Berenice Bento. A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexualidade

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    A diferena que faz a diferena:1corpo e subjetividade na transexualidade

    The difference that makes it different:

    body and subjectivity in transexuality

    Berenice BentoDoutora em Sociologia

    Professora do Departamento de Cincias Sociais/[email protected]

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    Resumo

    O objetivo deste artigo problematizar a concepo hegemnica que afirma ser acirurgia de transgenitalizao uma expresso do desejo das pessoas transexuais pelasatisfao sexual. Sugiro que a busca pelo reconhecimento do gnero identificado podeser conhecida como uma das questes centrais que motivam a realizao desse desejo.Tambm argumentarei que no h uma rejeio linear ao corpo entre as pessoastransexuais. Ao contrrio, a construo da autoimagem para muitos/as positiva,destacando-se, inclusive, alguma parte do corpo considerada maravilhosa,principalmente entre as mulheres transexuais. No entanto, pode-se notar que ainteriorizao das verdades produzidas pelo dispositivo da transexualidade no lhespossibilitam notar tal ambiguidade. Por fim, as narrativas apresentam umamultiplicidade de experincias, expectativas e subjetividades que impedem qualquerdesejo classificatrio fundamentado em caractersticas que universalizam as pessoas

    transexuais ao mesmo tempo em que as diferenciam, inferiorizando-as enquanto serestranstornados, enfermos mentais.

    Palavras-chave: Transexualidade, corpo, subjetividades.

    Abstract

    The purpose of this article is to problematize the hegemonic notion that sexreassignment surgery reflects transsexual people's desire for sexual satisfaction. I

    suggest that one of the central questions underlying this desire is the search to belong toand be recognized as part of the gender with which they identify. I will also argue that nolinear correlation can be drawn between transsexual people and rejection of the body.Rather, many construct a positive self-image, even highlighting a part of the body theyconsider marvelous, particularly among transsexual women. At the same time, theinternalization of the truths produced by the tactic of transsexuality prevents them fromseeing this ambiguity. Finally, the narratives present a multiplicity of experiences,expectations, and subjectivities that preclude any classification based on universalizingcharacterizations of transsexual people as disordered or mentally ill.

    Keywords: Transsexual, body, subjectivities.

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    Verso do captulo Corpo e Subjetividade, publicado no livroA (re)inveno do corpo: sexualidade e gnerona experincia transexual (BENTO, 2006).2 As narrativas das pessoas transexuais transcritas foram obtidas ao longo do trabalho de campo realizado paratese de doutorado entre os anos de 2001-2003. Os nomes pessoais foram alterados.

    O saber/poder mdico afirma que as pessoas transexuais tm umacompleta abjeo em relao aos seus corpos, o que as transformaimediatamente em seres assexuados. Para Ramsey (1996, p.110),

    [...] o padro transexual normal tem baixo ou nenhumimpulso sexual, arriscam muito pouco quanto a esse ponto.O pequeno grupo que gosta de se masturbar deveria fazermuitas perguntas e ponderar respostas cuidadosamente antes de se lanar cirurgia.

    De acordo com essa viso, a procura pela cirurgia tem como finalidadea satisfao sexual, o que diverge da interpretao que desenvolvo neste artigo,segundo a qual a busca por insero na vida social o principal motivo parapleite-la. No h um rechao monoltico ao corpo entre as pessoastransexuais. A autoimagem para muitos positivada mediante a valorizaoreiterada de partes dos seus corpos tidas como lindas, perfeitas. Em muitosmomentos, afirmam: eu odeio meu corpo, para logo depois dizer: nossa, meacho linda, principalmente meu cabelo e meu bumbum. Contudo, a eficcia dodispositivo da transexualidade est no apagamento destes deslizes discursivos.

    A afirmao de que as pessoas transexuais odeiam seus corpos estbaseada em tropos metonmicos. Toma-se a parte (as genitlias) pelo todo (o

    corpo). como se a genitlia fosse o corpo. Esse movimento de construir oargumento metonimicamente espelha a prpria interpretao moderna para oscorpos, em que o sexo define a verdade ltima dos sujeitos.

    O segundo objetivo deste artigo apontar que a relao das pessoastransexuais com as genitlias no marcada exclusivamente pela abjeo. Osrelatos sobre essa relao variam desde afirmaes como tenho horror a essa

    2coisa at ele faz parte do meu corpo, no tenho raiva.

    O corpo sexuado

    A descoberta do corpo sexuado um momento de atribuio de sentidopara as vrias surras, insultos e rejeies familiares. Ter um/a pnis/vagina eno conseguir agir de acordo com as expectativas, ou seja, no conseguirdesenvolver o gnero apropriado para seu sexo, uma descoberta vivenciadacom grande surpresa para alguns/algumas.

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    Ktia: Eu era uma mulher. Fazia todas as tarefas de menina. Eu fui nascida ecriada na roa. Perdi meu pai aos doze anos, ento tudo se tornou mais difcil.Meu pai era mais apegado comigo do que a me. Eu no entendia nada.Porque eu pensava que era um bicho-de-sete-cabeas. S vim a conhecer meu

    corpo aos 14 anos, quando vi uma revista pornogrfica embaixo do colcho domeu irmo e vi uma mulher sem roupa. Eu j tinha visto meus irmos peladoscom o pnis duro, mas o meu era aquela coisinha pequeninha, nunca subiu.Para mim, toda mulher era daquele jeito. Eu ficava esperando meus seioscrescerem, porque minhas amigas estavam de peito grande e eu no. Nelasveio a menstruao e em mim no, n? Ento eu fiquei preocupada com aquilo.E outra, eu entrei na escola com dezoito anos. Eu abandonei a famlia e fuimorar com um tio meu na cidade. Na escola que se descobre. A, com dezoitoanos, procurei uma mdica e perguntei para ela. Eu queria saber por que todas

    as minhas amigas tinham a menstruao. Os peitos delas eram grandes e omeu era pequeno, s duas bolinhas. Ento eu queria perguntar o porqu detudo aquilo. Eu me sentia uma mulher, agia como mulher. Quer dizer, que nemuma mulher. Tem muito tempo que eu buscava ajuda para entender esse meuproblema. No entendia o que era isso. Que ia fazer com tudo aquilo? A euprocurei uma mdica quando tinha 18 anos e ela me disse que eu no era nemhomem nem mulher. Nunca tinha visto um travesti na minha vida, nunca tinhavisto um homossexual; se j tinha visto, no tinha percebido nada tambm. Aento eu falei: gente do cu, por isso que minha me no gosta de mim! A

    vem tudo aquilo na cabea. Eu cheguei at ela para perguntar se ela sabia queeu era assim, ela disse que sabia, mas tinha vergonha de falar, vergonha deexplicar. Eu cheguei a sentir clicas esperando a menstruao. De tanto querera menstruao, sentia clica. Cheguei a fazer vrios ultrassons, eu no deixeide pensar que tinha alguma coisa dentro de mim. A eu pensei: "Pxa, como eusou diferente". Ento comecei a fazer muitas perguntas para minha me. Euno acreditava. Para mim eu era mulher e pronto.

    Foram vrios encontros com Ktia no hospital, em sua casa, no seulocal de trabalho e em locais pblicos. Por outros caminhos, eu lhe repetia apergunta: Voc descobriu que seu corpo era de homem aos 14 anos? Aresposta era a mesma: Eu pensei que as mulheres tivessem uma coisinha nafrente, mas que no subia. Muitas vezes minha me me tratava mal, mas euno sabia por que, no ligava uma coisa com outra.

    Outra imagem recorrente para justificar sua ignornciaera o fato deseu pnis nunca ter subido. Ao longo de nossos encontros, observei que Ktiaestabelecia uma relao entre o pnis ereto e a masculinidade.

    Ktia: E eu pensava assim, esmagando ele: "nunca mais ele ia levantar".Ento, eu tentei esmagar, assim com as unhas. Eu tinha um pavor e um medodele levantar algum dia. Ento, para isso no acontecer, eu esmagava ele com

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    as unhas assim, esfregava assim. Eu no sentia dor, por causa de tantaangstia com aquilo ali, eu no sentia dor.

    Caso seu pnis ficasse ereto, seria uma prova de que ela no era uma

    mulher. Quando comeou a toc-lo de forma mais frequente, para fazer ahigiene, teve muito medo quando o viu se mexendo.

    Ktia: Deus me livre. Quando eu vi aquela coisa mexendo, eu vi que ele estavavivo e parei com aquilo.

    Aquela coisa, aquilo, um pedao de carne so algumas dasexpresses comuns entre as transexuais femininas para nomear esse pedaode carne que tenho entre as pernas. Proferir a palavra pnis tornar-sehomem. Mais do que dar vida atravs de um ato lingustico (AUSTIN, 1990), a

    palavra pnis contamina suas identidades. Entre os homens transexuais, osseios tampouco so nomeados, de forma geral, apontam-nos quando sereferem a eles ou falamdessa parte de cima.Sugiro que pnis e seiospodem ser classificados, nesse caso, como um tipo de palavras que contagia.Ao serem pronunciadas, desencadeiam um conjunto de posies identitriaspara quem as emite e para quem as escuta.

    At o momento em que Ktia desconhecia a verdade do seu corpo,conviveu com ele e no se colocava a questo da cirurgia, tampouco

    compreendia o porqu do desprezo da me. Quando descobriu que suagenitlia estava em desacordo com o seu gnero, que era esse corpo sexuado oresponsvel por impeli-la de fazer e de exercer as performances com as quais seidentificava, comearam os conflitos. A revelao desse corpo sexuadoacarretou outra revelao: finalmente descobriu o porqu da rejeio da me.

    Ktia: A coisa horrvel, porque voc v que no era aquilo que imaginava,que voc pensava que era. Eu ia me matar. O pior que eu tinha uma obsessode querer me matar na frente da minha me e falar: "voc fez, voc est vendo adestruio". Era essa a inteno, sabe?

    Se Ktia estava segura de que era uma menina com uma coisinha nafrente, Sara, ao contrrio, narra que tinha muitas dvidas quando era criana eque foram silenciadas pelo medo de ser punida pela famlia.

    Sara: Interessante, antigamente, quando eu era criana, eu pensava assim:ser que todo mundo est errado? Esse povo est tudo errado? Eu pensavaque eu era a pessoa certa. Todo mundo estava errado. A, com o tempo, eu fuiparando para pensar, mas eu nunca fui criana de perguntar nada. Sempre euperguntava para mim mesmo. Eu nunca confiei em falar com ningum.

    Alec, quando era criana, imaginava que a produo das diferenasanatmicas e sexuais era um processo de longa durao. Ningum nascia

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    menino ou menina, o tempo iria separando-os. Estudou em colgio de freiras,nos quais os corpos estavam sempre escondidos. Para ele, todas as crianastinham os corpos iguais e a definio do sexo aconteceria um dia, quandoestivesse dormindo. Ento, ele acordaria e teria um corpo de homem.Acreditava que as mudanas para um corpo de menino levavam tempo e queno seria necessria uma interveno pessoal para faz-lo. Seria o gnero quedeterminaria o sexo. Aos 12 anos, no lugar do pnis, veio a menstruao.Nesse momento, comearam os conflitos.

    Alec: Quando eu era criana, tinha um ideal que todos ramos iguais, at queum momento da vida teu corpo tinha que se transformar, porque, verdade,meu corpo tinha que se transformar. s vezes eu rezava, pedindo um milagre,mas chegou a menstruao e acabou minha historinha. E logo me saram os

    seios, a pensei: caramba, o que est acontecendo aqui? Nada saiu como euesperava.

    [...] Muitas vezes, inclusive, desnudo. Eu pensava que estando ali euconseguiria ser como eles. Aos 12 anos, quando chegou a menstruao, foiuma catstrofe, me caiu o mundo em cima [...] No tinha visto o corpo desnudode uma mulher e de um homem para poder observar as diferenas que existiam.Acho que as ideias e as crenas que eu tinha porque ignorava as diferenas.

    Nesse caso, Alec desejava ter os msculos, a energia e a fora

    masculina e no, prioritariamente, os rgos reprodutores.Helena tambm fala de sonhos.

    Helena: Quando era criana, eu deitava na cama, dormia pensando: amanheu podia acordar com o cabelo grande, que nem uma menina. Sempre pensei,aquele desejo, aquela vontade, mas sempre assim, num passo de mgica.Depois dos 16 que eu comecei a me transformar e ver que tinha que buscaroutros recursos.

    Para Joo, os seios e a menstruao significaram o fim da liberdade.

    Joo: At a ocasio dos meus 12, 13 anos eu ficava sem camisa, entendeu? Euficava s de calo. vontade comigo mesmo. A foi surgindo a adolescncia,seios, essas coisas, a voc tem que se fechar, se tampar. Esse corpo de mulherme incomoda. A pronto, quando veio a menstruao, aos 13 anos, j nopodia ficar sem camisa, livre. A pronto, acabou. No podia ficar como eu eramesmo: livre. E a quando comearam a surgir os meus seios, essas coisas, euchorava, eu no queria, entendeu?

    Para os transexuais masculinos, a menstruao e os seios anunciam o

    fim dos sonhos, da liberdade e a impossibilidade de se tornarem homens e, poroutro lado, a separao definitiva dos mundos dos gneros a partir dessasdiferenas. A descoberta do corpo sexuado impe a tarefa de relacionar-se com

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    as partes do corpo responsveis pela rejeio que sofrem, ao mesmo tempo emque desencadeiam uma busca para se definirem, para encontrar respostas emodelos que lhes possibilitem construir identificaes. Muitos/as relataramque depois de pensar, pensar, eu cheguei concluso: vou cortar.

    Abjeo e convivncia

    So mltiplas as respostas e os caminhos encontrados pelas pessoastransexuais para conviver com partes dos seus corpos responsveis porlhes retirar a possibilidade de serem reconhecidos como membros dognero com o qual se identificam.

    Ktia: Eu entrei no banheiro da minha patroa, quando eu via o preconceito narua, eu entrava no banheiro com a faca na mo. Teve uma vez que eu quasetirei. A, eu liguei para um doutor amigo. Eu odeio tanto esse troo que j leveiuma bronca do mdico por no ter asseio. Porque eu detesto aquilo ali. Eu mijosentada igual uma mulher, mas acontece que no pnis eu no toco. Eu tenhopavor dele. Agora, com o tratamento psicolgico eu estou aprendendo a assear.Tinha medo que ele subisse. Tinha pavor: Eu falo no treco como se tivessetirado, porque para mim ele nunca existiu.

    Patrcia: A parte do meu corpo que menos gosto o pnis. Acho horrvel. Tenho

    ojeriza, eu tenho pavor desse negcio. Ah, nem... Eu j tentei at cortar [...],quando era pequena, eu lembro, deveria ter uns doze anos. Eu subi em umarvore. Tinha daquelas formigas bem grandes. A eu peguei duas, ia colocar deum lado e do outro, na hora que uma colocou as mandbulas dela saiu sangue,a eu gritei e sa correndo.

    Andreia: O que eu queria era viver bem, mesmo que eu no tivesse vagina, maseu queria era no ter isso. Cheguei a planejar tir-lo. Eu pensei, vou entrar nobanheiro do hospital, levo tesoura, blocos de gases, xilocana, planejei tudo. Eupensava em injetar xilocana, a tesoura j vai estar amoladinha, desinfetada, e

    os blocos de gases justamente para estancar a hemorragia at o momento dasutura. Eu pensei que tinha que ser no banheiro do hospital se eu fizer em casa muito longe, o socorro pode demorar e eu posso morrer por hemorragia.

    Esses relatos expem um quadro de abjeo, embora com nveisdiferenciados. Andreia, por exemplo, no tem o mesmo pavor que Ktia,tampouco se pode interpretar o desejo manifesto de ficarem livres, inclusivecom a vontade de tirarem por conta prpria, como vontade de morrer. importante ressaltar esse aspecto para que no se construa uma imagem

    suicidgena da pessoa transexual, um dos primeiros passos para vitimiz-la.Tal construo desdobra-se na sua infantilizao, pois se supe que seusofrimento no os/as permitem atuar ou decidir sobre seus corpos.

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    A abjeo, porm, no a nica possibilidade de leitura para asgenitlias. Para Vitria, o pnis est ali, faz parte do seu corpo. No se consideraanormal, apenas tenho uma coisinha a mais que necessita de correo.

    Vitria: Para te falar a verdade, esse negcio de ter o rgo no me incomoda.Eu quero me sentir mais feminina do que eu j sou. Sempre tive esse objetivo,porque eu ia... acho que te falei nas outras fitas, quando eu vestia roupa ntimaficava uma coisa assim diferente, no dava para mostrar, mas ficava. Se apessoa olhar bem assim... , o biquni, d diferena. Dependendo da calcinhano d diferena, fica pequenininho, normal. Tanto que quando eu visto asminhas roupas, eu no me sinto incomodada. uma parte de mim, vou cuidardele. Eu me sinto 99,99% mulher, falta s esse pequeno detalhe. Porque eusou fmea de corpo e alma, ento eu vou tirar uma coisa que algum mandouerrado. a mesma coisa que voc quebrar uma unha, vou fazer minha unha, a mesma coisa, vou ficar mais bonita. Isso. No me sinto incomodada, nosinto assim, vai melhorando mais ainda.

    Para Bea, o pnis faz parte do seu corpo e no reivindica a cirurgia, poisuma vagina no mudar seu sentimento de gnero, no passar de umburaco. Para ela, o seu sentimento que importa, sendo o rgo totalmentesecundrio. Bea ps prtese nos seios, no tem nenhum sinal de barba ou plonos braos e toma hormnios. Histrias como as de Bea, que reivindica odireito identidade de gnero feminina, desvinculando-a da cirurgia, nos pemdiante da pluralidade de configuraes internas experincia transexual.

    A masturbao

    A rejeio genitlia significa que no se consegue obter prazeratravs do seu toque? O transexual construdo oficialmente no consegue toc-lo para fazer a higiene, tampouco para a obteno de prazer: uma relao detotal abjeo. No entanto, quando Marcela afirma: Eu acho o pnis podre,horrvel, no se pode deduzir que esteja dizendo, eu no o toco, no memasturbo. Segundo ela,

    Marcela: s vezes at, para falar a verdade, eu me masturbava sozinha, sabe?Eu no posso mentir. J me masturbei sim, ele j subiu sim. Pode ser umacoisa que s vezes a pessoa tem vergonha de falar que tem. S se uma pessoa deficiente, que tem problema, que est paralisado o corpo todo, a talvez notenha ereo; como que uma pessoa que absolutamente normal no vai ter?Igual te falei, quando eu era adolescente j me masturbei. Agora, com os

    hormnios, no sobe mais. Eu sei que absolutamente normal. Eu sendotransexual ou no, normal a masturbao. Quando fao, estou pensando queestou sendo penetrada por outro homem, que eu estou beijando, que eu estou

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    dando, que eu estou chupando. Agora no, no tenho ereo completa. svezes posso at ter uma meia ereo, se eu ficar afirmando muito, pensando,querendo, eu posso at ter 80% de ereo, mas no chega a 100%.

    Por que algumas/uns transexuais mentem ou sentem vergonha demasturbar-se? Outra vez tem-se de voltar construo do transexual comoalgum totalmente avesso s suas genitlias e assexuado. Se a identidadetransexual foi caracterizada pelo horror s suas genitlias, seria impensvel,nessa perspectiva, admitir que possvel obter algum tipo de prazer com elas.

    Os/as transexuais sabem das suposies e expectativas construdaspara suas condutas, principalmente no espao hospitalar. O dispositivo datransexualidade tenta regular as microinteraes que se efetivam nesse espao,

    alm de tentar interferir, em nveis variados, na organizao de suassubjetividades. Se o transexual de verdade no se masturba, quem sou?Como posso masturbar-me?

    3Vitria: Tm umas meninas l no Projeto que tm uma frescurada eu notoco no rgo. Frescura. Frescura para se sentir mais assim. mentira. Se mefala: Ah, que eu nunca peguei. Eu digo: Mentira! Se no pegar estariafedendo, n? Eu j me masturbei sim. Eu toco no rgo sem problemas.Gente, uma parte do meu corpo! Faz parte de mim. Isso aqui no vai ser

    jogado fora, a nica coisa que vai tirar so as bolinhas, o resto vai estar tudoaqui. Voc est entendendo? Ento, o que eu vou fazer? Vai continuar aqui, amesma coisa. A nica coisa que vai tirar so as bolinhas. Na hora da relao normal. Frente, atrs, ai, de todo jeito. Eu sou normal, normal. Eu lavo, mexo ebrinco com o rgo. Tudo depende da fantasia. Eu no me incomodo.

    Alec assiste a filmes erticos enquanto se masturba e quando se olhano espelho v um homem. Toca o seu clitris como se fosse um pnis. Atrajetria de Alec para assumir-se como um homem transexual revela os

    prprios processos para a construo das identidades. At os 23 anos, s teverelaes com rapazes. O medo de ser considerada lsbica e do preconceito dosparentes e conhecidos o fez, inclusive, exagerar em sua fama de loba. Tinhamuitos namorados, mas sempre teve um amor feminino clandestino. A formaque encontrou para suportar o seu corpo feminino foi mediante uma intensarotina de ginstica. Eu cheguei a fazer oito horas de ginstica por dia. Quandoeu via os corpos dos meus namorados, eu pensava: nossa, eu estou muitomelhor que ele.

    3 Vitria refere-se ao Projeto do qual fazia parte e que tinha como objetivo realizar o processotransexualizador, no mbito de um hospital universitrio. Esse processo regulamentado por Resoluo doConselho Federal de Medicina.

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    Aos 23 anos, decidiu parar de mentiras e buscar solues para seucorpo. A histria de Alec aponta que a relao entre o corpo e a sexualidade no algo retilnea. Ele no gostava de seu corpo feminino, mas conseguiu terrelaes sexuais com rapazes, sem problemas com a penetrao. No momentoem que realizamos a pesquisa, tinha uma namorada, a primeira de sua vida, eno lhe agradava que ela o tocasse em suas genitlias, embora conseguisse semasturbar. Aos 30 anos, estava em pleno processo de mudanas corporais,atravs dos hormnios.

    Cirurgia e sexualidade

    A pergunta que se pode fazer para aqueles/as que conseguem semasturbar ou no tm problemas em tocar suas genitlias com outrasfinalidades : por que querem realizar a cirurgia? Afirmar que alguns semasturbam ou que outros mentem no revela os conflitos que alguns vivemcom a sexualidade.

    Para Vitria, a imagem de fogosa e de boa de cama sempre foialimentada por ela, que, na verdade, mente sobre o orgasmo.

    Vitria: Eu no gosto de gozar. A gente fica com um corpo mole, dor de cabea.

    Fico o dia inteiro frustrada. Quando eu chegava ao extremo, eu no me sintobem, fico com raiva, fico com vergonha do meu parceiro. Sabe o que eu queria?Quando eu fizer a cirurgia, no tem um jeito de fazer uma ligao l dentro paratirar esse negcio de gozar, no? Que eu no quero esse trem. Quando eu vejoque estou chegando, eu mando parar, eu finjo que gozei. Eu falo: "Para, que eugozei." Eu finjo. Nas minhas relaes, sempre eu finjo que gozo. Saber que temum olho te observando, falta de respeito com Deus, sabe? Se eu for pensar nafalta de respeito com Deus, eu no fico com ningum. Eu gosto de fingir ementir. Depois, eu quero mais. Eu finjo e ele acredita. A, pega o papel

    higinico, corre, rapidinho. A eu digo: quero mais. A ele me diz: Nossa,estou achando esquisito por que voc gozava e mandava eu vazar. No, euquero mais, quero.

    Andreia estabelece uma dicotomia entre a cirurgia e a sexualidade.

    Andreia: Quando eu cheguei no Projeto, eu disse: olha, no estou embusca de orgasmo, de prazer, no. O que eu quero corrigir o meusexo. Eu falei em adequar. Eu queria corrigir, porque eu sempre mesenti uma mulher defeituosa. E nunca me senti homem que quer

    mudar de sexo. Porque dentro de mim eu nunca fui um homem. Eulavo, fao xixi, como se fosse uma coisa que est ali para coar. Meincomoda o fato de eu ter isso aqui, para mim pesa toneladas, eu digo

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    pesa em termos emocionais; me tira a liberdade. Voc sabe o que nopoder ficar pelada na frente do seu namorado? Porque, eu pensoassim: Meu Deus, se eu sou mulher e tenho esse problema, eu noquero que ele veja para no quebrar o encanto. Eu nunca tive aquelaliberdade de tomar banho com namorado, abrir as penas, ficar vontade. Quando a gente tem relao de frente e ele fica por cima, euuso aquela tcnica da toalha. A gente pega uma toalha e pe, mesmoassim eu fico com maior cuidado porque os movimentos, se foremmovimentos mais violentos, mais a toalha pode sair... No caso de umrelacionamento amoroso, a cirurgia vai me dar liberdade demovimento, eu vou poder ter liberdade para abrir as pernas, paraandar. Eu no sou aquela pessoa iludida, pensando: "Ah, a cirurgia vai

    abrir minhas portas e eu vou ser feliz". Gente, imagina, no passaporte para a felicidade de ningum, porque se fosse assim todamulher era feliz. Eu tenho conscincia. Como se diz, eu vou fazer umacoisa que eu preciso para ser livre. Eu no estou apostando que comisso v ser feliz. No, j vou conviver bem comigo mesma, eu vou mesentir normal.

    Se para Andreia a cirurgia no est diretamente relacionada sexualidade, Manuela j cautelosa, mas concorda com as afirmaes deAndreia no seu desejo de realizar a cirurgia para sentir-se livre.

    Manuela: Eu tenho um pouquinho de medo de no sentir prazer depois dacirurgia, mas eu acho que no mais por esse lado do sexo, mais por um ladoemocional que eu me preocupo mais. Eu penso em ser mais livre. Eu acho queme incomoda menos eu ter a vagina no meu corpo, mesmo que eu no sintaprazer, que um pnis. horrvel, porque quando eu vou fazer certas coisas,incomoda, por exemplo, no clube ou alguma coisa assim. Sabe, eu nuncafiquei nua de frente para ningum, eu morro de vergonha e medo que se

    interessassem pelo meu rgo. Com a cirurgia, eu vou ficar mais livre. Voctem toda a aparncia feminina, procura ter os traos femininos, mas no completa. Ento, assim, muitos causam dvida, ou alguma piadinha, algumacoisa assim. A voc tirando fica mais fcil, assim, das pessoas verem. Pormais que voc tenha uma tcnica para esconder e tudo, nunca fica perfeito,num fica igual. Sempre fica mais alto, a tm aqueles olhares, n?

    Para Marcela, sua vida sexual com seu companheiro satisfatria, oque lhe incomoda esconder o pnis durante a relao. O desejo em realizar acirurgia para ficar livre.

    Marcela: Meu sonho conhecer Fernando de Noronha. E para mim, ir numlugar desses eu tenho de ir de biquni, eu quero ficar vontade, eu no posso ir

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    desse jeito. A cirurgia para me libertar, sentir livre, quero me sentir livre,liberdade, eu poder andar sem ter medo de alguma coisa despencar nasminhas pernas. Eu no estou preocupada com prazer. para me sentir livre.Eu quero sentir liberdade. Eu no vou ter que ficar escondendo. Eu s durmo

    com o shortinho do tcham para no ter perigo de esbarrar em nada.Vitria e Carla tambm sonham com o dia em que podero pr um

    biquni e ir ao clube.

    Vitria: Imagina eu no clube, toda mulher e, de repente, a tromba sai? Vocest entendendo? Por isso que necessria uma cirurgia. Voc est com umcorpo de mulher l... Ento isso. A cirurgia para corrigir. Porque umavagina no vai me fazer mais mulher e nem menos mulher.

    Carla: Sabe o que eu penso? Eu penso assim que quando eu fizer minha

    cirurgia para mim, assim, se Deus quiser, que vai ser mais fcil para mim,sabe, vou poder ir para o clube, eu tenho carteirinha do clube, mas no posso,poder bronzear a parte de cima e a parte de baixo, mesmo assim quando eutomar os hormnios eu vou poder, de short e busti em cima, a em baixo euno posso, entendeu? Sei l, poder usar uma cala assim fina, branca assimvoc no pode.

    Sara: O que eu espero com essa cirurgia? A liberdade, poder viver. Eu novivo, eu simplesmente vegeto. Eu no vivo no, eu vegeto. Eu no consigo terum namorado, no consigo um emprego. Eu nunca tive relao. Sou virgem.Com esse troo aqui, que no devia estar aqui, eu vou estar fazendo e noestarei sentindo prazer. Agora, se eu fizer a cirurgia e no sentir prazer isto nome assusta, porque acima de tudo eu vou estar satisfeita. Eu vou ter maissegurana com a vagina, lgico. Se algum falar alguma coisa, arrancominha roupa fora. Eu poderei falar: eu sou mulher. Quer o qu mais? Quer queeu faa o qu agora? Porque parir por parir, tm muitas mulheres que nochegaram a parir at hoje. Ento, com a vagina eu vou me sentir segura.

    As respostas e as formas de relacionar-se com as genitlias e as

    sexualidades so diversas. No entanto, quando se perguntava o porqu dacirurgia, encontrava-se uma constncia nas respostas: Quero ser livre.Nenhum/a dos/as entrevistados/as respondeu: Eu quero a cirurgia paraconseguir ser penetrada ou penetrar, para conseguir o orgasmo. Entre ostransexuais masculinos, a mastectomia a cirurgia que lhes dar o que ostransexuais conseguiro com a construo da vagina, ou seja, a liberdade. odesejo de serem reconhecidos/as socialmente como membros do gneroidentificado que os/as leva a realizar os ajustes corporais.

    Enquanto no realizam o corte na carne, fsico, o corte simblico,atravs de tcnicas para dissimular os signos que os denunciam comomembros do gnero rejeitado, efetivado. A utilizao de faixas que apertam os

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    seios, tcnicas para esconder o pnis, camisetas com gola alta para nomostrar o pomo de ado, perucas, maquiagens para disfarar os sinais de barbaso algumas das tcnicas utilizadas na busca de uma coerncia entre asperformances de gnero e o corpo apropriado para desenvolv-las.

    Joel: muito cansativo, todo o tempo tem que colocar as faixas para esconderos seios. No vero faz um calor insuportvel. Fico com medo de abraar aspessoas e elas descobrirem que as faixas esto ali.

    Joo: Eu tenho sorte porque tenho pouco seio. Ento, uso uma camiseta bem,bem apertada, e sempre uso uma camisa folgada, de mangas compridas, paradisfarar. Mas eu no posso me ver no espelho nu.

    Acompanhei algumas mudanas que aconteceram com os dois

    entrevistados que realizaram a cirurgia enquanto desenvolvia a pesquisa: Ktia(construo da vagina em abril de 2001) e Joel (mastectomia e esterectomia,em junho de 2002).

    Para Joel, a mastectomia significou ficar livre das faixas que oincomodavam, principalmente no vero, e a possibilidade de tirar a camiseta nobanheiro junto aos seus companheiros de trabalho, de abraar os/as amigos/aslivremente e de usar camisetas regata. Depois que a fez, notou-se umamudana considervel na sua postura, na fala e na forma de se aproximar das

    pessoas. O tmido Joel, que estava sempre com os ombros voltados para dentro,tentando esconder os seios, passou a incorporar uma parte do seu corpo quetinha sido cortada simbolicamente para composio de suas performances.

    No caso de Ktia, as mudanas tambm foram visveis. J no hospitalse dizia feliz. Na primeira entrevista depois da cirurgia, ela relata suassensaes antes da cirurgia.

    Ktia: Eu falei assim: "Amanh voc sai daqui [referncia ao pnis]. Amanh

    voc no existe mais, esse... uma coisa que eu tinha ali no meio das pernasque chama pnis. Ento foi isso que eu pensei: "Vai sair daqui seu desgraado,amanh voc no est aqui". Eu queria mais, realmente, ficar livre dele e olhare ter uma vagina. Era isso que eu queria. E a hora que eu acordei no quarto, quelevei a mo l, percebi que tinha ficado livre. Foi uma felicidade imensa. Eusabia de todos os riscos, mesmo assim eu queria. E se morresse, morreria feliz.

    Passadas algumas semanas, fui entrevistar Ktia em sua casa.Quando cheguei, ela estava vestida elegantemente, com uma sandlia de saltoalto, saia e blusa douradas, o que contrastava com sua ltima imagem nohospital, plida, com pelos no rosto. Visivelmente feliz, Ktia prope: Vamosfazer a entrevista na praa.

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    A cidade onde mora pequena. Vrias vezes paramos a entrevista paraela conversar com algum que a cumprimentava. Sempre sorrindo, dizia:Estou superfeliz. Agora eu me sinto livre.

    O fato de haver escolhido um lugar pblico para realizao daentrevista pode ser interpretado como a vontade de publicizar seu corpo, paraexercer a liberdade.

    Assim como Joel, Ktia parecia que passara a sentir-se livre.

    O corpo admirado

    Antes de realizar a cirurgia, h um conjunto de tcnicas j transmitidaspara a construo de caractersticas corporais que lhes possibilitam transitarcomo membros do gnero identificado. Esse conhecimento adquirido com asamigas (principalmente travestis). Alm daquelas tcnicas descritas, o uso deanticoncepcional para fazer os seios crescerem, entre as transexuais, uma dasmais comuns.

    Andreia: Eu comeei a tomar anticoncepcional com dezenove anos para terseios, eu j tinha um pouco, mas eu queria mais. A comeou a nascer, a gente

    comea sentindo, vai ficando dolorido. Quando eu tiver dinheiro, um dia, euvou pr silicone, porque eu acho que o nico jeito.

    Maria: Eu tinha dezessete anos, trabalhava numa boate em Belm, nessa casaeu era garonete. A ele [o farmacutico] falou assim, eu j notei que vocgostaria de ter seio, de ser bem feminina, n? Nossa, quando esse homemfalou assim que tinha jeito de nascer seio, eu quase pulei nele de felicidade. Aeu tomei os hormnios todo ms. Nossa senhora, eu me senti mocinhamesmo. Todo homem ficava me olhando assim. Nossa senhora, eu tomeimuito tempo, a cresceu, ficou lindo, maravilhoso. Mas acho que se eles

    desenvolveram porque eu tirei os testculos, n?

    As partes do corpo mais valorizadas pelas transexuais so as ndegase os seios: o xeque-mate da mulher o seio e a bunda, apontou Manuela. Mascada um destacar uma parte do seu corpo que considera mais bonita.

    Andreia: As colegas de faculdade falam assim: "Andreia, parece que sua bundatem uma luz que brilha, porque onde voc passa ningum fica sem olhar".

    Sara: Meu cabelo agora t horrvel perante o que era. Meu cabelo era lindo,

    lindo, tinha um cabelo muito bonito. Jogava meu cabelo para todo lado e opessoal, assim, olhava e dizia assim: Nossa, uma beleza e tanto. Tinha umcabelo que no era qualquer um, ele ainda est bonito, mas j foi mais.

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    Para Vitria, sua voz o que mais lhe agrada, depois os seios.

    Vitria: Todo mundo fala que eu j fiz a cirurgia por causa da voz. Eles achamque a minha voz no assim. A voz a coisa mais importante para umamulher. Olha s, quem pode dizer que eu no sou mulher? Inclusive no tomomuito hormnio porque pode me prejudicar. Eu tenho tudo de mulher, mas aminha voz j uma coisa que poucas tm. Eu adoro meus seios pequenos.Primeiramente, se eu colocar silicone, eu sei que meu namorado nunca maisvai tocar. Ele falou que natural. E tambm para que eu vou querer peito, sepeito cai? S tomei uma cartela de anticoncepcional. Por isso que eu falo queeu tenho hormnio feminino, porque se eu ficar tomando esse tanto deremdio a, esses remdios vo me fazer mal.

    No h uma autoimagem corporal negativa; ao contrrio, as qualidades

    fsicas so valorizadas. Realizei diversas entrevistas nas casas de Ktia, Pedro eMaria. Nessas ocasies, observei a importncia que conferiam s suas fotos. Nacasa de Maria, todas as paredes de sua pequena sala so ocupadas com fotossuas. Na casa de Ktia, a entrevista de uma tarde teve como roteiro seus lbunsde fotos. Foi nesse momento que comecei a problematizar a tese segundo a qualo/a transexual odeia seu corpo. O que estava diante de meus olhos era umaKtia que adorava brincar carnaval e exibir seu corpo. Afirmava com orgulho:Ganhei o concurso de carnaval vrias vezes. Em uma dessas fotos, tirada adistncia e um pouco desfocada, ela est em cima de uma pedra, em p etotalmente despida. Voc est vendo o dito cujo [referncia ao pnis]? o queeu te digo, ele sempre foi minsculo, nunca subiu.

    Na casa de Pedro, as fotos contavam as histrias de suas ex-namoradas. A cada foto, uma explicao: Com essa eu fiquei dois anos. Comessa s tive um casinho. Suas histrias amorosas legitimam, em boa medida,sua masculinidade.

    Pedro: As trs eram superamigas. Eu tive um caso com essa primeira, depois

    com essa e agora estou tendo com essa da. Ento, o pessoal fica falando queeu estou querendo aproveitar, para contar, sair contando vantagem que eu tivecom uma e depois com as trs amigas.

    Enquanto Maria e Ktia explicitam sua imagem, Pedro realiza essepercurso atravs, principalmente, de sua performance sexual, o que para eledefiniria e diferenciaria o homem de verdade.

    A genitalizao das relaes

    A genitalizao da sexualidade um dos desdobramentos dodispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1985) que faz coincidir sensaes com

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    determinadas zonas corporais, reduzindo o corpo a zonas ergenas, em funode uma distribuio assimtrica do poder entre os gneros(feminino/masculino), conforme aponta Preciado (2002). A genitalizao, no

    entanto, no se limita sexualidade: atravessa as relaes, estruturando-as.O medo de perderem ou de no conseguirem namorados/as pela falta

    de uma vagina, nas transexuais, e do pnis, nos transexuais, apareceu emalgumas narrativas. Para Andreia, o homem necessita de sexo vaginal. Elarelaciona-se com um homem que vive com uma mulher no transexual. Anecessidade de ter uma vagina para suprir suas necessidades sexuais foi osentido que Andreia atribuiu a essa vida dupla do companheiro.

    Andreia: s vezes ele vem me procurar e eu falo assim, pxa voc fez com a

    outra, eu no vou fazer com voc. Voc no precisa, me deixa. Mas eu vou tecontar uma coisinha: como eu no gosto de sexo, eu dava essa desculpa, n? Aeu falava: voc tem uma vagina para transar, por que voc quer fazer comigotambm?Agora, no fundo, no fundo, na verdade, humilhante para mim. Eusaber que ela fazia sexo vaginal e eu seria obrigada a fazer anal, porque eu notinha outra possibilidade. Ento eu aceitei porque, como se diz, primeiroporque eu o amava muito; segundo, eu ponderei justamente essa questoanatmica, ela ter a vagina e eu no ter. Me senti diminuda, me senti numaposio de desvantagem em relao a ela. Eu pensava: "Meu Deus, eu notenho vagina como que eu posso exigir que ele fique comigo?".

    O sentimento de inferioridade em uma relao amorosa, de sentir-semenos e estar ameaada pelos fantasmas de corpos normais, levou-a a aceitaressa situao. Brbara tambm viveu uma situao parecida com a de Andreia.

    Brbara: Eu pensava: como posso pedir para ele ser fiel? Eu, nesse estado?Sabe, aceitei muita coisa. Acho que tambm o medo de ficar s. Tenho horror solido. Mas chegou um dia em que disse: chega! Ele teve a ousadia de

    transar com essa mulher na minha casa. No suportei mais tanto sofrimento.Ele continua me procurando, mas no quero mais.

    A vagina e o pnis, nesse sentido, so moedas de negociao dasrelaes. Marcela se sentiu ameaada por sentir-se incompleta e acreditar nanecessidade natural do homem de penetrar uma vagina, sentimentocompartilhado por outras entrevistadas.

    Marcela: Eu penso que uma mulher com vagina pode usar essa vagina comoarma, que ela pode querer usar contra mim, ento eu me sinto ameaada.

    como se eu me sentisse uma mulher incompleta. Isto me deixa triste. Masquero fazer a cirurgia, em primeiro lugar, por mim, para me sentir livre, o restovem depois.

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    Ktia: Me sentia vrias vezes inferior, principalmente quando voc sabe que ohomem est te traindo com uma mulher. Eu pensava: gente, eu sou umaporcaria, sou um lixo. Eu me sentia como um lixo. Era isso que eu sentia.Muitas vezes para no ter que ficar sozinha, eu pensava que se ficasse com um

    homem feio, uma coisa assim feia, eu pensava que pelo menos outra mulherno ia se interessar por ele. Acho sim, que o homem valoriza mais a mulher quetem vagina.

    importante lembrar que ao afirmar esse sentimento de inferioridade,Ktia no est dizendo eu sou inferior. Em outra parte da entrevista, afirmou:nunca me senti inferior em relao a uma mulher. Eu at me acho mais bonitado que algumas mulheres. Por ter o corpo mais bonito, por ter o bumbum maisarrebitado, ento eu me acho mais bonita do que certas mulheres, de corpo.

    O que a experincia transexual revela so traos estruturantes dasverdades para gneros, para as sexualidades e subjetividades. Nessaexperincia, o que nos constitui revelado com tons dramticos que soanalisados pelos protocolos mdicos como enfermidades. A luta peladespatologizao da transexualidade e a luta pela retirada do CdigoInternacional de Doenas de todas as classificaes relacionadas ao gnero(travestilidades, fetichismos, transexualidade) uma das pautas da

    contemporaneidade que unificam tericas/os e ativistas em vrias partes domundo. Os resultados dessa mobilizao terico/militante comeam a produzirseus primeiros efeitos. A Frana passar, em breve, a desconsiderar atransexualidade como uma doena mental. Ser, portanto, uma importante vozdissonante que, certamente, se multiplicar em iniciativas similares em outrospases. Esse um passo fundamental para reconhecer plenamente a condiohumana das pessoas transexuais e travestis e para retirar o gnerodefinitivamente da alada do saber/poder mdico.

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    Referncias

    AUSTIN, J. L. Quando dizer fazer: palavras e ao. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1990.

    BUTLER, Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity New

    York/London: Routledge, 1999.BENTO, Berenice. A (re)inveno da transexualidade: sexualidade e gnero naexperincia transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

    FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, v.1, 1985.

    PRECIADO, Beatriz. Manifiesto contra-sexual: prcticas subversivas de identidadsexual. Madrid: Pensamiento Opera Prima, 2002.

    RAMSEY, G. Transexuais: perguntas e respostas So Paulo: Edies GLS, 1996.

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