Becos de Manuel

download Becos de Manuel

of 20

Transcript of Becos de Manuel

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira: o beco

Nara Boneti ForestiMestre em Literatura

Em carta endereada a Mrio de Andrade, em 30 de dezembro de 1932, Bandeira menciona sua partida do Curvelo; iria deixar a casa onde vivera durante "dez anos", e o medo de desligar-se deste espao real o aterrorizava: "Quando pensava em ter que liquidar este passado ficava perplexo" (BANDEIRA in: Morais, 2000, p.546). Note-se que o espao e o tempo tm a mesma relao que o dentro e o fora, a rua e o beco, presente e passado. A confluncia se d tambm entre espao e tempo. Antes de mudar-se para um apartamento na Lapa, o poeta instala-se provisoriamente na casa de Moussy, Mme. Blank, um de seus "anjos" (ARMANDO, 1996, p.114-121). Em 29 de maro de 1933, avisa Mrio de Andrade de seu novo endereo: "RuaAnurio de Literatura 8, 2000, p. 137-156.

138

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira

Morais e Vale 57, corao da Lapa" (ANDRADE in: Morais, 2000, p.554). Na mesma carta aparece o poema "O Amor, A Poesia, As Viagens", exprimindo a tristeza de deixar o Curvelo. No Itinerrio de Pasrgada, o poeta refere-se ao texto como "poema ininteligvel nos seus elementos porque s eu possuo a chave que o explica"; dizendo ainda que "a explicao no necessria para que pessoas dotadas de sensibilidade potica penetrem a inteno essencial dos versos". Todavia, em entrevista concedida a Paulo Mendes Campos, para O Jornal, do Rio de Janeiro, Manuel Bandeira oferece uma das "chaves" para o enigma:

O poema foi escrito quando fui forado a deixar a casa do Curvelo para me meter num apartamentozinho de quarto e banheiro rua Morais e Vale. A Lapa o ponto mais movimentado do Rio. No entanto, como eu estava moralmente deprimido, me parecia um deserto. De repente me lembrei dos dez dias que passei em Belm, verdadeiro osis de calma, de dtente na minha vida. (BANDEIRA: 1986, p.121-140)

Quando publicado no livro Estrela da Manh, o poema apresenta mudanas na pontuao que influenciam o ritmo e tambm estendem o sentido para alm da quadra que se v. O poder de sntese do poema nota-se j no ttulo, que pretende delinear toda uma existncia biogrfica e potica. Observe-se:

Nara Boneti Foresti O Amor, A Poesia, As Viagens

139

Verso em carta (MORAIS:2000,p.554)

Atirei um cu aberto Na janela de meu bem Ca na Lapa um deserto Par capital Belm.

Verso publicada - Estrela da Manh (BANDEIRA:1996, p.229)

Atirei um cu aberto Na janela de meu bem: Ca na Lapa - um deserto - Par capital Belm!...

Mantendo-se sem mudana na pontuao, o verso que inicia o poema d o primeiro passo para a construo fantstica e enigmtica do texto, quando um "cu aberto" arremessado contra a janela do ser amado. A amplitude de significado resumido nessas sete slabas poticas oferecida pelo vocbulo

140

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira

cu, que se mantm indefinido: espao em que giram os astros, lugar das almas, ou sinnimo de Deus. No final do segundo verso, o acrscimo dos dois pontos cria a expectativa de uma resposta, de uma seqncia do ato que ofereceu a algum a promessa de felicidade. Parece, no entanto, que a resposta , na verdade, a desolao por no alcanar o "cu", marcando assim a impossibilidade de uma existncia plena no texto. Isto , no possvel partilhar do que no se possui, e a constatao se d quando do sonho de desejo o eu-lrico "ca" na Lapa, na realidade, no deserto trazido pelo terceiro verso. E, neste verso, o eu toma o lugar do cu arremessado, para falar de si mesmo: "Ca na Lapa - um deserto". A inverso de posies, do objeto para o sujeito, do cu para o eu, deixa que se leia a ao do mundo em mutao sobre os homens, que se tornaram objetos consumveis ou dispensveis. A maneira com que a Lapa descrita - um deserto - faz com que o tempo e o espao se confrontem com a realidade do bairro populoso e barulhento do Rio Janeiro. O tempo criado pela insatisfao com o espao, que se torna vazio diante da angstia do eu-lrico. Ao contrrio do que diz o verso, a Lapa era conhecida na poca como zona bomia, cujas ruas e restaurantes enchiam-se de artistas, alm de o bairro ser conhecida zona de prostituio. Assim, para confrontar-se com o deserto, o uso do verbo "cair" faz meno frase coloquial "cair na vida", no puro cotidiano. Para fugir do "populoso deserto", o ltimo verso tem a funo de catarse. Impe que seja dito em voz alta, pelo travesso que lhe d voz. , com outro som, o grito de "Vou-me embora pra Pasrgada", para o mundo das possibilidades que se pode imaginar nas reticncias que fecham o poema, deixando-o aberto.

Nara Boneti Foresti

141

A leitura de "O Amor, A Poesia, As Viagens" anda tambm pelos caminhos do palimpsesto, da rasura, da transformao de textos j existentes. E o que se l neste poema a presena de uma quadrinha folclrica que registra duas variaes, mencionadas por Maria Helena Regis (1986, p.105) a partir de Contos populares do Brasil, coletados por Slvio Romero.

Atirei um limo verde L na torre de Belm; Deu no ouro, deu na prata, Deu no peito de meu bem.

Atirei um limo verde Na mocinha da janela; Ela me chamou doidinho, Doidinho ando eu por ela.

Os versos escritos por Bandeira deixam que se veja o que est por trs, quando mantm alguns aspectos da construo do texto folclrico, como a mtrica e o ritmo. Porm, os dois ltimos versos fogem do j dito, apontando para a habilidade transgressora do poeta, que se utiliza da linguagem para condensar significados mltiplos em sete slabas poticas, no esquecendo que o prprio ttulo recolhe para si esse abarcar

142

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira

o mundo, quando designa quatro versos em tom e mtrica prosaicos para falar do amor, da poesia e das viagens, temas que ocuparam muitos poetas durante uma vida inteira. O desdobramento dos textos no pra por a. Em "Trova", de Mafu do Malungo, percebe-se a variao dos textos aqui mencionados, que conservam certas formas de composio, reduzindo, porm, a possibilidade de vrios significados e reagrupando o texto para um desfecho humorstico:

Atirei um limo doce Na janela de meu bem: Quando as mulheres no amam, Que sono as mulheres tm!

Fazendo com que o leitor perceba a reutilizao do processo construtivo, o poeta que "caiu na Lapa" vai mostrar outras possibilidades de sua tcnica potica quando se utiliza do espao real, de Morais e Vale, do beco, para "desentranhar poesia". Em uma passagem no Itinerrio de Pasrgada, quando lembra do ano de 1933, Bandeira registra a amplitude de observao que a janela do quarto lhe oferecia:

Da janela do meu quarto em Morais e Vale podia eu contemplar a paisagem, no como fazia do morro do Curvelo, sobranceiramente, mas por dentro dela [...] No entanto e quando chegava a janela, o que me retinha os olhos, e a meditao,

Nara Boneti Forestino era nada disso: era o becozinho sujo: embaixo, onde vivia tanta gente pobre [...] (BANDEIRA:1996,p.81).

143

Bandeira grava a impresso do cotidiano nos poemas que levam o nome do espao que lhe retinha os olhos - o beco. O primeiro "Poema do Beco", de Estrela da Manh, que, condensado por um dstico, tem o sentido expandido pela linguagem potica:

Que importa a paisagem, a Glria, a baa, a linha do horizonte? O que eu vejo o beco. (BANDEIRA:1996,p228)

Apesar do aparente ar de desnimo com a paisagem, a dimenso do espao vista pela janela vai para alm das coisas visveis, para o interior do cotidiano das pessoas. Uma viso permitida a raros espectadores. Essa trajetria marcada pela gradao e pelo ritmo ascendente do primeiro verso. Porm, tudo esquecido quando o beco se pe como elemento de observao e seu dia-a-dia poetizado. O resultado do que era garimpado atravs da janela e transformado em expressividade potica se v com freqncia quando o poeta registra uma "conscincia alerta" em relao s mudanas desagradveis trazidas pelo progresso. o que muitos crticos apontam como a poesia social bandeiriana. Apesar de o poeta dizer no "sentir-se vontade neste

144

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira

domnio", alguns de seus poemas versam sobre temas sociais com indignao pelo que visto, caso de "O Bicho", de Belo Belo, em que homem e animal encontram-se nas mesmas condies, podendo at de serem confundidos. Tais observaes mostram, de certa forma, as mudanas que tanto perturbavam o poeta preocupado em preservar a memria, o passado, enquanto o cotidiano mostrava as garras da modernizao e do sistema capitalista, em que as pessoas, como mquinas, ou bichos, absortas ficavam condio espectral de ser humano. Para isto, voltavam-se o olhar e a poesia bandeiriana. O contraste marcado no "Poema do Beco", entre o que oferecia a janela (a beleza do cenrio carioca) e o que retinham os olhos (o beco), aproveita, para desenvolver-se, da condio contraditria do espao, a Lapa: zona de prostituio cercada pelas paredes conventuais. Alm disso, o dstico que forma o poema condensa muitos outros contrastes e significados, mostrando seu poder de "sntese":

Para compreender a Lapa preciso viver algum tempo nela e no ser qualquer que a compreenda. Para falar dela [...] s um Joyce [...] com sua extraordinria fora de sntese potica. Basta dizer que a Lapa um centro de meretrcio todo especial [...]no ambiente mstico irradiado da velha igreja e convento dos Franciscanos. (BANDEIRA:1996,p461)

Na crnica "Romance do Beco", de Crnicas da Provncia do Brasil (1958, p.208), o poeta apresenta certo itinerrio da

Nara Boneti Foresti

145

"mstica potica" de elaborao do poema sobre o beco. No texto, o eu toma o lugar do marinheiro triste que "debruase janela do apartamento 54", olha "a paisagem de mares e montanhas" e acaba "descaindo a vista na calada do beco" para louv-lo em alexandrino "roubado" de Emlio de Menezes - Este leito que o meu, que o teu, que o nosso leito...transformado para: "Este beco, que meu, que o teu, que o nosso beco"' Outro poema que se prende s imagens do beco "ltima cano do beco", de Lira dos CinqeneAnos. Em carta ao amigo Mrio de Andrade, o poeta conta a sua mudana da Lapa para a praia do Flamengo, acontecida no dia anterior ao da escrita da carta, que data de maro de 1942. Nela, Bandeira afirma seu lirismo escrevendo: "Je suis un pote lyrique...et rien de plus"(MORAIS:2000,p660), dizendo provar isto no poema citado, em que d adeus rua Morais e Vale, onde, segundo ele, foi "bem feliz". Eis o poema:

ltima Cano do Beco

Beco que cantei num dstico Cheio de elipses mentais, Beco das minhas tristezas, Das minhas perplexidades (Mas tambm de meus amores, Dos meus beijos, dos meus sonhos),

146

Dos espaos poticos em Manuel BandeiraAdeus para nunca mais!

Vo demolir esta casa. Mas meu quarto vai ficar, No como forma imperfeita Neste mundo de aparncias: Vai ficar na eternidade, Com seus livros, com seus quadros, Intacto, suspenso no ar!

Beco das saras de fogo, De paixes sem amanhs, Quanta luz mediterrnea No esplendor da adolescncia No recolheu nestas pedras O orvalho das madrugadas, A pureza das manhs!

Beco das minhas tristezas,

Nara Boneti ForestiNo me envergonhei de ti! Foste rua de mulheres? Todas so filhas de Deus! Dantes foram carmelitas... E eras s de pobres quando, Pobre, vim morar aqui.

147

Lapa- Lapa do Desterro -, Lapa que tanto pecais! (Mas quando bate seis horas, Na primeira voz dos sinos, Como na voz que anunciava A conceio de Maria, Que graas angelicais!)

Nossa Senhora do Carmo, De l de cima do altar, Pede esmolas para os pobres, - Para mulheres to tristes,

148

Dos espaos poticos em Manuel BandeiraPara mulheres to negras, Que vm nas portas do templo De noite se agasalhar.

Beco que nasceste sombra De paredes conventuais, s como a vida, que santa Pesar de todas as quedas. Por isso te amei constante E canto para dizer-te Adeus para nunca mais!

"ltima cano do beco" data de 25 de maro de 1942 e, mesmo em se tratando de uma despedida, mais tarde as lembranas daquele espao retornam em Duas canes do tempo do beco: "Primeira cano do beco" e "Segunda cano do beco", publicadas em Estrela da Tarde. Outras referncias feitas por Bandeira a respeito da "ltima cano do beco" encontram- se no Itinerrio de Pasrgada , quando o poeta tenta mostrar que, em sua poesia, "tudo resulta de um jogo de intuies" e que no ele, mas a poesia que escolhe a hora de vir tona. Para tanto, explica a situao em que escreveu o poema citado:

Nara Boneti Foresti

149

Na vspera de me mudar da Rua Morais e Vale, s seis e tanto da tarde , tinha eu acabado de arrumar os meus troos e cara exausto na cama. Exausto da arrumao e um pouco tambm da emoo de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoo se ritmou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de vestir-me para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabea, desci rua, no Beco das carmelitas me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esqueclos, tomei um bonde saquei do bolso um pedao de papel e um lpis, fui tomando as minhas notas numa estenografia improvisada, seno quando l se quebrou a ponta do lpis, os versos no paravam... Chegando ao meu destino, pedi um lpis e e escrevi o que o que ainda guardava de cor... De volta casa, bati os versos na mquina e fiquei espantadssimo ao verificar que o poema se compusera, minha revelia, em sete estrofes de sete versos de sete slabas." (BANDEIRA:1996,p.96)

Deixar composies de "quarentena", saber que produzir poemas garimpar, e melhor, saber quais so as pedras de valor que se devem guardar, no trabalho que nasce repentinamente da noite para o dia. A poesia de Bandeira , ento, fruto de uma formao, de uma aprendizagem que levou anos, como mostram os recortes que seguem. Porm, no se pode perder de vista o que j foi apontado por Davi Arrigucci (1992, p.135-136), a "dupla face" da poesia de Manuel Bandeira. Para o leitor do poeta, a soluo no se

150

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira

perder da figura do "alumbrado" - que se diz instrumento da poesia nem da do "arteso" - que exercita a palavra trabalhando juntas. Eis algumas palavras que denunciam o arteso'.

[...] sendo que o intitulado "Cu" bem antigo (no posso precisar-lhe a data). Tanto esse como "Brisa", "Poema S para Jaime Ovalle" e "Minha Terra" tinham ficado de quarentena. Tomei conscincia que era um poeta menor; Que me estaria sempre fechado o mundo das grandes abstraes generosas[...] : o metal precioso eu teria que sac-lo a duras penas, ou melhor a duras esperas [...] Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas. Neles, mais do que nos bons, se acusa o que devemos evitar.

No poema "ltima cano do beco", o cuidado com essa dupla face deve se manter, at porque o "alumbramento" j foi mostrado pela declarao de Bandeira a respeito da gnese do poema. Assim, resta evidenciar o "bruxo", o "arteso", o "artfice" que cantou o beco, servindo-se da tcnica verbal para "construir" o texto, a poao . Logo no primeiro verso, faz-se aluso a outro poema, ao dstico de "O Poema do Beco", utilizando-se da linguagem em sua funo "metalingstica ou metapotica"(REGIS:1986, p.74).

Nara Boneti ForestiO verso: Beco que cantei num dstico O dstico: Que importa a paisagem, a Glria, a baa, a linha do horizonte? - O que eu vejo o beco.

151

A expresso, que aparece no segundo verso da "ltima cano" destinada ao beco ("elipses mentais"), possibilita muitas interpretaes, mas suscita, ao mesmo tempo, a impotncia para explic-las.

Cheio de elipses mentais

Parafrasear, tentando dizer qual o sentido de "elipses mentais", no parece justo construo feita por Bandeira, tornando-se algo despropositado. At mesmo pela variada possibilidade de interpretao. Ento, o melhor a fazer chamar a ateno para o poder que se oculta justamente pelo estranhamento que pode causar, fazendo com que cada leitor remeta o significado a seu prprio "insight". O ritmo do poema se estabelece pelo nmero certo de slabas poticas - formando a redondilha maior - e pela constncia da rima nas estrofes entre o segundo e o stimo versos: mentais/mais, ficar/ar, amanhs/manhs, ti/aqui, pecais/ angelicais, altar/agasalhar e conventuais/mais.

152

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira

Ainda na primeira estrofe, quando o lado "sujo" do beco, a realidade, se explicita pelas "tristezas" e "perplexidades" sentidas pelo eu-lrico, o que segue entre os parnteses o contrrio, mostrando daquele espao o lado bom, onde os amores, os beijos e os sonhos eram possveis. O uso dos parnteses pode indicar algo reservado, ntimo, da estrofe. Dessa maneira, h nos versos uma mistura entre o "dito em alta voz" e o "sussurrado", que aponta para outra comunho de espaos, a do quarto e a da rua. Essa leitura pode ser comprovada pelos atos guardados pelos parnteses - aes veladas, protegidas pelas paredes do quarto -, os amores, os beijos, os sonhos. Porm, o beco retm o poder de significar ao mesmo tempo um "dentro" e um "fora": na cidade, toma o lugar de um quarto fechado pelas paredes das construes, se pe como espao interior; na presena da rua, o beco o exterior. Mas, o importante que ele, o beco, nunca um s espao, mas sim a tenso entre eles, o dentro e o fora ao mesmo tempo.

Beco que cantei num dstico Cheio de elipses mentais, Beco das minhas tristezas, Das minhas perplexidades (Ma tambm de meus amores, Dos meus beijos, dos meus sonhos), Adeus para nunca mais!

Nara Boneti Foresti

153

O poema continua, na segunda estrofe, fazendo movimento entre os espaos contrrios para, ento, mencionar uma perda: a da casa que ser "demolida". Mantendo o jogo entre opostos, a perda se contrape a uma forte presena desse espao que ficar imortalizado atravs da memria. Yudith Rosenbaum (1993, p.92) chama esse processo de "materialismo transcendente", isto , o eu "encontra na materialidade do cotidiano, no mundo do sensvel, na imanncia do concreto, o salto para o alm do vivido". Assim, mesmo depois da destruio, o quarto do eu-lrico continuar existindo alm do tempo e do espao, como "a matria destituda de espiritualidade".

Vo demolir esta casa. Mas meu quarto vai ficar, No como forma imperfeita Neste mundo de aparncias: Vai ficar na eternidade, Com seus livros, com seus quadros, Intacto, suspenso no ar!

Os versos retomam a Lapa, lugar de contradies, expressa pelo poema nas estrofes que seguem. O mesmo jogo de opostos mantido nas figuras do convento e da prostituio, dos

154

Dos espaos poticos em Manuel Bandeira

pecados e da religio. Na terceira estrofe, a "paixo sem amanhs", oferecida pelas prostitutas na noite, contrape-se "pureza" trazida pela manh. A estrofe seguinte traz a "rua de mulheres" que "dantes foram carmelitas", igualando todas a "filhas de Deus". E, na quinta estrofe, a Lapa declarada lugar dos pecados, mas, mais uma vez, utilizando-se dos parnteses, o poema mostra o interior do bairro que, "na primeira voz dos sinos", entrega-se s "graas angelicais".

Lapa - Lapa do Desterro -, Lapa que tanto pecais! (Mas quando bate seis horas, Na primeira voz dos sinos, Como na voz que anunciava A conceio de Maria, Que graas angelicais!)

O jogo no pra por a; nas estrofes seguintes, os contrrios continuam preenchendo os versos da cano de despedida. Na sexta e stima estrofes, a prostituio do beco se v ameaada e, ao mesmo tempo, protegida pelas "paredes conventuais". E o eu-lrico declara seu amor por este lugar profano e santo, despedindo-se com o verso: "Adeus para nunca mais". Porm, este adeus vai manter a iluso de permanncia daquele espao, funcionando como remdio contra o desaparecimento daquele tempo do "beco cantado

Nara Boneti Foresti

155

num dstico". Na verdade, um remdio/veneno que alimenta a poesia bandeiriana.

Notas

H ainda, na crnica, referncias aos personagens de Marcel Proust: Odette e Swann. Todos os fragmentos foram recortados do livro Itinerrio de Pasrgada(BANDEIRA:1996). Esto localizados nas pginas 95,40,42 em ordem que aparecem no texto acima.

Referncias Bibliogrficas

ARMANDO, Paulo. "Os trs Anjos de Manuel Bandeira" In. Travessia N. 13. Florianpolis: UFSC, 1986. ARRIGUCCI JR, Davi. Humildade paixo e morte: a poesia de Manuel Bandeira. So Paulo: Cia das Letras, 1992. BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar,1996. BANDEIRA, Manuel. Obras completas - Vol. I e II. Rio de Janeiro, 1958. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas Vol. III: Baudelaire, Um Lrico no Auge do Capitalismo. Trad. Jos Carlos Martins Barbosa e Emerson Alves

Baptista. So Paulo: Brasiliense , 1998. BEZERRA, Elvia. A Trinca do Curvelo: Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Nise da Silveira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. CAMPOS, Paulo Mendes. (Entrevista). Travessia. Ano 1986. N.13. Ed. UFSC p.24-140. CANDIDO, Antonio e Gilda de [Melo e Souza]. "Introduo" In Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. DERRIDA, Jacques. A Farmcia de Plato. Trad. Rogrio da Costa. So Paulo: Iluminuras, 1997. MORAIS , Marco Antonio (Org.) Correspondncias - Mrio de Andrade & Manuel Bandeira. So Paulo: Edusp, IEB, 2000. POE, Edgar Alan. A Filosofia da Composio In: Edgar Aliai Poe Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes, Milton Amado. So Paulo: Globo, 1999.pp 101-114. REGIS, Maria Helena Camargo. O Coloquial na Potica de Manuel Bandeira. Florianpolis: Ed. UFSC, 1986. ROSENBAUM, Yudith. Manuel Bandeira: Uma Poesia da Ausncia . So Paulo: EDUSP; Rio de Janeiro: Imago, 1993