos mais férteis e estão mais perto dos gran­des mercados metropolitanos. Apesar do auxílio federal ao Vale do São Francisco e ao grande Vale Amazônico, aquelas fronteiras meridionais serão indubitàvelmente povoadas e exploradas antes que os brasileiros voltem sua atenção para a solução adequada dos problemas da região amazônica. E, no entanto, a imensa área do Vale Amazônico, com seu imenso potencial, não é apenas uma importante fronteira brasileira, mas uma fronteira do Novo Mundo. É a mais extensa área de população esparsa do mundo. O desenvolvimento de uma tal re­gião com os recursos da técnica moderna será a resposta ao horrível espectro apresentado pelos neomalthusianos que nos ameaçam com a exaustão do suprimento ali­mentício do mundo em face do crescimento de sua população.

A "conquista" do Vale Amazônico, quando se veri­ficar, bem como o desenvolvimento de outras regiões tropicais semelhantes do universo, exigirão a adaptação de técnicas padronizadas e de equipamento técnico às novas condições. A nutrição, a agronomia, a engenharia moderna e outras ciências aplicadas desenvolveram-se, em· grande parte, nos países de clima temperado, du­rante o último século. Nossa técnica mais avançada destina-se, portanto, a controlar e explorar a Zona Temperada. Sempre que o homem civilizado viveu nos trópicos, tentou aplicar sua técnica como se ainda esti-

392

Page 393: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

vesse numa zona temperada. A arquitetura das casai;:, por exemplo, em Belém e Manaus, cidades situadas quase no Equador, obedecem aos padrões estabelecidos nos Estados Unidos e na Europa. Nessas cidades ves­tem-se as pessoas (ou procuram vestir-se) como os habitantes das cidades da Zona Temperada. Fotogra­fias de senhores da alta classe da Amazônia, tiracla;; no coroêço do século, mostram-nos usando sobrecasaca de lã preta, camisas engomadas com colarinho de ponta virada e gravatas de seda. Os estudantes ·de enge­nharia, agronomia e medicina estudam em livros escritos por autores ela Zona Temperada. Os trópicos precisarn de uma adaptação de nosso modo de vida da Zona Temperada. Os conhecimentos científicos básicos e as técnicas da engenharia aplicam-se perfeitamente aos trópicos, mas as diferenças de solo, calor, luz solar e chuvas, e outros fatôres climáticos necessitarão de modi­ficações nos métodos de aplicação. Todo um novo ramo de cjência aplicada terá de ser desenvolvido para as condições tropicais. "A ,adaptação das técnicas parece implicar no desenvolvimento de tôda uma nova ciência" declara um relatório sôbre assistência técnica da Fun­dação Carnegie para a Paz Internacional. "Mas em conseqüência da falta de tempo e dinheiro, a inter­venção das Nações Unidas tem sido intermitente". (33) . O que é indispensável ao desenvolvimento do Vale ; Amazônico e à elevação do padrão de vida de comuni­dades como a de Itá é uma técnica apropriada à Zona Tropical, tal como a possuímos na Zona Temperada.

Apenas uma nova técnica, entretanto, não será suficiente. Fatôres humanos terão que ser levados em

(33) lmplementation of Technical Assistance, por Peter G. Franck e Dorothea Seelye Franek (lnternattottal Ooncfüa·· tion, Fev. 1951, nQ 468, p. 76.

393

Page 394: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

consideração na "conquista" da Amazônia e outras regiões similares do mundo. J!jsses fatôres humanos estão presentes na sociedade e na cultura dos povos que habitam essas áreas, bem como na natureza de suas relações com os recém-chegados. O desenvolvimento do Vale Amazônico significará a transformação da sociedade local e da cultura tradicional. O conhe<'i­mento dessa sociedade e dessa cultura serã tão vital aos programas de assistência técnica como os potenciais do ambiente físico e a presença de uma técnica apro­priada. O sentido da transformação social de uma sociedade e o efeito das inovações devem ser previstos dentro dos limites de nossa capacidade para assim proceder, pois existem perigos na assistência técnica. Uma transformação rápida imposta a um povo poder:, desorganizar seus sistemas sociais e sua cultura tradi­cional a ponto de se perder mais do que se ganha. São muitos os exemplos que nos oferece o mundo de grupos primitivos camponeses transformados em miseráveis trabalhadores agrícolas, mineiros e operários de fábricas - em pessoas despojadas de ~eus valores e instituiçõ2s tradicionais, sem qualquer possibilidade de participar da nova sociedade.

As inovações, às vêzes, provocam reações em cadeia em uma sociedade, como aconteceu com o automóvel, que causou uma série de transformações em PlainvUle e outras comunidades norte-americanas. A introdução da agricultura moderna no Vale Amazônico originará, sem dúvida, uma série de transformações de amplas conseqüências na sociedade de Itá, como na de tôda a. regrno. As modernas práticas agrícolas, por exemplo, não poderão deixar de causar modificações nos atuais vagos conceitos de propriedade da terra; os solos alaga­diços das baixadas deverão ser mais valorizados do que os de terra firme. E 1 como em outras regiões1 com a

394

Page 395: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

predominância da agricultura, os títulos de propriedade com sanções legais deverão substituir os atuais que dão direito à exploração, exclusivamente, de produtos na­tivos. A agricultura moderna deverá modificar os padrões de colonização da Amazônia. Um maior nú­mero de pessoas concentrar-se-á perto das terras baixas do rio. Os métodos agrícolas modernos transferirão a importância do sistema econômico amazônico para a exploração mais estável e permanente da região. Po­tencialmente poderão destruir a hierarquia crediária amazônica que escraviza o seringueiro ao comerciante e êste ao exportador.

A transformação social deverá ser empreendida em várias frentes ao mesmo tempo. Em virtude dessas reações em cadeia, o desequilíbrio e a desorganização poderão fàcilmente ser causados pelas rápidas transfor­maçõe(_gm uma_ úniqa ·e_s_fera_ dãY.1ª.ã;' Sem modificaçijes equivalentes em tôda uma extensa frente, os programas'~ esp~~s, orientadus _em uma só_ .di:reçii2-,_são..freqjíen-

1êritente fadados ao.fracasso. . Enquanto não se dispuser 1 demeios de educação e enquanto o sistema econômico não experimentar melhorias básicas, o programa do SESP em Itá, destinado a melhorar as condições sanit{i­rias do lugar, obterá apenas resultados limitados. Sem uma educação melhor, que. facilite a compreensão das causas das moléstias, sem melhores regimes alimentares, a melhoria permanente das condições sanitárias de Itá é impossível. Os médicos poderão conseguir, quando muito, soluções paliativas, evitando as graves epidemias por meio de vacinação, do emprêgo do DDT e outros meios mecânicos, mas a população de Itá continuará a ter saúde precária e pouca resistência às moléstias contagiosas e a doença continuará a grassar por causa de sua ignorância do mecanismo científico do contágio e da transmissão das moléstias. Além disso, a melhoria .

Page 396: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

da saúde, como medida isolada, poderá ser realmente perigosa para Itá. A diminuição do índice de morta­lidade, sem o aumento paralelo do suprimento de alimentos, pi:.o.mcar.á. uma- verdadeira fome. Sem a transformação dos métodos de subsistência e sem a me­lhoria dos meios de transporte, o aumento da população da Amazônia, decorrente de melhores condições sani­tárias, resultaria apenas em um maior número de suba­limentados; sem melhores meios educacionais, determi­naria uma porcentagem mais alta de analfabetos. Qualquer programa que vise ao desenvolvimento do Vale Amazônico ou de outras áreas subdesenvolvidas seme­lhantes, terá que considerar e incluir uma ampla varie­dade de problemas inter-relacionados. Ê'.:sses programas terão que reconhecer que, na sociedade, a saúde, a economia, a religião, os processos educacionais, a re­creação, os valores, a moral, etc., são apenas categorias convenientes. A sociedade e a cultura segundo a qual ela vive formam um único e integrado sistema: a transformação de uma determina transformações na outra.

A melhoria da situação de um grupo em uma socie­dade significa transformações em todos os grupos. A medida que melhorar a situação do caboclo da Ama­zônia, será afetada a situação da classe mais alta (os comerciantes, os burocratas, etc.) da pequena cidade, bem como a dos aristocratas de tôda a região. É indispensável, portanto, levar em conta, ao se plane­jarem programas de assistência técnica, que certos grupos da sociedade não desejam transformações. O statn quo é, ou lhes parece, satisfatório e, por falta de visão, acham que qualquer transformação ameaçará sun atual posição favorável. Se se desejar que os pro­gramas de assistência técnica sejam de algum valor para os povos das área& s-qbqesenvolvidÇ\s1 dev~-13~ t~.r

Page 397: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

o cuidado de não se estudar a penas fortalecendo n statit quo. Para evitar êsse perigo, os planejadores de tais programas devem estudar o sistema das soei~-. dades em foco e das funções e necessidades dos vários· grupos que, reunidos, formam a sociedade. Só assim poderão êsses programas "aumentar a produtividade dos recursos materiais e humanos e a ampla e eqüita­tiva distribuição dessa maior produtividade, de forma a contribuir para a elevação do padrão de vida de popu­lações inteiras". (34)

As transformações deverão chegar, e inevitàvel­mente chegarão, à região amazônica e outras áreas semelhantes. Os antropólogos sociais discutiram muitas vêzes a "relatividade cultural". .Salientaram que o progresso, o bem e o mal, o êxito e o fracasso, a beleza e a feiura são valores relativos à cultura determinada. em que se encontram. É difícil, dizem êles, julgar se um modo de vida é superior ou inferior a outro. Um povo, como o hindu, dá um grande valor ao desenvolvi­mento da investigação religiosa e filosófica; outro dá mais valor à técnica, como na Europa e nos Estados Unidos. ~sse ponto de vista está certo quando nos ensina a compreender, respeitar e tolerar os modos de vida de outrem. Entretanto, quando uma cultura, em ' vista da falta de equipamento técnico e por motivos de organização social, deixa de prover às necessidades ma­teriais do homem, além do mínimo indispensável à sua. subsistência, essa cultura e essa sociedade terão que ser consideradas inferiores.

A transformação é indicada nessas sociedades tecni­camente inferiores. Isto não implica, naturalmente, na obliteração de um modo de vida ou no passado em

(34) Economic and Social Council Resolution - United lifations1 n9 222 (IX), p. 14.

Page 398: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

julgado de tôda uma sociedade. Tôda culturaº possui padrões e conceitos de imenso valor para seu próprio povo, os quais, uma vez perdidos, causariam um mal irreparável .às :funções da sociedade e um prejuízo à nossa herança universal. A tradicional cultura popular da região amazônica, construida, como é, com a expe­riência de várias gerações, contém muita beleza e valo:r. de que necessitaremos no :futuro e que devem ser con­servados. Esperemos que se forme uma nova cultura amazônica que reúna as fôrças produtivas da técniC'a e da ciência modernas e a eficiência da moderna indús­tria com os numerosos valores positivos do atual modo de vida. Se se realizar uma nova cultura amazomca, será ela tão característica da região quanto a que des­crevemos neste livro.

396

Page 399: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

BIBLIOGR.AFIA

AGASSiz, Louis, "A Journey in Brazil". New York, 1896.

"ALBUM DO ESTADO DO PARÁ", compilado por ordem do Dr. Augusto Montenegro, goverl'.lador (1901-1908), Paris 1910.

BASTIDE, Roger, "Race Relations in Brazil: São Paulo", Cou­rier UNESCO, Paris, Vol. 5, Nos. 8-9, 1952. "Religion and Church in Brazil,'' em IJrazil: Portrait of Half a Continent, T. Lynn Smith and Alexander Marchant, eds. New York, 1951.

BATES, H. W., "The Naturalists on the River Amazon," Lon­don, 1930.

CANDIDO, Antonio, "The Brazilian Family", em Brazil: Portrait of Half a Continent, T. Lynn Smith and Alexander Marchant, eds. New York, 1951.

CASTRO, Josué de, "Geografia da fome", Rio de Janeiro, 1946. COSTA PINTO, L. A., "Race Relations in Brazil: Rio de Janei­

ro," Courier UNESCO, Paris, Vçl. 5, Nos. 8-9, 1952. CUNHA, Euclides da, "Rebellion in the Bac7clands", trad. Sa­

muel Putnam. Chicago, 1944. "A margem da história", Pôrto, 1941.

DAVIS, Kingsley, "Future Migration in Latin America," Mil­bank Fund Quarterly, No. 1, 1947.

DEANE, L. M., Freire Serra, W. E. P. Tabosa e José Ledo, "A aplicação domtciliar de DDT no contrôle da malá­rta em localidades da Amazônia," Revista do SESP, Ano 1, No. 4 pp. 1121-1139, Rio de Janeiro.

DENIS, Pierre, "Brazil", Londres 1914. FERREIRA DE CASTRO, José Maria, "The Jungle", trad. por Char­

les Du!f. New York, 1935.

399

Page 400: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

FERREIRA. REIS, Artur Cezar. "Sf.ntese da história do Pará". Belém, 1942.

FIRTH, Raymond. "We, the Til.opia". Londres, 1936. "A Pri­mitive Polynesian Economy", Londres, 1939. "Elements of Social Organization". Londres, 1951.

FORDE, C. Daryll, "Habitat, Economy and Society", Londres, 1948.

FRANCK, Peter and Dorothea, "Implementation of Technical Assistance," lnternational Conciliation, Fevereiro, 1951, No. 468.

FREYRE, Gilberto, "The Masters and thc Slaves"; trad. Samuel Putnam. New York, 1946.

GALVÃO, Eduardo, "The Religion of an Amazon Communíty", inédito, tese para Ph. D., Faculdade de Ciências Políticas, Universidade de Columbia, 1952.

GouROU, Pierre, "Les Pays tropicaux". Paris, 1948. "L'Ama­zonie," Cahiers d'Ouh·e Mer, Vol. II, No. 5, 1949, pp. 1-13.

HANSON, Earl Parker, "The Amazon: A New Frontier". Fo­reign Policy Association Pamphlet No. 45, 1944.

HUNTINGTON, Ellsworth, "Civilization and Climate", 3~ ed., New York, 1939.

JAMES, Preston, "Latin America". New York, 1942. KLUCKHOHN, Clyde, "Mirror for Man". New York, 1949.

KoSTER, Henry "Traveis in Brazil". 2• ed., Londres 1816. LADISI,Au, Alfredo, "Terra immatura". Rio de Janeiro, 1933. LE COINTE, Paul, "Amazônia brasileira: Arvores e plantas

úteis." São Paulo, 1947. LEITE, Serafim, "História da Companhia de Jesus no Brasil."

Lisboa, 1938.

LINTON, Ralph, "'I'he Studv of Man". New York, 1936. MAGALHÃES, Pedro de, "The Histories of Brazil", trad. John

B. Stetson, Jr., New York, Cortes Society, 1922.

Ml'i:TRAux, Alfred, "Les Migrations historiques des Tupí-Gua­rani," JournaZ de la Société des Américanistes de Paris, Vai. 19, pp. 1-45, 1927.

MEYERHOFF, Howard A., "Natural Resources in Most of the World," em Most of the World, ed. Ralph Linton. New York, 1949.

400 (~~F~A~C~.~E~O~v~·~~._:--:~~1~~~=--~-,~~-L-O~~~-L--)--~ - 1 TECA,_ -

Page 401: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

Mrr.LS, e. À., "Olimatic E!fects on Growth and Development With P.articular Reference to the Effects of Tropical Res,dence," American Anthropologist, Vol. 44, No. 1, 1942.

Mooa, Vianna, "O ciclo do ouro negro", Pôrto Alegre, 1936. MYRDAL, Gunnar, "An American Dilemma". New York, 1944. NASH, Roy, "The Oonquest of Brazil," New York, 1926. PIERSON, Donald, "Negroes in BrazW'. Chicago, 1942. PJUcm, Grenfell, "Whfte Settlers 'n the Tropics". American

Geographic Society Publicatlon No. 23, New York, 1939.

SMITH, Herbert, "The Amazons and the Coast". New York, 1879.

SMITH, T. Lynn, "Brazil: People and Institutions". Baton Rouge, 1946.

THOMAS, Gladwin, "Climate and Anthropology", American An­thropologist, Vol. 49, No. 4, Ft. 1, 1947.

WAGL&Y, Charles, ed., "Race Relatfons in an Amazon Com­munfty,'' em Race and Olass in Rural Brazfl, Paris, UNESCO, 1952.

WAGLBiY, Charles e EDUARDO GALVÃO, "The Tenetehara Indians of Brazil", New York, 1949.

WALLAcm, Alfred Russel, "A. Narrative of Travels on the Amazon and Rio Negro", Londres, 1853.

WEST, James, "Plainville, U.S.A." New York, 1945.

. 401

Page 402: bdor.sibi.ufrj.brbdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/62/1/290 PDF - OCR - RED.pdf · Na minha opinião, a nossa era será principalmente lembrada, não por seus crimes horripilantes ou

* :íl:STE LIVRO FOI COMPOSTO E' IMPRESSO

NAS OFICINAS DA E'l\IFR:íl:SA GRÁFICA DA

"REVISTA DOS TRIBUNAIS" LTDA., À RUA

CONDE DE SARZEDAS, 38, SÃO PAULO,

PARA A

COMPANHIA EDI'l'ORA NACIONAL,

EM 1957.

*