BERNARDO, João. Aridez e futilidade

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[em Educação_&_Sociedade , 1995, ano XVI, nº 51] João Bernardo Aridez e Futilidade: Parábola da mais-valia absoluta e da mais- valia relativa [Este artigo retoma o tema de uma palestra que proferi a 7 de Novembro de 1991 na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.] Publicado pela primeira vez em 1949, precisamente quando o stalinismo se iria em breve desagregar e o welfare state começava a implantar-se nos países industrializados da esfera norte-americana, Nineteen Eighty-Four (Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) de George Orwell descreve, apesar disso, um mundo onde se extremariam as características que marcaram o regime soviético durante a vigência do primeiro e segundo planos quinquenais. Embora a acção ocorra apenas num dos três grandes Estados fictícios, a Oceania, percebemos que os outros dois, a Eurasia e a Eastasia, obedecem ao mesmo sistema social, marginalizando completamente a produção de bens de consumo e sustentando a economia em formas trabalho-intensivas. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro situa-se na linhagem das obras que, com paixão ou horror, anteviam no regime staliniano o modelo da convergência de todos os tipos de capitalismo. E não parecera isso lógico? Enquanto os restantes países industrializados se debatiam na década de 1930 com uma crise económica sem precedentes, na União Soviética conseguiam-se prodigiosas taxas de crescimento. Ninguém no Ocidente ignorava a feroz repressão e desde 1930 fora denunciada, sem margem para dúvidas, a existência de campos de trabalho forçado onde se sujeitava um enorme número de pessoas a uma verdadeira escravatura de Estado. Mas a estes factos era impermeável a incredulidade de muitos e a indiferença dos restantes. O sistema soviético encontrava então a sua justificação na eficácia económica. Que melhor libelo contra os regimes parlamentares do que a acumulação de desemprego e a incapacidade de resolver a crise? Engenheiros e operários qualificados tinham feito filas de espera à porta dos consulados soviéticos nos Estados Unidos, seduzidos pelas oportunidades de trabalho criadas pelos primeiros planos quinquenais. Foi esta a razão profunda do prestígio de que o regime staliniano gozou, acrescido ainda, a partir do início de 1943, pelas decisivas vitórias alcançadas contra os exércitos nazis. Não eram críticas, mas elogios ou, melhor ainda, invejas que o Kremlin despertava em vastos sectores das classes dominantes dos outros países. Parecia ser a alternativa viável e muitos dos seus adversários, na direita conservadora ou na esquerda radical, viam com tanto mais apreensão o futuro do capitalismo quanto consideravam que inevitavelmente caminhava no rumo traçado por Stalin. A utopia no célebre romance de Orwell consiste em levar a um ponto máximo as características da sociedade soviética. 1

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BERNARDO, João. Aridez e futilidade

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  • [em Educao_&_Sociedade, 1995, ano XVI, n 51]

    Joo Bernardo

    Aridez e Futilidade: Parbola da mais-valia absoluta e da mais-valia relativa

    [Este artigo retoma o tema de uma palestra que proferi a 7 de Novembro de 1991 na Fundao Getlio Vargas, em So Paulo.]

    Publicado pela primeira vez em 1949, precisamente quando o stalinismo se iria em breve desagregar e o welfare state comeava a implantar-se nos pases industrializados da esfera norte-americana, Nineteen Eighty-Four (Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) de George Orwell descreve, apesar disso, um mundo onde se extremariam as caractersticas que marcaram o regime sovitico durante a vigncia do primeiro e segundo planos quinquenais. Embora a aco ocorra apenas num dos trs grandes Estados fictcios, a Oceania, percebemos que os outros dois, a Eurasia e a Eastasia, obedecem ao mesmo sistema social, marginalizando completamente a produo de bens de consumo e sustentando a economia em formas trabalho-intensivas.

    Mil Novecentos e Oitenta e Quatro situa-se na linhagem das obras que, com paixo ou horror, anteviam no regime staliniano o modelo da convergncia de todos os tipos de capitalismo. E no parecera isso lgico? Enquanto os restantes pases industrializados se debatiam na dcada de 1930 com uma crise econmica sem precedentes, na Unio Sovitica conseguiam-se prodigiosas taxas de crescimento. Ningum no Ocidente ignorava a feroz represso e desde 1930 fora denunciada, sem margem para dvidas, a existncia de campos de trabalho forado onde se sujeitava um enorme nmero de pessoas a uma verdadeira escravatura de Estado. Mas a estes factos era impermevel a incredulidade de muitos e a indiferena dos restantes. O sistema sovitico encontrava ento a sua justificao na eficcia econmica. Que melhor libelo contra os regimes parlamentares do que a acumulao de desemprego e a incapacidade de resolver a crise? Engenheiros e operrios qualificados tinham feito filas de espera porta dos consulados soviticos nos Estados Unidos, seduzidos pelas oportunidades de trabalho criadas pelos primeiros planos quinquenais. Foi esta a razo profunda do prestgio de que o regime staliniano gozou, acrescido ainda, a partir do incio de 1943, pelas decisivas vitrias alcanadas contra os exrcitos nazis. No eram crticas, mas elogios ou, melhor ainda, invejas que o Kremlin despertava em vastos sectores das classes dominantes dos outros pases. Parecia ser a alternativa vivel e muitos dos seus adversrios, na direita conservadora ou na esquerda radical, viam com tanto mais apreenso o futuro do capitalismo quanto consideravam que inevitavelmente caminhava no rumo traado por Stalin. A utopia no clebre romance de Orwell consiste em levar a um ponto mximo as caractersticas da sociedade sovitica.

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  • Nenhum sistema baseado numa produo trabalho-intensiva e numa severa limitao do consumo pode existir sem uma forte represso. Mas enquanto os totalitarismos conhecidos procuraram reprimir os comportamentos, o regime descrito em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro pretende reprimir os prprios pensamentos dos membros do Partido e mesmo os desejos, at nas suas manifestaes elementares.

    Para tal os dirigentes do universo orwelliano deram livre curso utopia de Leibniz, uma linguagem inteiramente desprovida de equvocos, que cunhasse cada palavra com um nico sentido possvel. O Newspeak ocupa a posio-chave no romance, o fundamento do regime e, ao mesmo tempo, a sua principal criao. O uso de uma linguagem deste tipo implicaria uma completa obedincia s concepes desejadas pelos seus autores, mas isso supe o absoluto controle do inter-relacionamento social. As palavras e as suas acepes geram-se na vida em comum. E o sentido de qualquer palavra ambguo porque cada um de ns, enquanto indivduo, irredutivelmente difere dos restantes, mas partilhando todos juntos, na sociedade, essa diferena. A ambiguidade a condio que permite entendermo-nos no desentendimento, falar os mesmos termos e dizer com eles coisas distintas, sermos indivduos e sociabilizarmo-nos. porque, no deserto serto do nordeste brasileiro, Graciliano Ramos reduziu a um mnimo a sociabilidade dos personagens de Vidas Secas, que as suas possibilidades de discurso so to limitadas e, falta de palavras, s gritando podem tornar-se expressivos. Mas num universo concentracionrio como o descrito por Orwell as relaes entre indivduos so obrigatoriamente frequentes e mltiplas. Como seria ento possvel liquidar, na linguagem da sociedade, a iniciativa comum na criao de palavras novas e a ambiguidade resultante do uso pessoal de cada termo?

    Para que as relaes sociais no sejam criadoras nem das palavras, nem dos seus sentidos, tm de ser mediadas pelo mesmo centro que elabora o dicionrio. No legtimo em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro um membro do Partido contactar outro seno atravs da prvia insero de ambos na dependncia de uma comum hierarquia. A regra da verticalizao das relaes no pode sofrer a mnima excepo, para que o vocabulrio se reduza ao autorizado e seja absolutamente unvoco o sentido de cada termo.

    E para se manter integral a pureza do dicionrio preciso abolir a paixo nas relaes sexuais. A paixo o lugar mais extremo da contraditoriedade da linguagem onde, na ilusria fuso de duas individualidades, cada um fala para si julgando falar ao outro. a paixo que demonstra a impossibilidade do solilquio ou, talvez melhor, demonstra que mesmo para ns prprios as nossas palavras so ambguas. Por isso aquele totalitarismo absoluto que inventara o Newspeak exige a castidade, interrompida apenas pelas necessidades de reproduo da espcie. Os cientistas procuram at obter a cpula sem orgasmo, porque o prazer sexual cria um universo de felicidade, exterior s capacidades de controle do Partido, enquanto a castidade induz um estado de histeria propcio ao culto do chefe.

    Mas necessrio algo mais para manter o discurso nos estreitos limites da nica definio aceite e aqui comeamos a passar das personagens para o seu autor. Se Orwell concebesse a prtica como anterior aos conceitos, ento a forosa inadequao da linguagem a uma realidade em mutao seria suficiente para introduzir a ambiguidade nas palavras. Mesmo exercendo uma fiscalizao constante sobre todas as formas de relacionamento, os senhores do dicionrio s podem ser senhores do sentido dos discursos num mundo em que a aco no for anterior, nem contrria, conscincia. Apenas num quadro ideolgico assim definido possvel apresentar o controle absoluto sobre as palavras como garantia do controle absoluto sobre o pensamento e os desejos. Para eliminar as concepes herticas e a vontade

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  • dissidente mediante a anulao dos termos que as veiculam seria necessrio que a criao da realidade dependesse da prvia imagem verbal, que o universo das palavras imperasse sobre o universo da aco. Assim a histria ficaria abolida, pois o controle das palavras, permitindo dominar o presente, permitiria tambm expurgar o passado e impedir o futuro. E ento o totalitarismo que governa Mil Novecentos e Oitenta e Quatro incluiria em si todo o existente.

    este o imprio das palavras e a actividade opressiva do Partido vai direito limitao do vocabulrio e manipulao dos sentidos do discurso. Nem a tortura tem naquele regime outra finalidade seno a de destruir a duplicidade no uso dos termos. necessrio que a cobardia do torturado o torne, aos seus prprios olhos, de tal modo abjecto que projecte essa vileza sobre os seus anteriores contactos culposos e, neles destruindo o afecto, restrinja finalmente as palavras ao sentido obrigatrio, do qual vmente pretendera escapar.

    No entanto, os trabalhadores em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, embora levando uma vida material miservel, so capazes de um inter-relacionamento prprio, alheio interferncia do Partido. Podem conviver, beber em conjunto, amar-se ou odiar-se, at cantar, fora de quaisquer obedincias hierrquicas e sem que isto parea pr minimamente em causa a estabilidade do regime. Os mecanismos da represso absoluta existem somente no interior do Partido e incidem apenas nos seus membros. O que torna to perigoso o relacionamento social directo nos meios dirigentes e to incuo quando ocorre entre trabalhadores? George Orwell frequentemente aborda este paradoxo, crucial no livro, sem nunca lhe dar resposta.

    O seu quadro de anlise estava, afinal, limitado por toda uma herana jacobina que nega a eficcia subversora das relaes sociais espontneas e indiferentes ao aparelho de Estado. O que pode parecer surpreendente, da parte de quem foi um crtico do leninismo. Num quadro ideolgico em que a base do poder real seria o controle exercido sobre as palavras e os processos mentais e em que, portanto, uma actividade social s teria resultados se fosse consciente, os trabalhadores definiam-se precisamente pela inconscincia da sua actuao. No s o regime descrito em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, mas o prprio livro, carregado do elitismo dos intelectuais profissionais. Se o poder reside no dicionrio, para ele o perigo pode apenas vir dos membros do Partido, que se encarregam da reduo e da manipulao das palavras. Todos os outros, os trabalhadores, so inofensivos.

    Publicado em 1932 Brave New World (O Admirvel Mundo Novo) de Aldous Huxley foi, como antecipao do futuro, muitssimo mais perceptivo do que Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, que lhe dezassete anos posterior. E no entanto Orwell tivera Huxley como professor em Eton.

    Esse Mundo Novo, to admirvel, resulta da fuso de trs tipos de sociedade, a norte-americana, a sovitica e a fascista, como desde as primeiras pginas caricaturalmente posto em relevo nos nomes dos personagens, que conjugam os de dirigentes polticos clebres de cada um dos campos. O fundamento comum, que permitira a convergncia dos trs regimes, a sociedade de massas, entendida duplamente: do lado da produo, consiste no fabrico de enormes quantidades de artigos indiferenciados, perdendo-se na massa dos objectos qualquer especificidade particular; do lado do consumo, consiste na reduo das pessoas a padres estereotipados, perdendo-se toda a individualidade na massa social. Desde a gnese do capitalismo industrial a produo em srie destinada a uma sociedade massificada um princpio norteador, mas encontrou em Henry Ford o primeiro promotor sistemtico em vasta escala, que com esse objectivo reorganizou as relaes de trabalho, as linhas de fabrico, as caractersticas do produto e at a mentalidade do comprador. Por isso Ford tornou-se Deus em

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  • O Admirvel Mundo Novo, a nova Bblia a sua autobiografia, My Life and Work, e a produo do Modelo T, inaugurada em 1908, marca o incio do novo calendrio. Em ingls a modificao fcil, Ford substituindo Lord, o Senhor, e quanto ao resto bastou cortar o topo da cruz para a converter num T, smbolo dos objectos produzidos em srie e, com eles, da nova religio.

    O modelo social e ideolgico que inspira O Admirvel Mundo Novo o taylorismo, tal como comeou a ser aplicado na grande produo industrial norte-americana. Se para Orwell, e tantos outros como ele, o sistema sovitico constituiria o plo atractivo onde haviam de convergir os restantes regimes, para Aldous Huxley so os Estados Unidos a inspirar finalmente o desenvolvimento de todas as sociedades industrializadas, presidindo sua convergncia mundial. A utopia consiste aqui em levar a um ponto mximo as caractersticas da sociedade norte-americana.

    Nessa utopia toda a economia funciona mediante o permanente estmulo ao sector dos bens de consumo e os processos de fabrico so capital-intensivos, para aumentar os cios e facilitar as oportunidades de consumo. S para evitarem os perigos da reflexo, que pode ser ocasionada pelo prolongamento do lazer, os dirigentes limitam a reduo do tempo de trabalho. A reflexo perigosa porque suscita a apreciao crtica e traz a discrdia, pondo em causa a estabilidade indispensvel a um regime totalitrio. So estas ocasies de conflito que as autoridades querem a todo o custo evitar, em vez de aguardarem para lhes punir as consequncias, porque um sistema assente no consumo de massas e numa produo capital-intensiva tem de praticar a conciliao, no a represso.

    Em O Admirvel Mundo Novo a represso substituda por um conjunto de medidas que permitem a plena harmonia e previnem as insatisfaes antes ainda de elas se manifestarem. A manipulao biolgica transforma as classes sociais numa hierarquia de raas, escalonando as capacidades intelectuais de maneira a que os subalternos fiquem obrigatoriamente subordinados aos seus chefes. E o condicionamento psicolgico, aplicado aos princpios elementares da moral, faz com que todos os elementos de cada uma das raas estejam satisfeitos com as funes que desempenham e o quadro que ocupam. De resto, a percepo directa do mundo atenuada mediante o livre recurso a estupefacientes e a difuso de formas degeneradas de arte, que criam substitutos fictcios cujos resultados sensoriais so tidos como mais reais do que a realidade exterior. E assim se transformam os indivduos no pblico, vivendo dentro de espectculos supletivos da restante realidade e limitativos do comportamento. Enquanto diferente do objecto que lhe serviu de pretexto a arte um convite reflexo sobre essa diferena e, assim, a uma posio crtica ao mesmo tempo quanto imagem artstica e quanto ao seu modelo. Mas os espectculos hiper-naturalistas que vigoram em O Admirvel Mundo Novo tm como nica funo substituir a realidade exterior e suprimir qualquer reflexo crtica. A represso pode no ter lugar e todas as aspiraes so imediatamente satisfeitas porque este quadro restringe de antemo a amplitude e os tipos de desejo.

    A ordem social no se baseia aqui na represso, mas na assimilao, e este o seu mecanismo totalitrio. Adultos no trabalho, os indivduos so infantilizados fora do trabalho porque se encontram condicionados contra a solido. Mais ainda do que um prolongado cio, a solido d oportunidade para reflectir, suscitando ento a crtica ao regime existente e o aprofundamento das relaes entre as pessoas, que se constituiriam como alternativa. E a permissividade e promiscuidade, obrigatrias em O Admirvel Mundo Novo, ao impedirem o impulso sexual de se converter em paixo, mantm as relaes num estado de futilidade que

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  • bloqueia a sua consolidao. O estmulo ao consumo fundamenta a economia e a frivolidade dos relacionamentos provoca a superficialidade que, inibindo qualquer exerccio da crtica, a garantia mais forte da ordem vigente.

    No confronto das duas utopias esclarecemos os mecanismos sociais. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro todos os contactos entre membros do Partido so mediados pelo nvel hierrquico superior e, no podendo prossegui-los directamente, os indivduos ficam obrigados ao isolamento. Nessa utopia da represso absoluta as relaes no conseguem aprofundar-se e, portanto, servir de base a alternativas, porque cada pessoa mantida isolada. Porm, na utopia huxleiana da permissividade absoluta os indivduos no aprofundam as relaes por estarem condicionados contra a solido. E podemos ento compreender que isolamento e solido so situaes antagnicas. A solido no o contrrio da relao, mas o seu necessrio contraponto e na dialctica entre ambas se exerce a crtica. A solido a oportunidade de fazer o balano das experincias e de proceder ao juzo sobre as relaes existentes; e a relao a oportunidade de transformar praticamente o contexto em que o indivduo vive, obrigando-o desse modo a avaliar-se criticamente. Para que os contactos se mantenham numa permanente superficialidade, para que nenhuns elos se consolidem que possam pr em causa o regime vigente, necessrio afastar os indivduos da solido e no sero, assim, nem crticos da sociedade, nem de si prprios. Os personagens criados por Orwell, impedidos de tecerem entre eles relaes directas, no so capazes de se olhar em oposio sociedade e por isso lhes est igualmente vedada a solido. O clima de cinzenta desesperana que inspira o livro vem da impossibilidade em que os protagonistas se encontram de ver os outros e de se verem a si. Mas o resultado no diferente no ambiente de morna euforia que vivem os personagens em O Admirvel Mundo Novo. Constantemente em multido, jamais se apercebem deles prprios e, portanto, tambm no dos outros, nem do universo que os rodeia. De um modo subtil e indolor, sem represso, apenas pela facilidade, o totalitarismo imaginado por Huxley assenta em bases mais slidas do que o de Orwell, porque em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro o regime atravessa frequentes crises internas, que de cada vez tem de vencer e superar, enquanto a permissividade e a assimilao desarticulam os mecanismos da contestao muito antes de ela poder esboar-se.

    No centro de ambas as obras, apesar de to diferentes, ou at opostas, est uma mesma problemtica, que se resume no antagonismo entre solido e isolamento e, portanto, na necessidade de articular solido e relacionamento. Esta a questo crucial que, mais de meio sculo antes, j Dostoyevsky enunciara na parbola do Grande Inquisidor, tal como Ivan Karamazov a narrou a Aliocha, o irmo mais novo. Cristo regressara ao mundo, na Sevilha dos Reis Catlicos. No proferira uma palavra, nem era necessrio, a multido reconheceu-o pela aura que dele emanava e comeou a segui-lo. E o seu cortejo encontrou-se com o do Grande Inquisidor, que o mandou prender e trazer sua presena.

    "De novo tu!", o Grande Inquisidor acusa o Cristo, em termos que no so literalmente os do romance, mas nem so apenas meus tambm, pois pertencem a todas as sociedades modernas. "Tu de novo, para destruires a obra que nos demorou quinze sculos a perfazer e voltares a difundir os teus erros! Apelando para que cada um se tornasse livre, assumisse o seu destino e fosse responsvel, trouxeste humanidade a infelicidade. Pretendeste confrontar cada indivduo com ele prprio e com os outros, deixando-os assim nas incertezas da revolta e obrigando-os angstia das deliberaes, ao peso das escolhas. Mil e quinhentos anos nos foram precisos para libertar as pessoas da responsabilidade e deix-las felizes, com o humilde contentamento da submisso. Sou eu quem agora carrega a dureza das opes necessrias e a

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  • memria de as ter tomado. Nos meus ombros assenta toda a infelicidade do mundo, de que alheei os homens". Perante Cristo, o Grande Inquisidor coloca-se como outro Cristo, pois tambm ele redimiu a humanidade; mas um anti-Cristo, afastando-a do conhecimento e da responsabilidade, que reserva para si, com todos os tormentos e culpas da deciso. A esta infelicidade ficam imunes os outros, a quem basta seguir caminhos j traados. A passividade sinnimo da ordem e obedecer delegar a responsabilidade em quem comanda. O Grande Inquisidor apresenta-se perante a humanidade para ser investido da responsabilidade colectiva e do inerente sofrimento. Porque o nico a decidir, tem de ser o nico a conhecer e, por isso, o nico a padecer. Se O Admirvel Mundo Novo e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro marcam os limites do totalitarismo possvel, confirma-se uma vez mais que a reflexo de Os Irmos Karamazov concentra os problemas cruciais do nosso tempo.

    Para Orwell o Partido pode ser absolutamente totalitrio porque os homens so incapazes de ser livres e encarar a verdade. S uma minoria de indivduos excepcionais consegue faz-lo e esses, ou so aniquilados, ou convertidos em dirigentes. O'Brien sabe e sabe tanto que ele mesmo produz o saber da fictcia oposio. esta a condio para que a oposio no exista: que sejam dirigentes os que poderiam ser opositores. Mas, enquanto chefes, a sua capacidade de conhecimento e de sofrimento no tem repercusses crticas. Eles no fazem seno apropriar-se da crtica alheia e so capazes potencialmente de criticar para que mais ningum o seja realmente. Tambm para Huxley a sociedade pode ser absolutamente totalitria porque aos indivduos que, apesar das manipulaes biolgicas e do condicionamento moral, conseguirem desenvolver uma capacidade crtica dada a alternativa do exlio, que corresponde a uma anulao social, ou da ocupao de postos de chefia. Mustapha Mond conhece o diferente, pode comparar e tem de decidir. Mas f-lo para que ningum mais o faa.

    A liberdade equivale necessidade de lucidez. Na parbola do Grande Inquisidor, Cristo teria vindo ao mundo para retirar as pessoas do alheamento e coloc-las perante a exigncia de se verem a elas e aos outros. Se ser livre aceitar sobre si a responsabilidade e o inerente sofrimento, enquanto os homens lhe fugirem no haver sociedade livre. A liberdade equivale necessidade do sofrimento. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro a nica felicidade possvel vem da ignorncia, que constantemente promovida. Em O Admirvel Mundo Novo a felicidade vem da abundncia imediata, num mundo de desejos pr-limitados. Em ambos os casos esta felicidade um isolamento que se ignora.

    O qu, at agora, tem impedido essas utopias de se realizarem em todo o seu horror? Precisamente aquilo que os autores menos levaram em conta: a capacidade de luta dos oprimidos, dos explorados. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro os trabalhadores, embora se relacionem directamente fora do mbito estrito das hierarquias, so paradoxalmente incapazes de se revoltar. Apresentados como inconscientes da sua actuao, num quadro ideolgico em que a palavra justa condiciona a prtica eficaz, eles no pem em perigo o regime. Tambm em O Admirvel Mundo Novo impossvel a revolta colectiva, pois as hierarquias profissionais foram convertidas em diferenas biolgicas e o socialmente inferior passou a ser intelectualmente limitado, alm de condicionado moralmente. Num caso como no outro a hiptese de lutas afastada e por isso pde Orwell extremar o marxismo dogmtico na utopia do terror absoluto e pde Huxley levar o pensamento liberal ao extremo do totalitarismo permissivo. Se em ambos os modelos se introduzir a actuao autnoma por parte dos trabalhadores, a sua capacidade de desenvolver na luta relaes sociais alternativas, aqueles regimes extremos tornam-se irrealizveis e o que tem sucedido.

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  • O quadro genrico deste tipo de utopias totalitrias o de uma sociedade sem contradies, quer porque sejam sistematicamente reprimidas, quer porque sejam sistematicamente assimiladas. Mas uma vida sem contradies estagnante e desprovida de criatividade, sem mesmo ser capaz de se reproduzir. No pretendo substituir estas utopias por outra. Parece-me possvel falar do futuro na negativa, afirmar que existem no capitalismo condies para que o seu fim venha a ser tambm a destruio do prprio sistema de explorao e, com ele, da diviso em classes sociais. Mas isto no significa que proponha positivamente o modelo de qualquer tipo especfico de sociedade. A eliminao de todas as formas de explorao representaria a abolio de um dado tipo de contradio, e no a abolio de todos os tipos de contradio. Por isso uma sociedade sem explorao, se alguma vez vier a existir, no ser uma sociedade onde a busca da lucidez no seja difcil e onde no ocorra o sofrimento.

    Ser capaz de enfrentar directamente a luz crua, com as dificuldades do conhecimento e o sofrimento, a nica liberdade digna desse nome.

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    Joo Bernardo