Beethoven - Bernard Fauconnier

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Beethoven - Bernard Fauconnier

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  • Para Aurlie

  • Uma infncia tenebrosa

    O personagem de Ludwig van Beethoven parece zombar abertamente dos supostosdeterminismos da gentica e da hereditariedade. Esse filho de um cantor alcolatra e de umame tuberculosa, cercado de irmos ineptos e s vezes maldosos, mais tarde de um sobrinhodecepcionante para seus critrios exigentes que beiravam a tirania, esse homem sofrido decarter indomvel s tinha uma soluo para escapar aos vcios do seu meio: ser um gnio.

    Isso vinha a calhar: o romantismo nascido das Luzes e da Revoluo Francesa estava seapropriando da palavra para seu uso prprio gnio, heri, a mesma coisa. Beethoven notarda a perceber onde est sua chance. Seus dons so evidentes, sua vontade inabalvel, e elelogo cr no seu destino, como os heris de Schiller ou de Goethe, como os grandes homenscujos modelos encontrar na obra Vidas paralelas, de Plutarco...

    As condies nas quais aprende msica poderiam t-lo desestimulado para sempre; o papelde macaquinho amestrado ou de menino prodgio que o pai decide faz-lo desempenhar naesteira de Mozart teria sido o melhor meio de lhe cortar as asas se ele no tivesse sabido afirmar,pela fora da vontade e a conjuntura de circunstncias felizes, sua tmpera excepcional, suapersonalidade poderosa, mistura de brutalidade e de melancolia, de delicadeza sensvel e deambio desmedida.

    Beethoven no pode viver fora do desejo devorador de criar, de oferecer aos homens, a simesmo, a seus ideais de liberdade, talvez mesmo ideia muito pessoal que faz de Deus, umaobra inusitada, nova, que perturba e surpreende. daqueles raros artistas essenciais que nodeixam sua arte no estado em que a encontraram. Em msica, h um antes e um depois deBeethoven, como em pintura h um antes e um depois de Czanne... O jovem compositor segueainda as pegadas de Mozart e de Haydn, alguns de seus mestres. J o homem amadurecido esttotalmente noutra parte, impe composies de uma ousadia e de uma fora que s vezeschocaro seus contemporneos e o afastaro do pblico, embora sua popularidade permaneaintacta. O ltimo Beethoven deixa obras testamentrias de uma profundidade assombrosa,inesgotvel, que preparam, anunciam, indicam o caminho da msica para os dois sculosseguintes. Pois ainda no se disse tudo sobre Beethoven, nem sobre sua vida, s vezes enigmtica,nem sobre sua obra, visionria, proftica e, no entanto, to prxima de ns.

    Ludwig van Beethoven nasceu em Bonn, no nmero 515 da Bonngasse, em 17 de dezembrode 1770.

    Bonn a capital dos prncipes eleitores de Colnia, que tm uma funo ao mesmo tempoeclesistica e secular. A Alemanha ento um pas sem coeso poltica, dividido numa srie depequenos Estados. Bonn depende de Viena, sede do Sacro Imprio Romano Germnico eresidncia dos Habsburgo. uma pequena cidade de cerca de doze mil habitantes, situada smargens do Reno. Nenhuma indstria: ali vivem artesos, funcionrios, cortesos do prncipeeleitor, nessa provncia tranquila, cercada de uma natureza harmoniosa cuja beleza marcarLudwig. Esse pequeno Estado dirigido por Maximiliano Frederico, prncipe aberto s ideiasnovas das Luzes. Como observa o baro Caspar Riesbeck:

    O governo atual do arcebispado de Colnia e do bispado de Munster sem dvida o maisesclarecido e o mais ativo de todos os governos eclesisticos com que conta a Alemanha.O Ministrio da Corte de Bonn dos melhores. Criar timos estabelecimentos educativos,encorajar a agricultura e a indstria, extirpar toda espcie de monastrio, esses eram osmais notveis empreendimentos do gabinete de Bonn. 1

  • Nessa pequena cidade, as ideias da Aufklrung so acolhidas com benevolncia, e as artes,sobretudo o teatro e a pera, gozam de uma predileo particular. Apesar de um meio familiarpouco propcio, toda a infncia de Beethoven se banhar nessa atmosfera liberal e esclarecida: nela que se fundam essencialmente seus ideais estticos e humanos. Os homens so mais filhosde seu tempo do que de seus pais.

    A famlia, justamente. O av de Beethoven, tambm com o prenome Ludwig, instalou-seem Bonn em 1734, vindo de Flandres. Estudou msica em Mechelen, passou um tempo emLeuven e em Lige antes de ser contratado na corte de Bonn e de casar-se com Maria-JosephaPoll. O nome Beethoven, de uma sonoridade grandiosa e sombria, agora ligado para sempre aalgumas das mais belas pginas de msica jamais escritas, significa simplesmente, emflamengo, campo de beterrabas.

    Acontece que o talento salta uma gerao. Ludwig, o av, um homem notvel,unanimemente respeitado em Bonn. a alma da vida musical da cidade e administra com tatoum pequeno comrcio de vinhos que lhe garante um confortvel suplemento de renda, sendo seucargo de msico na corte pouco lucrativo. Do casamento com Maria-Josepha nascem trs filhos,dos quais s um sobreviver, Johann, pai de Ludwig. Sabemos que o jovem Ludwig ter umagrande afeio pela memria desse av, que morre quando o menino tem apenas trs anos deidade. Wegeler, melhor amigo de Ludwig e seu primeiro bigrafo confivel, escreve:

    A impresso precoce que recebeu dele foi sempre forte em Ludwig, que gostava de falardo av a seus amigos de infncia. [...] Esse av era um homem baixo, robusto, com olhosmuito vivos. Era muito estimado como artista.2

    Quanto a Johann... Poucos pais de grandes homens tm uma reputao to execrvelcomo a desse msico sem talento, desse pai descrito seguidamente como um monstro, pelomenos como um bbado irresponsvel, o que parece verdico. Ele teve a quem puxar: a prpriame de Johann, Maria-Josepha, era uma alcolatra conhecida e morreria num asilo de Colniadepois de violentas crises de delirium tremens. Formado em msica pelo pai, Johann comea avida de modo razovel. Em 1767, apesar da oposio feroz de Ludwig, o velho, ao que ele chamaum casamento desigual, desposa Maria Magdalena Keverich, filha de um cozinheiro-chefe doEleitor de Trier, j viva aos vinte e um anos de um camareiro do mesmo Eleitor, com quemcasara aos dezesseis. O velho Ludwig explode: uma filha de cozinheiro, que vergonha! MasJohann est decidido: uma das raras manifestaes de vontade numa vida que vai se decomporlamentavelmente em bebedeiras nas tavernas. Ludwig recusa-se a assistir s bodas. Depois,como tem bom corao, acaba concedendo ao jovem casal uma bno tardia, at porqueMaria Magdalena uma pessoa estimvel, doce, generosa, paciente e profundamentemelanclica. Outros testemunhos afirmam que ela s vezes podia demonstrar um mau carter ese enfurecer facilmente. Suas palavras em geral so tingidas de amargura. Assim, numa carta sua amiga Cecilia Fischer, ela defende a vida de solteiro, fonte de uma existncia tranquila,agradvel e confortvel, enquanto, a seu ver, o casamento traz poucas alegrias e muitosdissabores.

    Essa ascendncia pouco lisonjeira naturalmente suscitou suspeitas sobre a identidade do paide Beethoven. De ovo ruim, ave ruim, diz um provrbio medieval. Como pode um gnio ternascido de genitores to medocres? Mais tarde, quando Beethoven for clebre, correr o boatode que ele seria filho natural do rei da Prssia, Frederico II, que, como se sabe, adorava msica. de se perguntar que milagre teria feito o rei da Prssia deter-se um dia em Bonn para fecundara doce e modesta Maria Magdalena. Mas assim so as lendas. A tais insinuaes, parece que

  • Beethoven respondeu sempre de maneira evasiva, como que lisonjeado por lhe atriburem umaorigem real, embora o democrata dentro dele chiasse. Alguns meses antes da sua morte, em 7 deoutubro de 1826, ele dirige a seu amigo Wegeler estas linhas no mximo ambguas:

    Voc diz que em certos lugares me tomam como filho natural do falecido rei da Prssia;j me falaram disso h muito tempo. Estabeleci uma regra de nunca escrever nada sobremim, mesmo para responder ao que escrevem a meu respeito.3

    Do casamento de Johann e Maria Magdalena nascero sete filhos. Trs chegaro idadeadulta. Ludwig o segundo filho do casal: o primeiro morreu um ano antes, aos quatro dias devida. Chamava-se igualmente Ludwig. Durante a infncia, teria Beethoven tido a impresso deser o substituto de um irmo morto? Sabemos que distrbios afetivos duradouros tal situaopode ocasionar.

    Os detalhes que evocam sua infncia so raros. A imagem mais constante, corroborada poralguns testemunhos, especialmente do padeiro Fischer, a de um garoto agitado, no muitoasseado, brincando s margens do Reno ou nos jardins do castelo de Bonn com seus irmos, sob avigilncia distrada de alguma criada. Ludwig vai pouco escola: o pai afirma que ele noaprende nada l e tem outras ambies para o filho. Dessa educao imperfeita e lacunar,Ludwig conservar sequelas pela vida inteira: ortografia deficiente, aritmtica limitada, no indomuito alm da capacidade de fazer adies... Ele sabe o suficiente de latim para compreender ostextos sobre os quais ir compor msica, e seu conhecimento do francs progredir ao longo dosanos at se tornar aceitvel, apesar de uma sintaxe vacilante. Mas uma questo permanece:como esse matemtico sofrvel pde adquirir tamanho domnio nessa arte to matemtica que a msica? O poder tcnico e a inspirao de Beethoven, em suas composies, nunca forambarrados pelas exigncias da gramtica musical, nem se submeteram simplesmente aosimperativos das regras clssicas: a vida toda, ele jamais deixou de trabalhar para aprofundar acincia da sua arte, mas sempre fez isso ao sabor de necessidades ditadas por seus projetos.

    H duas geraes os Beethoven vivem de suas atividades musicais. Johann, que aprendeumsica com o pai, completou sua formao de cantor na capela do Eleitor. Msico da corte aosdezesseis anos, seus talentos certamente no se igualam aos do pai, a quem no sucede comomestre de capela, e esse tropeo inicial o encaminha a ser o personagem fracassado que embreve se entregar bebida.

    Desde trs ou quatro anos de idade, Ludwig obrigado por Johann a sentar-se ao tecladopara comear sua aprendizagem. a moda dos meninos prodgios. A celebridade de Mozart,cuja glria juvenil deslumbrou a Europa alguns anos antes, produz rivais. O prprio Johann,quando criana, fora apresentado pelo pai em concertos pblicos, com um xito modesto. Ummenino prodgio numa famlia pode ser a garantia de rendimentos substanciais. E Johann logopercebe no filho mais velho dons fora do comum e uma inclinao arrebatadora para a msica eos instrumentos. Por isso, decide acelerar sua aprendizagem. No sem trat-lo com aspereza.Pois Johann tem a mo pesada, sobretudo quando resolve cuidar do seu menino prodgio aosair da taverna, onde se embriaga com frequncia cada vez maior. Assim a infncia deLudwig, submetido ao fascnio pela msica e brutalidade paterna. Johann no um grandepedagogo, ao contrrio de Leopold Mozart. A bebedeira e a ambio fazem dele um mestre demsica irascvel e impaciente. E a ideia de exibir o filho em pblico no o abandona: chegamesmo a falsificar a data de nascimento de Ludwig, rejuvenescendo-o dois anos. Por muitotempo o compositor viver na certeza de que nasceu em 1772 e no em 1770...

    Johann faz o filho tocar s vezes diante da corte eleitoral de Bonn, onde tem conhecidos

  • apesar de sua m reputao. Depois, em 1778, decide tentar a sorte na grande cidade, Colnia.Resta-nos um documento sobre esse episdio que foi certamente a primeira apario pblica dogaroto:

    Aviso

    Hoje, 26 de maro de 1778, na sala das Academias musicais, na Sternengasse, oHoftenorist da corte do Eleitor de Colnia, Beethoven, ter a honra de apresentardois de seus alunos: a saber, a srta. Averdonc, contralto da corte, e seu filho de seisanos. Eles tero a honra de se apresentar, a primeira com diferentes rias, osegundo com diferentes instrumentos e trios, e ele tem certeza de que o nobrepblico sentir um prazer completo, ainda mais porque ambos j tiveram a honra detocar para a corte, para a maior satisfao desta.4

    Certamente essa apresentao foi um fracasso, pois foi a nica. Johann decide entoconfiar a educao musical de Ludwig a outros, num resqucio de lucidez que lhe permite avaliarsuas insuficincias. assim que, durante alguns meses do ano de 1779, um estranho personagementra na vida do jovem Ludwig.

    Chama-se Tobias Pfeiffer. um msico viajante que percorre a Alemanha propondo seutalento nas cortes ou nas casas de ricos. E talento ele tem de sobra: tocador de cravo, de obo,resolveu ficar em Bonn por um tempo e foi contratado pela orquestra. Esse artista mundano,como que sado diretamente dos contos de Hoffmann, torna-se assim colega de Johann. Os doisficam amigos, a tal ponto que Johann convida Pfeiffer a morar em sua casa: ele encontrou umcompanheiro de taverna, pois Tobias aprecia muito os vinhos do Reno. E tambm percebeu ascapacidades musicais extraordinrias de Ludwig. Competente e hbil pedagogo, passa a ser seuprofessor. Professor pouco acadmico, meio luntico e geralmente bbado tambm, comocomprova este testemunho do violoncelista Murer:

    Pfeiffer [...] passou a dar aulas a Ludwig. Mas no havia horrio fixo para isso;seguidamente, depois de haver bebido uma jarra de vinho com o pai de Beethoven atonze horas ou meia-noite, Pfeiffer voltava com ele para casa, onde Ludwig estava deitadoe dormia; o pai o sacudia com violncia, a criana se levantava chorando, punha-se aoteclado, e Pfeiffer ficava sentado ao lado dele at quase amanhecer, pois reconhecia seutalento extraordinrio.5

    As lies de Pfeiffer duram apenas alguns meses. O msico bomio abandona Bonn edesaparece da vida de Ludwig em 1780, substitudo por outros professores: uma educaoincerta, confusa, estudos rapidamente interrompidos. No entanto, sobre essa base frgil que voser dados os primeiros passos do gnio musical desse garoto taciturno, tmido, brutal, descuidadopara se vestir, a ponto de na escola todos o julgarem rfo de me, e que nunca deixar umaimpresso marcante em seus jovens colegas.

    Um velho organista, Egidius van den Eeden, encarrega-se por um tempo de sua educaomusical, antes de morrer dois anos mais tarde. Depois um primo distante, um certo FranzRovantini, que lhe ensina violino durante alguns meses. Espantosa educao, colhida aqui e ali,to pouco conforme aos costumes pedaggicos em vigor. Porm, quando se pensa no que ocompositor far com esse instrumento em suas sonatas, ou seu sublime Concerto para violino...

    No final de 1781, empreende com a me uma turn de virtuosismo Holanda. inverno, me e filho descem o Reno num frio glacial. A me de Ludwig, segundo uma

  • testemunha, conta que durante a viagem o frio era to intenso que ela precisou aquecer os ps domenino no seu regao para impedi-los de congelar. No total, uma viagem penosa com resultadosincertos. Os holandeses se mostram pouco propensos a abrir suas bolsas para gratificar o jovemprodgio. Sovinas6, dir Ludwig, que sempre se recusar a retornar a esse pas de onde vieramseus antepassados...

    O repertrio musical da corte eleitoral, tanto para os servios religiosos quanto para osconcertos e as peras, rico e variado. A msica religiosa conserva seu carter tradicional ereserva um bom espao a obras j antigas, mas tambm a compositores contemporneos. Abiblioteca contm uma grande coleo de missas de autores do comeo do sculo, como AntonioCaldara e Georg Reutter, e igualmente composies de Joseph Haydn e Johann Albrechtsberger,celebridades vienenses do momento que sero, ambos, professores de Beethoven em Viena. Emmsica instrumental, Bonn, muito bem situada entre a Alemanha, a Frana e a Holanda, recebeda Europa inteira um man musical de qualidade. Os nomes, hoje um pouco esquecidos, deEichner, Holzbauer, Johann Stamitz so familiares ao pblico culto de Bonn, assim como os dosaustracos Dittersdorf, Haydn, Vanhal, e dos franceses Gambini e Gossec. Na pera hrepresentaes, traduzidas em alemo, de obras de Cimarosa ou Salieri, enquanto o teatro dacorte apresenta peas de Molire, Goldoni, Voltaire, Shakespeare, junto com as de Lessing eSchiller.

    Nesse crisol musical e cultural, falta ainda ao talento pouco cultivado do jovem Beethovenum mentor, um guia respeitado que saiba lhe mostrar o caminho. A educao musical decisivaele comea a receber no ano seguinte, em 1782. Tem doze anos de idade. O novo organista dacorte, Christian Gottlieb Neefe, afeioa-se ao rapaz, que logo percebe ser muito promissor.Neefe um msico entusiasta, na falta de ser tecnicamente muito competente, e tambm umhomem culto que saber transmitir a Ludwig um pouco do seu gosto pelas belezas literrias epela poesia. Neefe tem uma teoria original: os fenmenos musicais esto intimamente ligados vida psicolgica e devem tom-la como base. Ele sabe conter a impetuosidade de Ludwig emostrar-se um professor exigente: faz com que ele estude o Cravo bem temperado de Bach, bemcomo as sonatas do filho deste, Carl Philipp Emanuel, escola de rigor e de cincia na arte da fugae do contraponto.

    Neefe tambm chefe de orquestra do teatro da corte e encontra para seu aluno umemprego modesto, mas til: o acompanhamento ao cravo durante os ensaios, o que permite aLudwig familiarizar-se com o repertrio e enriquecer sua cultura musical e teatral. assim queele fica conhecendo as peas de Shakespeare, Otelo, Ricardo III, O rei Lear, junto com as dojovem Schiller e seu Os bandoleiros. Esses dois poetas sero a vida inteira o alfa e o mega dassuas paixes literrias: a Ode alegria, do segundo, que ele escolher para o final da NonaSinfonia.

    Um outro encontro determinante ocorre nesse mesmo ano de 1782, com Franz-GerhardWegeler. Este tem dezessete anos e se dedica medicina, que exercer com brilhantismo:professor na universidade de Bonn aos vinte e cinco anos, decano da faculdade aos vinte e oito,reitor aos trinta. Um esprito superior. E, para Beethoven, o amigo mais constante, o mais fiel aolongo dos anos e que conservar at o final da vida. De Wegeler nos restam preciosostestemunhos sobre Beethoven nas diferentes pocas do seu percurso criador. Wegeler foi oprimeiro a notar o jovem Ludwig, ao avist-lo da janela da casa de um de seus amigos. Talveztenha se compadecido desse rapaz de quem j se diziam maravilhas, sabendo que sofria numafamlia grosseira e brutal. Graas a Wegeler, Ludwig encontrar um segundo lar, onde seus donsexcepcionais se desenvolvero mais harmoniosamente numa atmosfera calorosa e esclarecida.

  • Trata-se da famlia Breuning. o prprio Wegeler quem descreve, talvez idealizando umpouco, os membros dessa casta, desembaraados, evoludos, atrados com paixo pelas coisas doesprito e da arte:

    [A famlia] compunha-se da me, viva do conselheiro ulico eleitoral Von Breuning,de trs filhos homens, mais ou menos da idade de Beethoven, e de uma filha. Ofilho mais jovem recebeu, assim como sua irm, aulas de Beethoven [...] Reinavanessa casa, com toda a vivacidade da juventude, um tom de boa educao semrigidez. Christoph von Breuning escrevia desde cedo pequenas poesias. Stephan vonBreuning o imitou bem mais tarde, no sem sucesso. Os amigos da casa sedistinguiam por uma conversao que unia o til ao agradvel.Acrescente-se a isso que, nesse interior, reinava certa abastana, sobretudo antesda guerra: facilmente se compreender que Beethoven sentiu ali as primeiras ealegres expanses da juventude.

    Ele logo foi tratado como filho da casa; passava ali no s a maior parte do dia,mas muitas vezes a noite. Ali sentia-se livre, movia-se com facilidade. Tudoconcorria para se combinar alegremente com ele e desenvolver seu esprito [...]Sendo cinco anos mais velho do que ele, eu era capaz de observ-lo e de apreci-lo.A sra. Von Breuning, a me, tinha a maior influncia sobre aquele rapaz comfrequncia opinitico e rabugento.7Sentiu o jovem Ludwig, por essa dama acolhedora e jovial, algo alm de uma afeio

    filial? Ele tem doze anos. A aspereza familiar e a violncia do pai o amadureceram. Comea aexperimentar as primeiras emoes do desejo e de uma vida amorosa que permanecer pormuito tempo, e ainda hoje, um dos mistrios da sua existncia. Teria sido Beethoven o perptuoapaixonado por mulheres inacessveis, casadas, j comprometidas, ou insensveis a seusgalanteios por o acharem feio, grosseiro, incmodo? Repetio eterna de um esquema originalmarcado pela proibio? Trata-se de uma hiptese. A sndrome de repetio uma figuracorrente da vida psquica. Seriam escolhas deliberadamente impossveis e fadadas ao fracasso, afim de resguardar sua liberdade de criador e seu modo de viver um tanto desordenado?Idealizao do outro sexo para mascarar, pela no realizao, pulses homossexuais entoinconfessveis? Nada comprova isso inteiramente, nem os documentos, nem o que sabemos dasua vida.

    Seja como for, Ludwig recebe lies de Neefe, que faz dele seu assistente privilegiado eencoraja suas primeiras tentativas como compositor. assim que no comeo de 1783 aparece aprimeira obra musical conhecida do compositor: nove variaes para cravo em d menor, sobreuma marcha de Dessler, variaes s quais Neefe no deixa de dar uma eloquente publicidade,ressaltando na Revista de msica de Cramer que esse jovem gnio merece ser sustentado epoder viajar. Ele certamente se tornar um segundo Wolfgang Amadeus Mozart, se continuarcomo comeou.8 A obra, verdade, se ainda tem algo de exerccio de escola, no carece depersonalidade e tampouco de uma fora real num rapaz de doze anos. Sua execuo requer umadestreza que deixa adivinhar, j nessa idade, o nvel atingido por Beethoven ao cravo.

    No outono do mesmo ano aparecem trs sonatas para cravo, dedicadas ao Eleitor de Bonn,Maximiliano Frederico, acompanhadas de uma carta Sua Alteza Serenssima, da qual presume-se que Beethoven no seja o nico autor, pelo que h de obsequioso e grandiloquente no estilo:Minha musa o quis, obedeci e escrevi. Ser que posso agora, Alteza Serenssima, me atrever adepositar as primcias dos meus jovens trabalhos nos degraus do seu trono?.9

  • Johann mergulha cada vez mais no alcoolismo. Sua voz, diz um relatrio administrativosobre os msicos da corte, se perde completamente. Neefe, sobrecarregado de trabalho, temnecessidade de um auxiliar. Em fevereiro de 1784, Ludwig faz um pedido a MaximilianoFrederico para ser organista adjunto, remunerado, pois exerce por ora suas funes sem serpago. A tentativa intil, o Eleitor nem sequer responde. Mas algumas semanas mais tarde, emabril, este acaba morrendo.

    Seu substituto o arquiduque Maximiliano Francisco de Habsburgo, irmo do imperadorJos II. um jovem gordo, de 28 anos. Sua gula j lendria e ele se tornar monstruosamenteobeso. As opinies divergem sobre as qualidades dessa figura. Uma carta de Mozart o apresentasob uma luz das mais contraditrias: brilhante na juventude, Maximiliano Francisco teria viradoum asno ao se tornar padre (pois o Eleitor cumpre tambm funes eclesisticas), a estupidez,escreve Mozart, lhe saindo literalmente pelos olhos, o pescoo inchado, e falando sem pararcom uma voz de falsete.10 Na verdade, um liberal aberto s ideias das Luzes e um amante demsica. Apaixonado pela cincia, manda instalar em Bonn uma biblioteca pblica e um jardimbotnico. Toca viola. Pensou at em propor a Mozart, a quem visitava em Viena, o posto demestre de capela, projeto que no se realizou talvez porque Mozart no quisesse se enterrar numacidade de provncia.

    A situao de Beethoven no tarda a evoluir favoravelmente: em junho nomeadoorganista suplente, com a soma de 150 florins por ano, enquanto de Johann so retirados 15florins por conta do seu tratamento. Agora cabe a Ludwig assumir os encargos da famlia, nolugar de um pai pernicioso.

  • Um jovem na corte

    Ele leva a vida de um jovem msico de corte. Tem catorze anos. A dupla tendncia do seucarter se afirma: alegre, sente um imenso jbilo de existir, gosta de tocar msica, dos ditoschistosos, da liberdade; mas tambm da solido, dos longos momentos de meditao e dedevaneio melanclico, disposies acentuadas pelo peso da atmosfera familiar. Com frequncia visto janela, contemplando o Reno, perdido em pensamentos. Quanto s lies que lhesolicitam a dar, elas o aborrecem profundamente e ele se furta o mximo que pode, inventandotodos os pretextos. Mal consente em cumprir seu papel de professor junto aos filhos da sra. VonBreuning, a quem deve tanto. O desejo de compor o atormenta. Entre criar e ensinar, no temdvida da escolha, a no ser quando os alunos so jovens pessoas encantadoras pelas quais,durante toda a juventude e mesmo na idade adulta, ele haver de se apaixonar regularmente,quase sempre sem esperana.

    Em 1784 ele compe um concerto para piano conhecido sob a estranha denominao deConcerto no 0, pequena pea graciosa bem ao gosto de Haydn e Mozart, os modelos cannicosda poca, mas ainda longe dos procedimentos de composio dos ilustres modelos: trsmovimentos, com um rond final muito arrojado de melodia arrebatadora. No ano seguinteexercita-se em quartetos com piano, trs obras jamais publicadas em vida mas que j contmideias fortes: assim reencontraremos um tema do primeiro quarteto no rond final da Sonatapattica op. 13, treze anos mais tarde! As lies de Neefe produziram resultados. Mas as relaesentre mestre e aluno atravessam algumas turbulncias, pois, para poder pagar a Ludwig 150florins anuais, o Eleitor nada encontrou de melhor do que diminuir o salrio de Neefe, que serrestabelecido no ano seguinte, em 1785. Essa situao intolervel do artista de corte, que dependeda boa vontade dos senhores, no ser uma lio perdida: Beethoven passar sua vida a combat-la.

    Mas Neefe vai se apagando aos poucos. Outros mestres e de que estatura! logo tomaroseu lugar.

    Por volta dessa poca, um novo anjo da guarda entra na vida de Ludwig: um jovem de 21anos, amigo ntimo do eleitor Maximiliano Francisco dizem mesmo seu favorito... Chama-seFerdinand, conde Waldstein-Wartenberg. Bom pianista, que conhece Mozart e Haydn em Viena,Waldstein rico e generoso. Conhece o jovem Ludwig na casa dos Breuning, que recebem a finaflor da sociedade. Em que momento? No se sabe ao certo. Waldstein juntou-se ao Eleitor emBonn aps uma carreira militar abortada. Apaixonado por msica, ele seduzido pelos talentosde pianista do jovem Ludwig, a quem ouve tocar nos concertos privados e na corte.

    De que natureza so esses talentos? Essencialmente a improvisao: trata-se de uma prticacorrente entre os msicos na qual, dizem, o grande Johann Sebastian Bach se destacava em altograu, ao rgo e ao cravo. A partir de um motivo, de uma melodia, de uma trama musical, ointrprete d livre curso sua habilidade, sua inventividade. E Ludwig est se tornando ummestre nesse jogo. Em alguns anos conquistar os sales vienenses graas a seus talentos deimprovisador mpar, a exemplo de alguns gigantes do jazz do sculo XX.

    Mas, por ora, sua preocupao principal sustentar a famlia. Suas primeiras composiesno entusiasmaram o pequeno mundo musical de Bonn. Alis, Neefe no se mexeu para public-las (seus trs primeiros quartetos s sero publicados em 1832, aps sua morte) e certamente lherenderam pouco. Mas sua reputao de pianista j slida em Bonn: vem gente at mesmo decidades vizinhas para escut-lo. Seu pai, Johann, organiza sempre que pode concertos em casa etraz outros msicos para acompanhar o filho. O pequeno grupo de admiradores que protegem otalento de Ludwig, entre os quais o conde Waldstein, compreende que preciso faz-lo ser

  • conhecido em Viena e completar sua educao musical. Beethoven quer muito ir para l. Naprimavera de 1787, uma permisso lhe dada na forma de licena de trabalho. provavelmenteWaldstein quem financia essa viagem durante a qual Ludwig vai conhecer Mozart.

    H poucos detalhes sobre essa temporada vienense de abril de 1787, curta e por certodecepcionante. Viena a capital do Imprio e o centro mais importante da msica europeia,mesmo no sendo o nico: tambm em Londres e em Paris a vida musical rica. Mas Viena... EJos II um imperador melmano. Nesse final do sculo XVIII, a cidade conta com duzentosmil habitantes. Exibe a beleza barroca de seus monumentos, o esplendor elegante de seus jardins,a suntuosidade de seus palcios, seduo imediata que deslumbra quem no se d o trabalho depenetrar mais fundo. O imperador Jos II, a quem sugeriam autorizar a abertura de prostbulos,respondia que seria preciso construir um telhado que cobrisse a cidade inteira... Mas ali que preciso estar quando se quer seguir uma carreira artstica e ter o apoio de ricos mecenas.

    Ludwig chega a Viena por volta de 10 de abril, aps uma viagem de duas semanas. Ondese abriga? Provavelmente fora recomendado a amigos do conde Waldstein. De que maneiraconhece Mozart, seu dolo, o homem cujo exemplo embalou sua infncia? Aqui a lenda queprevalece, sem levar muito em conta os fatos: Beethoven teria se encontrado com o imperadorJos (no entanto ausente de Viena nesse momento) e sobretudo com Mozart. O perodo certamente mal escolhido, pois Mozart est compondo Don Giovanni e sabe que seu pai estmuito doente, circunstncia pouco propcia para dar lies a um jovem desconhecido. Otto Jahn,um dos bigrafos de Mozart, conta a cena:

    Beethoven foi levado casa de Mozart e, a seu pedido, lhe tocou algo que Mozart, julgandoser uma pea de virtuosismo preparada para a ocasio, aprovou bastante friamente. Tendopercebido isso, Beethoven pediu a Mozart para lhe dar um tema sobre o qual improvisar.Como tinha o hbito de tocar admiravelmente quando tinha essa disposio, e estimuladopela presena do mestre por quem tinha um respeito to grande, ele tocou de tal maneiraque Mozart, cuja ateno e o interesse aumentavam, acabou por se dirigir pea vizinhaonde estavam alguns amigos e lhes disse: Prestem ateno nesse rapaz, um dia seu nomeser reconhecido mundialmente.1

    Episdio dos mais duvidosos, na certa floreado, talvez apcrifo, assim como,provavelmente, a lenda das lies dadas por Mozart a Ludwig, que se reduziram a algunsconselhos. Teria pelo menos Beethoven ouvido Mozart tocar piano? Ele se queixou que no. Omundo ainda no desconfia do seu gnio.

    Nessa primeira temporada em Viena, de onde trar somente dvidas e que dura apenasduas ou trs semanas, Ludwig recebe notcias alarmantes: sua me est passando muito mal.Com a morte na alma, ele volta a Bonn, passando por Augsburg, onde conhece Johann AndreasStein, clebre fabricante de pianos, que est trabalhando na inveno do instrumento moderno.

    O retorno a Bonn, seja qual for a data (final de abril? final de junho?), triste. A me,Maria Magdalena, morre em 17 de julho, de tuberculose. Essa morte o deixa devastado,angustiado, dominado por sentimentos contraditrios, como atesta esta carta de 15 de setembroenviada ao dr. Schaden, de Augsburg, que lhe emprestou dinheiro para seu regresso, dinheiro queele ainda no pode devolver:

    Devo lhe confessar que, desde minha partida de Augsburg, minha alegria e minha sadecomearam a piorar; medida que me aproximava de minha cidade natal, recebia cartasdo meu pai me aconselhando a viajar mais depressa, pois minha me no se achava num

  • estado de sade favorvel; assim me apressei o quanto pude, embora estando eu mesmoindisposto; o desejo de poder ainda uma vez rever minha me afastou os obstculos e meajudou a superar as maiores dificuldades. Ainda encontrei minha me, mas num pssimoestado de sade; ela estava com tuberculose e por fim morreu, h cerca de sete semanas,aps ter suportado muitas dores e muitos sofrimentos. Ela foi para mim uma me to boa,to amvel, minha melhor amiga. Ah, como eu era feliz quando ainda podia pronunciar odoce nome de minha me! [...] Depois do meu retorno para c, tive somente poucas horasagradveis; o tempo todo sinto falta de ar e receio que possa ser um sinal de tuberculose; aisso se acrescenta a melancolia, que para mim um mal quase to grande quanto minhaprpria doena [...].2

    Carta essencial, que traduz uma perturbao profunda e nos revela sobretudo a angstia queacompanhar Beethoven ao longo de toda a vida: a doena, aquela da qual sua me acaba demorrer. Testemunhos confirmam essa obsesso, a mania de examinar os escarros para nelesreconhecer vestgios de sangue, o pnico de uma morte por asfixia. Mais tarde outras fobias semanifestaro, inclusive o temor de ser envenenado por uma mulher, o que no o sinal de umarelao muito tranquila com o mundo feminino...

    No vigor dos seus dezoito anos, Ludwig se esfora, porm, em assumir corajosamente onovo encargo de chefe de famlia, pois Johann incapaz de reagir viuvez a no serembriagando-se cada vez com mais frequncia. Uma irmzinha de um ano de vida, portantonascida quando Maria Magdalena j estava muito doente, morre em novembro. A essa novatristeza soma-se o calvrio da vergonha: Ludwig seguidamente obrigado a intervir junto sautoridades para impedir que o pai seja preso. Seus dois irmos, ainda jovens e de cartermedocre, no podem ajud-lo nessa via-crcis familiar, e Ludwig quem se torna o tutor dessepai que despreza, que ama, a quem ainda est submetido, mas agora por uma outra violncia queno a das surras. Johann , ao mesmo tempo, vtima e carrasco dele mesmo e dos familiares.Seu estado lastimvel se transforma numa chantagem psicolgica odiosa, que explora a culpa epratica a tortura mental, ora ameaadora, ora lamurienta, pondo todo o seu peso morto, comoAnquises, sobre os ombros do filho mais velho. Com certeza ele no o primeiro pai que, porperversidade ou cime inconsciente, busca estragar a vida do filho e bloquear seu futuro, masnele, impulsionado pelo alcoolismo, isso adquire propores delirantes. A tal ponto que Ludwig,aps dois anos desse regime que o impede inteiramente de prosseguir seus trabalhos decomposio, empreende uma ao junto ao Eleitor, primeiro passo para sua emancipao: elepede Sua Alteza Serenssima para que os direitos do pai lhe sejam transferidos. O pedido aceito, o decreto assinado, mas Ludwig no levar a ao at o fim: cedendo s splicas do pai,o filho avalia o que representaria simbolicamente essa destituio. Um resqucio de afeio, outalvez uma violenta crise de autoridade paterna misturada com choradeira, o convence a protelara ao. Alm disso, parece que Johann furtou o decreto do filho e que Ludwig s veio a saberdisso mais tarde, aps a morte do pai, quando quis concretizar sua ao. Seja como for, pai efilho chegam a um acordo: Johann entregar a Ludwig, a cada trimestre, os 25 tleres do seusalrio.

    A crise desse fim de ano de 1789 acaba sendo fecunda: Ludwig recomea a compor. J noincio de 1790 nascem obras mais que promissoras: ciclos de variaes para piano, um trio parapiano, alguns lieder... E uma msica de bal, primeira obra orquestral conhecida comoRitterballet ou Bal cavalheiresco, encomendada pelo conde Waldstein, que se atribuir apaternidade da obra ao ser executada em Bonn, em maro de 1791. A amizade dos prncipes svezes acompanhada de algumas indelicadezas.

  • Mas a obra mais marcante desse perodo a famosa Cantata sobre a morte de Jos II. Oimperador msico havia falecido em 20 de fevereiro de 1790. Beethoven no tarda a responder encomenda que lhe dirige a corte eleitoral: compe febrilmente essa cantata a ser apresentadaem Bonn durante uma cerimnia fnebre, em 19 de maro seguinte. Mas a obra nunca serexecutada. Difcil demais de interpretar? Impossvel de ensaiar num prazo to curto? Ser precisoesperar cerca de um sculo, 1884, para ouvir sua primeira execuo em Viena. Uma outracantata, desta vez celebrando o advento de Leopoldo II, conhece a mesma sorte.

    Humilhaes? Decepo? Isso no atinge em nada a reputao de Beethoven o caro ebom Beethoven, assim que o chamam como virtuose do piano. No pequeno meio musical deBonn, o jovem j a figura mais em evidncia. Tem vinte anos. Tarde demais para ser o novoMozart: s lhe resta ser ele mesmo.

    Dedica-se a isso com afinco, buscando preencher as lacunas da sua instruo ao mesmotempo em que tenta alguns tmidos namoros. Est matriculado na faculdade de Letras para teraulas de literatura. Seu professor, Euloge Schneider, um esprito ardoroso que assumirabertamente a defesa da Revoluo Francesa antes de morrer guilhotinado, em 1794. Pornatureza, e tambm por causa dos seus encargos, Beethoven mostra-se pouco assduo s aulas. em essncia um autodidata. Mas l com avidez e as ideias novas lhe so familiares. A influnciade Neefe, franco-maom, livre-pensador, marcou sua adolescncia: alis, Neefe pertence aoramo mais radical da franco-maonaria, ao dos Iluminados da Baviera, dissolvido em Bonn em1784 aps sua proibio na Baviera e substitudo por uma Sociedade de Leitura(Lesegesellschaft) que conta com uma centena de membros. Essa sociedade nada tem a ver comum grupo de contestao; dela faz parte a fina flor da aristocracia, como o conde Waldstein eamigos prximos de Beethoven. Mas as ideias defendidas por esses Iluminados (que no se deveconfundir com os Iluministas, adeptos do esoterismo) continuam as mesmas: progressismo,fraternidade, religio do homem, f na razo e um anticlericalismo que deixar traos emBeethoven. Oriundo de uma famlia catlica praticante, sua religio ntima se voltar mais parauma espiritualidade dominada pela figura de um Cristo muito humano do que para uma estritaobservncia dos dogmas.

    Aos vinte anos, Ludwig van Beethoven um revolucionrio em esprito, embora no ematos, pois o homem da corte ainda dcil. Ele se deixa impregnar pelas ideias do seu tempo,recebe os ecos dos acontecimentos que se desenrolam na Frana. E l tudo que lhe cai nas mos:literatura alem, Goethe e Schiller, autores gregos e latinos, tratados esotricos sobre a teologia eas cincias. Quanto filosofia, em particular a de Immanuel Kant, que domina nessa poca aconscincia intelectual alem, ter acesso a ela sobretudo atravs da divulgao. O mesmoaconteceu na Frana, aps a Segunda Guerra Mundial, quando as pessoas se diziamexistencialistas sem terem lido uma linha de Sartre. Do imperativo categrico de Kant ele retmesta frase: Age de tal modo que a mxima da tua ao possa ser erigida como lei universal.3Ou ainda: Duas coisas enchem o corao de uma admirao e de uma venerao sempre novae sempre crescente, medida que a reflexo a elas se dedica e se aplica: o cu estrelado acimade mim e a lei moral dentro de mim.4 A lei moral... Segundo Kant, o homem s homemquando livre e, por essa razo, no tem necessidade de temer um ser superior a ele, um deus,para conhecer seu dever. Virtude, moral livremente escolhida, confiana na sabedoria doprncipe, contanto que ele seja bom e justo: tal o credo do jovem Beethoven. No que se refereaos prncipes, o mnimo que se pode dizer que haver uma sensvel evoluo ao longo da vida.Uma coisa certa: como muitos dos seus compatriotas, ele fascinado pela Revoluo Francesa.E por um ideal de virtude, no sentido romano do termo, que ser a base fundadora da sua atitudecomo homem e como artista.

  • Seria esse amor virtude que o bloqueava um pouco nas suas relaes femininas? Suatimidez brutal? Seu fsico pouco atraente para as moas? O jovem Beethoven inegavelmenteatrado pelo belo sexo, mas sem conseguir vencer suas inibies. Um exemplo o testemunho deum certo Nikolaus Simrock, msico em Bonn, que conta que em 1791, num restaurante, osmsicos incitaram a atendente, uma loira muito apetitosa, a mostrar seus encantos diante deBeethoven. Este acolheu as provocaes com frieza e, como ela insistisse, encorajada pelosoutros, perdeu a pacincia e ps fim a suas sedues com uma bofetada.5

    Ele vive paixes violentas, em geral breves. A obra Os sofrimentos do jovem Werther , deGoethe, imenso sucesso da poca do Sturm und Drang, continua a incendiar coraes e Ludwig,no fundo, um casto. Ele tem namoricos, sucessivamente, com Jeannette von Honrath, amiga dafamlia Breuning, uma bela loira jovial, diz Wegeler, de maneiras amveis e carterafetuoso6, infelizmente comprometida com um militar que acabar por desposar; com Maria-Anna von Westerholt, sua aluna; com Barbara Koch, o ideal de uma mulher realizada 7,comenta o amigo Wegeler, filha da proprietria de uma hospedagem onde se rene a fina flor dasociedade de Bonn e que se tornar, por seu casamento, a condessa Belderbush, sem nunca terrespondido s cartas inflamadas do jovem msico. Enfim, Ludwig sente tambm uma ternainclinao por Eleonore von Breuning, a filha da sua segunda famlia, que mais tarde se casarcom o brilhante Wegeler. Mas sempre, e at o final da vida, a imagem de Eleonore, da suaLorchen, lhe habitar a memria. Tmidas trocas de cartas entre eles no deixam dvidaalguma sobre seus sentimentos profundos, sobretudo seus votos na entrada do ano de 1791: Sejato feliz quanto amada8, escreve Ludwig. , possa a tua felicidade se igualar inteiramente minha, responde Lorchen. Mas parece que os sentimentos de ambos no eram da mesmanatureza. Para o aniversrio de Ludwig, Lorchen escreveu: Desejo tua simpatia. A ti, minhaconsiderao Indulgncia e pacincia.9

    Indulgncia e pacincia... No exatamente o sinal de um amor ardente, e sim de umaamizade profunda. Muito tempo depois, em 1826, Beethoven escrever a Wegeler estas linhasmelanclicas: Tenho ainda comigo o retrato em perfil da tua Lorchen; digo isso para que vejaso quanto me caro todo o amor e a felicidade da minha juventude.10

    Esses amores frustrados, apenas esboados, no so um acaso: no fundo da alma ardentede Ludwig h um nico apelo, um desejo profundo, imperioso: alcanar a grandeza, lavar asdores da infncia, elevar-se o mais alto que puder. E h um nico meio para chegar a isso: amsica.

  • Papai Haydn

    Ludwig est ao piano. Sua reputao de virtuose instrumentista j est bem estabelecida emBonn. Ele tem uma tcnica poderosa mas, diz Wegeler, desigual e dura.1 O que lhe falta? Asnuances, uma certa delicadeza... Nunca saberemos com certeza como realmente ele tocavapiano. O instrumento sempre foi o companheiro do seu pensamento musical, das invenes, dasconstrues prodigiosas que vo se elaborar no seu esprito. Quanto s suas performancespiansticas, certamente no se parecem em nada s de Schumann, Chopin, Liszt, esses mestres dopiano que, ao longo do sculo XIX, levaro o instrumento ao mximo de suas possibilidadestcnicas. Beethoven contemporneo do nascimento e dos primeiros passos do piano moderno.Ele conheceu o cravo, depois o pianoforte, de som ainda spero, vagamente desafinado, digam oque disserem os puristas, os esnobes, os defensores de uma autenticidade musicalimaginria: com frequncia Beethoven se queixou de que o instrumento com o qual sonhava, epara o qual compunha, ainda no existia!

    Seja como for, no comeo dos anos 1790, a tcnica pianstica de Ludwig ainda precisa seraperfeioada. Em setembro e outubro de 1791, a grande viagem do Eleitor a Mergentheim, daqual ele participa, lhe permitir comparar seu jovem talento ao de Sterkel, pianista mais sutil,mestre de capela do Eleitor de Mainz.

    Sterkel tocava com muita delicadeza, de um modo extremamente agradvel e, segundo aexpresso de Ries, o pai, um pouco feminino. Beethoven manteve-se perto dele com omais concentrado dos semblantes. Em seguida foi convidado a tocar; ele o fez, emboraSterkel [...] duvidasse que o mesmo compositor das variaes fosse capaz de toc-las comfluidez. Mas Beethoven tocou no apenas essas variaes, mas tambm uma srie deoutras que no eram menos difceis. Para grande surpresa dos seus ouvintes, tocou-asexatamente da mesma maneira leve e agradvel que o impressionara em Sterkel.Tamanha era a sua facilidade de modificar a tcnica com base na de um outro.2

    A Europa est em ebulio. O imperador Leopoldo II, morto em 1o de maro de 1792, substitudo pelo conservador Francisco I da ustria, cujo reinado se estender at a morte deBeethoven e mais alm. Antirrevolucionrio feroz, hostil s ideias novas, ao contrrio do seu tioJos II e do seu pai Leopoldo II, Francisco I da ustria levar o pas catstrofe e humilhaofrente aos exrcitos revolucionrios franceses e depois napolenicos, at que o congresso deViena, em 1814, lhe permita tirar sua desforra, com a ajuda inspirada do seu fiel Metternich.

    Em abril de 1792, a Frana, atravs da sua Assembleia Legislativa, declara guerra ao rei daBomia e da Hungria, o imperador Francisco. No ms de agosto, o rei Lus XVI destitudo. Em20 de setembro, na batalha de Valmy, o exrcito esfarrapado dos sans-culottes pe em xeque osprussianos e, em novembro, os austracos so expulsos da Blgica, em Jemmapes, pelos soldadosdo general Dumouriez. A Frana revolucionria, agora o farol da liberdade na Europa, pelomenos em suas intenes proclamadas, ambiciona derrubar as monarquias, vencer as tiranias:um vasto projeto.

    Esses acontecimentos devem ter entusiasmado o lado revolucionrio de Ludwig. Mas omais importante para ele, no vero de 1789, foi o encontro com Joseph Haydn.

    Papai Haydn, como era afetuosamente chamado por Mozart, morto seis meses antes,est de passagem por Bonn. Aos sessenta anos, esse homem sem graa, de uma presenamodesta, de uma bondade tingida de f ardente, est enfim livre, em funo da morte doprncipe Nicolau em 1790, da tutela dos prncipes Esterhzy junto aos quais serviu durante maisde trs dcadas. Por certo sua espiritualidade luminosa lhe permitiu resistir s presses de um

  • trabalho esmagador e s decepes de um casamento, pois ele sempre preferiu a companhia dairm... Foi no castelo Esterhzy, na Hungria, que esse gnio discreto mas fecundo comps amaior parte da sua imensa obra, pressionado pela constante necessidade de fornecer partituras orquestra e ao teatro do prncipe, bem como peas musicais de cmara: trios, quartetos, sonataspara piano, inmeros lieder... Esse frenesi criador imposto, e realizado com uma bondade e umaintegridade unanimemente louvadas, fez dele um mestre. O nico mestre incontestvelremanescente em Viena aps a morte de Mozart. E, se ele reconheceu no seu jovem amigoWolfgang o maior msico que a terra j produziu3, sua prpria obra contm fabulosos tesourose marca uma etapa essencial na histria dos gneros musicais a sinfonia, o quarteto e a sonata,em particular. Muitos pianistas, e alguns melmanos entendidos, afirmam inclusive que suassonatas para piano so mais interessantes do que as de Mozart, mais inventivas, mais misteriosas.Ele o mestre absoluto do quarteto de cordas. Quanto s suas sinfonias, elas encantam pelagraa, surpreendem pela riqueza e pela complexidade na explorao da orquestra, como afamosa srie das sinfonias londrinas.

    Foi a Londres, justamente, que Haydn se dirigiu no final de 1790, a convite de umempresrio chamado Johann Peter Salomon, natural de Bonn. Ele passou por esta cidade, ondetalvez tenha cruzado com Beethoven pela primeira vez. Ludwig teria lhe mostrado uma de suascomposies, certamente a famosa Cantata a Jos II. Ou teria sido ao retornar de Londres, ondeHay dn conheceu, durante mais de um ano, uma temporada triunfal como uma primeiraapoteose aps uma longa vida de servido? Em todo caso, o velho mestre fica impressionadocom as qualidades da escrita musical desse quase desconhecido. verdade que Haydnreconhece alguns erros nos primeiros trabalhos do jovem Ludwig, mas tambm suficientepersonalidade e grande potencial para aceitar lhe dar lies, a pedido do Eleitor.

    Em 1o de novembro de 1792, Beethoven parte para Viena. Tem 22 anos, mas continuaachando ter apenas vinte. Deixa para trs um pai combalido, dois irmos com o futuro incerto,uma juventude difcil, marcada pela violncia paterna, mas tambm iluminada por belosencontros. Em Bonn se enraizaram seu amor eterno pela msica, sua vocao, suas primeiraspaixes, seu carter melanclico e entusiasta, voluntarioso e sonhador. Diante do majestosoReno, nessa natureza amvel e poderosa, ele descobriu o sentimento profundo da realidade domundo e de suas foras telricas, concebeu o desejo de ser amado por sua msica, de tornar-seatravs do trabalho, da virtude, da doao de si a seus semelhantes, aquilo que o pai no soubeser: um grande artista. Os telhados de Bonn se distanciam na bruma. Ele no sabe que nuncamais retornar sua cidade natal. Mesmo no momento da morte do pai, que falece em 18 dedezembro de 1792, provavelmente de uma crise cardaca. Beethoven no podia ignorar, aopartir, que Johann vivia seus ltimos dias. Teria precipitado sua partida para no v-lo morrer?Agora ele est sozinho consigo mesmo, sem o superego violento, lamuriento, pouco admirvelque foi seu pai, esse pobre infeliz que com seus destroos foi um fardo para seus ombros durantevinte anos.

    Receba das mos de Haydn o esprito de Mozart, teria lhe escrito o conde Waldstein nomomento da sua partida, num lbum que reunia as despedidas dos amigos. A frase talvezdemasiado bela para ser autntica, at porque muitos documentos foram falsificados aps amorte de Beethoven, especialmente por seu zeloso hagigrafo Schindler, de quem falaremos nomomento oportuno, com toda a benevolncia que merecem suas ms aes. Pensa Beethovenem Lorchen durante a longa viagem a Viena? Parece que eles se deixaram com algumressentimento sabemos disso por uma carta que Ludwig dirige jovem ao chegar em Viena,na qual pede para ser perdoado. Quanto a Lorchen, ela nunca exprimiu outra coisa em relao aLudwig seno uma amizade profunda. Que a amizade, com o bem, cresa como a sombra do

  • entardecer, at se extinguir o sol da vida.4 Ela traou esses versos de Herder no lbum dedespedidas.

    Eis Beethoven em Viena, e pelo resto da vida o que ele est longe de imaginar, pois pensaem retornar a Bonn uma vez terminados seus estudos. Cidade suntuosa e encantadora, de fato mas tambm odiosa, infestada de espies e delatores a servio do imperador, em breve a capitalda valsa e do kitsch enjoativo. Da psicanlise igualmente, o que no um acaso: o inconscientevienense oferece anlise uma mina inesgotvel de recalques. Em Viena teme-se acontaminao das ideias revolucionrias vindas da Frana e que se propagam por toda a Europa.Por que a msica encontra ali um lugar de predileo? Porque julgada inofensiva. Os outrosmeios de expresso, a filosofia, a literatura, esses refgios de sedio, no so bem-vindos. At oimperador Jos II, vido por fundar uma academia em Viena, ficou chocado com a frivolidadede uma populao que fez pouco-caso do Don Giovanni de Mozart, antes de deixar o compositormorrer na misria.

    A notcia do falecimento do pai no surpreende Ludwig. Johann j estava morto haviamuito tempo no seu corao... O discurso fnebre do Eleitor pelo ex-cantor dispensacomentrios: Beethoven est morto; uma grande perda para o imposto sobre as bebidas.5 Osalrio de Johann, transferido a Ludwig, continua a ser pago pelo Eleitor para o sustento dos doisirmos, que podem assim suprir suas necessidades sem a presena dele. Uma volta a Bonn estdescartada. Munido de cartas de recomendao de Waldstein e do Eleitor, Ludwig se apresentaao baro Nikolaus Zmeskall von Domanovecs, secretrio ulico na chancelaria real da Hungria.Esse primeiro contato conveniente: Zmeskall se revelar para Ludwig um amigo precioso econstante ao longo de toda a vida, o mais fiel que ele ter em Viena e o mais generoso, que nolhe nega seu tempo, seu dinheiro nem todas as relaes que tem na capital. H sinais que nomentem: o mal-humorado Beethoven nunca se desentender com ele, pelo menos no mais doque por algumas horas!

    com Zmeskall que ele vai casa de Hay dn. As lies com o velho mestre comeam emseguida. Bastante descontradas na forma, a julgar pelos cadernos de anotaes de Ludwig, elasem geral terminam com um caf, pois papai Hay dn um grande apreciador de chocolatequente. Porm, no fundo, no parece ter havido muita afeio nem cumplicidade artstica entreessas duas personalidades to distintas. Beethoven afirmar inicialmente nada ter aprendido comHay dn; bem mais tarde reconhecer que teria cometido muitas extravagncias sem os bonsconselhos do papai Haydn e de Albrechtsberger, seu outro professor em Viena. A verdade que h em Beethoven algo de sombrio, de imperioso, de estranho mesmo, que inquieta a naturezaclara de Joseph Haydn. Beethoven, diz o flautista Drouet, que testemunhou a cena e nos relata odilogo a seguir, mostrou a Hay dn suas primeiras composies:

    Voc tem muito talento diz Haydn e vai adquirir ainda mais, muito mais. Tem umaabundncia inesgotvel de inspirao, mas... quer que eu lhe diga francamente?

    Com certeza, pois vim para ouvir sua opinio resmunga Beethoven. Pois bem, voc far mais do que fez at agora, ter pensamentos que ningum ainda

    teve, nunca sacrificar (e far muito bem) um belo pensamento a uma regra tirnica, massacrificar as regras s suas fantasias; pois voc me d a impresso de um homem de vriascabeas, de vrios coraes, de vrias almas e... Mas receio aborrec-lo.

    O senhor me aborrecer se no terminar. Pois bem, j que insiste, digo que na minha opinio sempre haver nas suas obras algo de

    inslito e de inesperado, de inabitual, certamente em meio a coisas belas, coisas inclusiveadmirveis, mas aqui e ali haver algo de estranho e sombrio, porque voc mesmo um pouco

  • estranho e sombrio; e o estilo do msico sempre o homem. Observe as minhas composies.Nelas encontrar com frequncia algo de jovial, pois eu mesmo sou assim. Encontrar sempreum pensamento alegre ao lado de um pensamento srio, como nas tragdias de Shakespeare...Pois bem, nada pde destruir em mim essa serenidade natural, nem mesmo meu casamentonem minha mulher!6

    Mas as lies de Joseph Haydn decepcionam Beethoven. Hay dn envelhece, atinge enfimuma glria pblica universal, pelo menos europeia. Pensa numa segunda viagem a Londres. Eno acha muito divertido dar lies, mesmo a um futuro gnio. Alis, ele no se sente vontadecom esse Beethoven, decididamente antiptico. Prescreve-lhe exerccios de contraponto, deharmonia, de baixo contnuo, matrias nas quais Beethoven j se julga experiente graas aoensino de Neefe. Haydn corrige com distrao seus exerccios: h umas quarenta anotaesfeitas por ele nos cerca de 250 exerccios que Ludwig lhe confia. O que este busca junto aHay dn? Ser armado cavaleiro por um mestre? Os conselhos de um veterano? Talvez algunssegredos de composio?... Hay dn considera esse jovem impaciente com uma indulgnciamesclada de humor. Chama-o, por causa do seu carter e da sua tez mais escura, o Gro-Mogol. Sempre ter por ele uma considerao afetuosa, inquietando-se com os progressos desua carreira. Mas no h entre os dois a alquimia preciosa, misteriosa, da amizade. PressentiriaHay dn que seu aluno lanaria a msica em territrios desconhecidos, quebrando o equilbrioclssico do qual ele o representante mais acabado desde a morte de Mozart?

    Abandonando esse mestre evasivo, Beethoven escolhe um outro mentor, Jean-BaptisteSchenk. Este, autor de O barbeiro da aldeia, um reconhecido especialista do contraponto, essefundamento da msica ocidental que consiste, segundo complexas combinaes, em compor doismotivos musicais diferentes mas tocados ao mesmo tempo e numa perfeita harmonia. Schenk vaivisitar Beethoven, de quem lhe enalteceram o grande talento. O quarto do jovem msico mostrauma desordem pouco atraente. H restos de comida sobre as partituras abertas em cima da mesae no piano, roupas de uma limpeza duvidosa espalhadas no cho. Ser sempre assim,testemunham os visitantes, nas vrias moradas que Beethoven ocupa em Viena durante cerca dequarenta anos. Bem-humorado nesse dia, Beethoven mostra a Schenk alguns exerccios decontraponto. primeira vista, o mestre percebe alguns erros. Beethoven se queixa de Hay dn, emquem observou pouca ateno. Ele exigente e apressado. Mas, para no zangar o bom papaiHay dn, Beethoven ter a delicadeza de passar a limpo as passagens corrigidas por Schenk. Dizemque Haydn apenas sorriu ao ficar sabendo desse pequeno arranjo...

    Em muito pouco tempo, em Viena, Beethoven torna-se a febre da aristocracia. Desde amorte de Mozart, que foi maltratado, o pblico procura um novo heri. Esse jovem pianistabrilhante, de temperamento fogoso e fsico estranho, chega na hora certa. Mas ele ter deesperar o dia 29 de maro de 1795 para dar seu primeiro grande concerto pblico, ou seja, maisde dois anos aps sua chegada a Viena. At l, faz a felicidade dos sales da aristocracia, ondeseus talentos so apreciados no mais alto grau. recebido nas grandes famlias, os Lichnowsky,os Razumovski, os Lobkovitz, os Liechtenstein, nomes que nos so ainda prximos, mas somenteporque aparecem nas dedicatrias de suas obras... O prncipe de Lichnowsky o seu anjo daguarda: hospeda-o na sua casa, assegura seu renome junto s pessoas importantes de Viena,encoraja seus trabalhos de composio, tocando-os ele mesmo ao piano. Sua mulher, a princesaCristina, revela-se uma anfitri zelosa, mas um pouco incmoda. Por pouco, dir Beethoven aSchindler, a princesa no me pe numa redoma de vidro, a fim de que ningum me toque ouaproxime de mim sua respirao.7

    Que magnetismo possui esse jovem para ser cercado de tanta solicitude? Ele representa

  • certamente um novo tipo de artista, uma curiosidade no habitual. Enquanto Hay dn e Salieriapresentam-se nos sales com peruca, enfeitados de p, com meias de seda e sapatos conformea moda, Beethoven comparece com roupas comuns. Sua aparncia pouco cuidada, comotestemunha uma senhora que assistiu s suas primeiras aparies na sociedade, a sra. VonBernhardt:

    Ele era baixo e sem atrativos, com um rosto vermelho e feio, coberto de marcas devarola. A cabeleira era castanha e caa quase em mechas em volta do rosto. As roupaseram muito comuns, sem aquela desenvoltura que estava ento em moda. Alm disso,falava muito em dialeto e com uma maneira de se exprimir bastante vulgar; e, como nadana aparncia lhe ocultava a personalidade, no parecia nem um pouco amaneirado nosgestos e nas atitudes.8

    Um ano depois de sua chegada a Viena, Beethoven envia uma carta a Eleonore vonBreuning. No apenas no a esqueceu, como o desentendimento entre eles, que precedeu suapartida, continua a atorment-lo. Que palavras irreparveis teriam sido pronunciadas por Ludwig,ou talvez por Lorchen, para que as coisas tivessem se envenenado daquela maneira? Essa cartanos diz muito sobre o carter de Beethoven, irascvel, colrico, questionador, depois lamuriosopor seus arrebatamentos e suplicante por perdo:

    Quando a fatal discusso me voltou ao esprito, a minha conduta de ento me pareceuabominvel! Mas est feito. Oh, quanto eu daria para apagar da minha vida, se fossepossvel, uma maneira de agir to desonrosa e, alis, diametralmente oposta ao meucarter!9

    O que teria se passado? Podemos imaginar: uma exploso violenta de Ludwig, cujo carterorgulhoso e ntegro suportava mal a situao vivida na casa dos Breuning, de quase filho adotivodevedor a seus anfitries, humilhado por ser utilizado como professor de msica de uma jovempor quem est apaixonado e que o mantm distncia. Um mal-entendido, atiado por palavrasouvidas e alimentado pela ausncia de explicaes. Uma confuso de sentimentos, em que laosfraternos se misturam a desejos obscuros. O fato que, para obter seu perdo, Ludwig dedica aLorchen uma obra composta para ela, variaes sobre a ria de Se vuol ballare... das Bodas deFgaro, de Mozart, na qual Fgaro, coincidentemente, desafia o conde que quer lhe roubar amulher que ama... Detalhe tocante, na mesma carta ele pede a Lorchen para lhe tricotar umcolete de angor, pois o que ela lhe deu em Bonn, e que ele conserva com devoo, est fora demoda! Uma coisa certa: ele permaneceu profundamente enamorado por Eleonore vonBreuning. Beethoven, corao pronto a se inflamar, a se desprender e a voltar a antigos amores,como que obcecado pela angstia da perda.

    Joseph Hay dn torna a partir para Londres em janeiro de 1794. Antes da partida, confia seuindcil discpulo ao professor mais reputado de Viena, Johann Georg Albrechtsberger, organistada corte, mestre de capela da catedral. Ele dar lies a Beethoven durante treze meses, dejaneiro de 1794 a fevereiro de 1795. Esse msico conheceu um momento de glria comocompositor. Quatro anos mais jovem que Hay dn, escreveu sinfonias, quartetos, concertos, massua reputao de compositor ficou para trs e ele dedica a maior parte do tempo ao ensino umensino dos mais clssicos: para atingir o domnio da composio, ele preconiza ater-se tradiode Fux, cuja teoria baseada na fuga e no contraponto. Pacientemente, trs vezes por semana,Albrechtsberger ministra suas lies a Beethoven, que tem a particularidade, prpria aos

  • temperamentos fortes e s personalidades que tm uma meta na vida, de no poder suportarnenhuma diretiva, de se furtar s disciplinas acadmicas, entregando-se a elas sozinho, comoautodidata, quando necessita delas para seu trabalho de composio. No entanto as lies do novomestre tero uma influncia real sobre ele, embora considerasse Albrechtsberger um pedanteretrgrado, mestre consumado na arte de fabricar esqueletos musicais.10 Influncia sensvelsobretudo no acesso msica religiosa e numa escolha mais ampla do repertrio barroco nessedomnio: Allegri, Bach, Caldara, Fux, Haendel, Lassus, Palestrina, toda a cultura musical queainda falta ao jovem Ludwig para fazer dele um mestre completo, que recolhe as heranas paraultrapass-las. Falou-se muito que os dois no se entendiam e mal se suportavam. No entanto,vinte anos mais tarde, Beethoven, no auge da glria, dar lies gratuitas ao neto deAlbrechtsberger, reconhecendo no velho professor um exemplo cuja influncia o marcou. Porseu lado, Albrechtsberger teria declarado um dia que seu aluno nada havia aprendido e quejamais faria algo de bom. que Ludwig, como todos os impacientes, quer queimar etapas emandar ao diabo os exerccios de escola. Para ele, a msica no se reduz a uma tcnica decomposio j levada por outros ao mais alto grau de perfeio, como a fuga. Como ser umcriador maior que Bach? Alis, a fuga um procedimento ausente de suas primeirascomposies da juventude e ele s a utilizar em pequenos trechos, livremente, conforme suasnecessidades, at que toda a sua aprendizagem se mostre sublimada, por volta do fim da vida, nacomposio grandiosa da Grande Fuga. Em suma, recusando-se a curvar-se s regras antigas,Beethoven no ter outra escolha seno reinventar certas formas da escrita musical para imporseu prprio mundo, inventar estruturas novas, usar de todos os recursos instrumentais e deorquestra para emitir sonoridades de tons inditos.

    O mesmo em relao pera, cujo grande mestre em Viena, depois da morte de Mozart, Antonio Salieri. Esse msico estimvel, que uma tradio duvidosa iniciada por Pshkintransformou em assassino de Mozart, na verdade um mestre na arte de composiesdramticas grandiloquentes (tentativas recentes de reabilitao confirmam amplamente essatendncia a uma nfase pouco inventiva). As relaes entre Beethoven e Salieri so boas, talvezporque o msico de corte, intrigante e cioso do seu poder, no veja no jovem virtuose do pianoum possvel rival no domnio da pera. O futuro lhe dar razo: Beethoven no tem pelo teatro epela pera italiana os dons evidentes de um Mozart. Seria porque no gostava da futilidade,do artificialismo da pera? Dez anos mais tarde, porm, ele far uma experincia: ser a longanovela de Fidelio, nica tentativa.

    Por ora, nesse ano de 1794, ele no passa o tempo todo tomando lies: tambm compe.Trs sonatas para piano, dedicadas a Haydn, certamente por diplomacia. Ao ouvi-las no seuregresso de Londres, em 1795, na casa do prncipe Lichnowsky, Hay dn teria dito a Beethovenque ele no carecia de talento, mas lhe faltava ainda instruir-se.

    Necessidades prementes comeam a surgir. Em Bonn, a situao ruim. A guerra ameaao funcionamento do imprio. Em junho, os austracos so vencidos em Fleurus pelo exrcito deSambre-et-Meuse. Em outubro, a margem esquerda do Reno ocupada pelas tropas de Marceaue Klber. O eleitor Maximiliano Francisco, antes de fugir, no tem outra escolha seno dispensaros artistas a seu servio e fechar o teatro: Beethoven no tem mais rendimentos fixos.

    Como viver? Agora ele um homem sem ter a quem servir, livre e um dos primeirosartistas a gozar dessa liberdade. Poderia de novo se colocar a servio de um desses prncipesmecenas que dispem de um msico particular: ele se recusa. Mesmo na casa de Lichnowsky,que o trata com a maior considerao e busca por todos os meios cativ-lo, mostra-se umhspede independente, recusando-se at a jantar na casa do prncipe porque o horrio no lheconvm! Amigo, tudo bem; lacaio, nunca.

  • Ele d aulas, embora esse trabalho lhe repugne. Para no se aborrecer, tem pequenosnamoricos com suas jovens alunas, se forem bonitas. Lorchen no parece mais habitar seuspensamentos. E ele pensa em ganhar algum dinheiro com suas primeiras composies atravs dapublicao delas. Essa busca por editores uma das ocupaes principais dos primeiros anos dasua carreira: dedica tempo e energia a isso, pedindo inclusive a colaborao de seus irmos nessatarefa quando estes forem se encontrar com ele em Viena... Busca contatos em Viena, mastambm em Praga, em Berlim e mesmo em Bonn, onde seu amigo Simrock acaba de fundaruma editora musical. a ocasio de uma carta muito interessante, datada de agosto de 1794, naqual ele d seu parecer sobre a situao em Viena:

    Aqui faz muito calor, os vienenses esto inquietos, em breve no podero mais encontrargelo, pois no inverno fez to pouco frio que o gelo raro. Esto prendendo vriaspersonalidades aqui; dizem que vai haver uma revoluo mas eu acho que, enquanto oaustraco tiver cerveja escura e salsichas, ele no se revoltar. Em suma, os portes dosarrabaldes devem ser fechados s dez da noite. Os soldados tm as armas carregadas.Ningum ousa falar muito, caso contrrio preso.11

    O retorno a Bonn est descartado. O que ele faria l? Viena lhe oferece a promessa de umacarreira notvel, no centro do imprio. E, mesmo se houver revoluo, ele saber escrever amsica dos novos tempos. Alis, em outubro o prprio Wegeler que chega a Viena. Na Bonnocupada pelos franceses, a situao se tornou difcil.

    Beethoven um pianista reconhecido, admirado, temido pelos colegas, capaz deentusiasmar e comover os sales onde se apresenta e que constroem as reputaes. s vezes,aps ter feito carem lgrimas dos olhos dos ouvintes, ele se levanta, d uma gargalhada e lana,fechando ruidosamente a tampa do piano: Vocs so todos loucos!. Mas ele ainda no seapresentou nenhuma vez numa sala de concertos.

    Isso acontecer no final de maro de 1795, durante trs concertos sucessivos dados noBurgtheater. Toca ali um concerto de Mozart, improvisa e principalmente, diz uma nota doWiener Zeitung, recolhe a aprovao unnime do pblico num concerto indito para pianofortecomposto por ele mesmo.12

    Desse concerto, em si bemol maior op. 19, hoje conhecido como o de nmero 2, ele dir,cinco anos mais tarde, que no o considera como uma de suas melhores obras. Terminou-o spressas, premido pelo tempo na antevspera da apresentao, doente, com problemas intestinais,preenchendo furiosamente as pautas que ia passando aos copistas, e a parte do piano no estavaescrita: isso ser feito mais tarde, para publicao. Trata-se de uma festa para o solista: ele podeimprovisar, brilhar o quanto quiser na cadncia, conservando s para si essa parte da obra,maneira de proteg-la e de deflor-la apenas no concerto. Somente a edio, mais tarde, fixar aobra para sempre e para os pianistas do futuro.

    Esse concerto um grande sucesso, primeiro passo de uma caminhada que Ludwig sonhatriunfal. Pouco depois, em maio, ele oferece ao editor Artaria trs trios, os do opus 1. Umtestemunho precioso embora indireto, pois seu autor no estava em Viena na poca, nos chegousobre a apresentao desses trios: o de Ferdinand Ries, futuro aluno de Beethoven e futuroautor, com Franz-Gerhard Wegeler, de um livro de encontros com Ludwig van Beethoven,intitulado Notas biogrficas, no qual lemos o seguinte:

    A maior parte dos artistas e dos amadores de Viena tinham sido convidados,particularmente Haydn, sobre cujo julgamento tudo se decidia. Os trios foram tocados e

  • provocaram de imediato uma impresso extraordinria. O prprio Haydn concordou, masaconselhou Beethoven a no publicar o terceiro trio em d menor. Isso surpreendeuBeethoven, que considerava esse trio como o melhor dos trs; desse modo tambm que oconsideram ainda hoje, na maioria das vezes; foi o que produziu mais efeito. As palavrasde Haydn, portanto, causaram m impresso em Beethoven, levando-o a pensar queHaydn estava com inveja, com cime, e no gostava dele.13

    Relaes decididamente pouco serenas entre esses dois gigantes da msica. Apesar daadmirao, do respeito, da afeio. Em 1801, os dois voltam a se encontrar. Beethoven ouviu ACriao, uma das ltimas obras-primas do velho mestre, e este o bal de Beethoven, As Criaturasde Prometeu.

    Ouvi seu bal ontem noite diz Haydn , gostei muito. , caro papai responde Beethoven , est sendo gentil, mas no uma Criao, falta

    muito para chegar l.E Hay dn, dando um tempo para refletir: verdade, no uma Criao, e acho que dificilmente voc faria igual, pois um

    ateu.14

  • Amores, amizades...

    Apesar disso, o ateu, o Gro-Mogol, vai abrindo seu caminho na alta sociedadevienense. Inclusive toma aulas de dana a fim de parecer menos acanhado nos saraus. Mas,embora um pouco mais civilizado, ele nada perde de suas maneiras rsticas e do seu carterdifcil. Vi a me da princesa Lichnowsky, a velha condessa Thun, se pr de joelhos diante dele,estendido num sof, implorando para ele tocar alguma coisa1, relata a sra. Von Bernhard. Ele adulado e no recusa o prazer dessa satisfao narcsica. Mesmo suas maneiras rudescontribuem para criar sua lenda: por que se privar disso?

    Mas seus momentos de clera no so fingidos: na verdade, ele detesta tocar em pblicoquando sente que apenas uma das atraes da noite, e quando o tratam como algum quedeve nos tocar alguma coisa. Seu orgulho torce o nariz, a ideia elevada que faz da sua arterevolta-se quando deve servir apenas de ornamento e distrao. Acontece-lhe de se levantarfuriosamente, de fechar o piano, de sair da pea resmungando, se o pblico se mostra desatentoou tagarela. Beethoven no msica de fundo!

    Ele vai pera acompanhado de pessoas encantadoras. longa a lista de mulheres jovensque ele corteja de maneira um tanto apressada. Suas tentativas de conquista feminina so brevese variveis. Provavelmente platnicas, quando se referem a moas da nata da sociedade. Mas htambm criadas e damas menos ariscas. Em Viena, escreve Wegeler, testemunha confivelda vida do amigo, pelo menos enquanto estive l, Beethoven estava sempre envolvido num casoamoroso e, durante esse tempo, obteve conquistas que teriam sido muito difceis, se noimpossveis, a mais de um Adnis.2 Ele ama por mpetos, por caprichos, talvez vrias mulheresao mesmo tempo, o que no uma idiossincrasia masculina to rara.

    E h tambm o enigma, sobre o qual se acumulam tantas informaes e o trabalhoconstante dos bigrafos desde mais de um sculo, relativo sua sade. Desde a juventude elesofre de males diversos, antes mesmo do grande drama da surdez: a varola contrada na infncialhe deixou, alm do rosto profundamente marcado, uma deficincia oftlmica. Com frequncia vtima de crises de enterite. Sua dupla herana, alcoolismo paterno e tuberculose materna, nocontribui em nada para que ele tenha uma boa sade. E hoje mais do que provvel que umoutro mal, em Viena, tenha se acrescentado a seus dissabores: a sfilis, pela qual Ludwig teriasido contaminado nos primeiros meses nesta cidade. Ao longo de todo o sculo XIX e mesmodepois, os bigrafos, assustados por essa escabrosa circunstncia na vida do deus da msicaocidental3, usaram de infinitas precaues para evocar essa doena (sem falar da destruio, porSchindler, de inmeros documentos, grande parte deles dos Cadernos de conversao, para nadadeixar transparecer das vicissitudes demasiado humanas do seu heri. Esse crime nos priva deinformaes essenciais sobre o desenvolvimento do pensamento de Beethoven e sobre sua vidantima).

    Essas relaes inconstantes, quando no volveis, com as mulheres no so muito maisamenas com o crculo de amigos que Beethoven frequenta em Viena. Mesmo Wegeler, o maisquerido e o mais prximo, sofre s vezes com as violentas mudanas de humor que o eruptivoLudwig lamenta em seguida. Aps uma discusso cujo motivo nos desconhecido, ele escreve aWegeler uma carta suplicante na qual se justifica e pede perdo. Assegura que na sua atitude nohouve nenhuma maldade premeditada: Sempre fui bom e sempre procurei ser correto ehonesto nas minhas aes, caso contrrio voc no poderia ter gostado de mim. Teria eu mudadoem to pouco tempo, de maneira to terrvel e em meu desfavor? Impossvel. Teriam ossentimentos do que grande e bom se extinguido todos em mim de repente?4. H nele umaespcie de dupla personalidade que se manifesta por crises, uma violncia temida, difcil decontrolar, provavelmente guardada nas lembranas da infncia e na imitao inconsciente do

  • pai. Porm, essa violncia tambm se concentra nos projetos criadores, na vontade detransformar em ouro a lama da infncia, de lhe dar a forma de uma mensagem universal deamor e de fraternidade.

    No outono de 1795, seus dois irmos, Karl e Johann, agora sem recursos em Bonn,desembarcam em Viena. Essa nova responsabilidade no pequena para Ludwig. Ele ama osirmos, mas na maior parte do tempo estes o exasperam, e sero para ele uma preocupaoconstante. Karl, o segundo, baixo, de cabelos ruivos, feio, diz uma testemunha, fez estudosmusicais em Bonn, mas nem de longe se aproxima do talento do irmo. Quanto a Johann, ocaula, descrito como alto, moreno, bonito e s vezes dndi.5 Um pouco tolo, mas de umabondade natural6, afirma uma certa sra. Karth, que conheceu bem os trs Beethoven. Tolo,com toda a certeza. Em relao bondade natural, o caso de duvidar.

    Muito foi dito e escrito sobre esses dois personagens vistos como odiosos parasitas,sanguessugas grudados no gnio do irmo. A realidade menos dramtica, e mais medocre como eles. Em Viena, Karl prossegue seus estudos musicais e cuida dos negcios do irmo maisvelho, ou seja, desempenha o papel de um secretrio e vagamente de empresrio. Aproveita-sedisso para vender as obras de Ludwig, s vezes sem que este saiba disso, a vrios editores aomesmo tempo. Karl e Johann tm a triste mania de vasculhar fundos de gaveta e trocar pordinheiro obras que Beethoven no quis publicar, julgando-as indignas do seu talento. No raroque as discusses entre Ludwig e Karl terminem em pugilato, como num dia em que Karlresolveu vender a um editor de Leipzig as trs sonatas para piano do opus 31 (que inclui estaobra-prima, a sonata em r menor intitulada A tempestade) que Ludwig prometera a um editorde Zurique. Assim transcorrem as relaes familiares entre os Beethoven: flor da pele,violentas, no entanto indestrutveis, como ocorrer mais tarde no famoso caso do outro Karl,sobrinho de Ludwig.

    Por ora, nesse ano de 1795, Beethoven trabalha nas sonatas para piano do opus 2, dedicadasa Hay dn. Elas j so to singulares, to beethovenianas no estilo, que tempo de nosperguntarmos sobre a maneira prpria e j perceptvel do compositor, com aquela fora eaquele dinamismo amplamente inspirados e condicionados por seus talentos de improvisador, aimprovisao relacionada tanto performance musical quanto aos jogos de salo e competio. Em Viena, nas disputas em que o pianista deve medir foras com os recm-chegados e vencer todos os desafios, Beethoven o campeo, como relatam divertidamenteBrigitte e Jean Massin:

    O sculo XVIII adorava os duelos em que se opunham dois executantes rivais; a cada anoum novo campeo chegava a Viena e toda a alta sociedade se comprimia para v-lomedir-se com o heri do momento; assim Beethoven, ao chegar, enfrentou Gelinek. Agora ele, por assim dizer, o detentor do ttulo; em 1797, Steibelt o desafia; em 1798, JosephWlfl; nos anos seguintes, Cramer, Clementi, Hummel. De cada um desses duelos temosum monte de histrias, mas todas se reduzem ao mesmo esquema: a) o outro (do qualsomente o nome varia) toca com uma perfeio, uma pureza, uma delicadezainvariavelmente dignas de Mozart; b) Beethoven est de mau humor: pe-se ao piano, batenas teclas como um bruto, comea a improvisar, faz chorar todo mundo e deixa o rival emfrangalhos. Isso aconteceu com Wlfl, mas este foi talvez quem melhor se defendeu. preciso dizer tambm que ele tinha mos to grandes que era capaz de abarcar trezeteclas!7

  • Uma testemunha da poca, Junker, msico amador e compositor, d suas impresses, em1791, ao Musikalische Korrespondenz:

    Tambm ouvi um dos maiores pianistas, o caro e bom Bethofen (sic) [...] A grandezadesse homem amvel e despreocupado, como virtuose, se deve, a meu ver, infatigvelriqueza de suas ideias, ao estilo geral caracterstico da expresso, quando toca, e grandehabilidade de execuo. No sei de nada que lhe falte daquilo que leva um artista grandeza. Ouvi Vogler [...] vrias vezes durante mais de uma hora, e nunca deixei de memaravilhar com sua tcnica espantosa; mas Bethofen, alm da execuo, possui maisclareza e peso nas ideias, e mais expresso; em suma, ele fala mais ao corao, tograndioso no adgio quanto no alegro. Sua maneira de tratar o instrumento to diferenteda comumente adotada que sugere a ideia de que, por um caminho de sua inveno, eleatingiu o topo da excelncia onde se encontra no presente.

    Um caminho de sua inveno. o que literalmente se manifesta nas trs primeirassonatas do opus 2, nas quais nunca se ouviu o instrumento tratado com tal vigor, tal intensidade oque por certo foi estranho e desconcertante para os primeiros ouvintes. No se trata apenas dadireo que tende para o ideal, observa Wasielewski, da intensidade de expresso, mastambm da predominncia de idiotismos muito caractersticos, engendrados pela sensibilidadeoriginal de Beethoven. Por exemplo os cruzamentos rtmicos, as sries de sncopas, asacentuaes fortes dos tempos fracos do compasso e a obstinada repetio de certas frases,como na coda do scherzo da Sonata em d menor no 3, com seu motivo de abertura.8 Nunca, defato, o piano foi utilizado com tamanha amplitude quase orquestral, a mo esquerdaultrapassando seu papel de acompanhamento ou de elemento de contraponto para assumir umafuno autnoma, como um elemento de orquestra. Durante toda a sua vida, repetimos,Beethoven buscar o piano do futuro, pressionando os fabricantes para que concebam uminstrumento sua altura. Ele sabe que com suas obras j tomou um caminho que ningumexplorou antes dele, e que somente assim encontrar sua salvao artstica. Como ir mais longe,mais alto que Mozart, na linguagem de Mozart? Impossvel. Ao ouvir uma execuo do ConcertoK. 491, o 24o, Beethoven disse um dia a Cramer: Cramer! Cramer! Nunca seremos capazes defazer igual.9

    preciso portanto fazer outra coisa, de um outro modo, afirmar a personalidade, elevar otom, fazer do msico dos novos tempos no mais um escudeiro, mas um heri.

    O jbilo do virtuose s vezes se traduz em obras ocasionais, mas absolutamente irresistveis. talvez dessa poca, 1795, que data um extraordinrio rond, chamado de O vintm perdido ouClera a propsito de um vintm perdido. Ainda hoje essa pea humorstica, publicada aps amorte de Beethoven, assegura o sucesso dos pianistas que a tocam em concerto.

    Beethoven tem amigos em Viena. Mas quem so seus rivais? Quanto virtuosidadepianstica, a causa est resolvida: ningum. Mas quanto composio? Por certo ele no emViena o nico candidato sucesso de Mozart, ou at de um Haydn envelhecido, que Ludwigvigia com o canto do olho, sonhando ultrapassar sua glria. Um pianista ingls de origem italiana,Muzio Clementi, incontestvel virtuose e hbil compositor, parece por um tempo ser capaz deofusc-lo. Os dois se cruzam s vezes, se sadam sem se falar. Luigi Cherubini poder tambmlhe causar alguma inquietao, um pouco mais tarde, pela inspirao sinfnica, geralmentetonitruante, de suas peras. Quanto a seus colegas diretos, com quem tem contato, como seuamigo Reicha, eles dificilmente rivalizariam com essa fora em marcha que sente prxima a

  • hora do reconhecimento. Assim, sem muita angstia que ele pode empreender, no comeo de1796, uma viagem de conquistas rumo a outras cidades europeias.

    Essa viagem comea por Praga. Depois Dresden, Leipzig, Berlim: uma turn de concertos,como se diz hoje, que se revelar triunfal. A reputao de Ludwig van Beethoven como virtuosedo piano o precedeu nessas cidades: ele um pop star. Sua viagem, inicialmente prevista paraalgumas semanas, vai durar seis meses.

    Um pop star: a palavra no demasiado forte se aceitarmos o anacronismo semntico. Suamaneira de tocar piano, que combina com a sensibilidade tumultuosa de um tempo voltado aosimpulsos das paixes, desbanca a maneira antiga. Era isso que as pessoas esperavam. Elas vmprestigiar o fenmeno dispostas a todas as emoes, a todos os soluos. Ainda no h gritoshistricos, mas porque todos se contm. Beethoven ao piano, guardadas as propores edescontados os amplificadores, Jerry Lee Lewis e seu furor, Elvis Presley e seu rebolado, osBeatles no Olympia de Paris: um furaco. Ao ouvi-lo tocar, a velha guarda musical se insurge:um correspondente annimo do Jornal Patritico dos Estados Imperiais e Reais, datado deoutubro de 1796, acusa o dolo de um certo pblico, esse Van Beethoven cedo demaisadmirado, de negligenciar todo canto, todo equilbrio na tcnica, toda delicadeza e toda clareza,de surpreender apenas pela originalidade sem t-la (sic), e de tudo sobrecarregar e exagerar nainterpretao e na composio. Ele se apodera de nossos ouvidos, no de nossos coraes. verdade que tamanha fora capaz de desconcertar os rabugentos do conservadorismo e osdefensores da boa msica de antigamente: nessas composies, o entusiasmo dionisaco dovirtuose se traduz por uma inovao importante, j iniciada por Hay dn, mas como que levada incandescncia por um temperamento explosivo: Beethoven substitui o minueto, forma elegantee um tanto ultrapassada das danas da corte, pelo scherzo (brincadeira em italiano), danapopular em que a fora rtmica irrompe como uma pulsao primitiva. Ele vai desenvolver aspossibilidades dessa forma at em suas ltimas obras, a sonata Hammerklavier, ou o obsessivo efabuloso segundo movimento da Nona Sinfonia...

    Em Praga ele acompanhado por Lichnowsky, que lhe serve de guia e lhe abre as portasda alta sociedade. Essa cidade maravilhosa, uma das mais belas do mundo e das maismelmanas, assegurou o triunfo de Mozart uns dez anos antes: As Bodas de Fgaro, Don Giovanni,A Clemncia de Tito encontraram na capital da Bomia um pblico entusiasta, muito mais do queem Viena. Beethoven segue as pegadas de Mozart. Hospeda-se no mesmo lugar que ele, noLicorne de Ouro, talvez no mesmo quarto. Em 19 de fevereiro, escreve uma carta entusiasmadaa seu irmo Johann: Antes de mais nada, vou bem, muito bem. Com minha arte conquistoamigos e renome, o que mais desejar? E desta vez vou ganhar um bom dinheiro.10

    Em Praga, onde fica at abril de 1796, Beethoven compe uma importante ria deconcerto sobre um texto de Metastsio, Ah, Perfido, para soprano e orquestra, dedicada condessa Josphine Clary, mas na verdade escrita para uma jovem cantora, Josepha Dussek, umdos seus mais belos xitos para a voz... O ambiente acolhedor da cidade lhe inspira tambm umSexteto para instrumentos de sopro (op. 71) e a encantadora Sonata em sol menor (op. 49, no 2).

    Em Leipzig ele sada a memria de Johann Sebastian Bach, em Dresden toca diante doEleitor da Saxnia. Berlim a ltima etapa dessa viagem coroada de sucesso: como os convitesse multiplicam, ele fica ali mais tempo do que o previsto, at julho. Talvez seus ltimos meses deverdadeira despreocupao. Para o violoncelista francs Jean-Louis Duport, compe duas desuas belas sonatas para violoncelo e piano. Mas encontra tambm o meio de se desentenderpassageiramente com o compositor Friedrich Himmel. Tendo este lhe pedido para improvisar

  • diante dele, Beethoven toca e pede a Himmel que lhe faa a mesma cortesia:

    Himmel cometeu a fraqueza de consentir, mas, depois de tocar durante um tempo bastantelongo, Beethoven lhe disse: Muito bem! Mas quando comear para valer?.11

    Seguiriam algumas trocas de palavras indelicadas. Achei realmente que Himmel estavaapenas preludiando um pouco12, disse depois Beethoven a um aluno, rindo muito. Os dois sereconciliaram. Porm, alguns meses mais tarde, Himmel escreve a Beethoven contando quedescobriram em Berlim uma lanterna para os cegos. Ludwig logo pede esclarecimentos, antes deperceber que Himmel estava zombando dele.

    Despreocupao, sim. Um pouco de embriaguez tambm, a embriaguez do conquistadorque pensa que nada lhe resistir. Suas obras so publicadas, seus concertos atraram multides.Mas, ao voltar de Berlim, ele conhece os primeiros sinais da catstrofe que est por vir.

  • Os anos de crise

    Durante o vero de 1796, Beethoven adoece. Num dia de calor, volta para casa, despe-se epe-se janela para se refrescar. Ele costuma cometer essas imprudncias e nunca teve muitocuidado com seu fsico vigoroso de forte musculatura, s vezes usando mtodos rpidos. Gerhardvon Breuning quem relata:

    Quando ele ficava muito tempo sentado a compor em sua mesa e sentia a cabea ardendo,tinha sempre o hbito de correr ao banheiro e despejar um jarro de gua sobre ela; assimrefrescado e secando-se rapidamente, voltava ao trabalho ou fazia um passeio ao ar livre.[...] a gua com que havia molhado sem parar a cabea escorria em tal quantidade nosoalho que penetrava e vazava no teto dos locatrios de baixo.1

    talvez ligado a esse procedimento que se manifestam os primeiros sinais da surdez, masnada prova que seja essa a causa. A propsito dessa afeco, que aos poucos se agravar atchegar, em 1818, a uma surdez total, muitas hipteses foram aventadas. Otite seca? Disfunoassociada a problemas intestinais, como pensa Wegeler, seu amigo mdico? O corpo deBeethoven uma mistura singular de sade frgil e de robustez, assim como no seu esprito seopem desequilbrio afetivo, melancolia e energia indomvel empenhada em elaborar estruturasmusicais rigorosas e grandiosas. Sua capacidade de trabalho sempre foi fora do comum. Desdeos catorze ou quinze anos de idade, raramente passou alguns dias sem escrever msica. Alm dasobras oficialmente repertoriadas, o catlogo das composies que datam da sua primeirajuventude, esse catlogo das obras sem opus (WoO, Werke ohne opus), calculado em cercade 150 trabalhos: peas menores, esboos, ensaios, mas tambm obras j acabadas, sobretudovariaes para piano. Longa conquista do domnio da sua arte. Mas a surdez, longe de deter esseimpulso, ir estimul-lo. Coragem!, ele escreve no comeo do ano 1797. Apesar de todas asfraquezas do corpo, meu gnio deve triunfar. Estou com 25 anos, preciso que este ano revele ohomem completo. Nada mais deve restar a fazer. 2

    Ele continua a se acreditar dois anos mais jovem do que sua idade real. A confuso vaidurar at 1810!

    A verdade sobre seus problemas auditivos ser guardada por muito tempo em segredo. a, longe das lendas e das hagiografias, que devemos buscar o herosmo de Beethoven, nessavontade de viver e de criar apesar do sofrimento, da angstia e de uma surdez crescente. Umherosmo altura do homem.

    Em 29 de junho de 1801, ou seja, quatro anos aps os primeiros sinais, ele escreve aWegeler relatando que seus ouvidos continuam a zumbir e a mugir noite e dia. E prossegue:

    Posso dizer que levo uma vida miservel. H quase dois anos evito encontros emsociedade, pois no posso dizer s pessoas: sou surdo. Se eu tivesse outra profisso, aindaseria possvel; mas na minha uma situao terrvel. E o que diriam meus inimigos, queno so poucos? Para te dar uma ideia dessa estranha surdez, direi que no teatro devo mecolocar junto orquestra para compreender os atores. No ouo os tons elevados dosinstrumentos e das vozes quando me coloco um pouco distante. 3

    Nas conversas, suas respostas evasivas ou a ausncia de uma rplica so postas na conta dadistrao ou da desenvoltura...

    Em 1797, a surdez nascente no mais do que um estorvo e uma fonte de angstia. Seu

  • remdio: o trabalho. A produo desses anos mantida: trs sonatas para piano, as do opus 10, oque de melhor escrevi at agora 4, diz ele; os trs trios para cordas do opus 1, trs sonatas paraviolino e piano; um concerto para piano e orquestra em d maior, que leva hoje o no 1,provavelmente escrito em 1794-1795, mas corrigido mais tarde para publicao.

    As sonatas, como de resto toda a msica de cmara, so preciosas, revelam a evoluo deBeethoven ao longo da sua vida criadora. O mesmo se aplica ao quarteto de cordas, gnero noqual ele produzir algumas de suas obras mais profundas, mais inovadoras. As sonatas para pianodo opus 10 so composies espantosas a terceira, em particular, conhecida como a de no 7entre as 32 que comps: profundeza meditativa do movimento lento que traduz um estado deintensa melancolia, como uma oposio da sombra e da luz. Muitos reconheceram nela aangstia dos primeiros ataques da surdez. O prprio Beethoven teria dito a seu bigrafo Schindler,que lhe perguntou o sentido desse movimento: Leia A tempestade de Shakespeare.

    Mas a obra mais marcante e mais clebre desse perodo a Sonata Pattica, dedicada aoprncipe Lichnowsky, na qual se exprime ainda mais nitidamente a oposio, o dualismo que sedesenvolve no pensamento musical do Beethoven desses anos. Nessa Sonata Pattica, observaVincent dIndy