Benjamin e o Surrealismo

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WALTER BENJAMIN E O SURREALISMO Rodrigo de Negreiros Moura 1 e Irenísia Torres de Oliveira 2 RESUMO Este trabalho busca uma compreensão da relação de Walter Benjamin com o surrealismo, a partir do seu ensaio, O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. Dividido em cinco tópicos, o trabalho em questão mostra como o pensador alemão analisou um dos principais movimentos vanguardistas europeu, o surrealismo. A interpretação de Benjamin é caracterizada pelos principais fatos que marcaram as primeiras décadas do século XX na Europa e, em particular, na Alemanha e está relacionada tanto com os seus ensaios posteriores como também com o próprio movimento surrealista, características essas que este texto enfatiza. Palavras-chave: Walter Benjamin. Surrealismo. Perspectiva revolucionária. Século XX. Inteligência europeia. ABSTRACT This paper seeks an understanding of the relationship of Walter Benjamin to surrealism, from his essay, Surrealism: the last snapshot of the European intelligence. Divided into five topics, the work in question shows how the German thinker considered one of the leading European avant-garde movements, Surrealism. The interpretation of Benjamin is characterized by major events that marked the early decades of the twentieth century in Europe and particularly in Germany and is related to both their later essays as well as his own surrealist movement, these characteristics that this text emphasizes. Keywords: Walter Benjamin. Surrealism. Revolutionary perspective. Century XX. European intelligence. As afinidades entre o pensamento de Walter Benjamin e o surrealismo são muitas. Todas elas podem se resumir, entretanto, no modo como o surrealismo questionou o mundo moderno. Aliando a crítica a uma revolta emocionada do espírito, a vanguarda francesa nos mostra, por meio de suas obras mais representativas, um horizonte de experiências mágicas possíveis dentro do cotidiano de uma cidade moderna. A partir disso, Benjamin faz uma interpretação inovadora do movimento artístico liderado por André Breton no ensaio O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia, em que a análise das principais características 1 Bolsista Pibic/Cnpq e aluno de Graduação em Letras da UFC 2 Professora Adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC)

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  • WALTER BENJAMIN E O SURREALISMO

    Rodrigo de Negreiros Moura1 e Irensia Torres de Oliveira2

    RESUMO

    Este trabalho busca uma compreenso da relao de Walter Benjamin com o surrealismo, a partir do seu ensaio, O surrealismo: o ltimo instantneo da inteligncia europeia. Dividido em cinco tpicos, o trabalho em questo mostra como o pensador alemo analisou um dos principais movimentos vanguardistas europeu, o surrealismo. A interpretao de Benjamin caracterizada pelos principais fatos que marcaram as primeiras dcadas do sculo XX na Europa e, em particular, na Alemanha e est relacionada tanto com os seus ensaios posteriores como tambm com o prprio movimento surrealista, caractersticas essas que este texto enfatiza.

    Palavras-chave: Walter Benjamin. Surrealismo. Perspectiva revolucionria. Sculo XX. Inteligncia europeia.

    ABSTRACT

    This paper seeks an understanding of the relationship of Walter Benjamin to surrealism, from his essay, Surrealism: the last snapshot of the European intelligence. Divided into five topics, the work in question shows how the German thinker considered one of the leading European avant-garde movements, Surrealism. The interpretation of Benjamin is characterized by major events that marked the early decades of the twentieth century in Europe and particularly in Germany and is related to both their later essays as well as his own surrealist movement, these characteristics that this text emphasizes.

    Keywords: Walter Benjamin. Surrealism. Revolutionary perspective. Century XX. European intelligence.

    As afinidades entre o pensamento de Walter Benjamin e o surrealismo so muitas. Todas elas podem se resumir, entretanto, no modo como o surrealismo questionou o mundo moderno. Aliando a crtica a uma revolta emocionada do esprito, a vanguarda francesa nos mostra, por meio de suas obras mais representativas, um horizonte de experincias mgicas possveis dentro do cotidiano de uma cidade moderna. A partir disso, Benjamin faz uma interpretao inovadora do movimento artstico liderado por Andr Breton no ensaio O surrealismo: o ltimo instantneo da inteligncia europeia, em que a anlise das principais caractersticas

    1 Bolsista Pibic/Cnpq e aluno de Graduao em Letras da UFC

    2 Professora Adjunta da Universidade Federal do Cear (UFC)

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  • estticas est vinculada a uma perspectiva de revoluo poltica. A peculiaridade dessa interpretao est diretamente relacionada prpria particularidade do pensamento benjaminiano, que est, por sua vez, fortemente ligado ao momento poltico por que passava a Europa nas primeiras dcadas do sculo XX. Dessa forma, a compreenso do ensaio em questo passa, primeiramente, pelo entendimento das circunstncias que envolviam tanto a escrita e publicao deste, como tambm pelo momento por que passava a prpria vanguarda surrealista.

    A publicao do artigo O surrealismo: o ltimo instantneo da inteligncia europeia ocorreu em 1929 na revista Literarische Welt, um peridico semanal importante na Repblica de Weimar. A dcada de vinte talvez seja o perodo mais definidor da trajetria intelectual de Walter Benjamin, onde a influncia do marxismo e a crtica ideologia burguesa aparecem de maneira mais relevante. Logo de incio, importante ressaltar a consolidao do regime social democrata na Alemanha tanto sobre os movimentos revolucionrios da esquerda quanto sobre as tentativas de golpe da direita poltica devido, sobretudo, recuperao dos danos financeiros da Primeira Guerra Mundial, o que proporcionou um aparente estado de contentamento, fazendo com que a ideologia progressista se difundisse por todo o pas.O interesse de Walter Benjamin pelo marxismo, que se espalhava fortemente por toda a Europa aps a Revoluo Russa, ocorreu devido a suas leituras de Ernst Bloch e G. Lukcs e, principalmente, ao seu relacionamento amoroso com Asja Lacis, militante comunista russa. A antipatia pelo pensamento burgus est presente desde os seus trabalhos iniciais, como a Vida dos estudantes, de 1915, mas aflora de forma mais intensa com o seu desligamento de qualquer pretenso acadmica, ocasionado pela recusa de sua tese de livre docncia em 1925, o que acentuar a sua crtica cincia literria burguesa. Outro fato importante na vida de Benjamin a escrita de Rua de mo nica entre 1923 e 1926, sendo publicado em livro em 1928. Rua de mo nica uma obra experimental que trata das principais experincias de Benjamin na Repblica de Weimar. Utilizando o processo de montagem, bem caro ao surrealismo, o livro apresenta uma multiplicidade intercalada de temas, como a descrio de sonhos, brinquedos infantis, roupas, locais de trabalhos, postos de gasolina, prontos-socorros, primeiras leituras, a paisagem de cidades, bairros pobres, mendigos, o hbito alemo de beber cerveja, a inflao no pas. Faz, portanto, um panorama da sociedade alem no perodo. Por meio da crtica situao social e intelectual da Alemanha, da montagem literria,

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  • dos aforismos, da inspirao na literatura popular de folhetim e, sobretudo, do carter imagtico da escrita, Rua de mo nica mostra a estrutura descontnua do mundo moderno, criticando, sobretudo, a inteligncia burguesa que o representava de maneira contnua e progressista. O livro de Benjamin apresenta os primeiros indcios da sua radicalizao poltica, que ser representada em seus textos posteriores, como O surrealismo: o ltimo instantneo da inteligncia europeia, A obra de arte na era reprodutibilidade tcnica e Sobre o conceito de Histria.

    Outro episdio relevante na trajetria de Benjamin na dcada de vinte a sua visita a Moscou em 1926-1927. Sobre esse fato, Jeanne-Marie Gagnebin, em seu livro Walter Benjamin: os cacos da histria, diz:

    Ele (Benjamin) passou dois meses em Moscou, de dezembro de 1926 a janeiro de 1927. Seu Dirio de Moscou [...] um documento penetrante, mas discreto, de uma trplice dvida: em primeiro lugar, quanto ao amor de Asja, ento em convalescena aps uma depresso nervosa; depois, dvidas quanto ao futuro da URSS, e quanto s verdadeiras possibilidades de uma revoluo socialista; finalmente, dvidas quanto competncia intelectual dos funcionrios dos rgos culturais, incapazes de se posicionar clara e pessoalmente em relao, por exemplo, ao seu texto.3

    A desiluso quanto possibilidade de uma revoluo socialista nos moldes da URSS e quanto submisso do escritor ao pblico e aos donos do poder ser determinante para Walter Benjamin. Isso pode explicar, por exemplo, a sua no militncia poltica, e ajuda a entender as suas reflexes crticas a respeito da histria e de uma possvel revoluo, que esto presentes nas teses Sobre o conceito de Histria, e tambm do papel do intelectual dentro do contexto revolucionrio, como se pode ver no ensaio sobre o surrealismo. A singularidade do pensamento de Benjamin definida, sobretudo, em suas principais experincias nos anos vinte e aparece, como vimos, na crtica ideologia burguesa e tambm na recusa ao modelo tradicional marxista de progresso, representado pela URSS, o que vai caracterizar uma nova formade interpretar os fatos histricos, manifestada em seus principais artigos.

    3 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin: os cacos da histria. Traduo de Snia Salzstein.

    2. ed. So Paulo: Brasiliense: 1993, p.33.

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  • Walter Benjamin descobriu o surrealismo em uma de suas viagens a Paris. A respeito dessa descoberta, Michael Lwy diz em seu livro A estrela da manh: surrealismo e marxismo:

    Fascinao o nico termo que d conta da intensidade dos sentimentos de Walter Benjamin quando de sua descoberta do surrealismo em 1926-1927. Uma fascinao que se traduz inclusive em seus esforos para escapar ao envolvimento do movimento fundado por Andr Breton e seus amigos.4

    No perodo em que Benjamin teve seu primeiro contato com o surrealismo, as principais obras do movimento estavam sendo publicadas, como O campons de Paris, de Aragon, em 1926, e Nadja, de Breton, em 1928. O movimento surrealista tem incio com a fundao da revista Littrature por Andr Breton e P. Soupault em 1919 e chega a reunir muitos jovens intelectuais interessados em novas experincias de linguagem. A dita primeira fase do movimento lana as bases das experincias revolucionrias da linguagem, que esto marcadas fortemente pela influncia da psicanlise de Freud. Os procedimentos de linguagem que os surrealistas utilizam concentram-se, sobretudo, na escrita automtica, aquela que quer manifestar diretamente o pensamento sem a conteno esttica ou moral, relatos de sonhos e acasos objetivos, ou seja, a produo de semelhanas a partir de acontecimentos que se cruzam de maneira inesperada. Dessa forma, as experincias surrealistas tentam ultrapassar a esfera do sentido e, em contato com a racionalidade do mundo moderno, ganham um efeito libertador, como mostra o Manifesto do Surrealismo, de 1924.

    O surrealismo faz expandir o domnio da imaginao dentro do cotidiano da modernidade. O encantamento do surrealismo decorre desse contraste entre a expanso dos domnios da imaginao, por meio, sobretudo, de imagens que remetem ao mundo infantil e da valorizao do antiquado, e o mundo burgus utilitrio, o que pode explicar as distores de suas imagens, que agregam tanto a subjetividade do sonho como a objetividade da modernidade. Esse contraste o que possibilita o desenvolvimento do surrealismo, sobretudo em seus primeiros anos. Alm da apropriao do antiquado e do sonho, o surrealismo encontra,

    4 LWY, Michael. A estrela da manh: Surrealismo e marxismo. Traduo de Eliana Aguiar. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, p.39.

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  • principalmente, na fora da poesia de Baudelaire, Rimbaud, Lautramont e Apollinaire o poder de subverso e de revolta contra o mundo burgus que vai caracterizar o movimento. A fora potica vinda com o surrealismo em contraste com a modernidade lembra muito oromantismo do sculo XIX e sobre isso Michael Lwy afirma:

    O surrealismo o exemplo mais marcante e mais fascinante de uma corrente romntica do sculo XX. , dentre todos os movimentos culturais deste sculo, aquele que tem trazido como sua mais nobre expresso a aspirao romntica do reencantamento do mundo. tambm aquele que encarnou de modo mais radical a dimenso revolucionria do romantismo. A revoltado esprito e a revoluo social modificam a vida (Arthur Rimbaud) e transformam o mundo (Karl Marx): alis, tais so as duas estrelas polares que orientam o movimento surrealista desde sua origem, levando busca permanente de prticas culturais e polticas subversivas.5

    Como Lwy disse, as experincias surrealistas, que lembram muito o romantismo, podem encaminhar o movimento para uma proposta de transformao poltica. Com a guerra da Frana com o Marrocos em 1925, essa possvel transformao vem, efetivamente, com a militncia dos principais membros do surrealismo em grupos esquerdistas, o que vai caracterizar a chamada segunda fase do movimento. Esse segundo momento marcado pelo engajamento poltico e pela publicao do livro La Rvolutionetles intellectuels do surrealista Pierre Naville em 1928, que procura conciliar as ambies surrealistas com as exigncias revolucionrias do marxismo. Pode-se dizer, portanto, que o surrealismo apresenta duas fases: a primeira, que define seu primeiro programa e est muito voltada para as primeiras experincias na linguagem, e a segunda, marcada pela adeso partidria.

    A primeira particularidade do ensaio de Walter Benjamin, O surrealismo: o ltimo instantneo da inteligncia europeia, que ele foi escrito entre o perodo das primeiras experincias da linguagem e da postura extremamente rebelde dos surrealistas e a fase do engajamento poltico do grupo, o que, como perceberemos na anlise do texto, ser de grande importncia. Como dissemos, a partir da crtica

    5 LWY, Michael. Carga explosiva: o Surrealismo como movimento romntico revolucionrio.

    Traduo de Rodrigo Czajka. In: Temticas. Campinas, v. 19, 2011, p. 11-24, pp . 2.

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  • inteligncia burguesa e da descrena em uma possvel revoluo nos moldes da URSS, ou como o prprio Benjamin diz, na inteligncia burguesa de esquerda, supostamente progressista,6 o ensaio do autor volta-se diretamente para a crtica a ambas atravs do surgimento de um movimento impactante da inteligncia europeia, o surrealismo. Dessa forma, ao contrrio de interpretaes que apenas viam como algo efmero ou como uma mera transposio do sonho, Benjamin interpretao surrealismo como um movimento em que a tenso revolucionria aparece na prpria criao artstica. A partir da anlise das caractersticas revolucionrias da escrita surrealista, possvel compreender o verdadeiro alcance do movimento dentro da perspectiva do pensamento de Walter Benjamin.

    1. Rua de mo nica e O surrealismo O primeiro ponto a se destacar dos primeiros pargrafos do ensaio de

    Benjamin sobre o surrealismo a diferena de patamar entre a Frana e a Alemanha, o que propiciaria ao crtico alemo uma melhor interpretao do movimento artstico francs. Pode-se dizer que essa diferena est relacionada a uma simples distncia espacial ou a referncias histricas que Benjamin identificaria como sendo mais importantes em pases como Frana e Rssia, por exemplo, a Revoluo Francesa, de 1789, e a Revoluo Russa, de 1917, do que na Alemanha, como a malograda revoluo alem de 1849. Em comparao com a Frana, o crtico v na Alemanha um atraso de cultura poltica e de aprendizagem da democracia7. Entretanto, uma melhor interpretao dessa diferena entre Frana e Alemanha pode ser feita relacionando o ensaio do surrealismo com a crise da economia e da crtica literria ou mesmo da intelectualidade experimentadas por Benjamin na Alemanha e apresentadas em Rua de mo nica. Neste livro, Benjamin fala, dentre outras coisas, da difuso do reclame, marcado pelo olhar mercantil, em detrimento de uma verdadeira crtica, que exige certo distanciamento do objeto de anlise. A partir disso, Luciano Gatti comenta:

    No a mera distncia espacial entre Frana e Alemanha que permite a crtica, mas um olhar distanciado sobre o seu prprio tempo, formado pela

    6 BENJAMIN, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. In:

    Obras Escolhidas I. Traduo de Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.pp. 29.

    7 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrpole moderna: Representao da histria em Walter

    Benjamin. 2. ed. So Paulo: EDUSP, 2000, p. 167.

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  • experincia da crise da crtica apresentada em Rua de mo nica. Em outras palavras, trata-se de mostrarque a correta avaliao do surrealismo depende de um alinhamento com uma experincia histrica concreta e que faz jus s exigncias do movimento.8

    As experincias urbanas de Walter Benjamin registradas em Rua de mo nicamostram, sobretudo, a crise da inteligncia alem diante de um espao cada vez mais marcado pelo capitalismo. Dentro dessa atmosfera que o crtico ir interpretar omovimento surrealista, permitindo, assim, estabelecer o seu verdadeiro alcance. Isso possibilita diferenciar a abordagem de Benjamin, baseada no relato concreto da experincia urbana, das abordagens de eruditos que podem considerar o movimento surrealista apenas como um estreito riacho, alimentado pelo mido tdio da Europa de aps-guerra e pelos ltimos regatos da decadncia francesa e que so incapazes de determinar as origens autnticas do movimento.9

    Uma das principais caractersticas das vanguardas artsticas do sculo XX a sua vontade de romper com a estrutura da arte tradicional burguesa e atuar na vida efetiva. Dessa forma, as vanguardas artsticas, sobretudo o dadasmo e o surrealismo, propunham-se a destruir, por meio, por exemplo, da provocao e da montagem, a arte que estivesse dissociada da vida prtica. Sobre a crtica da vanguarda arte tradicional, Peter Brger, no livro Teoria da vanguarda, comenta:

    Para os vanguardistas, a caracterstica dominante da arte na sociedade burguesa o seu deslocamento da prxis vital. [...]. Os vanguardistas tencionam, portanto, uma superao no sentido hegeliano da palavra: a arte no deve simplesmente ser destruda, mas transportada para a prxis vital, onde, ainda que metamorfoseada, ela seria preservada.10

    Essa aproximao, dita por Brger, entre a arte e o cotidiano ser decisiva para a interpretao de Benjamin sobre o surrealismo, pois estabelecer uma relao no somente entre as caractersticas deste e a sua atuao na vida cotidiana, mas tambm a sua participao diante de uma prxis revolucionria. Assim, diz Benjamin:

    8 GATTI, Luciano. Walter Benjamin e o Surrealismo: escrita e iluminao profana. In: Arte filosofia.

    Ouro Preto, n. 6, 2009, p. 74-94, pp. 80. 9 BENJAMIN, 1994, p.21.

    10 BRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Traduo de Jos Pedro Antunes. So Paulo: Cosac Naify, 2008, pp. 105-10

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  • E, no entanto, desde o incio Breton declarou sua vontade de romper com uma prtica que entrega ao pblico os precipitados literrios de uma certa forma de existncia, sem revelar essa forma. Numa formulao mais concisa e mais dialtica: o domnio da literatura foi explodido de dentro, na medida em que um grupo homogneo de homens levou a vida literria at os limites extremos do possvel.11

    A partir da tentativa de atuao das obras vanguardistas dentro da vida prtica, possvel entender, de incio, o carter de revolta e de participao evocado por Breton, segundo Benjamin. A radicalizao na forma artstica preconizada pelas vanguardas de incios do sculo XX e, particularmente, pelo surrealismo, ser um caminho para o engajamento poltico efetivo. Antes disso, porm, necessrio ver como essa tenso revolucionria est presente nas caractersticas internas da arte surrealista, que s pode ser percebida em uma situao dialtica de contato com o cotidiano, como nos mostra Walter Benjamin.

    2. A iluminao profana Segundo Walter Benjamin em seu ensaio, O surrealismo: o ltimo instantneo

    da inteligncia europeia:

    Na estrutura do mundo, o sonho mina a individualidade, como um dente oco. Mas o processo pelo qual a embriaguez abala o Eu ao mesmo tempo a experincia viva e fecunda que permitiu a esses homens fugir ao fascnio da embriaguez. [...]. um grande erro supor que s podemos conhecer das experincias surrealistas os xtases religiosos ou os xtases produzidos pela droga. [...]. Porm a superao autntica e criadora da iluminao religiosa no se d atravs do narctico. Ela se d numa iluminao profana, de inspirao materialista e antropolgica, qual podem servir de propedutica o haxixe, o pio e outras drogas.12

    Ao texto de Benjamin, como vemos, no interessa uma descrio pormenorizada das experincias mgicas particulares dos surrealistas no que diz respeito ao sonho ou entorpecncia. O que relevante o contato dessas experincias com o mundo cotidiano, que possibilitar a descoberta do mgico dentro da modernidade, como diz Jeanne Marie Gagnebin em O campons de Paris: uma topografia espiritual: 11

    BENJAMIN, 1994, p. 22. 12

    BENJAMIN, 1994, p. 23.

    joaquimTexto8

  • A fora do surrealismo [...] no provm de uma fruio equvoca de fenmenos ocultos, de uma celebrao complacente do mistrio, mas, sim, contra qualquer leitura irracionalista apressada, de sua capacidade mpar de vislumbrar o maravilhoso no corao do cotidiano [...]. 13

    Esse vislumbre, segundo Benjamin, no vem por meio de uma iluminao religiosa ou pela droga, mas sim pela iluminao profana, que, por isso mesmo no mstica, mas materialista, e est relacionada a uma experincia que , sobretudo, revolucionria. A partir do exame das obras surrealistas, a caracterstica revolucionria apontada por Benjamin ficar mais clara.

    A capacidade de observar o fantstico no cotidiano ressaltada nas duas principais obras do surrealismo, O campons de Paris e Nadja, que tem como centro as andanas do indivduo surrealista dentro de um grande centro urbano, Paris, que ir revelar acontecimentos inusitados e experincias mgicas, especialmente no primeiro livro. Um exemplo disso a segunda parte de O campons de Paris, intitulada O sentimento da natureza no parque Buttes-Chaumont em que o sujeito surrealista descreve a paisagem local:

    Se percorro as plancies, vejo apenas oratrios desertos, calvrios derrubados. [...]. Essas Virgens, as pregas de seus vestidos supunham um processo de reflexo no compatvel com o princpio de acelerao que governa hoje a passagem. [...]. Sarapintados de palavras inglesas e de palavras de criao nova, com um nico brao longo e flexvel, uma cabea luminosa e sem rosto, o p nico e o ventre da roda cifrada, as bombas de gasolina tm s vezes o aspecto das divindades do Egito ou dos povoados antropfagos que adoram somente a guerra.14

    As imagens formadas pelo olhar surrealista esto marcadas pela juno do primitivismo ou do infantil na descrio de objetos modernos, tornando-se a expresso de uma subjetividade que com o mundo, tornou-se estranha at diante de si mesma.15 Dessa forma, as andanas do indivduo surrealista por Paris mostram o encanto que parecia estar perdido na modernidade. Por meio das experincias

    13

    GAGNEBIN, Jeanne-Marie. O campons de Paris: uma topografia espiritual. In: Sete aulas sobre linguagem, memria e histria. Rio de Janeiro: Imago, 2005, p. 153-165, pp.160.

    14 ARAGON, Louis. O campons de Paris. Traduo de Flvia Nascimento. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 143.

    15 ADORNO, Theodor W. Revendo o Surrealismo. In: Notas de Literatura I. Traduo de Jorge de Almeida. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 135-140, pp.138.

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  • surrealistas na metrpole, a conscincia burguesa, pautada no racionalismo descartiano, vai, aos poucos, sendo questionada. Em Nadja, no vemos tantas imagens mgicas como em O campons de Paris. Entretanto, o livro de Breton vai dar prioridade aos acasos objetivos, encontros casuais que mostram grandes semelhanas. Exemplo disso o encontro dos surrealistas Andr Breton e Paul luard:

    No dia da primeira representao de Couleurdutemps, de Apollinaire, no Conservatrio Rene Maubel, enquanto eu conversava no balco com Picasso durante o intervalo, um jovem se aproximava de mim, balbucia algumas palavras e, por fim d a entender que me havia tomado por um de seus amigos, dado como morto durante a guerra. A conversa terminou a. Pouco tempo depois, por intermdio de Jean Paulhan, passei a me corresponder com Paul luard, sem que um tivesse a menor ideia da aparncia fsica do outro. Por ocasio de uma licena, luard veio me visitar: tinha sido ele quem se aproximara de mim na Couleur du temps. 16.

    A insistncia no erro ou no acaso tambm uma das formas de fuga apreenso da inteligncia burguesa. Todo o livro de Breton escrito nessa perspectiva, a trajetria de errncias do sujeito surrealista pela cidade de Paris permite descobrir semelhanas em encontros que pareciam no corresponder, como o j citado encontro com luard, tambm com Benjamin Pret, com Nadja, com as obras de Rimbaud e com reflexes sobre Nietzsche, autores de imensa valia para os surrealistas, encontradas no velho balco de um mercado de pulgas.17 Tanto a obra de Breton como a de Aragon nos mostram o poder do maravilhoso presente no cotidiano moderno. O que Benjamin far, portanto, aproximar essas experincias surrealistas na metrpole de um contexto revolucionrio. Assim, aspectos da obra surrealista, como o aparecimento do mgico na realidade, a abertura da individualidade ao coletivo como um viver numa casa de vidro,18 o amor provenal e a simpatia pelo antigo, so vistos luz de uma experincia revolucionria. Uma interpretao voltada para isso dar ao surrealismo uma grande potencialidade.

    A valorizao do antiquado pelos surrealistas uma das principais caractersticas do movimento com que Benjamin mais se identifica. Nos objetos antigos e no amor provenal de Breton e Nadja, em que no h apelo sexual, 16

    BRETON, Andre. Nadja. Traduo de Ivo Barroso. So Paulo: Cosacnaify, 2012, p.33. 17

    BRETON, 2012, p. 56. 18

    BENJAMIN, 1994, p.24.

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  • Benjamin encontra uma fora revolucionria que est tambm caracterizada pela iluminao profana. A interpretao que Benjamin faz do surrealismo no que diz respeito identificao pelo antiquado, pode ser encontrada na prpria peculiaridade do seu pensamento, que, assim como os surrealistas, partilha da simpatia pelo antigo. Desde os textos sobre Baudelaire at as teses Sobre o conceito de histria, Benjamin encontra a fora revolucionria nos objetos antigos. No primeiro texto, essa vem indiretamente pela anlise da poesia de Baudelaire e pela descrio das andanas deste poeta por Paris e, no segundo, de maneira direta, na crtica historiografia tradicional, caracterizada pela valorizao do progresso e pelo esquecimento dos vestgios do passado. rica Gonalves de Castro comenta sobre a identificao de Benjamin com o surrealismo:

    O motivo de tal arrebatamento se deve ao olhar indito que Aragon lana sobre a paisagem parisiense. Benjamin identificar nas imagens de Aragon e, em menor escala, tambm no Nadja, de Breton uma nova forma de conscincia histrica. Para o pensador materialista, engajado na formao de uma nova historiografia, que desmistificasse o passado e interferisse no presente, a relao dos surrealistas com o antiquado [...] e com os objetos concretos significavam uma possibilidade de superao da realidade [...].19

    O modo como Benjamin interpreta o relacionamento dos surrealistas com o passado permite colocar o surrealismo na contramo de uma posio contemplativa, que via o passado como homogneo, bem peculiar concepo da histria tradicional. Sobre a maneira como os surrealistas enxergavam o passado, Benjamin diz: O truque que rege esse mundo de coisas [...] consiste em trocar o olhar histrico sobre o passado por um olhar poltico.20 Ou seja, significa ter o passado como gerador de ao para o presente e no imvel como a inteligncia burguesa o representava. A partir disso, torna-se claro o choque que a anlise de Benjamin sobre o surrealismo tem sobre o pensamento burgus. Esse choque ser melhor analisado no mbito de uma tradio esotrica, que o pensador alemo ir traar ao longo do seu ensaio.

    3. Uma tradio esotrica

    19

    CASTRO, . G. O surrealismo como construo de uma experincia histrica. In: Lettres Franaise. Araraquara, v. 10, 2009, p. 117-128, pp. 117.

    20 BENJAMIN,1994, p. 26.

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  • A inteno de Walter Benjamin ao mencionar o desenvolvimento de uma literatura esotrica bem clara: resgatar uma literatura potencialmente revolucionria de uma apropriao ideolgica falsificadora. Como dissemos, o ensaio de Benjamin s pode ser compreendido dentro de uma vivncia histrica em um determinado panorama social. Esse quadro foi representado por Benjamin em Rua de mo nica e, colocando a questo diante do ensaio sobre o surrealismo, ele pode ser dito como a crise artstica e intelectual contempornea da ideologia progressista no regime social-democrata da Repblica de Weimar. Assim, Benjamin diz:

    E isso deve ser entendido, quando mais no seja, para afastar o inevitvel mal entendido da arte pela arte. Pois essa frmula raramente foi tomada em sentido literal, quase sempre foi um simples pavilho de convenincia, sob o qual circula uma mercadoria que no podemos declarar porque no tem nome. Seria o momento de pensar numa obra que como nenhuma outra iluminaria a crise artstica, da qual somos testemunhas: uma histria da literatura esotrica.21

    Ao falar sobre uma literatura esotrica, Benjamin tem a inteno menos de registrar uma histria da literatura maneira tradicional do que colocar uma literatura que no se enquadra na moralidade burguesa e que, mesmo assim, est sendo colocada sobre essa moralidade pela vestimenta de uma classificao que a trata como arte pela arte, ou seja, como mercadoria, na sua viso. Benjamin, portanto, tenta libertar o surrealismo e tambm autores como Apollinaire, Lautramont, Rimbaud, Dostoivski, Baudelaire, desse tipo de apreenso. Fazendo um paralelo entre a atuao do passado no presente de acordo com o pensamento de Benjamin, poderamos colocar essa literatura esotrica do passado como influente no surrealismo da mesma maneira. No em vo que Breton reconhece, no primeiro Manifesto do Surrealismo, Apollinaire e Rimbaud como suas grandes influncias.

    Para entender melhor a vinculao do surrealismo com essa literatura esotrica, necessrio ver o efeito de contestao moral que essa literatura exerceu sobre a inteligncia burguesa. Dessa forma, Benjamin diz:

    difcil resistir seduo de ver o satanismo de um Rimbaud e de um Lautramont como uma contrapartida da arte pela arte, num inventrio do

    21

    BENJAMIN, 1994, p. 27

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  • esnobismo. Mas, se nos decidirmos a ignorar a fachada dessa tese, encontraremos no interior algo aproveitvel. Descobriremos que o culto do mal um aparelho de desinfeco e isolamento da poltica, contra todo diletantismo moralizante, por mais romntico que seja esse aparelho.22

    O culto do mal um timo instrumento de desinfeco contra a moral burguesa, caracterizada pelo esteretipo do bem. O encontro com o sujo, com o animalesco, com o doentio e com o mal, caractersticas essas presentes nas Flores do mal, de Baudelaire, na poesia de Lautramont, nos contos de Poe e nos romances de Dostoivski, tm o efeito de completa insubmisso moralidade convencionalmente estabelecida, segundo Benjamin. Dentro do contexto da poca, esses valores negativos reacendem uma perspectiva revolucionria diante da atmosfera otimista da social-democracia alem. A partir disso, o pessimismo, que tambm uma das caractersticas desses autores e do prprio surrealismo, ter uma importncia considervel ao longo do ensaio de Benjamin.

    O pessimismo est na base das caractersticas que constituem a literatura esotrica. Tanto em poetas como Apollinaire quanto nos surrealistas, o pessimismo diante do mundo moderno o que impulsiona a revolta e o que d potencialidade a seus textos. Benjamin interpreta esse pessimismo em contrapartida ao otimismo da social-democracia alem e, principalmente, em contraposio inteligncia burguesa de esquerda supostamente progressista23, caracterizada pela URSS. O crtico alemo v esses dois tipos de ideologia progressista como obstculos ou prises inteligncia que o surrealismo, por meio de sua fora potica, vem libertar. A ideia de libertao do pensamento muito peculiar a Benjamin em seus diversos textos, principalmente em sua viso sobre a histria, esboada nas teses Sobre o conceito de histria. Acerca deste ltimo texto de Benjamin, Katia Muricy diz:

    O historiador deve fazer explodir a continuidade homognea de um tempo vazio, a linearidade do processo, e trabalhar com os fragmentos, com as runas do passado, cristalizados pelo olhar da atualidade, pela premncia do perigo. [...]. Descontnua, anti-linear, a histria em Benjamin no estabelece uma origem enquanto fundamento originrio, essncia, identidade ou forma imvel a partir do qual se desenrolaria o processo.

    22 BENJAMIN, 1994, p.30.

    23 BENJAMIN, 1994, p. 29.

    joaquimTexto13

  • Objeto de construo, a histria a perspectiva da atualidade, fixada por uma urgncia guerreira.24

    O pensador alemo analisa criticamente a historiografia tradicional que, sob a tica do progresso, vislumbra a um futuro glorioso e esquece o tempo do agora ou da atualidade, que sempre aparece, na interpretao do crtico, como um tempo revolucionrio. Fazendo um paralelo entre a interpretao de Benjamin sobre a histria e sobre o surrealismo, o pessimismo pode ser visto tanto na recusa historiografia progressista, o que culmina na libertao de um passado potencialmente revolucionrio e que foi esquecido por esta, como tambm na recusa s ideologias progressistas tanto da direita como da esquerda poltica, o que tem como consequncia a libertao de uma inteligncia criativa e a formao de imagens do pensamento, que ganhamuma potencialidade revolucionria, como enxerga o crtico no surrealismo. Como podemosperceber, Walter Benjamin interpreta o surrealismo como algo que ultrapassa a esfera da manifestao esttica e que atua diretamente no perodo histrico, propondo um conceito de liberdade que est associado a uma perspectiva revolucionria, como ele mesmo diz:

    Desde Bakunin, no havia mais na Europa um conceito radical da liberdade. Os surrealistas dispem desse conceito. Foram os primeiros a liquidar o fossilizado ideal de liberdade dos moralistas e dos humanistas, porque sabem que a liberdade, que s pode ser adquirida neste mundo com mil sacrifcios, quer ser desfrutada, enquanto dure, em toda a sua plenitude e sem qualquer clculo pragmtico. a prova [...] de que a causa de libertao da humanidade, em sua forma mais simples [...], a nica pela qual vale a pena lutar.25

    O crtico alemo analisa o surrealismo como algo instantneo, ou seja, como uma exploso que abala todos os ideais conformistas de liberdade, pois quer ser desfrutada de imediato e no ser lanada a um futuro incerto. Esse conceito de liberdade, que muito est apoiada na poesia de Rimbaud e Apollinaire, lembra o anarquismo de Bakunin, como o prprio crtico pontuou. Benjamin traa uma trajetria que vai desde as relaes entre as principais caractersticas do surrealismo com a realidade histrica at sua associao com uma revoluo de fato, como

    24

    MURICY, Katia. Imagens dialticas. In: Alegorias da modernidade: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2009, p. 231-260, pp. 233-234.

    25 BENJAMIN,1994, p.32.

    joaquimTexto14

  • mostra a sua comparao com o anarquismo. A partir da, o ensaio em questo chega ao seu ponto culminante: como relacionar essa revolta do esprito surrealista a uma militncia poltica de fato?

    4. Engajamento A questo do engajamento um ponto crucial para o surrealismo, pois onde

    o movimento sai de uma postura contemplativa para encarar uma militncia poltica. A partir da, o movimento surrealista se divide de fato: aqueles que no se engajam politicamente e aqueles que aderem ao Partido Comunista. O primeiro a ter uma postura militante foi Pierre Naville, autor de La Rvolutionetles intellectuels, que pretende convencer seus companheiros a sair de uma viso apenas contemplativa e aderir ao comunismo. Sobre o livro de Naville, Michael Lwy comenta:

    Foi durante este perodo, isto , o inverno de 1925-1926, que ele (Naville) redigiu o livrete La Rvolutionetles intelectuels, que tem como objetivo conciliar as ambies surrealistas com as exigncias revolucionrias do marxismo. O grande mrito do surrealismo era, a seu ver, seu esprito rebelde, inspirado pelo sentimento irredutvel da liberdade que conduz necessariamente a um conflito com a burguesia e a uma convergncia com o movimento revolucionrio. Contudo, ele proclamava seus amigos surrealistas a irem alm de um ponto puramente negativo, metafsico e anarquista para adotar a abordagem dialtica do comunismo, aceitando assim a ao disciplinada da nica via revolucionria: o marxismo. Ele insistia na necessidade de no hesitar mais e escolher um campo: anarquismo ou comunismo, revoluo do esprito ou revoluo pela mudana do mundo dos fatos. 26

    O questionamento ordem burguesa est presente no surrealismo desde seus momentos iniciais, por meio de seu esprito insubmisso e rebelde. Naville coloca a militncia poltica como um movimento necessrio a ser percorrido pela vanguarda artstica, caso contrrio, o surrealismo perderia sua fora e ficaria como algo passageiro. Benjamin analisa, usando por base o livro de Naville, com profundidade essa relao entre o surrealismo e o engajamento poltico no momento em que os prprios surrealistas hesitavam com relao militncia poltica. O crtico alemo da opinio de que no se pode sacrificar a adeso partidria pela rebeldia 26

    LWY, Michael. A estrela da manh: Surrealismo e marxismo. Traduo de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, pp. 59-60.

    joaquimTexto15

  • dos primeiros tempos, que identifica como um esprito de embriaguez necessrio prxis revolucionria. Entretanto, privilegiar exclusivamente esse elemento no alcanar, de fato, toda potencialidade revolucionria que o crtico encontra no surrealismo. Benjamin, portanto, no v como o auge da energia surrealista apenas mobilizar para a prtica revolucionria seu esprito de embriaguez, como uma poltica potica,27 e tenta encontrar, ao longo do seu ensaio, um plano de ao que seja coerente com as caractersticas surrealistas. O crtico alemo enxerga como uma ao direta e uma grande contribuio do surrealismo o desenvolvimento, no plano intelectual, de metforas e imagens pautadas no pessimismo, que iriam de encontro s propostas otimistas da social-democracia e do socialismo sovitico. Dessa forma, ele diz:

    Pois o que o programa dos partidos burgueses seno uma pssima poesia de primavera, saturada de metforas? O socialista [...] v o futuro mais belo dos nossos filhos e netos no fato de que todos agem como se fossem anjos, todos possuem tanto como se fossem ricos e todos vivem como se fossem livres. No h nenhum vestgio real, bem entendido, de anjos, de riqueza e de liberdade. Apenas imagens. E o tesouro de imagens desses poetas da social-democracia, seu gradus ad Parnassum? O otimismo.28

    Assim como a inteligncia burguesa age, como vimos, nas imagens, o surrealismo, em particular, e uma inteligncia revolucionria, em geral, podem atuar neste campo de ao. A partir da desconfiana na metfora moral burguesa, coloca-se dentro da ao poltica o espao de atuao das imagens. Em outras palavras, a moral burguesa est intrincada na esfera poltica, impedindo, assim, qualquer tipo de ao revolucionria. A proposta dita por Benjamin tentar extrair essa metfora moral da esfera da ao poltica, e descobrir no espao da ao poltica o espao completo da imagem29. Vemos, portanto, o papel revolucionrio que a imagem tem em Walter Benjamin, presente no s no texto sobre o surrealismo, mas tambm em outros textos posteriores, como nas teses Sobre o conceito de histria. Com relao ao ensaio sobre o surrealismo, Benjamin dar grande importncia s imagens como

    27

    BENJAMIN, 1994, p.33. 28

    BENJAMIN, 1994, p.33. 29

    BENJAMIN, 1994, p. 34.

    joaquimTexto16

  • o modo principal que permite ao artista e ao intelectual de esquerda, de modo geral, atuar revolucionariamente.

    5. Os intelectuais Ao vermos a importncia do trabalho intelectual concedida por Benjamin ao

    longo do seu ensaio, remetemo-nos diretamente a sua prpria vida. A tentativa de conjugar o trabalho intelectual de um aspirante a professor universitrio com uma atuao poltica vem desde seus tempos de juventude. A partir do seu desencantamento da vida universitria, ocorrido principalmente com a recusa de sua tese livre-docncia, e de suas dvidas quanto ao controle da cultura e do trabalho intelectual pelo regime socialista da URSS, essa tentativa de unio entre o intelectual e o atuante poltico ganha novo flego, sobretudo, com o aparecimento do surrealismo. Dessa forma, Benjamin, ao falar da atividade surrealista e sua possvel militncia poltica, mostra tambm a sua prpria condio de intelectual de origem burguesa tentando alcanar um meio de exercer uma atividade engajada politicamente dentro de suas condies. Sobre isso, o crtico Willi Bolle comenta:

    [...] Benjamin teve poucas iluses quanto aos limites impostos por uma formao e condies de vida burguesa. Jamais pretendeu transformar-se em um mestre de arte proletria, [...]. Distanciando da estratgia da esquerda populista, viu como tarefa do escritor e artista burgus a atuao em pontos importantes do espao imagtico.30

    A melhor forma encontrada por Benjamin de trabalho do intelectual ou do artista consiste, como disse Bolle, em atuar em um espao imagtico que carrega consigo caractersticas revolucionrias. Esse espao de imagens foi visto por Benjamin nas criaes surrealistas, como a descoberta do antiquado no mais moderno, do fantstico no cotidiano, feitas a partir da experincia do individuo na metrpole, que permitiram revelar imagens carregadas de um poder revolucionrio que justamente o de ir contra a toda uma viso de mundo burguesa. Nesse espao, que os intelectuais devem agir, pois permite a eles uma atuao que no apenas se restringe ao conflito com a inteligncia burguesa, mas tambm atinge a experincia cotidiana e, dessa forma, o homem comum. A partir disso, os intelectuais se colocam numa postura atuante, no contemplativa, ao contrrio do 30

    BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrpole moderna: Representao da histria em Walter Benjamin. 2. ed. So Paulo: EDUSP, 2000, p.35.

    joaquimTexto17

  • que acontecia com escritores soviticos, que se tornavam especialistas em arte proletria e continuavam submissos ao estado populista. Assim, Benjamin desenvolve uma nova prxis revolucionria que enxerga no artista um poder mais decisivo de atuao, indo contra, portanto, ao modo como Trotski, em Literatura e Revoluo, analisava o artista esquerdista, que, na sua viso, s poderia existir aps uma revoluo social.

    As imagens ditas por Benjamin vm, sobretudo, pelo resgate de uma memria revolucionria que foi apreendida pela moral burguesa, por isso elas tm um grande poder subversivo, capaz de reunir a criatura fsica a um materialismo poltico. A iluminao profana, que Benjamin identificou na arte surrealista, a base de formao desses espaos de imagens. No final do ensaio, o crtico alemo compara o materialismo antropolgico representado pelos surrealistas e tambm por outros, como Nietzsche, Rimbaud, Hegel e G. Bchner, ao materialismo metafsico de intelectuais russos, como Vogt e Bukharin, dizendo que o corpo coletivo, que para os ltimos centrava-se no desenvolvimento tcnico, s pode ser organizado, na sua plena eficcia poltica, no espao de imagens desenvolvido pela iluminao profana, que Benjamin exemplificou com os surrealistas. Assim, o crtico alemo no enxerga eficcia poltica no desenvolvimento de base ou tcnico como modelo principal de transformao social, mas sim na transformao das tenses revolucionrias em inervaes do corpo coletivo31 e vice-versa. Nisto, os artista se intelectuais tm fundamental importncia. Os surrealistas tinham sido os primeiros a perceb-lo at aquele momento.

    31

    BENJAMIN, 1994, p.35.

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