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Questao social e direitos Elaine Rossetti Behring Professora da Faculdade de Service social/UERJ Silvana Mara de Morais dos Santos Professora do Departamento de Service Social/UFRN

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Questao social e direitos

Elaine Rossetti Behring

Professora da Faculdade de Service social/UERJ

Silvana Mara de Morais dos Santos

Professora do Departamento de Service Social/UFRN

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Questao social e direitos

Apresentacao

Estamos diante de dois temas historicos, visceralmente articulados, e este texto busca

explicitar as condicoes que produziram e produzem esse vinculo. Trata-se de desvelar a

cornpreensao da "questao social"! e as polemicas que cercam 0 seu entendimento como

materia do Service Social e processo, cujas expressfies requisitam intervencoes sisternaticas

na forma das politicas sociais, a partir do Estado, e das acoes desencadeadas pelas classes.

Veremos que as lutas sociais dos trabalhadores tornaram direitos reclamaveis varlas dessas

intervencoes, desde as duras conquistas em torno da jornada de trabalho, no seculo XIX,

que Marx caracterizou como as primeiras vitorias da economia politica do trabalho contra 0

capital. 0 movimento do texto sera 0 de fornecer elementos para pensar a questao social e

suas expressfies a partir da lei geral da acumulacao, em primeiro lugar, para observar, na

sequencia, 0 advento dos direitos na sociedade capitalista, bus cando trazer 0 debate para a

particularidade brasileira, onde os direitos tern sido mais excecoes que regra e as

expressfies da questao social sao verdadeiramente dramaticas, 0 que evidencia

caracterfsticas da formacao social brasileira.

1 Questao social: eixo central e polemico no Service Social2

Entre os anos de 2005 e 2006, a Associacao Brasileira de Ensino e Pesquisa de Service

Social (ABEPSS) conduziu urn importante levantamento da implementacao das Diretrizes

Curriculares, de abrangencia nacional (Cf. ABEPSS, 2008). Acerca do eixo questao social, a

direcao nacional da ABEPSS colocava as seguintes indagacfies a serem perseguidas no

processo de avaliacao: "considerando como objeto do trabalho profissional, e, portanto, da

1Esta sera a primeira e ultima vez que usaremos as aspas ao nos referirmos a questao social. Seu uso ou nao

se relaciona a polernica que sera explicitada no decorrer do texto.

2 Este item incorpora parte do texto revisado das conferenctas realizadas por Elaine R. Behring, nas Oficinas

Nacionais Descentralizadas, promovidas pela ABEPSS, em 2006, sobre 0 eixo questao social nas Diretrizes

Curriculares.

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formacao profissional, 0 conjunto das sequelas da questao social, qual tratamento vern

sendo dispensado a esta categoria? Estaria ocorrendo urn reducionismo nessa

incorporacao, a partir da negacao da perspectiva de totalidade que supoe a leitura da

questao social como resultante da contradicao capital/trabalho?" Numa perspectiva

reducionista e positivista, em geral, a questao social aparece como problema social, fato

social, fenomeno social desvinculado da forma com que a sociedade produz e reproduz as

relacfies sociais. Nesse sentido e interpretando as preocupacoes da ABEPSS na ocasiao, ao

inves de transversalizar 0 curriculo, a questao social apareceria fragmentada em disciplinas

que tratam das suas expressfies,

Vejamos 0 que propugnam as Diretrizes Curriculares da ABEPSS no que diz respeito a

questao social. Os documentos de 1996 e 1999, efetivamente apontaram a questao social

como 0 elemento que da concretude a profissao, ou seja, que e "sua base de fundacao

historico-social na realidade" e que, nessa qualidade, portanto, deve constituir 0 eixo

ordenador do curriculo, diga-se, da formacao profissional. Assim, a questao social

adquire urn "novo" estatuto no projeto de formacao profissional engendrado pelo service

social brasileiro da decada de 1990.

Como caudatario do projeto polltico-profissional dos anos 1980, 0 documento das

Diretrizes (1996) reconhece que a realidade social brasileira ja era colocada como centro

nos debates que conduziram ao currlculo de 1982. Nesse sentido, apontar a questao social

como eixo ordenador nao constituiria exatamente uma novidade, mas uma precisao,

Tratou-se da realizacao de uma direcao anunciada em 1982, que foi sobreposta, porem, por

urn conjunto de exigencias teorico-politlcas de qualificacao profissional e capacitacao

docente, que levaram ao acerto de contas teorico-metodologtco que perpassou a decada de

1980, cujas linhas gerais estao publicadas nos Cadernos ABESS, especialmente os mimeros

urn e tres, A maior consequencia desse processo foi privilegiar as disciplinas de historia (do

service social, e nao considerando 0 service social na historia], teoria e metodologia como

eixo basico, desvinculadas dos elementos que dao substancia a profissao na realidade e

tambern de sua dim ensao operativa. Na proposta das Diretrizes da ABEPSS (1996 e 1999),0

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nucleo da questao social articula todo 0 processo formativo e impfie exigencias que

apontam para urn maior equilfbrio entre as dimensoes teorico-metodolcgica, etico-pclitica

e tecnico-operativa.

Os processos de revisao dos currfculos plenos de fins dos anos 1980 e infcio dos anos

1990 estiveram atentos aos limites do currlculo mfnimo de 1982 e procuraram engendrar

novos caminhos, os quais repercutiram nos debates da revisao curricular e resultaram nas

diretrizes, muitas vezes como polernicas, Foi 0 caso da proposicao da politica social como

nucleo basi co, que marcou, na epoca, a proposta da UERJ. Ainda que essa perspectiva

identificasse componentes e mediacoes essenciais da acao profissional, esteve distante de

convencer que a politica social seria 0 componente essencial demandado por essa

especializacao do trabalho coletivo, mesmo que a politica social seja urn eixo

importantfssimo.

Outra direcao apontada naquela ocasiao foi a protecao social, cuja fundarnentacao

tendeu a obscurecer a particularidade historica que reveste a proflssionalizacao do Service

Social, ao ressaltar as regularidades historicas de longa duracao que atravessam a protecao

social - sobretudo quanta aos usos e costumes culturais - ao longo dos tempos. Dessa

forma, a compreensao do Service Social como uma configuracao particular da divisao social

do trabalho, tfpica do capitalismo em sua fase monopolista - e, se lancarnos mao da

periodlzacao de Mandel, tfpica da passagem do imperialismo classico para 0 capitalismo

tardio (BEHRING, 1998) - fica dilufda, bern como 0 sentido da atividade profissional na

contemporaneidade, que se altera na medida em que muda 0 padrao de acumulacao e,

consequentemente, de regulacao social, com impactos na configuracao da questao social e

suas formas de enfrentamento pelas classes e pelo Estado, este ultimo a partir de sua

direcao de classe. Com isso, nao se quer negar a riqueza de possibilidades que existe no

estudo dos fenornenos de larga duracao, como nos mostram as descobertas de E. P.

Thompson e F. Braudel ou as reflexoes de urn Walter Benjamin. Porem, tal perspectiva

mostrou-se claramente insuficiente para fundamentar 0 entendimento do significado do

Service Social numa perspectiva ontologica, sobretudo quando se distancia

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irrevogavelmente de formulacfies sem as quais a tradicao marxista perde sua substancia e

forca, como a lei do valor, por exemplo.

Na verdade, as politicas sociais e a forrnatacao de padrfies de protecao social sao

desdobramentos e ate mesmo respostas - em geral setorializadas e fragmentadas - as

expressfies multifacetadas e complexas da questao social no capitalismo. A questao social

se expressa em suas refracoes (NETTO, 1992) e, por outro lado, os sujeitos hist6ricos

engendram formas de seu enfrentamento. Contudo, sua genese esta na maneira com que os

individuos se organizam para produzir num determinado momenta hist6rico e que tern

continuidade na esfera da reproducao social.

2 Producao, reproducao e questao social

Vale destacar que, quando se fala em producao e reproducao das relacfies sociais

inscritas num momenta hist6rico - e aqui e born deixar explicito: 0momenta de emersao e

consolidacao da sociedade burguesa -, sendo a questao social uma inflexao deste processo,

trata-se da producao e reproducao (movimentos inseparaveis na totalidade concreta) de

condicfies de vida, da cultura e da riqueza. Nao ha, pois, nenhuma reducao economicista,

politicista ou culturalista, donde se evitam as mterpretacoes unilaterais dos processos

sociais e os monocausalismos de varias especies, sobretudo nestes tempos de fragmentacao

e p6s-modernismo. Essa perspectiva de abordagem da questao social esta delineada nas

diretrizes quando se aponta a "apreensao do processo social como totalidade, reproduzindo

o movimento do real em suas manifestacoes universais, particulares e singulares, em seus

componentes de objetividade e subjetividade, em suas dimensoes economicas, politicas,

eticas, ideol6gicas e culturais, fundamentado em categorias que emanam da teoria crltica"

(ABESS,1997, p. 152).

Poder-se-ia argumentar, e desde a aprovacao das diretrizes tais argumentos tern

estado presentes no debate (Cf. REVISTATEMPORALIS, n. 3, 2001) que, a rigor, a categoria

da questao social nao pertence ao quadro conceitual da teoria critica, diga-se, da tradicao

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marxista, crftica empreendida por Netto (2001), com argumentos muito consistentes e que

remetem a relacao entre questao social e lei geral da acumulacao, apos situar sua apreensao

historica pelo pensamento conservador. Chega-se mesmo a dizer, por outro angulo. que

colocar a questao social no centro do projeto de formacao profissional seria retomar a ideia

de "situacao social-problema", tao cara ao Service Social tradicional. Dentro disso, esta

seria uma proposicao paradoxal, diante da orientacao teorica adotada pela revisao

curricular.

Observemos cuidadosamente esses argumentos para explicitar 0 que se entende como

questao social. Em primeiro lugar, vale lembrar que esta na base do trabalho teorico

presente na crftica da economia politica empreendida por Marx, com a colaboracao de

Engels, a perspectiva de desvelar a genese da desigualdade social no capitalismo, tendo em

vista instrumentalizar sujeitos politicos - tendo a frente 0 movimento operario - para sua

superacao, Esse processo, diga-se, a configuracao da desigualdade e as respostas

engendradas pelos sujeitos a ela, se expressa na realidade de forma multifacetada como

questao social. Desse ponto de vista, e correto afirmar que a tradicao marxista empreende,

desde Marx e Engels ate os dias de hoje, urn esforco explicativo acerca da questao social,

considerando que esta subjacente as suas manifestacoes concretas 0 processo de

acumulacao do capital, produzido e reproduzido com a operacao da lei do valor, cuja

contraface e a subsuncao do trabalho pelo capital, a desigualdade social, 0 crescimento da

pauperizacao absoluta e relativa e a luta de classes. A questao social, nessa perspectiva, e

expressao das contradicoes inerentes ao capitalismo que, ao constituir 0 trabalho vivo

como unica fonte de valor, e, ao mesmo tempo, reduzi-lo progressivamente em decorrencia

da elevacao da cornposicao organica do capital - 0 que implica num predomfnio do trabalho

morto (capital constante) sobre 0 trabalho vivo (capital variavel] - promove a expansao do

exercito industrial de reserva (ou superpopulacao relativa) em larga escala.

o estudo de David Harvey (1993) ace rca das expressfies dessas tendencias

constitutivas do modo de producao no capitalismo contemporaneo e repleto de indicacfies

acerca da potencializacao da constituicao de uma superpopulacao relativa sobrante, com 0

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