Bento Prado, Rorty e o Fim Do Luto

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  • 8/8/2019 Bento Prado, Rorty e o Fim Do Luto

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    Bento Prado Jr. foi filsofo brasileiro gostava de futebol. Em reunio de pragmatistasna UFRJ, Marcos Lopes conta sobre o filsofo e filho de fazendeiro como Bento seauto-descrevia algo paradigmtico: Bento confessou que, quando garoto, quis fazerfilosofia como ento jogava futebol na rua ou no quintal; pegava a bola e ia em direoao gol, quando aparecia um adversrio ele chutava na parede e corria para pegar a

    rebatida mais adiante.

    Em se tratando de Brasil, talvez Bento tenha contado uma grande mentira, uma vez queele foi dos poucos filsofos brasileiros que adorava no bater bola na parede, mas fintaradversrios tentando tabelinha com algum outro filsofo. Bento tinha o saudvel hbitode comentar por escrito e em conversas a produo de alguns colegas, do Brasil e doexterior. De alguma forma, estava sempre habilitado a dar seguimento a conversasfilosficas.

    Mas, conhecendo Bento como eu conheci, sei bem que ele, no episdio citado porMarcos, no estava falando dele. Estava, sim, generosamente se incluindo num grupo de

    filsofos que, de fato, nunca fizeram o que ele fez, nunca tentaram realmente dialogarcom os companheiros e, menos ainda, fazer tabelinha. A carreira solo sempre foi aescolhida entre os filsofos brasileiros, contrariando frontalmente tudo que tivemos de

    bom na filosofia universal, as parcerias e o dilogo pblico efetivo, e no o fingimento ea tentativa de abafar as crticas com o silncio e com artimanhas corporativas.

    O filsofo brasileiro se orgulhava no passado de no ser produtivo e de ser bomio.Escrevia pouco e publicava menos ainda. O prprio Bento seguiu essa linha, ao menosquanto publicao. A conversa era a de bar, mas no a conversa pblica da filosofia,aquela que marcou a carreira de Scrates, como grande mestre da conversaofilosfica, ou o trabalho feito a quatro mos ou similar, levado a cabo por Horkheimer eAdorno, Sartre e Simone, Marcuse e Horkheimer, Marx e Engels, Montaigne e LaBoetie, Deleuze e Guatari, e outros que formaram duplas (ou trios) bastanteinteressantes.

    O filsofo brasileiro, mais recentemente, assumiu a condio estrita de professor ou,melhor dizendo, de funcionrio pblico (ou privado). Isso no ruim, mas, do modocomo estamos indo, poderia ser melhor. Como funcionrio, o professor de filosofiasegue manuais de rgos de fomento para publicar, como se fosse um cientista. Nosendo cientista, no raro termina como um isolado maluco, falando com ningum.Quando tenta falar para um pblico maior, acaba reproduzindo aulas chatas que, uma

    vez na TV, nunca saem do trao (_) no ibope. s vezes quer correr por fora,almejando alguma popularidade para conseguir o caixa dois, e ento assume acondio de palestrante para vivas esocialites em casas do saber em que tudo acabamesmo em auto-ajuda ou pior. H os que se desesperam e procuram aparecer na grandemdia para fazer coisas pouco filosficas, no raro caindo em situaes ridculas. Esse

    professor atual at publica mais, mas, em geral, menos lido que os que publicarammenos principalmente porque teima em escrever exatamente para ningum ler ou,devido a uma carreira solo, dar importncia demasiada para problemas muito restritos,que deveriam ocupar s uma parte de sua atividade acadmica, no toda ela. Algunsgritam aos polticos e tentam se infiltrar em cpulas partidrias visando um cargo

    poltico estatal caem antes encantados com o fato de ganharem uma secretria

    particular que com a possibilidade de contribuir para o bem pblico. Vestem-se de

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    papagaios de polticos e de partidos, jogando no lixo a independncia intelectual emoral que se esperava deles.

    Bar? Nem pensar! Os professores de filosofia atuais adquiriram famlias aburguesadasde classe mdia, mesmo quando so solteiros! Seus encargos financeiros aumentaram

    devido a uma busca louca de status que a condio de professor universitrio no d,mas, pela proximidade com as elites econmicas, se pe como exigncia malvada nosneurnios de uma boa parte das pessoas dessa profisso. Possuem hora para voltar paracasa e vrios deles tm carteira de motorista. A nica coisa que possuem dos velhosfilsofos, os da gerao de Bento Prado e prximos, meus professores, so os dentes emfrangalhos devido ao cigarro. Alguns guardaram tambm, da velha gerao mas node Bento , um eterno anti-americanismo extremamente xenfobo e, arrisco dizer,ignorante, em alguns casos especficos, imbecil.

    Bento Prado Jr. era afrancesado. Mas, quando exibia anti-americanismo, o fazia apenaspara jogar com a platia e nisso era especialista. No era anti-americano. Conhecia

    filosofia americana, ainda que no transitasse com facilidade pelos filsofos maiscontemporneos dos Estados Unidos, em especial os de sua prpria idade ou prximos.Bento Prado fez um esforo para se atualizar em meados dos anos noventa, quando foiconvidado pelos poetas Wally Salomo e Antnio Ccero a escrever sobre RichardRorty. O texto deveria ser apresentado em um evento em que Rorty estaria presente ede fato esteve , na cidade de So Paulo, no antigo espao Unibanco. Infelizmente, adinmica do evento no permitiu o debate e, enfim, a interlocuo acabou se fazendosomente na cabea dos leitores que ficaram com os resultados, acumulados no volumeO relativismo como concepo de mundo, publicado pela Jos Olmpio. Foi a quereencontrei Bento Prado Jr.

    Vindo de uma tradio frankfurtiana e tendo lido Rorty de um modo que poderia separecer com o que vinha fazendo, no Rio de Janeiro, Jurandir Freire Costa enfatizandoas pesquisas sobre crtica e desconstruo do sujeito moderno , encontrei nasobservaes de Bento Prado um ponto de luz interessante. Fiquei entusiasmado: enfimum paulista lendo filosofia americana sem medo e, talvez, sem preconceito! Foi isso quenos levou, anos mais tarde, possibilidade de conversas a dois e a trs Bento, Rorty eeu. Uma delas foi hilariante: Bento tentou convencer Rorty de que ele, Rorty, era umanova verso de Santayana, ou seja, um ensasta com esprito europeu em meio a ummundo da filosofia anglo-americana hard, a filosofia analtica. Naquela noite, ocombustvel de Bento era whisky e o meu era cuba libre. Rorty devorava bolinhos de

    bacalhau sem qualquer pudor. Eu e Rorty em ingls e Bento em francs, e aps unstropeos conseguimos conversar a trs! Com bom humor, Rorty negou que ele pudessever qualquer semelhana entre o que fazia e o que Santayana havia feito. S o Bentomesmo para igualar Dick Rorty, na frente do prprio, a um espanhol com cidadaniaamericana insistir nisso! Mas, c entre ns, de um ponto de vista especial o de queRorty era o filsofo americano capaz da obra tcnica e tambm do ensaio vital , Bentono estava de todo errado.

    Dez anos depois, quando Rorty ficou sabendo que tinha um cncer incurvel e quetalvez no tivesse muito tempo de vida, ele se voltou para um lado de sua famlia que,de certo modo, havia negado. Dick Rorty era filho de James Rorty, brilhante poeta

    trotskista americano, excelente intelectual nova-iorquino da gerao de John Dewey eSidney Hook. Ao fim da vida, Rorty, confessou que deveria ter lido mais poesia que

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    filosofia, fugindo menos de seu pai. Mas, na verdade, talvez Rorty no tenha notado queele, de fato, fez poesia. Seus escritos e sua prpria vida so um grande poema. ComRorty ainda vivo, a Amrica havia recebido de volta o que a essncia da filosofia, oque ela tinha tido com John Dewey: nunca jogar fazendo tabela com a parede.

    Rorty retomou como ningum os laos da Amrica filosfica com o mundo, mantendointerlocuo com a maioria dos filsofos europeus, latino-americanos, indianos,africanos e, ao fim da vida, estava envolvido em conversar com a juventude iraniana,que o procurava incessantemente. Tornamo-nos amigos e nos correspondemos at

    prximo de seus dias finais, quando ele ento mandou sua ltima correspondnciaagradecendo minha interlocuo em livros e artigos, as tradues que fiz de sua obra

    para o portugus, o esforo dentro do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana daANPOF etc.

    Pensei em me comunicar com Bento Prado quando da morte de Rorty, mas no o fiz.Fui eu quem, no Brasil, avisou da morte de Rorty Jurandir Freire Costa e Luis Eduardo

    Soares. Nosso pequeno crculo de rortianos tinha perdido seu mestre. Chocado edesgostoso, me recolhi. A academia j no me interessava mais. Estava ento fora dauniversidade e isso contribuiu para que eu pensasse em no voltar. E assim foi. Fecheiquesto e deixei de lado a carreira universitria de vez. Passei a me dedicar nica eexclusivamente a tapar buracos na minha formao filosfica, ler despreocupadamenteas coisas e, ao mesmo tempo, escrever alguns manuais de filosofia e, tambm, umlivro de ps-doc, O Corpo, que depois publiquei pela tica.

    S agora, escutando Marcos Lopes expor coisas sobre Rorty e Bento, e vendo minhareao, que senti que o luto desses dois amigos havia se feito, e que eu poderia, ento,voltar universidade novamente. Isso se deu exatamente ontem, dia 24 de julho de2010, e eu j estou na universidade a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro a seis meses. Estou pronto para comear mais um semestre. Estou novamente disposto afazer o que mais gosto, que jogar sem usar a parede de tabelinha, mas driblar juntocom outros filsofos os adversrios. No ser problema encontrar companheiros para

    jogar, ainda que ns, rortianos, possamos parecer estranhos. Comeo hoje um trabalho aquatro mos sobre filosofia da educao, com a filsofa Susana de Casto, da UFRJ.

    Novos tempos novas esperanas depositadas.

    2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filsofo, escritor e professor da UFRJ