BEM-VINDO AO NOVO MUNDO · Mil anos mais tarde, a varíola ajudaria Hernan Cortés a derro-tar o...

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Meio: Imprensa País: Portugal Period.: Mensal Âmbito: Economia, Negócios e. Pág: 10 Cores: Cor Área: 18,60 x 24,30 cm² Corte: 1 de 19 ID: 86252910 01-05-2020 BEM-VINDO AO NOVO MUNDO O “Grande Confinamento” fez-nos enfrentar realidades que nunca imaginámos e forçou-nos a experimentar soluções que, até há pouco tempo, eram irrealistas. O choque da Covid-19 poderá provocar mudanças estruturais na forma como a nossa economia se organiza – de Estados com mais músculo e maior preocupação com desigualdades a revoluções no local de trabalho e a um recuo da globalização Texto Nuno Aguiar e Rui Barroso

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BEM-VINDO AO NOVO MUNDO

O “Grande Confinamento” fez-nos enfrentar realidades que nunca imaginámos e forçou-nos a experimentar soluções que, até há pouco tempo, eram irrealistas. O choque da Covid-19 poderá provocar mudanças

estruturais na forma como a nossa economia se organiza – de Estados com mais músculo e maior

preocupação com desigualdades a revoluções no local de trabalho e a um recuo da globalização

Texto Nuno Aguiar e Rui Barroso

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Daqui a 50 anos, os mais jovens talvez se lembrem

onde estavam quando o Governo português mandou

toda a gente para casa – ou quando as aulas passavam

na RTP Memória –, quando Donald Trump enviou

cheques a todos os norte-americanos, quando dei-

xámos de apertar as mãos uns aos outros ou quando

todo o mundo tentou fazer pão em casa. O corona-

vírus obrigou-nos a abrir uma espécie de caixa de

Pandora e a assistir a coisas que nunca esperámos

ver, desde movimentos de desglobalização a almo-

ços de Páscoa em videoconferência. Mas ao contrá-

rio de Pandora, este movimento é deliberado e não

está a libertar “todos os males do mundo”. Nalguns

casos, podemos até escolher conservar

algumas das mudanças. O mundo não

voltará a ser o mesmo depois do “Grande

Confinamento”.

O Estado está a expandir os seus po-

deres como se estivéssemos em guerra; o

modelo de comércio internacional é ques-

tionado; a Europa está numa nova encru-

zilhada entre a maior integração já vista

e o divórcio; o teletrabalho tornou-se uma realidade

para milhões e as fragilidades provocadas pela pre-

cariedade e pelas desigualdades nunca foram tão

evidentes. O setor de turismo e viagens arrisca-se a

nunca mais ser o mesmo, e até a nossa relação com

o dinheiro físico pode não voltar atrás. “A História

está em fast-forward”, assinala Robert Kaplan, do

Eurasia Group, ao Axios.

Talvez não devêssemos ficar admirados. Afinal, no

passado, as pandemias foram momentos

de transformação das sociedades. No sé-

culo VI, a praga de Justiniano enfraqueceu

o Império Bizantino. Mil anos mais tarde,

a varíola ajudaria Hernan Cortés a derro-

tar o Império Asteca, depois de, 200 anos

antes, a peste negra ter dizimado, talvez,

metade da população europeia e acelera-

do do fim do feudalismo. Alguns autores

acham que os protestos durante a quinta pandemia

da cólera deixaram as sementes para a Revolução

Russa de 1917. Como Elizabeth Kolbert sublinha na

New Yorker, “a História não é escrita apenas pelo Ho-

mem mas também pelos micróbios”.

No passado, as pandemias

foram momentos de transformação

das sociedades

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Fora do mundo dos vírus, choques como a Gran-de Depressão, a II Guerra Mundial ou o 11 de Setem-bro também mudaram as sociedades muito para lá da dor imediata. Fartos de vermos as nossas vidas limitadas, a tentação pode ser achar que esta é só uma pausa na normalidade. O precedente histórico aponta noutro sentido. Algumas transformações não serão passageiras.

A dimensão estrutural desta crise dependerá da força do embate. As projeções que existem até agora sugerem que é preciso recuar até à II Guerra Mundi-al para encontrar um nível de destruição económica comparável. Para Portugal, o FMI estima uma con-tração do PIB de 8%, o que, a confirmar-se, será a se-gunda maior recessão dos últimos 150 anos e a mais agressiva desde 1928. E há ainda o risco de a quebra ser mais violenta, caso não seja possível evitar novas vagas do vírus.

Recessão

É preciso recuar até à II Guerra Mundial para encontrar um nível de destruição económica comparável ao da pandemia

MAIS PROCURA NA PROVÍNCIA, IR MENOS AO ESCRITÓRIO E VENDER DIGITALPandemia deve ajustar preços das casas em Lisboa e no Porto. Portugal continuará no radar internacional, confia setor

O confinamento, que reduziu a

socialização e o consumo e trouxe

o escritório para casa, criou uma

situação sem precedentes ao setor

imobiliário. Tendências como as

compras online ou o teletrabalho

“poderão vir a alterar paradigmas

no futuro do mercado”, entende

Andreia Almeida, associate da

Cushman & Wakefield (C&W).

Na área comercial, o retalho terá

de conviver com o aumento das

vendas digitais, mas conveniência

e proximidade serão oportuni-

dades. A hotelaria vê-se forçada

a adaptar modelos de negócio à

procura futura, estima a C&W. “As

estratégias terão de ter em conta

a nova realidade pós-pandemia e

a importância de os consumidores

voltarem a ter confiança na utiliza-

ção dos espaços e na economia em

geral”, defende António Sampaio

de Mattos, presidente da Associa-

ção Portuguesa de Centros Comer-

ciais, que acredita que este setor

particular voltará a ser “dinâmico”

no pós-pandemia.

Nos escritórios, o trabalho remoto

pode ditar menos postos de

trabalho fixos mas também uma

descida da densidade ocupacio-

nal, aponta a C&W. O fenómeno

pode ainda refletir-se no mercado

habitacional, segundo Luís

Lima. Graças às boas

acessibilidades no País, o

teletrabalho pode levar a

“um aumento da procura

[de casas] nas zonas

mais rurais”, aponta

o presidente da

Associação dos

Profissionais

e Empresas

de Mediação

Imobiliária

de Portugal. Para já, os preços

sobreaquecidos em Lisboa e Porto

deverão reajustar e dar oportunida-

de à retoma do mercado de arren-

damento –, seja pela instabilidade

laboral e quebra de rendimento

das famílias, pela reconversão

do alojamento local com menos

procura ou como oportunidade de

investimento.

Luís Lima admite “uma tendência

de desvalorização do patrimó-

nio”, mas nada que se compare

com o efeito no tempo da Troika,

quando havia excesso de stock. “É

expetável que os valores caiam. Se

não acontecer, é por irracionalida-

de do mercado,” considera Filipe

Campos. Antes da pandemia, o

economista da Deco já via menos

rendimento disponível nas famílias

e dificuldades para comprar casa

nos grandes centros. Agora, a

descida dos preços e o aumento

da oferta poderiam impulsionar o

arrendamento de longo prazo: “Se-

ria bom que crescesse e concor-

resse com o mercado de compra,”

aponta.

Um inquérito recente do Confi-

dencial Imobiliário conclui que a

recuperação das vendas deste

setor pode demorar um ano a partir

do momento em que se controle o

surto. Já a C&W diz que os

fundamentais de atrativi-

dade do mercado naci-

onal se mantêm e que

Portugal continua no

radar dos investidores,

“com muitos inclusi-

ve já a preparar-se

para a retoma,

sobretudo os

mais bem

capitalizados”.

P.Z.G.

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Esta crise veio, de facto, expor a excessiva dependência que temos de outras geografias e do fornecimento de bens, até de alguns serviços, que foram deslocalizados nos últimos anos para outras zonas geográficas, nomeadamente para a Ásia”António Saraiva

Presidente da CIP

A ERA DA DESGLOBALIZAÇÃOOs planos de reindustrialização da Europa deverão ser acelerados, após as fragilidades expostas pela pandemia

“Portugal terá de voltar a pro-duzir o que se habituou a im-portar da China”, disse António Costa. E não é apenas o nosso País. Em muitas economias eu-ropeias e nos EUA, a pandemia fez com que governantes e em-presários chegassem a conclu-sões semelhantes. A Comissão Europeia prepara-se para uma redefinição do conceito de glo-balização. E, para muitas em-presas, ficou evidente de que depender da produção de um bem na outra ponta do mundo para manter a atividade é um sistema que pode ter falhas.

“Esta crise veio, de facto, expor a excessiva dependência que temos de outras geografi-as e do fornecimento de bens, até de alguns serviços, que fo-ram deslocalizados nos últimos anos para outras zonas geográ-ficas, nomeadamente para a Ásia”, afirma António Sarai-va à EXAME. O presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) defende que “a União Europeia deve imple-mentar uma reindustrialização estratégica, dando a cada Esta-do-membro, de acordo com as suas especificidades e desenvol-vendo as suas competências na-turais, produções próprias, de forma a trocar importações por fabrico interno.”

Nas últimas décadas, o pro-cesso de globalização levou à desindustrialização de muitos países europeus e mesmo dos EUA. Criaram-se cadeias de valor em que o Sol não se põe e muito complexas. A China e

outros países asiáticos torna-ram-se uma espécie de loja do mundo. Numa situação de cri-se em que fiquem paralisadas algumas regiões asiáticas ou os transportes de mercadorias, basta faltar essa peça na engre-nagem para muitas empresas pararem. Aliás, ainda antes de a pandemia chegar à Europa, já havia uma preocupação em relação ao impacto que o confi-namento na China iria criar no comércio e na economia in-ternacional. “Se determinado componente é produzido num país e se esse estiver numa crise, toda a cadeia para e isso levará as empresas a regressarem a ca-deias de valor regionais”, expli-ca Patrick Artus, economista do Natixis, num relatório recente.

Além da questão das cadei-as de valor, a Europa e também os EUA tornaram-se dependen-tes da China para conseguirem ter acesso a bens essenciais. O exemplo mais extremo é a cor-rida que existe entre os países ocidentais para convencerem fornecedores chineses a ven-derem-lhes material e equipa-mentos médicos essenciais ao combate à pandemia. Agora, a regra para grande parte dos países ocidentais poderá pas-sar a ser trazer mais atividade industrial para dentro de por-tas, “especialmente em áreas críticas e essenciais, como as farmacêuticas, defesa, infra-estruturas de saúde e tecnolo-gia”, sublinha Robin Parbrook, gestor da Schroders, numa nota aos investidores.

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Nuno Valério, professor catedrático do ISEG, lembra que, até à industrialização, “as grandes cri-ses resultavam sobretudo de más colheitas e que era muitas vezes na sequência das fomes que se verifi-cavam as epidemias”. Nos últimos 200 anos, Portu-gal enfrentou duas epidemias marcantes. A primeira foi uma “combinação de cólera e febre-amarela em 1855-1856”, cujas consequências foram impulsiona-das “por uma grande crise agrícola”, aponta Valério. Em 1900, houve uma epidemia semelhante, mas foi contida com um cordão sanitário no Porto.

O episódio mais conhecido aconteceria no arran-que do século XX, com a explosão da gripe de 1918, que ficaria conhecida como a “gripe espanhola”. “O número de mortos foi da ordem dos cem mil numa população de seis milhões. Entretanto, é claro que a sociedade estava muito fragilizada pela guerra de 1914-1918 e pelas suas sequelas. A redução da ativida-de económica foi grande, talvez da ordem dos 20%”, sublinha o economista.

Quem cresceu nessa altura não se esquece. E é provável que o mesmo aconteça com esta crise, ante-cipa Maria João Valente Rosa, entrevistada pela EXA-ME nas páginas seguintes. “Acho que não nos iremos esquecer – e não quer dizer que não soubéssemos estas coisas, só que elas não faziam parte das nossas reflexões – do facto de estarmos a viver com a incer-teza do amanhã. A curto e médio prazos vamos ficar com a ideia de que tudo pode mudar”, afirma a de-mógrafa e ex-diretora da Pordata.

É difícil que essa incerteza acrescida não condici-one comportamentos. Perante uma economia virada de cabeça para baixo, em poucas semanas, será que a “geração Covid-19” vai valorizar mais a segurança nas suas várias dimensões, do trabalho aos apoios soci-ais? “A geração Z será capaz de dizer “eu lembro-me onde estava” quando começaram a enviar cheques a toda a gente ou quando os cuidados de saúde se tornaram gratuitos para permitir que todos fossem testados”, diz, ao Axios, Jason Dorsey, presidente do Center for Generational Kinetics (CGK), referindo-se à realidade norte-americana.

Por cá, ao assistirem ao perigo de colapso do SNS, os jovens da geração Z exigirão o seu reforço? Ao ve-rem os pais sem rendimentos ou eles próprios sem trabalho, como olharão para os vínculos precários – Portugal tem um dos níveis mais altos da Europa – e para as condições de trabalho na gig economy? Novos apoios sociais abrangentes aumentarão a pressão por programas mais generosos? Nos EUA, onde temos mais dados e inquéritos, sabemos que a geração Z, nascida a partir de meados dos anos 90, é mais pro-gressista do que a anterior, os millennials que, por sua vez, já tinham uma visão menos conservadora do que os pais e os avós. Setenta por cento dos “Z’s”

Menos dependência de Pequim

A China tornou-se a fábrica do mundo. Mas os problemas nas cadeias de produção e a importância dos setores estratégicos poderão levar Portugal e a Europa a seguir uma estratégia de maior autossuficiência

Bruxelas tem dado sinais for-tes de que irá seguir esse caminho. Depois de a China ter ganhado in-fluência em empresas estratégicas europeias, como a EDP e a REN, por exemplo, desta vez a Comissão Europeia quer impedir que o Esta-do chinês faça o mesmo. Margre-the Vestager, vice-presidente da Comissão Europeia e que tem o pelouro da concorrência, deu luz verde aos governos europeus para entrarem no capital de empresas, de forma a impedirem compras a preços de saldo por parte de enti-dades relacionadas com Pequim.

Apesar de o caminho da des-globalização e da reindustrializa-ção se ter tornado mais evidente por causa da pandemia, esse pro-cesso já tem vindo a ganhar forma mesmo antes da Covid-19. “Esta ideia não é nova nem é apenas consequência desta crise”, diz An-tónio Saraiva. O responsável recor-da que “uma das primeiras linhas políticas desta nova Comissão Eu-

ropeia foi precisamente iniciar um processo de reindustrialização da Europa, assente nas valências de cada Estado-membro, com um grande enfoque na inovação, na digitalização, e sem esquecer as novas exigências que se colocam em termos da economia verde e da reutilização de recursos”.

A pandemia pode agora fazer acelerar esse processo. Patrick Ar-tus acredita que isso resulte numa maior reindustrialização em paí-ses como os EUA, o Reino Unido, a França e a Espanha. A consequên-cia é que as economias mais ex-portadoras e que servem como as lojas do mundo, como a chinesa ou a alemã, tenham de desindus-trializar-se.

No entanto, essa evolução não acontecerá de um dia para o outro, e as cadeias globais não serão cor-tadas pela raiz. “Obviamente não deixaremos de ter cadeias globais de abastecimento, nem tão-pouco faço a apologia da implementação de medidas de cariz protecionis-ta. Mas é essencial diminuirmos a excessiva dependência que temos de algumas geografias, não só pro-duzindo internamente como di-versificando as cadeias de abas-tecimento”, considera António Saraiva.

O caminho é para uma glo-balização mais moderada. Para a economia, Patrick Artus ante-vê que isso possa trazer mais in-flação, já que os produtos ficarão mais caros por não serem fabrica-dos em países com mão de obra barata. Outra das possíveis con-sequências será um reequilíbrio das balanças comerciais e de pa-gamentos. R.B.

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norte-americanos acham que o governo deve fazer

mais para solucionar os problemas do país, em vez

de deixar a sua resolução para empresas e indivíduos.

Essa percentagem é de 49% entre os baby boomers (nascidos no pós-II Guerra Mundial).

Esta atitude dos mais novos não surpreende. Se-

rão eles, provavelmente, os mais prejudicados por

esta crise. As recessões tendem a penalizar mais os

trabalhadores jovens, que têm contratos mais precári-

os e estão empregados em setores dos serviços muito

afetados por esta crise, e, seja pela informalidade do

vínculo ou pela carreira curta, muitos deles não têm

acesso a subsídio de desemprego. Num estudo sobre

o Reino Unido concluía-se que o grupo com maior

perda de rendimentos durante a pandemia corres-

ponde a esta descrição: homem jovem a trabalhar

numa pequena empresa.

Tal como nos ensinou a crise anterior, gerações

que passam por um grande choque económico ficam

com cicatrizes que podem nunca desaparecer. Susa-

na Peralta, professora da Universidade Nova, dizia à

EXAME de abril que “a cicatriz do medo e da falta de

confiança no futuro” irá prejudicar “a saúde psico-

lógica das pessoas, especialmente nas famílias que

têm menos recursos”, e terá “consequências drásti-

cas para uma geração de crianças educadas em casa”.

Um impacto que pode emperrar o elevador social.

O ESTADO COM MÚSCULOPara a geração que cresceu com um iPad na mão, a

integração com a tecnologia será ainda mais inten-

sa. O isolamento e a privação de contacto físico com

outras crianças e jovens – quando voltará a haver vi-

agens de finalistas? – podem prejudicar uma geração

que, segundo os estudos disponíveis, já tem mais pro-

blemas de saúde mental do que todas as anteriores,

normalmente relacionados com trabalho e situação

financeira.

Mais desamparados económica e socialmente, é

natural que exijam aos seus representantes eleitos

que atuem. Também isto não seria inédito. Períodos

de crise têm sido momentos de mudan-

ças sociais profundas. Os mecanismos de

Segurança Social norte-americana nas-

ceram das cinzas da Grande Depressão, e

a arquitetura social dos países ocidentais

ganhou forma no pós-II Guerra Mundial

(exemplo disso é o SNS britânico). Como

disse o chefe de gabinete de Barack Oba-

ma, quando o Presidente dos EUA tomou

posse em plena crise financeira, “uma cri-

se grave nunca se deve desperdiçar”. En-

costados à parede, os governantes arriscam soluções

e reformas que não considerariam noutras situações

de acalmia.

Margaret O’Mara, historiadora e professora na

Universidade de Washington, prevê que, “à medida

que acompanhamos os briefings diários de responsá-

veis de saúde pública, que ouvimos as orientações dos

governantes regionais e que procuramos

ajuda e esperança nos nossos líderes na-

cionais, vamos percebendo o papel deci-

sivo que o “Estado grande” tem nas nossas

vidas e na nossa saúde”. “Também vemos

as consequências mortais de quatro déca-

das de desinvestimento nas infraestrutu-

ras públicas e de desvalorização da espe-

cialização do setor público”, acrescenta

ao Politico.

A exigência de resposta ao coronaví-

rus está a empurrar os governos para a expansão dos

poderes do Estado, avançando com um nível de in-

tervenção na economia que, há poucos meses, seria

A exigência de resposta

ao coronavírus está a empurrar

os governos para a expansão

os poderes do Estado

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M A I O 2 0 2 0 . EXAME . 1 7M A IM A III O 2O 2O 22O 222 0 2 00 2 00 2 00 2 00 2 00 2 00 00 2 0 . . EXAEXAEXAEXAEXAEXAEXAEXAEXAEXAEXAEXAEXAEX MMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM

impensável. Em Portugal, se contarmos com a Fun-

ção Pública, o Estado já é total ou parcialmente res-

ponsável pelo pagamento de salários a metade dos

trabalhadores. Os apoios sociais que exigem condi-

ções – RSI, CSI ou subsídio de desemprego – foram

estendidos automaticamente, cada vez mais empresas

dependem da cedência de liquidez do setor público e

é possível que seja necessário recorrer à nacionaliza-

ção da TAP. Ao mesmo tempo, o estado de emergência

concedeu enormes poderes de limitação dos movi-

mentos e de direitos dos cidadãos que constituem

riscos para a sua privacidade e, nalguns países, para

a própria democracia.

Os défices vão disparar e a dívida pública arris-

ca atingir níveis insustentáveis. Para lidar com esse

desequilíbrio das contas, podemos ter de optar en-

tre uma repetição das vagas de austeridade aplicadas

durante a crise anterior e soluções novas e radicais

Negócios

O confinamento fez-nos depender mais do comércio online. Empresas terão de adaptar-se mais depressa a essa realidade

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DEVAGAR E COM CAUTELAS No setor das viagens e do turismo, confiança e segurança são chaves para a retoma. E oportunidade para surgirem novos produtos

Com 187 países ou territórios su-

jeitos a confinamento e medidas

de distanciamento social que po-

dem ir até 2022, os negócios das

viagens e do turismo devem reini-

ciar aos solavancos e trazer novas

experiências, que combinam o

afastamento, a desinfeção de

espaços e a gestão de concentra-

ções através da tecnologia. Numa

primeira fase, a IATA admite que a

ocupação dos aviões seja cortada

em um terço. A Wizzair pondera

distribuir materiais de proteção

pelos passageiros e a Emirates

já faz testes à Covid-19 antes do

embarque.

Eduardo Abreu, sócio da consul-

tora Neoturis, nota que a aviação

combina todos os elementos de

risco ligados à transmissão do

vírus – pessoas de várias origens

e nacionalidades, aglomeradas e

em trânsito pelos aeroportos ou

confinadas num avião.

Sem datas para reabrir fronteiras

e aeroportos, há a juntar os re-

ceios, que geram um efeito “pior

do que o 11 de Setembro”, arrisca

John Strickland. O britânico, dono

da JLS Consulting, diz à EXAME

que o transporte aéreo demorará

no mínimo “dois ou três anos a

recuperar”, seja com ajudas de

Estado (possível caso da TAP) ou

com fusões e aquisições. O mo-

delo low-cost provavel-

mente sobreviverá,

mas os clientes

empresariais

vão poupar

nas viagens

e evitar

deslocações,

usando

tecnologias.

Depois da

crise, arrisca,

muitos não terão

dinheiro para lazer

e a questão ambiental vai subir na

agenda.

Eduardo Abreu prevê menos via-

gens de longo curso e mais para

destinos internos – o primeiro-

-ministro já desafiou os portugue-

ses a ficarem cá dentro no verão

–, além de reservas em cima da

hora (a menos que haja grandes

descontos). É provável uma desci-

da “não particularmente significa-

tiva” dos preços na hotelaria, mas

no transporte aéreo dependerá,

além dos combustíveis, das

limitações de capacidade das

companhias e da procura.

Com os consumidores preocupa-

dos com concentrações de pesso-

as e com as condições sanitárias

dos destinos, o segmento jovem,

turistas de países com pandemia

mais controlada ou operadores

turísticos que garantam clientes

saudáveis no início da viagem são

caminhos a explorar por Portugal.

E haverá, afirma o consultor,

espaço para ofertas hoteleiras

num “modelo all inclusive (...), que

permaneçam no hotel durante

toda a sua estada; uma espécie de

confinamento turístico”. O facto

de o País ser percecionado como

seguro pode ajudar a alavancar

uma recuperação mais rápida das

empresas. Já John Strickland de-

fende que se continuar, como até

agora, a haver um menor

efeito da Covid-19 nas

mortes em Portugal

em relação a

outros destinos

turísticos, essa

circunstância

pode ajudar

o País a

“ter uma

vantagem

relativa”.

P.Z.G.

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Após esta crise, o que exigirá a população ao SNS? O que acharão da “gig economy”? E do papel dos apoios sociais?

O REGRESSO DO ESTADO?A resposta ao choque económico do coronavírus está a exigir um Estado mais interventivo e com mais poderes. Está para ficar?

A dimensão do choque provo-

cado pela Covid-19 está a fazer

dos Estados o centro do univer-

so da resposta, tanto à emer-

gência de saúde pública como

àquela que pode ser a maior

crise económica em quase 100

anos. O setor público terá de

servir como ponto de socorro

para os diferentes setores de

atividade, procurando man-

tê-los à tona. Mesmo quando

a pandemia passar, podemos

estar perante um caso de caixa

de Pandora: não é claro que seja

possível voltar atrás.

Em poucas semanas, o co-

ronavírus poderá ter sido res-

ponsável por um fast forward

na forma como muitos olham

para a economia. Rapidamen-

te, ficou claro que adiar inves-

timentos públicos em saúde é

perigoso, que um Estado bem

preparado é importante em

momentos de aperto, que pode

ser boa ideia colocar incentivos

no terreno para tornar os fluxos

de comércio internacional me-

nos vulneráveis e que os gover-

nos provavelmente deveriam

ter um papel mais interventivo

na correção das desigualdades

na sociedade. Pelo caminho,

alguns tabus podem desapa-

recer, seja o financiamento de

défices por bancos centrais ou

a criação de rendimentos in-

condicionais. Em maior ou em

menor medida, o que estamos

a assistir aponta para um sen-

tido: um Estado mais presente

na economia, com mais pode-

res e mais responsabilidades.

“Eu julgo que é incontorná-

vel o facto de esta crise ter con-

sequências muito piores, por-

que o Estado andou a dormir

nas últimas décadas. Não só

evitávamos uma parte dos cus-

tos económicos – se houvesse

excesso de capacidade nos sis-

temas de saúde que nos permi-

tisse continuar uma vida mais

normal – como a enorme de-

sigualdade da sociedade piora

as consequências disto”, apon-

ta Susana Peralta, economista

da Nova SBE. “Basta pensar na

diferença entre quem tem vín-

culos laborais e vai continuar a

receber o salário e depois en-

tre a enorme massa de pessoas

com horário zero, sem víncu-

los estáveis, informais e pro-

prietários de pequenos servi-

ços de proximidade. Para não

falar nas crianças que ficam

sem uma alimentação decen-

te porque as escolas fecham.”

O que já está a acontecer no

terreno? Por esta altura, se con-

tarmos com o número de fun-

cionários públicos, o Estado

português paga o salário total

ou parcial a metade dos traba-

lhadores de todo o País. O lay-off simplificado já ultrapassa o

milhão de pessoas; os recibos

verdes com apoios já vão em

perto de 150 mil, e o apoio à

família já ultrapassa esse nú-

mero. Os apoios sociais estão a

ter um reforço abrangente. Em

Portugal, por exemplo, os sub-

sídios de desemprego, o Ren-

dimento Social de Inserção e o

Complemento Solidário para

Idosos foram automaticamen-

te renovados. Outros países es-

tão a ir mais longe. Nos EUA,

Donald Trump anunciou o en-

vio de cheques para a casa de

todos os norte-americanos. Ao

mesmo tempo, crescem os nú-

meros de empresas dependen-

tes da liquidez concedida pelo

Estado. A 18 de abril, já havia

16,5 mil empresas portuguesas

candidatas às quatro linhas de

crédito de apoio à economia,

que ascendem a 6,2 mil mi-

lhões de euros.

A intervenção do Estado

não deve ficar por aí. Mário

Centeno já admitiu que, caso

seja necessário, o Governo po-

derá considerar nacionalizar a

TAP. Itália já anunciou a nacio-

nalização da Alitalia. O minis-

tro das Finanças francês disse

que o seu executivo estava

preparado para nacionalizar

grandes empresas, e o governo

alemão passou mensagem se-

melhante: grupos estratégicos

podem ter esse destino. Todas

estas transformações acaba-

rão refletidas nos indica-

dores de contas públicas,

com o engordar de

défices orçamen-

tais e a explosão

de dívida pública.

E essa é só a

dimensão econó-

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– alguns diriam perigosas. Por isso é que estamos a

assistir a medidas (quase) inéditas no plano monetá-

rio, como foi o programa de compra de ativos lançado

em tempo recorde pelo BCE, para controlar a subida

de juros dos países do euro, ou a decisão de o Banco

de Inglaterra financiar diretamente a despesa pública

do Reino Unido. “Para todos os efeitos, isto significa

que o banco central está simplesmente a imprimir

dinheiro. Que isto esteja sequer a ser considerado, e

por um governo conservador, é prova da gravidade

da situação”, escreve o historiador Adam Tooze, na

Foreign Policy. “É também indicativo de que, em vez

de provocar indignação e vendas em pânico, a decisão

do Banco de Inglaterra, até agora, provocou apenas

um encolher de ombros dos mercados financeiros.”

Se estes tiros não saírem pela culatra, é expectável

que haja pressão para que sejam utilizados com mais

frequência, noutros momentos de crise.

Mas nem tudo vai desaparecer com um estalar de

dedos, assim que o coronavírus deixar de ser uma

preocupação. É provável que esta crise deixe feridas

que exigirão uma intervenção pública durante algum

tempo. A dívida pública demorará a descer, o Gover-

no português já admite estender o layoff simplificado

para lá da duração do atual pico da Covid-19 e muitas

empresas precisarão de mais tempo para se manterem

à tona, principalmente se dependerem da atividade tu-

rística. Se o desemprego permanecer elevado, também

pode não ser fácil voltar a limitar algumas prestações

sociais. António Costa já adiantou que a fase de recupe-

ração poderá envolver emprego público, por exemplo,

na área das florestas. É provável que o investimento

público de larga escala também faça parte do cardápio.

O Financial Times, não propriamente um defen-

sor da intervenção estatal, pedia num editorial recen-

te “reformas radicais”. “Os governos terão de aceitar

um papel mais ativo na economia. Têm de olhar para

os serviços públicos como investimentos, em vez de

passivos/obrigações, e encontrar formas de tornar o

mercado de trabalho menos inseguro”, podia ler-se

no texto publicado no início de abril.

“Tendo-se chegado à frente para providenciar

tanto durante a crise, o Estado não deverá simples-

mente recuar até às suas formas e dimensões anteri-

ores, assim que isto acabar, uma vez que não foi isso

que fez no passado”, escreve Daniel Susskind, autor

de Um Mundo sem Trabalho. “Muitos dos estados so-

ciais mais fortes da Europa encontraram a sua forma

inicial no pós-guerra. Imagino que o mesmo aconte-

cerá na nossa era.”

�DES�UNIÃO EUROPEIA?Esta capacidade de intervenção do Estado não está

garantida no médio prazo. Em economias mais frá-

geis, como é o caso da portuguesa, ela está depen-

Primeira resposta

O ministro da Economia tem sido a face dos apoios desenhados pelo Estado para tentar segurar empresas e empregos

ção da economia.”

Um dos sinais de que a forma

como se olha para o Estado pode

estar a mudar foi dado pelo Fi-

nancial Times. O jornal britânico

não é conhecido por defender as

intervenções musculadas do Es-

tado, mas escreveu um editorial a

sublinhar que esta é a altura para

mudarmos a forma como olha-

mos para o papel do setor público.

O jornal pedia “reformas radicais”

que invertessem a direção política

das últimas quatro décadas. “Os

governos terão de aceitar um pa-

pel mais ativo na economia. Têm

de olhar para os serviços públi-

cos como investimentos, em vez

de passivos/obrigações, e encon-

trar formas de tornar o mercado

de trabalho menos inseguro”. No

editorial pedia-se também mais

medidas de redistribuição – re-

feria em concreto o rendimento

básico incondicional e impostos

sobre a riqueza – e lembrava-se

que o pós-II Guerra Mundial trou-

xe reformas profundas na arqui-

tetura dos Estados.

No entanto, nem todos con-

cordam que esse deverá ser o

corolário da crise (e resposta) à

Covid-19. Fernando Alexandre

argumenta que a “economia de

mercado, mais ou menos regu-

lada, provou ser o sistema eco-

nómico que melhor satisfaz as

necessidades materiais das po-

pulações” e que, passada a pan-

demia, “o pêndulo deslocar-se-á

novamente no sentido da econo-

mia de mercado e do recuo do Es-

tado”. Susana Peralta contrapõe:

“Espero que esta consciência de

que grandes riscos como este só

podem ser mitigados pelos Esta-

dos possa levar as pessoas a re-

investirem no Estado Social e na

redistribuição a sério do rendi-

mento e da riqueza, como acon-

teceu no pós-guerra”. O debate,

esse, está garantido. N.A.

mica. O estado de emergência

confere ao Governo poderes ex-

traordinários, de supressão da

mobilidade das pessoas, de limi-

tação da atividade das empresas

e de proibição de manifestações

religiosas ou sindicais. Já existe

um debate sobre os riscos que

essa dimensão mais poderosa,

conjugada com a necessidade de

contínuo controlo de movimen-

tos, pode ter para os direitos de

privacidade dos cidadãos.

A tentação de muitos será

achar que isto é provisório e que

tudo regressará à normalidade,

assim que houver uma vacina ou

a imunidade de grupo for atingi-

da. Porém, do lado económico, as

consequências vão durar muito

mais tempo do que a recessão. É

possível que uma geração acabe

influenciada por este período?

Que opinião terá sobre a neces-

sidade de um SNS forte? Ao ver

os pais sem rendimentos ou ela

própria sem trabalho, como verá

os vínculos precários da gig eco-

nomy? Apoios sociais abrangen-

tes aumentarão as exigências de

esse tipo de programas?

Fernando Alexandre, profes-

sor na Universidade do Minho,

não vê outra hipótese, a curto

prazo, que não seja a extensão dos

poderes do setor público. Numa

primeira fase desta crise, em que

observamos “falhas no funciona-

mento dos mercados”, o Estado

deve intervir para “proteger o ren-

dimento e o emprego das pesso-

as, e criar condições de liquidez e

solvabilidade das empresas”, ex-

plica à EXAME. “A coordenação

do Estado será essencial no con-

trolo da pandemia e na recupera-

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dente das soluções comuns que sejam possíveis de

encontrar no quadro europeu. E, nesse campo, há

mais dúvidas do que certezas.

Na altura em que este texto é escrito, ainda não

há garantia de que os Estados-membros cheguem

a acordo sobre uma resposta orçamental comum à

crise provocada pela Covid-19. O que já temos por

certo é que a atual situação fez a União Europeia re-

gressar aos conflitos Norte-Sul que marcaram a cri-

se anterior. As acusações são muito semelhantes: o

Sul não se preparou o suficiente para a crise; o Norte

não é solidário.

Contudo, desta vez, a relação de poderes é um

pouco diferente e a Alemanha parece estar mais fle-

xível. Bernardo Pires de Lima reconhece que “existem

amarguras” desde a crise anterior, mas lembra que “a

política europeia sempre foi suja” e que está otimista

em relação ao desenlace das negociações. “A história

da Europa mostra que as situações-limite geram so-

luções.” Desta vez pode não haver outra opção. “Não

há sobrevivência do euro sem a sobrevivência de Itá-

lia”, afirma o especialista em política internacional.

Grégory Claeys, do Bruegel, está mais pessimis-

ta. “Muitas pessoas podem ficar desiludidas e even-

tualmente existirá alguma pressão dos eurocéticos.

Poderá haver algum tipo de fragmentação do euro,

entre países que podem ter um programa ambicioso

de recuperação e países que não o podem fazer”, diz

à EXAME. Os italianos estão cada vez mais desapon-

tados com a UE e dois terços já a veem como uma

desvantagem para o país. Provavelmente muitos não

se esquecerão de que, na hora de maior aflição, a UE

se deixou ultrapassar pela China no auxílio às regiões

italianas mais atingidas.

O risco de “Italexit” vai subindo, devagarinho é

certo. Mas as crises anteriores já nos mostraram que

os cisnes negros – de baixa probabilidade, mas de

impacto gigante – aparecem. E se os erros e a falta de

ação da última crise se repetirem, o projeto europeu

pode muito bem terminar. Jacques Delors considera

que a Europa enfrenta um “perigo mortal” e António

Costa avisou que ou “a União Europeia faz o que tem

de fazer ou a União Europeia acabará”.

Enquanto Norte e Sul parecem estar em conti-

nentes opostos, tem sido o Banco Central Europeu a

segurar as pontas e a impedir, novamente, que a Zona

Euro se desintegre. Mas não é função de um banco

central ser o principal responsável por assegurar que

um projeto económico e social não se dissolva. Ch-

ristine Lagarde tem deixado isso bem claro nas men-

sagens aos chefes de Estado. “Não penso que alguém

esteja à espera de que seja um banco central a estar

na linha da frente na resposta”, afirmou, quando os

países europeus se viram confrontados com a para-

lisação económica.

TRABALHO A.C./D.C.O termo já se começou a tornar usual entre os especialistas e diretores de Recursos Humanos: vamos mesmo ter uma forma de trabalhar Antes da Covid (a.C.) e outra depois da Covid (d.C.). Ou, por outras palavras, esqueça a forma de trabalhar como até aqui a conheceu

Em média, foram duas sema-

nas. Depois de vários anos a

discutir sobre se seria possível

os trabalhadores serem igual-

mente produtivos em modo de

teletrabalho, a verdade é que fo-

ram precisos apenas 15 dias para

que as empresas, cujas funções

o permitem, colocassem, se não

todos, pelo menos grande parte

dos seus funcionários a trabalhar

remotamente. Num inquérito do

Centro de Estudos e Sondagens

de Opinião (Cesop) da Univer-

sidade Católica para o Público

e a RTP indicava-se que 23,2%

dos portugueses estavam em te-

letrabalho desde que o País en-

trou em isolamento voluntário,

com 70% destes a garantirem

que a experiência estava a cor-

rer bem – apesar dos constran-

gimentos potenciados pelo facto

de os filhos também estarem em

casa, em regime de ensino a dis-

tância ou de férias. Esta é, possi-

velmente, a alteração mais visí-

vel, em termos de trabalho, que

a Covid-19 trouxe no último mês.

Mas o que ficará desta experiên-

cia, de forma estrutural, para o

futuro? “Eu acho mesmo que o

teletrabalho veio para ficar”, co-

meça por dizer Catarina Horta,

diretora de Recursos Humanos

do Novo Banco. Ao telefone com

a EXAME, admite que está no es-

critório por questões de exemplo

– “temos 350 balcões abertos; as

minhas pessoas estão a trabalhar

presencialmente, e eu acho que

também devo estar ”–, mas que

alterou profundamente a modo

como gere o dia e as reuniões.

Toda a gente tem de usar más-

cara e não é permitido que mais

de quatro pessoas estejam reu-

nidas numa sala de 100 metros

quadrados. “Não nos cumpri-

mentamos, falamos à distância.

E temos de ter consciência de

que, a partir de agora, vamos li-

dar de forma diferente [uns com

os outros]”, nota. Mas o que é

preciso é “transformar as fra-

quezas em forças”, desdramati-

za. Afinal, a indústria farmacêu-

tica internacional, cita em jeito

de exemplo, há mais de 20 anos

que usa o teletrabalho de forma

eficaz. “Quando cheguei a Por-

tugal, achavam que eu era tonta,

por propor reuniões à distância.

Afinal...”, atira com um sorriso

no rosto, recordando os tempos

em que trabalhou fora do País.

Que o teletrabalho terá vindo

para ficar, parece ser unânime.

E esta, embora seja uma forma

de produção possível, sobretudo

entre quem ganha salários mais

elevados, é uma alteração rele-

vante para o mercado. É possível

que não o continuemos a fazer tal

como agora – todos os dias, a full time e sem alternativas –, mas a

forma como continuará a fazer

parte das nossas vidas será dita-

da pela postura da empresa, do

trabalhador e, acima de tudo, das

lideranças. “A questão é que, para

dar o salto [para o trabalho re-

moto], perdemos o controlo das

pessoas e nós temos algum medo

disso”, nota Maria João Valente

Rosa, socióloga e antiga diretora

da Pordata. Bastante crítica das

lideranças atuais (ver entrevista

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M A I O 2 0 2 0 . EXAMEM A IM AMM AM AM AM OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO

O teletrabalho veio para ficar, bem como os horários flexíveis

mosVid ullore con corit eius

Em reri destistrum quissinum quiatur aut eum des que volum et hillis inci qu Itae voluptia ium volupta ipsam fugit lam qui ommo

da página 30), a responsável sublinha que, “se calhar, se ti-véssemos reais avaliações de desempenho, já teríamos dado o salto”. Adam Grant é profes-sor de Gestão e Psicologia na Wharton School, da Univer-sidade da Pensilvânia, e, cita-do recentemente pelo World Economic Forum, dava conta da importância das lideran-ças a partir de agora: “Esta é uma altura em que os líderes têm de mostrar-se flexíveis e de ter compaixão, dando aos seus trabalhadores a liber-dade de escolherem quan-do, como, onde e com quem querem trabalhar”. Na mesma ocasião, o especialista referia a importância de garantir o sen-timento de pertença a uma or-ganização, através, por exem-plo, de viagens virtuais pelos novos espaços de trabalho de cada colaborador, mas tam-bém salientava a necessidade de se repensar, por exemplo, a

quantidade de reuniões que, de repente, tomaram con-ta dos nossos dias. “Estamos sentados em videoconferên-cias durante todo o dia [o que pode, também, penalizar os funcionários mais introverti-dos], ao invés de estarmos a dizer: ‘Sabem uma coisa? Se calhar devíamos ter menos re-uniões’.” Questões de hábito que, à partida, serão normali-zadas com o passar do tempo, mas sobre as quais é preciso começar a pensar já.

No mesmo sentido, espe-cialistas ouvidos pela Har-vard Business Review e por consultoras, como a E&Y, lembram aos gesto-res que é urgente repen-sar a questão do dia com oito horas de trabalho e a tão aclamada concilia-ção entre a vida profissio-nal e a pessoal, que se tem provado, afinal, possível. Sobre-

tudo porque ninguém perde tempo nos percursos de e para o trabalho, e porque as tare-fas têm de ficar definidas mais concretamente com maior re-gularidade. Outra das reco-mendações dadas aos líderes é a de que, após o período de pandemia, se recordem de to-das as vezes que penalizaram funcionários que pediram um horário mais flexível ou para passarem menos tempo em viagens – muitos dos quais garantiram a manutenção dos níveis de produtividade dessas mesmas organizações, traba-lhando a partir de casa e com os filhos por perto.

Num outro sentido, Cata-rina Horta salienta as altera-ções que vão acontecer ao ní-vel dos escritórios, cujas áreas possivelmente vão ficar mais reduzidas, em consequência da rotação de colaboradores que deverão ficar a trabalhar remotamente e também dos vários postos de trabalho que vão, inevitavelmente, desapa-recer, como “deverá ser o caso de alguns cargos administra-tivos e os de ligação às admi-nistrações, que se revelaram, agora, perfeitamente dispen-sáveis”. Em resumo: o que im-porta agora é “transformar as nossas fraquezas em forças”, tendo consciência de que a maior parte das alterações que estamos a viver veio para fi-car, “sob pena de isto ser mui-to pior”, conclui a responsável

do Novo Banco, antes de seguir para mais

uma teleconfe-rência.

GETT

Y IM

AGES

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Crises passadas já significaram passos de gigante

para uma maior integração europeia. Esse caminho

pode acelerar. Beatriz Soares Carneiro, consultora es-

pecializada em assuntos europeus, considera que a

solidariedade com as economias em maior dificul-

dade de recuperação deste choque económico che-

gará sempre com condições associadas: “Ou chega

pela via da condicionalidade associada a emprésti-

mos (como na Troika) ou por um maior centralismo

em Bruxelas, por via do controlo orçamental e da

harmonização fiscal.”

A decisão que os líderes de Norte a

Sul terão de tomar é se querem continu-

ar numa Europa a velocidades cada vez

mais diferentes, com países ressentidos

e em risco de baterem com a porta, ou

se preferem abraçar a coordenação para

garantirem uma menor dependência de

outras potências e evitarem perder influ-

ência num mundo pós-pandemia, que

poderá ser marcado por uma maior ne-

cessidade de autossuficiência.

A pandemia afetou as cadeias

de fornecimento, que nós dávamos

como garantidas nas últimas décadas,

e pode refrear a globalização

RECUO DA GLOBALIZAÇÃOO “Grande Confinamento” impôs uma travagem

brusca nas nossas vidas e rotinas. E é normal que

essa pausa forçada nos leve a questionar o funciona-

mento da nossa sociedade e da nossa economia – e

até de pilares considerados sagrados.

“Esta crise irá, muito provavelmente, provocar

uma redefinição das nossas estratégias, da nossa ge-

opolítica e, eventualmente, até da própria globaliza-

ção”, afirmou Ursula von der Leyen no Parlamento

Europeu. A pandemia afetou as cadeias de

fornecimento, que nós dávamos como ga-

rantidas nas últimas décadas. Sem peças

vindas da China dificilmente saem carros

de fábricas em Palmela. E a falta de pro-

dução interna deixou muitos países de-

pendentes da boa vontade chinesa e de

outros países para conseguirem material

de proteção e de equipamento de saúde

para lidarem com a pandemia.

“Esta crise veio, de facto, expor a ex-

cessiva dependência que temos de outras

Se a atual pandemia trouxe mar-cas duradouras, uma delas será a mudança na forma de trabalhar na investigação científica, mais concentrada no agora, atesta Carla Nunes. “Ganhámos a noção de ur-gência na investigação, porque os resultados são necessários hoje, para que possam ser realmente úteis agora, o que não é normal na nossa investigação.” A diretora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) detetou, por outro lado, “mudanças estruturais” na pres-tação de cuidados e serviços de saúde nos doentes por Covid-19, passando pela integração de cui-dados no domicílio e hospitalares, pelo rastreio de contactos e pela articulação entre todos os agentes.Já para Óscar Gaspar, a pande-mia funcionou como um toque a rebate que é preciso não ignorar. “Acredito que esta crise sanitária e a comoção social provocada levem

a que se assuma a saúde como uma prioridade.” Para o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), é preciso aumentar o investimento em saúde no País, nos próximos anos, reforçando o financiamento do SNS e aproveitando a oferta e a capacidade de investimento nos privados, desde logo num plano de emergência para se recuperar as intervenções que não foram feitas em março e em abril, por receio de os portugueses se desloca-rem aos hospitais. Já o plano de recuperação, na Europa, tem de pôr a saúde na linha da frente. “Não precisamos apenas de construir estradas ou pontes. Precisamos de investir em infraestrutura digital, em soluções sustentáveis, em saúde antes do próximo vírus,

em tecnologia.”Desde logo, digitalização através de teleconsultas, monitorização domiciliária ou aplicações de diagnóstico e terapêutica, atração de investimento direto estran-geiro na área da saúde (indústria farmacêutica, dispositivos médicos ou equipamentos) e reforço da posição nos ensaios clínicos são prioridades que devem guiar Por-tugal nos próximos anos, defende o presidente da APHP.Ainda com meio mundo a tentar achatar a curva do atual surto,

Carla Nunes entende que o pós-pandemia exigirá

a todos infraestrutu-ras de saúde pública, que detetem a tempo o surgimento de novas doenças,

e que os países ajam de forma concertada: “O

que aprendemos é que realmente existem problemas que, mesmo que se iniciem num local pequeno, depressa se podem tornar mundi-ais, com uma enorme magnitude e gravidade, nomeadamente em termos económicos e de saúde. Já o sabíamos, mas estávamos um pouco esquecidos”, diz.Embora o papel de algumas orga-nizações internacionais saia refor-çado, a diretora da ENSP sublinha a necessidade de uma abordagem “acima” dos países, com “grande transparência, organização, cooperação e legislação nacional, internacional e global”, e de haver “estruturas que pensem, planeiem e desenhem intervenções perante estas situações”. E acredita que “o setor público sai reforçado” desta crise, porque o SNS aguentou o embate até ao momento, tendo o setor privado como complemento em horas de necessidade. PZG

INVESTIGAÇÃO A TODO O VAPORA Covid-19 acelerou os ritmos da investigação científica e realçou o papel do sistema público de saúde, num momento em que o SNS está a dar conta do recado. Mas os privados, com um papel complementar importante, pedem mais investimento em saúde “antes do próximo vírus”

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Corte: 14 de 19ID: 86252910 01-05-2020geografias e do fornecimento de bens, até de alguns

serviços, que foram deslocalizados nos últimos anos

para outras zonas geográficas, nomeadamente para

a Ásia”, observa António Saraiva, presidente da CIP.

Para as empresas, as cadeias de abastecimento regi-

onais tornam-nas menos dependentes de crises em

países distantes, passando a ser mais fácil resolver

eventuais problemas de fornecimento. Já os gover-

nos vão querer ancorar nos seus territórios os centros

de decisão de empresas de setores estratégicos. Não

é por acaso que a Comissão Europeia está a tomar

medidas para impedir que o Estado chinês consiga

participações a preços de saldo em empresas euro-

peias, como aconteceu na última crise. Este recuo

na globalização e o objetivo de maior autossuficiên-

cia poderão significar a reindustrialização de muitos

países europeus e da UE.

Do lado do movimento de pessoas, em abril, Do-

nald Trump decretou uma proibição da imigração

para os EUA durante 60 dias, dizendo que pretende

proteger os empregos dos norte-americanos em altu-

ra de crise. Será que, mesmo passada a emergência de

saúde pública, essa medida – que agrada muito à sua

base – será revertida ou permanecerão limitações? E

que influência terá essa decisão no resto do mundo?

Não é possível simplesmente passar a globalização

de on para off. Será necessário preparar e reindus-

trializar as economias. Na UE, a Comissão Europeia

pretende que o foco seja a inovação. Von der Leyen

quer que o arranque da economia após o “Grande

Confinamento” seja no sentido de uma “Europa mais

resiliente, ecológica e digital”. A ideia é a de que o

plano de recuperação tenha um eixo de sustentabi-

lidade, assente numa reconfiguração das indústri-

as e serviços. Patrick Artus, economista do Natixis,

acredita que, após a reflexão forçada pelo período de

isolamento, as opiniões públicas dos países mais ricos

se tornarão mais exigentes quanto ao tipo de políti-

cas a seguir. Haverá mais pressão para que se tomem

decisões a pensar no longo prazo e uma espécie de

recriminação das políticas ou de modelos de negócios

desenhados para se obter ganhos rápidos, indepen-

dentemente dos danos que possam causar no futuro.

As políticas económicas deverão privilegiar o in-

vestimento em saúde e investigação, já que há sempre

novas ameaças à espreita e, pelo menos num futuro

previsível, serão poucos os que desejarão baixar a guar-

da. Algumas das preocupações pré-Covid poderão in-

tensificar-se, como é o caso das alterações climáticas. E

se a Europa já se preparava para uma espécie de Green

New Deal, esta será uma oportunidade para execu-

tar essa política, direcionando recursos e adaptando

comportamentos no sentido da proteção ambiental.

Apesar de muitos governantes e economistas

apontarem nesse sentido, após uma recessão como

O LONGO SUSPIRO DA TERRAPeríodo de confinamento à escala global permitiu alívio nas alterações climáticas mas problemas estão longe de ser resolvidos

Os Himalaias que voltaram a ser

visíveis da Índia. Os canais de

Veneza que são novamente azuis,

e com peixes a nadarem nas águas.

Veados a passear nas ruas de

Jerusalém. Entardeceres límpidos

no horizonte de São Paulo. As

consequências da alteração abrupta

do estilo de vida de todas as pessoas

em redor do mundo tornaram-se,

de repente, visíveis. “Tem que ver

com a escala do comportamento, de

que falo recorrentemente”, explica

Pedro Matos Soares, físico especi-

alista em alterações climáticas. “As

pessoas dizem, muitas vezes, que

o que fazem não tem impacto, mas,

tal como na economia, há escalas de

comportamento também no ambi-

ente, porque se cada pessoa influ-

enciar duas e se essas influenciarem

quatro, e por aí em diante, a curva de

alteração comportamental pode ser

muito benéfica para a sociedade. O

comportamento diferenciado ganha

escala, como foi o caso, e ganhando

escala pode fazer alguma diferen-

ça”, resume à EXAME o investigador

do Instituto Dom Luiz, da Faculdade

de Ciências da Universidade de

Lisboa. “Esta pandemia é uma coisa

horrível, e o que mais me preocupa

são as pessoas que estão a sofrer

direta e indiretamente com ela”,

começa por dizer o especialista que

espera, no entanto, que governantes

e sociedades não deixem de retirar

lições que lhes permitam traçar uma

estratégia de futuro. Para Matos

Soares, pequenos exemplos como

o recurso ao teletrabalho e o

cancelamento de viagens

não essenciais podem

transformar-se em

armas poderosas

contra as alterações

climáticas. “Se nós ti-

véssemos 10% da nossa

economia a produzir

sem que isso

obrigasse a transportes, e falando de

forma muito genérica, isso era uma

forma de contribuir para a qualidade

do ar”, salienta, recordando que, em

Portugal, perdem a vida milhares de

pessoas devido a problemas de saú-

de resultantes da poluição. Consci-

ente de que no período de recessão

que se adivinha as preocupações

com a mitigação da pobreza, de uma

forma imediata, vão estar no topo

das prioridades, Matos Soares alerta

para a necessidade de “não se recor-

rer a técnicas antigas para se mitigar

os problemas”. E pede coragem a

quem tem como missão pensar o

futuro. “Temos aqui uma oportu-

nidade para nos diferenciarmos no

que são os estímulos à economia.

Creio que o Governo devia mostrar

que tem uma visão estratégica para

o País, com estímulos que mostras-

sem qual a economia que queremos

para o futuro: apostar nas empresas

que são ambientalmente respon-

sáveis, ajudar as que estão a fazer

essa transição, investir em negócios

relacionados com as smart grid e

com as energias renováveis; ter

atenção à questão da reabilitação do

edificado com eficiência energética,

que ajuda a diminuir a pobreza ener-

gética; fomentar práticas agrícolas

mais sustentáveis em que podemos

incrementar a nossa independên-

cia... Temos aqui uma série de coisas

que as pessoas percecionam e que

era importante não esquecer”. Afi-

nal, este período de confinamento

global trouxe algum alívio imediato

ao planeta, mas os problemas

continuam muito presentes na

atmosfera – basta olhar para

o nível dos gases com efeito

de estufa em Portugal, que

estão mais elevados do

que no ano passado. E já

diziam os nossos avós: é

preciso aprender com

os erros.

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Área: 18,60 x 24,30 cm²

Corte: 15 de 19ID: 86252910 01-05-2020nunca vimos, com milhões no desemprego, também

é provável que apareçam vozes a pedir para se carre-

gar no acelerador da atividade e para que se guardem

as preocupações com o ambiente para depois. Deci-

dir qual das teses prevalecerá dependerá muito das

opções que cada um de nós tomar e daquilo que exi-

giremos aos governantes, às empresas e também aos

gestores de fundos que determinam quem é recom-

pensado e quem é penalizado no mercado de capitais.

Depois dos apoios em massa que os Estados estão

a conceder a muitos gigantes do setor privado, alguns

dos quais gastaram fortunas em recompra de ações

e em bónus aos seus administradores, a pressão pú-

blica pode levar os investidores a serem menos com-

placentes com esse tipo de estratégias. Ainda antes

da pandemia, até os CEO de algumas das maiores

empresas norte-americanas já assumiam que terí-

amos de caminhar para um novo capitalismo, em

que a empresa deveria também estar ao serviço da

sociedade e não ter exclusivamente como propósito

a remuneração dos seus acionistas.

Robin Parbrook, gestor da Schroders, antevê que

essa tendência se intensifique, prevendo que, daqui

a dois anos, “o mundo possa parecer-se mais com o

pós-II Guerra Mundial, em que os governos do Oci-

dente estavam confrontados e exaustos com pesados

fardos de dívida, e as populações esgotadas com a

guerra pediam políticas para uma sociedade mais

justa”. Nesse tipo de sociedade, poderá não ser mui-

to bem aceite que um CEO ganhe 500 ou 600 vezes

mais do que um trabalhador.

O TRABALHO E A DESIGUALDADEDas novas realidades que a crise forçou a saírem da

caixa, uma das que dificilmente poderão voltar atrás

é a do trabalho. De um dia para o outro, milhões de

pessoas foram mandadas para casa e foi-lhes pedido

que começassem a desempenhar as tarefas de sempre

a partir das suas salas, quartos e escritórios. Embora

atabalhoados e com vários problemas de adaptação,

algumas empresas e trabalhadores estarão a pensar

que nem correu assim tão mal. Há mesmo motivos

para ir cinco dias por semana ao escritório?

“Ainda que nem todos os empregos possam ser

feitos remotamente, muitas pessoas estão a perceber

que a diferença entre colocar uma gravata e demorar

uma hora a chegar ao trabalho e trabalhar de forma

eficiente a partir de casa foi sempre a capacidade de

fazer download de uma ou duas apps e de ter a per-

missão do chefe”, refere Katherine Mangu-Ward, di-

retora da revista liberal Reason. Daqui para a frente,

“será mais difícil – e mais caro – negar aos trabalha-

dores essas opções”, diz ao Politico.

Mesmo para aqueles que regressem em pleno,

oito horas por dia, cinco dias por semana, o seu lo-

UMA EUROPA MAIS DIVIDIDA?O coronavírus está a revelar divisões antigas na União Europeia e é possível que, quando a pandemia terminar, o risco de fragmentação esteja mais presente

Tal como as outras facetas da eco-

nomia, a Europa pode não voltar

a ser mesma depois da Covid-19.

A pandemia fez regressar fantas-

mas antigos e feridas não saradas

entre o Norte e o Sul, que amea-

çam a existência do próprio pro-

jeto europeu. Na altura em que es-

tas linhas são escritas, não é claro

que esses obstáculos possam ser

ultrapassados. Será o coronavírus

mais um passo para a fragmenta-

ção da UE?

A falta de coordenação foi óbvia

desde o início da crise. Os Estados-

-membros privilegiaram os seus

interesses nacionais, limitando de

forma unilateral os movimentos

entre fronteiras e bloqueando a ex-

portação de equipamento médico.

Uma postura que criou o embara-

ço de, numa fase inicial, vermos a

China e a Rússia a enviarem ma-

terial para Itália, enquanto os seus

parceiros comunitários lhe fecha-

vam a porta.

Essa atitude ficou ainda mais

clara no debate acerca de uma

resposta orçamental comum ao

coronavírus. Qualquer negocia-

ção sobre a partilha de risco seria

sempre desafiante, mas as discus-

sões entre os Estados-membros

atingiram níveis de indecisão

e de animosidade só vistos du-

rante a crise da dívida de 2010.

Dois episódios simbolizam bem

a agressividade das divergências:

quando o ministro das Finanças

holandês sugeriu que a Comissão

Europeia investigasse os motivos

pelos quais alguns países não ti-

nham margem orçamental para

lidar com a pandemia; e a respos-

ta de António Costa que apelidou

essa postura de “repugnante”.

A partir desse ponto baixo,

as coisas melhoraram. Embo-

ra os países não tenham altera-

do de forma substancial as suas

posições, o tom tornou-se mais

conciliador e foi o suficiente para

se chegar a um acordo no Euro-

grupo quanto à utilização do fun-

do de resgate do euro e abrindo a

porta à criação de um fundo de

recuperação. Além disso, os paí-

ses voltaram a trocar material

médico – como máscaras – e al-

guns deles começaram a aceitar

doentes de países mais afetados.

No entanto, a tensão Norte-

-Sul continua a ser evidente. A

divisão é a de sempre: responsa-

bilidade individual pelas contas

públicas a Norte; pedidos de in-

tegração e de solidariedade a Sul.

Na altura em que este texto é es-

crito, não é ainda claro que seja

possível encontrar uma solução

na reunião do Conselho Europeu.

“Tendo a ser pessimista. De-

pende do que se acorde para o

fundo de recuperação. Muitas

pessoas podem ficar desiludidas

e pode existir alguma pressão dos

eurocéticos. Pode haver algum

tipo de fragmentação do euro,

entre países que conseguem ter

um programa ambicioso de re-

cuperação e países que não o

podem fazer”, sublinha Grégory

Claeys, do think tank Bruegel,

em declarações à EXAME.

Bernardo Pires de Lima está

mais otimista. Embora reconheça

que existem “amarguras desde o

tempo dos programas da Grécia”

e “um sentimento de revanchis-

mo face ao Norte, agora com mais

acidez”, o partner da FIRMA e es-

pecialista em política internacio-

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A Europa está perante uma nova encruzilhada, em que as divisões Norte-Sul voltam a ficar evidentes. Sem uma resposta adequada, o euroceticismo pode ganhar terreno

Vid ullore con corit eius

Em reri destistrum quissinum quiatur aut eum des que volum et hillis inci qu Itae voluptia ium volupta ipsam fugit lam qui ommo

nal assume-se “mais esperan-

çoso”. “A História da Europa

mostra que as situações-limite

geram soluções. Vai ser difícil

coser uma certa harmonia,

mas ela nunca aconteceu re-

almente. A política europeia

sempre foi suja.”

Entre as pessoas que estão

responsáveis por encontrar um

plano que todos possam assi-

nar, há a noção de que pode-

mos estar perante um momen-

to de “ou vai ou racha!”. Quem

está de fora também o entende

assim. O ex-primeiro-ministro

italiano, Enrico Letta, explicou

que esta crise pode ser diferen-

te das anteriores, porque não

só o vírus é imprevisível como

“o europeísmo tem sido enfra-

quecido por outras crises na

última década”. Jacques De-

lors, numa rara aparição me-

diática, já avisou que o vírus

pode representar “um perigo

mortal para a UE”.

Mesmo que, perante a ne-

cessidade urgente de respon-

der à pandemia, os Estados-

-membros acabem por chegar

a um acordo, o grande desafio

pode surgir dentro de um ou

dois anos. Quando a emergên-

cia passar e as contas públicas

estiverem de pantanas.

Muitos temem uma repe-

tição das exigências de auste-

ridade da crise anterior. “Há

uma política clara para dar

uma resposta no curto prazo

e dizer que os défices não in-

teressam. Mas os países têm

receio do dia seguinte. O Go-

verno português não vai dar

um passo que as autoridades

europeias não queiram”, re-

fere Ricardo Paes Mamede,

professor do ISCTE. “Talvez

as instituições europeias não

façam pressão em 2020 ou em

2021, mas ela existirá quando

as coisas regressarem à nor-

malidade. Sem garantias, os

governos vão-se conter. Em

termos práticos, acho que ha-

verá austeridade.”

Contudo, é justo reconhe-

cer que as instituições, para

já, não estão a reagir da mes-

ma forma. Pelo contrário, o

BCE foi rápido a atuar e está

a aguentar os juros dos Esta-

dos-membros, enquanto a Co-

missão Europeia decidiu sus-

pender o cumprimento das

regras orçamentais. Alguma

linguagem também mudou.

O Ministério dos Negócios Es-

trangeiros alemão qualificou a

austeridade como um “instru-

mento de tortura”.

Claeys reconhece que “es-

tamos a fazer agora tudo o que

devíamos ter feito na outra cri-

se”. Mas isso não é suficiente

para o deixar descansado. “Te-

nho o mesmo medo do que

da outra vez. Alguns minis-

tros das Finanças já começam

a falar sobre a necessidade de

descer a dívida. Esse é o meu

medo fundamental.”

Paes Mamede também não

está convencido. “Não vejo

motivo algum para que, passa-

da a crise, a Europa diminua a

pressão sobre as dívidas, quan-

do elas vão estar mais altas. Se-

ria preciso um grande jogo de

cintura”, aponta.

Seja agora ou mais tarde,

caso os países sintam que es-

tão a ser deixados sozinhos, a

confiança na UE pode sofrer

um novo golpe. Em Itália, as

sondagens mostram que qua-

se nove em cada dez pessoas

achavam que a Europa não

estava a apoiar o país, e mais

de dois terços viam a perma-

nência na UE como uma des-

vantagem. Os números assus-

tam, mas podem ser aquilo

que fará os Estados-membros

mexerem-se. “Não há sobrevi-

vência do euro, sem a sobrevi-

vência de Itália”, diz Pires de

Lima. “Aquilo que é um fata-

lismo hoje pode acelerar as

reformas.” Em mais uma

encruzilhada, veremos se

a Europa escolhe o cami-

nho da vida em comum

ou do isolamento. N.A.

GETT

Y IM

AGES

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cal de trabalho poderá não ficar igual. Talvez não seja

de uma vez, mas os escritórios deverão adaptar-se a

maior distância entre as pessoas, com locais de de-

sinfeção de mãos a cada esquina. Haverá mais cui-

dados com a limpeza e os novos elevadores poderão

dispensar botões. Já há quem esteja a refletir até so-

bre que materiais farão mais sentido usar no futuro,

antecipando que as superfícies antimicrobianas que

costumamos ver nos hospitais talvez passem a fazer

parte dos escritórios. Não será apenas por esta pan-

demia, mas para a gestão de outras no futuro.

E o que será feito do open office? O

modelo quase hegemónico de organiza-

ção de escritórios nas últimas décadas já

tinha um exército de críticos, mas agora

haverá mais pressão para o mudar. Para-

doxalmente, embora tenham a vista mais

desafogada, os trabalhadores não têm fi-

cado com mais espaço nesta configura-

ção. “Na última década, muitas empresas

eliminaram escritórios privados em favor

de espaços abertos, mas o espaço por tra-

balhador caiu 25%”, escrevia-se no New York Times.

O instinto de sobrevivência e as de-

cisões das autoridades empurraram-nos

para casa e fizeram-nos descobrir o po-

tencial do teletrabalho. Mas essa experiência não está

a ser igual para todos. Há muitas pessoas que não po-

dem desempenhar as suas tarefas de forma remota.

Aliás, os dados mostram que o teletrabalho só se tor-

na uma possibilidade mais real à medida que os ren-

dimentos vão aumentando. Profissões com salários

mais baixos tendem a exigir uma presença física. Essa

é apenas uma de muitas formas de como este vírus

está a expor os problemas de desigualdade nas nossas

economias. Famílias mais pobres têm de atravessar

o isolamento com menos espaço, as crianças desses

agregados enfrentam sérias desvantagens

educativas no ensino remoto e os setores

mais atingidos por esta crise são os mais

precários (em que é mais fácil despedir)

e os que pagam pior. Nesta crise, os mais

frágeis são também os mais atingidos,

mesmo que o vírus não olhe a carteiras.

Choques históricos expõem as fragili-

dades dos sistemas. Despidos, é mais fácil

ver as suas imperfeições. Ficou evidente

que não estamos todos no mesmo barco

ou, pelo menos, que algumas embarca-

ções aguentam tempestades e outras são

destruídas imediatamente. Essa conclu-

são está a dar origem a novas exigênci-

as – desde a maior regulação das dimen-

Choques históricos expõem

as fragilidades dos sistemas,

e as políticas que, há poucos anos,

eram vistas como irrealistas ou

utópicas conseguem agora entrar no

debate

O confinamento por

causa da pandemia

obrigou a usar todas as

ferramentas ao alcance

para quebrar o isola-

mento no trabalho e na

vida pessoal. “Em quatro

semanas, demos um

salto tecnológico de dez

anos”, constata Gabriel

Coimbra. Os efeitos

dessa aproximação

dada pelo digital deverão

continuar a sentir-se nas

relações laborais. Nem

todos iremos trabalhar a

partir de casa, mas “va-

mos ter um modelo dife-

rente de trabalho, híbrido,

que também vai permitir

um maior equilíbrio entre

vida e trabalho”, analisa

o country manager da

IDC Portugal. “No futuro,

talvez o trabalho remoto

possa representar 40% a

50%”, arrisca.

Outra área com grande

impacto será a do

comércio eletrónico.

Durante o isolamento, as

empresas que não ven-

diam online ou deixaram

de fazer negócio ou se

reinventaram. Um exem-

plo é a restauração, em

que os estabelecimentos

já ligados a marketplaces

de entrega ao domicílio

tiveram vantagem na

hora de fechar as portas

ao público.

Gabriel Coimbra acredita

que 2020 e 2021 serão

anos complicados mas

que a sociedade e a

economia sairão mais

digitais desta crise, com

maior relevância das

redes fixas e móveis e de

tecnologias e ferramen-

tas como a Internet das

Coisas, a Inteligência

Artificial, o big data ou o

analytics, além das áreas

da cibersegurança e da

cloud.

Tal como o retalho

alimentar e as utili-

ties, antecipa que as

telecomunicações e as

tecnologias de informa-

ção sejam dos setores

mais resilientes e a sair

mais fortes desta crise. A

procura por profissionais

qualificados continuará

como até aqui, desde

logo para manter as em-

presas “nesta travessia

no deserto e depois para

fazer a recuperação eco-

nómica”. Por outro lado,

a melhoria do acesso da

população ao digital e

maiores transformações

processuais da Adminis-

tração Pública são dois

desafios que o País tem

pela frente: “Existem

muito bons exemplos no

Estado, mas ficou claro

neste embate que preci-

samos de mais.” P.Z.G.

TECNOLOGIA PARA ATRAVESSAR O DESERTO E AJUDAR À RECUPERAÇÃOA digitalização da economia pode ter encontrado um propulsor inesperado na pandemia. Procura por profissionais vai continuar

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Corte: 18 de 19ID: 86252910 01-05-2020sões informais de emprego, típicas da florescente

gig economy, até à necessidade de tornar os nos-

sos sistemas fiscais mais progressivos. No já citado

editorial do Financial Times referia-se, em concre-

to, a necessidade de se avançar com ideias como o

rendimento básico incondicional e impostos sobre

a riqueza. Políticas que, há poucos anos, eram vis-

tas como irrealistas ou utópicas conseguem agora

entrar no debate.

O NOVO MUNDOEsta pandemia elevou o setor tecnológico, mostran-

do que é uma utility tão essencial como a eletrici-

dade, a água ou o saneamento. Nos últimos anos,

muitas empresas garantiam que tinham feito uma

transição para o digital, mas o coronavírus serviu

para separar aquelas que tinham realmente feito

o trabalho de casa daquelas que apenas a usavam

como ferramenta de marketing. O comércio onli-

ne deverá continuar a crescer exponencialmente.

E os investidores e os governos poderão privilegi-

ar setores como as energias renováveis e os carros

elétricos, ao mesmo tempo que penalizam as in-

dústrias poluentes.

Daqui a 50 anos, os mais jovens talvez contem

aos seus netos que o dinheiro físico só deixou de ser

usado depois do “Grande Confinamento”, que foi

preciso uma pandemia para que aumentassem os

recursos da saúde e o orçamento da Ciência, e que

muitas profissões eram antes disso desvalorizadas,

apesar do seu papel essencial para manterem as

engrenagens da sociedade a funcionar.

Talvez daqui a meio século as crianças não acre-

ditem quando lhes contarmos que passávamos duas

a três horas por dia parados e irritados no trânsito

e que, ao fim de semana, nos enfiávamos em hi-

permercados gigantes para “fazermos as compras

do mês”. Viver num apartamento minúsculo para

poder estar mais perto do escritório também pode

parecer disparatado para quem tenha ocupações

que pode desempenhar remotamente. Mais difícil

ainda ser explicar-lhes como comprometíamos o

futuro do planeta ao queimarmos petróleo para nos

deslocarmos, em viagens de trabalho ou de turismo.

Passar horas em aeroportos e atravessar meio conti-

nente de avião só para assistirmos a uma apresen-

tação de algumas horas poderá dar vontade de rir.

Mesmo sem a Covid-19, talvez estas questões

acabassem por surgir nas próximas décadas. Po-

rém, além de nos forçar a ver realidades inespe-

radas, o “Grande Confinamento” tirou-nos as des-

culpas para não enfrentarmos os obstáculos que há

muito conhecíamos. Primeiro virá a dor; depois, a

oportunidade para um novo mundo. A História não

costuma andar para trás.

“MONEY, MONEY, MONEY” Dinheiro digital continua a ser dinheiro, diminui o risco de roubo físico e permite um maior controlo orçamental. É o fim das notas e das moedas?

Uma das primeiras medidas de con-

tingência anunciadas pelo Governo

português para a luta contra a Co-

vid-19 foi o alargamento dos limites

de pagamento através dos cartões

contactless, logo secundada pela

eliminação das taxas de pagamento

por cartões nos estabelecimentos:

segundo os especialistas, o dinheiro

físico foi um dos principais veículos

de contaminação pelo novo corona-

vírus, pelo que usar menos notas e

moedas parecia algo óbvio. Resul-

tado? Um aumento de sete pontos

percentuais nos pagamentos atra-

vés de MB Way, só na semana entre

13 e 19 de abril, e comparando com

a média anterior ao primeiro caso

da Covid-19 no País, por exemplo.

No caso dos cartões com tecnologia

contactless, o aumento foi de cinco

pontos percentuais para os mesmos

períodos, revelam dados da SIBS.

Na China, destruíram-se milhares

de notas que se acreditava terem

sido veículo de contágio do novo co-

ronavírus e, na Europa, reforçaram-

-se os pedidos para que dê prefe-

rência aos métodos de pagamento

que excluam o uso de dinheiro físico.

Claro que parte do aumento destes

pagamentos por via digital é poten-

ciado pelo crescimento das compras

online, mas é certo também que

os consumidores e comerciantes

estão mais convencidos de que

notas e moedas, por agora, ficam

melhor quietas na carteira. “Esta

é uma oportunidade única para se

promover a aceitação universal dos

métodos de pagamento digital”, su-

blinha Madalena Cascais Tomé,

CEO da SIBS, em declarações

à EXAME e de olhos postos

já nos comportamentos

do pós-confinamento. É

também um caminho

sólido para o “combate

à economia informal,

no qual Portugal tem

estado na linha da frente. Temos

uma realidade única que é o facto

de podermos fazer o pagamento

com cartões contacless [à seme-

lhança do que acontece em outros

países da Europa], mas também

temos um método de pagamento

por telemóvel que permite fazer

todos os pagamentos sem qualquer

contacto”, recorda a responsável.

Um inquérito recente realizado

pelo Deutsche Bank dava conta de

que os consumidores apontavam a

“conveniência” como um dos mais

importantes fatores para realizarem

a transição para o digital: estes mé-

todos de pagamento são gratuitos

e fáceis de se utilizar, ajudam a

controlar melhor os orçamentos fa-

miliares e, em termos de segurança,

reduzem as probabilidades de as

pessoas e os estabelecimentos

serem assaltados.

Em Portugal, mesmo as gerações

mais velhas dão sinais de esta-

rem a abraçar as novas formas de

pagamento, motivadas sobretudo

pela experiência que têm da rede

multibanco – recorde-se que, em

Portugal, apenas 25% dos movi-

mentos realizados em ATM são

levantamentos de dinheiro. Além

de que “os métodos de pagamento

digitais são mais seguros do que

os pagamentos em numerário”,

reforça Cascais Tomé. “E, em

Portugal, temos um dos sistemas

de pagamento mais seguros da

Europa. Estamos bastante bem

posicionados, fruto do esforço e dos

serviços de monitoria que assegu-

ramos na SIBS.”

A Covid-19 parece, assim, ter

alterado a questão para “um

milhão de dólares”: agora já

ninguém pergunta se o

dinheiro físico vai deixar

de existir, mas quanto

tempo demorará até que

isso aconteça.

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OS CAMINHOS PARA A NORMALIZAÇÃO

AS LIÇÕES DAS EMPRESAS

CENTENÁRIAS

maio 2020

43

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Maio 2020Publicação Mensal

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FinançasO longo percurso para o excedente de 2019

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O NOVO MUNDO DEPOIS DA PANDEMIA