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BENEDiT0 EANT0Ni0 Esta Exposição, que agora se realiza no Museu de Arte Sacra de São Paulo, de alguma forma me remete aos tempos pretéritos das festas de Nossa Senhora da Purificação, em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano. Todos os anos, o Dois de Fevereiro era uma data sagrada para todos os cristãos da cidade. Logo em janeiro as famílias começavam os preparativos para os dias de festas da padroeira. Faziam-se roupas novas para as meninas, e os meninos tinham seus trajes também renovados, para ir às novenas, mas sobretudo para ir à procissão de Nossa Senhora. Era uma forma de as famílias estarem presentes nos festejos do dia Dois de Fevereiro. Havia sempre um mistério de quantos santos sairiam na procissão. Então, Já na noite anterior, Nossa Senhora da Purificação saía do Convento dos Humildes, onde era vestida com seu manto azul de brocado com estrelas de ouro e colocada em seu andor levado por querubins. Era linda a santa com seu menino, como lhe acariciasse a face. Acho que só no dia da procissão é que se saberia quantos outros santos viriam à matriz para acompanhar a procissão da padroeira, além do Senhor Santo Amaro, com suas vesfes amarelo-ouro e seu báculo de prata. Alguns santos vinham de cidades vizinhas e de outras igrejas e capelas da cidade. Quanto mais santos e santas, mais prestígio recebia a festa daquele ano. Eu nunca soube de onde vinha um São Benedito alto e elegante, com seu olhar forte e deter- minado, com suas vestes de tecido preto, de cujas mãos saía uma espécie de toalha de tecido fino, bordado e com renda pregada para abrigar o Menino Deus. Sua expressão era de doçura, e o menino estava em suas mãos num gesto de mostrar e proteger. Aquele santo sempre marcou muito a minha infância, e eu sempre o procurava entre os muitos outros postos nos andores, na igreja, antes mesmo da procissão. Muitos anos depois, encontrei aquele mesmo santo na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador. Era ele, mas não era mais o meu São Benedito, de Santo Arnaro, mudara de nome e agora se chamava Santo Antônio de Categeró. Fui a outras igrejas à procura de um São Benedito e o encontrei na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, num altar lateral. Ele já não carregava o Menino Deus, mas agora flores na mão esquerda e na direita uma espécie de saco. Procurei mais, na Igreja de São Francisco, e lá estava de novo o São Benedito com suas flores e seu saco. Então perguntei ao meu amigo, o Frei Clóvis, e ele então me narrou a história do santo que transformava o pão que dava aos pobres em flores, para fugir da vigia do prior do convento onde era cozinheiro. Quis saber por que, sendo ele franciscano, estava numa penhanha no fundo da igreja, e não num dos altares laterais, onde estavam os santos brancos, mas o meu amigo não soube ou não quis me responder. Essa pequena crônica me apareceu, de repente, como uma reminiscência de um tempo passado, voltando para a exposição dos dois mais importantes santos negros na iconografia dos santos. A arte sacra brasileira, desde os tempos mais remotos, sedimentou estilos artísticos na idealização da imaginária católica. Escultores e santeiros, conhecidos e anônimos pelo Brasil afora, esculpiram magníficas obras artísticas que ainda hoje podem ser vistas nas igrejas e em museus e coleções

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BENEDiT0 EANT0Ni0

Esta Exposição, que agora se realiza no Museu de Arte Sacra de São Paulo, de alguma forma meremete aos tempos pretéritos das festas de Nossa Senhora da Purificação, em Santo Amaro,no Recôncavo Baiano. Todos os anos, o Dois de Fevereiro era uma data sagrada para todos oscristãos da cidade. Logo em janeiro as famílias começavam os preparativos para os dias de festasda padroeira. Faziam-se roupas novas para as meninas, e os meninos tinham seus trajes tambémrenovados, para ir às novenas, mas sobretudo para ir à procissão de Nossa Senhora. Era umaforma de as famílias estarem presentes nos festejos do dia Dois de Fevereiro.

Havia sempre um mistério de quantos santos sairiam na procissão. Então, Já na noite anterior,Nossa Senhora da Purificação saía do Convento dos Humildes, onde era vestida com seu mantoazul de brocado com estrelas de ouro e colocada em seu andor levado por querubins. Era lindaa santa com seu menino, como lhe acariciasse a face. Acho que só no dia da procissão é quese saberia quantos outros santos viriam à matriz para acompanhar a procissão da padroeira,além do Senhor Santo Amaro, com suas vesfes amarelo-ouro e seu báculo de prata. Alguns santosvinham de cidades vizinhas e de outras igrejas e capelas da cidade. Quanto mais santos e santas,mais prestígio recebia a festa daquele ano.

Eu nunca soube de onde vinha um São Benedito alto e elegante, com seu olhar forte e deter-minado, com suas vestes de tecido preto, de cujas mãos saía uma espécie de toalha de tecidofino, bordado e com renda pregada para abrigar o Menino Deus. Sua expressão era de doçura,e o menino estava em suas mãos num gesto de mostrar e proteger.

Aquele santo sempre marcou muito a minha infância, e eu sempre o procurava entre os muitosoutros postos nos andores, na igreja, antes mesmo da procissão.

Muitos anos depois, encontrei aquele mesmo santo na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco,em Salvador. Era ele, mas não era mais o meu São Benedito, de Santo Arnaro, mudara de nomee agora se chamava Santo Antônio de Categeró. Fui a outras igrejas à procura de um São Beneditoe o encontrei na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, num altar lateral. Ele jánão carregava o Menino Deus, mas agora flores na mão esquerda e na direita uma espécie desaco. Procurei mais, na Igreja de São Francisco, e lá estava de novo o São Benedito com suas florese seu saco. Então perguntei ao meu amigo, o Frei Clóvis, e ele então me narrou a história dosanto que transformava o pão que dava aos pobres em flores, para fugir da vigia do prior doconvento onde era cozinheiro. Quis saber por que, sendo ele franciscano, estava numa penhanhano fundo da igreja, e não num dos altares laterais, onde estavam os santos brancos, mas o meuamigo não soube ou não quis me responder.

Essa pequena crônica me apareceu, de repente, como uma reminiscência de um tempo passado,voltando para a exposição dos dois mais importantes santos negros na iconografia dos santos.

A arte sacra brasileira, desde os tempos mais remotos, sedimentou estilos artísticos na idealizaçãoda imaginária católica. Escultores e santeiros, conhecidos e anônimos pelo Brasil afora, esculpirammagníficas obras artísticas que ainda hoje podem ser vistas nas igrejas e em museus e coleções

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particulares. São Benedito das Flores e Santo Antônio de Categeró são dois santos franciscanos;suas vestes são os hábitos marrons dos frades daquela ordem religiosa.

Há, portanto, uma rica iconografia desses dois santos desde o século XVI, quando as imagenseram figuras estáticas, quase sempre de terra cota; o barro era muito empregado, tanto quantoa madeira; as vestes quase sempre negras ou escurecidas em tons marrons. Alguns exemplosdesse período podem ser vistos na Exposição.

As Irmandades dos Rosários dos Homens Negros, as Igrejas de Santa Ifigênia e Santo Elesbão eas raras capelas de São Benedito, em muitas vilas, foram e são responsáveis pela popularidadedesses santos, assim como as congadas em Minas Gerais e São Paulo, que festejam com muitoardor esses santos negros.

o período barroco, no século XVIII, modificou o panejamento dos santos, criando dobradurasnos hábitos, decoração de grafito de ouro nas vestimentas escuras. Depois, no século XIX,apareceram os santos de roca ou imagens de vestir, articulados como essa obra do Museu deArte Sacra de São Paulo.

São Benedito e Santo Antônio de Categeró são encontrados em muitas lojas de produtos religiososcom uma vasta iconografia, o que prova a popularidade desses dois santos e do Menino Deus,que às vezes segura o crucifixo ou as flores.

o século XIX, com os escravos do Vale do Paraíba paulista, aparecem os santos de nó de pinho,maravilhosas esculturas feitas nessa madeira muito dura, polidas pela fé das mãos como sefosse um terço, com a singularidade de uma geometria reducionista com profundas referênciasda escultura africana. Uma ancestralidade latente para exprimir o significado religioso e sincréticoem torno de Santo Antônio e São Benedito.

o Instituto do Patrimônio Artístico Nacional de Pernambuco guarda duas telas monumentaisdos Milagres de São Benedito. Ali ainda estão depositadas as mais extraordinárias obras sacrasenvolvendo os santos negros Santo Elesbão, o Imperador da Etiópia, na sua monumentalidade,pisa no Rei Pagão, e Santo Antônio de Noto - belas imagens barrocas provenientes de algumaigreja de Pernambuco.

Assim, esta Exposição revela, com singularidade, o escultor baiano contemporâneo OsmundoTeixeira, esse mago das esculturas em terracota. Sua obra tem a fluidez espiritual inspiradana imaginária Sêf(ra do século XVIII.

Esta é a maravilhosa devoção brasileira aos santos pretos Santo Antônio de Categeró, São Benedito,o cozinheiro de seu convento, filho de pais africanos, cultuado nas Irmandades dos Homens Negros,como na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do Paissandu,em São Paulo, nos seus veneráveis trezentos anos de existência.

Emanoel Araujocurador

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