Beemote cap 1

10
ALEK ERGUEU A ESPADA. — Em guarda, senhor! Deryn levantou a própria arma enquanto estudava a postura de Alek. Os pés dele estavam abertos em ângulos retos, o braço esquerdo se pro- jetava das costas como a asa de uma xícara. A armadura de esgrima fazia com que Alek parecesse com um edredom ambulante. Mesmo com a espada apontada diretamente para Deryn, ele parecia um bobo berrante. — Eu tenho que ficar assim? — perguntou ela. — Se você quiser ser um perfeito esgrimista, sim. — Um perfeito idiota, isso sim — murmurou Deryn, que novamente desejou que a primeira aula fosse um pouco menos pública. Uma deze- na de tripulantes estava assistindo, juntamente com um par de curiosos farejadores de hidrogênio. Porém, o Sr. Rigby, o contramestre, proibira lutas de espada dentro da aeronave. Ela suspirou, ergueu o sabre e tentou imitar a postura de Alek. Era um belo dia no topo do Leviatã , pelo menos. A aeronave deixara a península italiana para trás na noite anterior, e o mar calmo se estendia por todos os lados, o sol da tarde espalhava diamantes por sua superfície. Gaivotas davam voltas no céu, levadas pela brisa fresca do oceano. UM miolo-beemote2-editorado.indd 7 03/06/2013 15:12:09

Transcript of Beemote cap 1

Page 1: Beemote cap 1

ALEK ERGUEU A ESPADA.

— Em guarda, senhor!

Deryn levantou a própria arma enquanto estudava a postura de Alek.

Os pés dele estavam abertos em ângulos retos, o braço esquerdo se pro-

jetava das costas como a asa de uma xícara. A armadura de esgrima fazia

com que Alek parecesse com um edredom ambulante. Mesmo com a

espada apontada diretamente para Deryn, ele parecia um bobo berrante.

— Eu tenho que fi car assim? — perguntou ela.

— Se você quiser ser um perfeito esgrimista, sim.

— Um perfeito idiota, isso sim — murmurou Deryn, que novamente

desejou que a primeira aula fosse um pouco menos pública. Uma deze-

na de tripulantes estava assistindo, juntamente com um par de curiosos

farejadores de hidrogênio. Porém, o Sr. Rigby, o contramestre, proibira

lutas de espada dentro da aeronave.

Ela suspirou, ergueu o sabre e tentou imitar a postura de Alek.

Era um belo dia no topo do Leviatã, pelo menos. A aeronave deixara

a península italiana para trás na noite anterior, e o mar calmo se estendia

por todos os lados, o sol da tarde espalhava diamantes por sua superfície.

Gaivotas davam voltas no céu, levadas pela brisa fresca do oceano.

UM

miolo-beemote2-editorado.indd 7 03/06/2013 15:12:09

Page 2: Beemote cap 1

( 8 )

Melhor de tudo, não tinha ofi ciais ali em cima para lembrar Deryn

de que estava de serviço. Havia rumores de dois encouraçados alemães

à espreita por perto, e Deryn deveria fi car de olho em sinais do aspirante

Newkirk, que estava pendurado em um ascensor Huxley a 600 metros

acima deles.

Mas ela não estava fazendo corpo mole, na verdade. Havia apenas

dois dias, o capitão Hobbes dera ordens para que Deryn fi casse de olho

em Alek e descobrisse o que fosse possível. Certamente uma missão

secreta do capitão em pessoa era mais importante que seus deveres

habituais.

Talvez fosse idiotice que os ofi ciais ainda considerassem Alek e seus

homens como inimigos, mas pelo menos isso dava uma desculpa para

Deryn passar um tempo com ele.

— Pareço um bobalhão? — perguntou Deryn a Alek.

— Com certeza, Sr. Sharp.

— Bem, o senhor também, então! Seja lá como se fala bobalhão em

mekanistês.

— A palavra é “Dummkopf” — disse ele. — Mas eu não pareço um

bobalhão porque minha postura não é horrível.

Ele abaixou o sabre, se aproximou e ajustou os braços e pernas de

Deryn como se ela fosse um manequim em uma vitrine.

— Mais peso no pé de apoio — falou Alek ao afastar mais as botas

de Deryn —, para que você possa tomar impulso quando atacar.

Alek estava bem atrás dela agora, com o corpo bem colado ao ajustar

o braço da espada. Ela não tinha percebido que esse negócio de esgrima

seria tão cheio de toques.

Ele pegou na cintura de Deryn, que sentiu um arrepio na pele.

Se Alek subisse mais as mãos, poderia notar o que estava escondido

debaixo da costura que ela fez com cuidado.

miolo-beemote2-editorado.indd 8 03/06/2013 15:12:09

Page 3: Beemote cap 1

“AU L A S M A R C I A I S N A E S P I N H A .”

miolo-beemote2-editorado.indd 9 03/06/2013 15:12:12

Page 4: Beemote cap 1

( 10 )

— Sempre fi que de lado para o oponente — disse ele ao girá-la com

delicadeza. — Dessa maneira, seu peito oferece o menor alvo possível.

— Certo, o menor alvo possível — suspirou Deryn. Seu segredo

estava a salvo, ao que parecia.

Alek se afastou e retomou a própria postura, de forma que as pontas

das espadas quase se tocaram. Deryn respirou fundo, pronta para lutar

fi nalmente.

Porém, Alek não se mexeu. Longos segundos se passaram, os novos

motores da aeronave roncaram sob seus pés, as nuvens passaram lenta-

mente pelo céu.

— Nós vamos lutar? — perguntou Deryn, fi nalmente. — Ou só

vamos nos encarar até a morte?

— Antes que um esgrimista cruze espadas, ele tem que aprender essa

postura básica, mas não se preocupe — Alek deu um sorriso cruel —,

nós não fi caremos aqui mais do que uma hora. Esta é apenas sua primei-

ra aula, afi nal de contas.

— O quê? Uma hora berrante inteira sem se mexer? — Os músculos

de Deryn já reclamavam, e ela notou que os tripulantes seguravam o

riso. Um dos farejadores de hidrogênio se aproximou de mansinho para

fungar sua bota.

— Isso não é nada — disse Alek. — Quando comecei a treinar com

o conde Volger, ele nem sequer me deixava segurar uma espada!

— Bem, esta parece ser uma maneira idiota de ensinar alguém a lutar

com espada.

— Seu corpo precisa aprender a postura adequada, caso contrário

você cederá aos maus hábitos.

Deryn soltou um muxoxo de desdém.

— É de imaginar que não se mexer em uma luta seria um mau hábito!

E se nós estamos apenas parados aqui, por que você está de armadura?

miolo-beemote2-editorado.indd 10 03/06/2013 15:12:15

Page 5: Beemote cap 1

( 11 )

Alek não respondeu, apenas franziu os olhos com o sabre imóvel no

ar. Deryn notou que a ponta da própria espada tremia. Ela trincou os

dentes.

Claro que o berrante príncipe Alek aprendera a lutar da maneira per-

feita. Até onde Deryn sabia, a vida inteira de Alek fora uma procissão

de mestres. O conde Volger, seu professor de esgrima, e Otto Klopp,

o professor de mekânica, podiam ser os únicos mestres que o acompa-

nhavam agora que ele estava em fuga, mas na época em que o príncipe

viveu no castelo da família Habsburgo, devia ter havido mais uma de-

zena de professores, todos enchendo a cachola de Alek com lero-lero:

línguas antigas, costumes de salão e superstições mekanistas. Não era

de admirar que ele achasse que fi car parado como um par de jarros

era educativo.

Mas Deryn não se deixaria superar por um príncipe esnobe qualquer.

Então ela fi cou ali encarando Alek, perfeitamente imóvel. Conforme

os minutos se arrastaram, o corpo enrijeceu, os músculos começaram a

latejar. E era pior dentro do cérebro, onde o tédio virava raiva e frus-

tração, e o ronco dos motores mekanistas da aeronave transformavam a

cabeça de Deryn em uma colmeia.

A parte mais difícil era sustentar o olhar de Alek. Os olhos verde-

escuros do príncipe permaneciam fi xos no olhar de Deryn, tão fi rmes

quanto a ponta de sua espada. Agora que conhecia os segredos de Alek

— o assassinato dos pais, o sofrimento de deixar o lar para trás, o fardo

cruel das disputas de sua família terem começado essa guerra horrível —,

Deryn conseguia enxergar a tristeza por trás daquele olhar.

Ocasionalmente, ela via os olhos de Alek brilharem com lágrimas,

que eram contidas apenas por um orgulho implacável. E, às vezes, quan-

do eles disputavam coisas estúpidas, como quem conseguia escalar as

enxárcias mais rápido, Deryn quase sentia vontade de deixá-lo vencer.

miolo-beemote2-editorado.indd 11 03/06/2013 15:12:15

Page 6: Beemote cap 1

( 12 )

Mas ela jamais poderia dizer essas coisas em voz alta, não como um

garoto, e Alek jamais a encararia nos olhos dessa maneira outra vez se

algum dia descobrisse que ela era uma menina.

— Alek... — começou ela.

— Precisa de um descanso? — O sorrisinho irônico de Alek afastou

os pensamentos caridosos de Deryn.

— Vá se catar. Só estava pensando, o que vocês mekanistas farão

quando chegarmos à Constantinopla?

A ponta da espada de Alek tremeu por um momento.

— O conde Volger pensará em alguma coisa — respondeu ele. —

Sairemos da cidade o quanto antes, imagino. Os alemães jamais procu-

rarão por mim nas fl orestas do Império Otomano.

Deryn deu uma olhadela para o horizonte vazio à frente. O Leviatã

poderia chegar à Constantinopla ao alvorecer do dia seguinte, e ela

conhecera Alek havia apenas seis dias. Será que ele iria embora assim

rápido?

— Não que seja tão ruim aqui — falou Alek. — A guerra parece

mais distante do que jamais pareceu na Suíça, mas eu não posso perma-

necer voando para sempre.

— Não, não creio que possa — disse Deryn ao concentrar o olhar na

ponta das espadas. O capitão podia não saber quem fora o pai de Alek, mas

era óbvio que o garoto era austríaco. Era apenas uma questão de tempo

até que a Áustria-Hungria entrasse ofi cialmente em guerra contra a Grã-

Bretanha, e então o capitão jamais deixaria os mekanistas irem embora.

Não seria justo considerar Alek um inimigo depois de ele ter salvado

a aeronave em duas ocasiões até agora. Uma vez, ele salvou o Leviatã de

uma morte gelada ao dar comida para os tripulantes, e a segunda vez,

Alek resgatou a nave dos alemães ao entregar os motores que permitiram

que todos escapassem.

miolo-beemote2-editorado.indd 12 03/06/2013 15:12:15

Page 7: Beemote cap 1

( 13 )

Os alemães ainda caçavam Alek e tentavam terminar o serviço que

começaram com seus pais. Alguém tinha que fi car ao lado dele...

E, como Deryn aos poucos admitiu para si mesma nos últimos dias,

ela não se importava que esse alguém acabasse sendo ela.

Um movimento no céu chamou sua atenção, e Deryn deixou o dolo-

rido braço da espada cair.

— Rá! — disse Alek. — Já chega para você?

— É o Newkirk — falou ela, enquanto tentava entender os sinais

frenéticos do garoto.

As bandeirolas de sinalização passaram as letras outra vez, e lenta-

mente a mensagem se formou na mente dela.

— Dois conjuntos de chaminés a 65 quilômetros de distância — dis-

se Deryn, enquanto pegava o apito de comando. — São os encouraçados

alemães!

Ela se viu dando um sorrisinho ao apitar. Constantinopla teria que

esperar um tiquinho.

O uivo de alerta se espalhou rapidamente, foi passando de um farejador

de hidrogênio para o outro. Em pouco tempo, toda a aeronave ecoava

com os berros dos monstrinhos.

Os tripulantes lotaram a espinha, onde armaram as armas de ar com-

primido e levaram bolsas com comida para os morcegos-dardos. Fareja-

dores dispararam pelas enxárcias e procuraram por vazamentos na pele

do Leviatã.

Deryn e Alek operaram o guincho do Huxley para trazer Newkirk

para perto da nave.

— Vamos deixá-lo a 300 metros — falou Deryn, enquanto observava

as marcas de altitude no cabo. — Aquele mané sortudo. Dá para ver a

batalha inteira lá de cima!

miolo-beemote2-editorado.indd 13 03/06/2013 15:12:15

Page 8: Beemote cap 1

( 14 )

— Mas não será uma grande batalha, não é? — perguntou Alek. —

O que uma aeronave pode fazer contra um par de encouraçados?

— Acho que fi caremos absolutamente imóveis por uma hora, apenas

para não cedermos aos maus hábitos.

Alek revirou os olhos.

— Estou falando sério, Dylan. O Leviatã não tem artilharia pesada.

Como nós lutaremos contra eles?

— Um grande respirador de hidrogênio pode fazer muita coisa. Te-

mos algumas bombas aéreas sobrando, e morcegos-dardos... — As pa-

lavras de Deryn foram sumindo. — Você disse “nós”?

— Perdão?

— Você acabou de dizer “como nós lutaremos contra eles?”. Como se

fosse um de nós!

— Creio que possa ter dito. — Alek olhou para as botas. — Meus

homens e eu estamos servindo a bordo desta nave, afi nal de contas, mes-

mo que vocês sejam um bando de darwinistas ateus.

Deryn sorriu novamente ao prender o cabo do Huxley.

— Garanto que vou mencionar isso ao capitão da próxima vez que ele

perguntar se você é um espião mekanista.

— Como você é gentil — falou Alek, que depois ergueu os olhos

para encarar os dela. — Mas esta é uma boa questão: será que os ofi ciais

confi arão na gente na batalha?

— Por que não confi ariam? Você salvou a nave e deu os motores de

seu Stormwalker para nós!

— Sim, mas se não tivesse sido tão generoso, ainda estaríamos presos

naquela geleira com vocês. Ou em uma prisão alemã, mais provavelmen-

te. Não foi exatamente uma doação por amizade.

Deryn franziu a testa. Talvez as coisas fossem um tiquinho mais com-

plicadas agora, com a proximidade da batalha. Os homens de Alek e a

miolo-beemote2-editorado.indd 14 03/06/2013 15:12:15

Page 9: Beemote cap 1

( 15 )

tripulação do Leviatã se tornaram aliados praticamente por acidente, e ha-

via apenas alguns dias.

— Você apenas prometeu nos ajudar a chegar ao Império Otomano,

creio eu — falou Deryn com delicadeza. — Não prometeu lutar com

outros mekanistas.

Alek concordou com a cabeça.

— Isso é o que os seus ofi ciais pensarão.

— Sim, mas o que você está pensando?

— Nós cumpriremos ordens. — Ele apontou para a proa. — Viu

aquilo? Klopp e Hoffman já estão trabalhando.

Era verdade. As nacelas dos motores de ambos os lados da cabeça

do grande aeromonstro roncavam mais alto e soltavam duas grossas

colunas de gases de escapamento no ar. Entretanto, ver os motores

mekanistas em uma aeronave darwinista era apenas outro sinal da es-

tranha aliança em que o Leviatã se metera. Comparado aos minúsculos

motores feitos na Grã-Bretanha que a nave foi projetada para levar, eles

soavam e fumegavam como locomotivas.

— Talvez esta seja uma chance para você provar seu valor — disse

Deryn. — Deveria ir ajudar seus homens. Precisaremos de boa velo-

cidade para pegar aqueles encouraçados ao anoitecer. — Ela deu um

tapinha no ombro de Alek. — Mas não morra.

— Vou tentar não morrer. — Alek sorriu e prestou continência. —

Boa sorte, Sr. Sharp.

Ele deu meia-volta e correu pela espinha.

Ao vê-lo ir embora, Deryn imaginou o que os ofi ciais lá embaixo

na ponte estariam pensando. Lá estava o Leviatã, entrando em combate

com motores novos e pouco testados, operados por homens que, na ver-

dade, deveriam estar lutando do outro lado.

miolo-beemote2-editorado.indd 15 03/06/2013 15:12:15

Page 10: Beemote cap 1

( 16 )

Mas o capitão não tinha muita escolha, tinha? Ele podia confi ar nos

mekanistas ou ser levado indefeso pela brisa. E Alek e seus homens pre-

cisavam se juntar à luta ou perderiam os únicos aliados.

Deryn suspirou e se perguntou como esta guerra havia fi cado tão

confusa.

miolo-beemote2-editorado.indd 16 03/06/2013 15:12:15