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NUPEH NÚCLEO DE PESQUISAS HISTORIOGRÁFICAS Orientação do Prof. Dr. José D’Assunção Barros Por: Aline Costa Amanda Estrella Leandro Gama Pedro Henrique Ruan Rodrigo Helena Bento Simone Fontes (Graduandos em Licenciatura de História) Entrevista com Prof. Dr. Marcelo Santiago Berriel, docente de História Medieval da UFRRJ Instituto Multidisciplinar (Campus de Nova Iguaçu), realizada em 12 de maio de 2011. Instituto Multidisciplinar Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 2º semestre de 2011

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Entrevista com Prof. Marcelo Santiago Berriel, docente em História Medieval da UFRRJ, realizada em 12 de maio 2011.

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NUPEH – NÚCLEO DE PESQUISAS HISTORIOGRÁFICAS

Orientação do Prof. Dr. José D’Assunção Barros

Por:

Aline Costa

Amanda Estrella

Leandro Gama

Pedro Henrique

Ruan Rodrigo

Helena Bento

Simone Fontes

(Graduandos em Licenciatura de História)

Entrevista com Prof. Dr. Marcelo Santiago

Berriel, docente de História Medieval da

UFRRJ – Instituto Multidisciplinar (Campus

de Nova Iguaçu), realizada em 12 de maio de

2011.

Instituto Multidisciplinar – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

2º semestre de 2011

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Biografia

Marcelo Santiago Berriel, um desenhista que caiu de pára-quedas na história para se

tornar um “nerd” em Medieval. Um medievalista que aprendeu a desenhar o passado, nos

ombros de gigantes como Bordieu, Le Goff e Marc Bloch, numa incessante cruzada contra as

“trevas” do preconceito, ensinando com arte cavaleiresca a olhar o passado com as lentes

do presente.

Para ele, gênios são frutos de muita erudição e reflexão, fórmulas perfeitas para se

formar um bom historiador; sem apologias ou anacronismos. Este respeitado medievalista,

citado até na Espanha, superou os limites das fontes e dos modismos da globalização para

fazer do seu ofício uma janela para o conhecimento humano.

Doutor em História. UFF, Brasil. Professor Adjunto de História Antiga e Medieval da

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9162651718729749

Líder do LEPEM (Laboratório de Ensino e Pesquisa em Medievalística) e membro da

Rede Luso-Brasileira de Estudos Medievais.

http://lepem.org/

Coordenador das atividades de parceria entre o LEPEM/UFRRJ e o LAMOP/

Université Paris I - Panthéon Sorbonne desde 2012.

http://lamop.univ-paris1.fr/

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NUPEH: Quando começou o seu interesse pela disciplina da História e como ocorreu

esta escolha para a graduação? Como foi este processo?

PROF. BERRIEL: Eu sempre gostei de história desde o ensino fundamental, mas na verdade

eu nunca imaginei que eu ia seguir história profissionalmente. Mas o gosto pela matéria eu

tinha, era uma das matérias que eu mais gostava, tinha boas notas. Já no antigo ginásio que

agora é o segundo segmento do ensino fundamental, tive um bom professor que me estimulou

bastante a gostar de historia, sempre foi uma das minhas preferidas, mas não pensava em fazer

isso profissionalmente, não pensava em fazer faculdade, fazer a graduação em historia. As

duas áreas que eu cogitei foram desenho, que eu gostava de desenhar e desenhava bem e tinha

curso de desenho publicitário, então sabia desenhar, acho que ainda sei, apesar de estar

destreinado e musica que eu também gostava muito de musica, tocava instrumento, pensava

em ser musico também, mas musica sempre estava em segundo plano, eu imaginava que eu ia

fazer algo na área de desenho, ia continuar por fora tentando batalhar alguma coisa na área de

musica, e apesar de gostar de historia. Na verdade meu interesse em história na graduação foi

preencher uma outra opção nas públicas federais e na estadual da UERJ, preencher uma opção

de qual curso eu iria fazer onde não tinha desenho, então basicamente eu escolhi três: UFRJ,

UERJ e a UFF. UFRJ tinha desenho industrial, UERJ também era o melhor do Rio de Janeiro,

e a UFF não tinha. Apesar de ter feito curso de desenho publicitário eu nunca imaginei que eu

ia ser publicitário, ia ser desenhista, então não ia fazer publicidade e sim uma coisa

especificamente na área de desenho. Na verdade foi acidentalmente que eu fiz a graduação em

historia, porque na UERJ era muito concorrido por ser a melhor, então eu não entrei, na UFRJ

tinha o teste de habilidade especifica, no qual fui muito bem, tinha chances de entrar, mas

perdi uma das provas, não cheguei em um dos dias de vestibular e acabei perdendo as duas

opções, e me sobrou apenas a ultima, era a UFF, ai apostei todas as minha fichas no vestibular

da UFF e passei, e depois que eu entrei não me imaginei fazendo outra coisa, apesar de ser a

ultima opção, na graduação em historia fui muito dedicado, sem querer ser indelicado eu era o

que as pessoas chamam de “nerd”, eu entrei de cabeça em historia, depois do horário de aula

ficava na biblioteca estudando, ainda mais porque eu residia longe de Niterói e para aproveitar

eu ficava o dia inteiro lá.

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NUPEH: Foi na graduação que o senhor escolheu o recorte Medieval ou foi uma escolha

posterior a graduação?

PROF. BERRIEL: Foi já na graduação. Em meu primeiro contato com historia medieval eu

já tinha decidido que ia fazer monografia naquilo, gostava muito. No primeiro período eu

gostei muito de historia antiga e de temas ligados a religiosidade, cheguei a cogitar fazer, mas

achei que era muito cedo, decidi esperar realmente fazer outras matérias. Quando fiz historia

medieval adorei e me apaixonei, fui bolsista de iniciação cientifica, fiz monografia e na

verdade durante toda a graduação eu alimentava ser um pesquisador, ser medievalista,

pesquisar a historia medieval, já imaginava que um dia iria fazer mestrado e doutorado, já

tinha vontade, não sabia se eu ia conseguir, ao contrario de alguns colegas, eu não tinha

repulsa em imaginar na educação básica, tanto que eu atuei durante sete a oito anos na

educação básica pública, então nunca tive problemas, eu queria ser um bom professor, mas,

além disso, eu queria ser um bom pesquisador na área de história medieval, isso desde a

graduação eu imaginava, tanto é que eu consegui fazer mestrado e doutorado, ser professor de

uma universidade federal e cheguei aqui.

NUPEH: Conte-nos um pouco de sua experiência de ter ingressado direto no mestrado e

continuar na UFF foi uma opção ou não?

PROF. BERRIEL: Entrar direto no mestrado foi uma escolha prática, eu particularmente não

sou muito favor com o que é muito comum hoje em dia, que começou um pouco antes da

minha geração, a minha geração pegou, não sei exatamente se é uma moda ou pressão. Eu não

gosto desta formação às pressas, essa especialização muito cedo, que muito precocemente tem

que se especializar, eu não gosto. Pessoalmente eu não acho sadio fazer o mestrado logo em

seguida a graduação, principalmente na área de humanas, na área de historia. Nosso objeto de

estudo são os homens, são sociedades humanas ou como diz o Marc Bloch, “são os homens

no tempo”. É uma alteridade complicada, porque estes homens no tempo estão distantes de

nós pelo passado, pelo espaço de tempo, mas estamos falando da mesma espécie, então eu

acho que a nossa experiência de vida, a experiência do trabalho, experiência mesmo pessoal,

ela influencia nos seus temas, nas suas escolhas, nas escolhas que você faz para pesquisar e

principalmente nas interpretações e nas inferências que você faz nas pesquisas. Não quero ser

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piegas, mas quanto mais experiência melhor, principalmente em historia. Nós não temos super

dotados, nós não temos gênios que sabem calcular fórmulas ou manusear tubos de ensaio, nós

precisamos de tempo. O historiador precisa de tempo e experiência não só profissional;

experiência de vida para ele poder refletir coisas sobre os homens e a sociedade humana,

quanto mais jovem menos se sabe sobre essas coisas. E uma coisa importantíssima em

historia é a erudição, não adianta essas coisas só vem com o tempo. Não existe superdotado

nisso, o superdotado pode ter uma capacidade intelectual mental muito boa, mas ele não pode

ler mais livros que a sua idade permite, a erudição só vem com o tempo. Então, pessoalmente

eu acho como se fazia décadas atrás que este tipo de especialização em pesquisa de mestrado,

pesquisa de doutorado só se fazia quando tinha uma certa experiência, era como se fosse uma

coroação do trabalho de um professor, de um pesquisador, hoje em dia não, é o pontapé

inicial, hoje para você entrar em uma universidade federal você precisa ter um doutorado pelo

menos aqui nos grandes centros: Rio, São Paulo e Minas. Enfim, foi uma situação que eu

segui meio que por imposição do chamado mercado de trabalho, ele pressiona, pra mim foi

muito complicado, e na ocasião a minha ex-orientadora de monografia, que foi minha

orientadora de mestrado e doutorado historiador Vânia Fróes, eu fiz esta pergunta a ela, e ela

respondeu muito parecido com o que eu estou respondendo a vocês agora, ela disse:

“pessoalmente eu sou contra, mas profissionalmente eu sou a favor”. Por quê? Você vai

fazer o que? Hoje em dia estão todos fazendo isso, se eu não faço, outros chegam na minha

frente. É a tal pressão do mercado de trabalho que vai se refletir quando eu for fazer

concursos, vai ter prova de títulos, quando eu for me preparar para alguma coisa ou tentar

uma vaga, seja na esfera pública ou privada, vão ter pessoas na minha idade ou até mais

jovens que já tem o mestrado, então a pressão do mercado de trabalho acabou me forçando a

fazer o mestrado pra ganhar uma bolsa.

É a tal pressão do mercado de trabalho que vai se refletir quando eu for fazer concursos, vai

ter prova de títulos, quando eu for me preparar para alguma coisa ou tentar uma vaga, seja na

esfera pública ou privada, vão ter pessoas na minha idade ou até mais jovens que já tem o

mestrado, então a pressão do mercado de trabalho e a minha situação financeira também

acabaram me forçando a fazer o mestrado pra ganhar uma bolsa. Não me arrependo, eu acho

que tentei sanar isso no doutorado, mesmo hoje olhando eu dou risada, embora na época tenha

sido bom, quando vejo a minha dissertação de mestrado; já não dou risada quando vejo a tese

de doutorado porque estava mais maduro, já era um homem com mais de 30 anos. Então,

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acredito que essa experiência de vida, necessária para o pesquisador refletir sobre a vida

humana, que é seu próprio objeto de estudo, isso eu consegui no doutorado, o mestrado

mesmo foi meio uma imposição do mercado de trabalho e na UFF a minha orientadora de

monografia que iria me orientar no mestrado se eu passasse, era uma professora titular, uma

referência de renome no Rio de Janeiro, então eu não tinha motivos para ir para outro lugar.

Enfim, foi quase uma escolha normal.

NUPEH: Qual a teoria que o Senhor utiliza?

PROF. BERRIEL: Bom, eu basicamente utilizo o que os historiadores conhecem como nova

história, 3ª geração dos Annales, sem nenhuma camisa de força com relação a isso, não sou

tão antimarxista quanto maioria das pessoas que enveredam pela nova história. Então, eu

dialogo com o marxismo, mas não muito, eu acredito que algumas coisas foram importantes

não no campo de história medieval, mas pra história de uma forma geral. Gosto muito de

Bourdieu (Pierre Félix Bourdieu), Bourdieu com certo dialogo com o marxismo. Então, eu

uso muito o Bourdieu e uso muito a nova história e principalmente o que o Le goff (Jacques

Le Goff) chama de “antropologia histórica”. Essa nova história política, que não é uma

história política narrativa, mas a história do poder, das relações de poder, dos símbolos de

poder. Então, basicamente é isso que eu sigo. Mas, como eu disse eu não me prendo muito a

essas coisas, eu não vou dizer que estou filiado a nova história francesa, nada do tipo, eu na

verdade acredito e defendo que os historiadores brasileiros, não só para minha área, os

medievalistas, mas os historiadores em geral, cada vez mais aprendam a construir seus

próprios referenciais teóricos, lógico dependendo de uma fonte ou outra, buscando fazer suas

relações e influenciando obviamente, mas não ficar preso a quadros teóricos específicos,

orientações teóricas muito fechadas. Então, eu gosto de dialogar com a nova história, mas eu

tenho um pouco de prentensão que a patir da nova história criar meus referencias teóricos.

Então, ver o que eu posso criar de novo. Teoricamente eu posso seguir a nova história, mas

metodologicamente eu devo buscar coisas novas. Sigo muito o que o professor Ciro (Ciro

Flamarion Santana Cardoso) escreve e o que ele diz, eu que fui aluno dele e tive o privilégio

de assistir aulas com ele, tudo que ele disse em aula e ele escreve em seus livros eu procuro

seguir, mas tento sempre buscar uma coisa além, uma coisa nova, usar como análise de texto a

simiótica, mas o que da simiótica? Não vou usar a mesma coisa que o Ciro. Vou utilizar outra

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coisa dentro de sua simiótica, então eu não vou só buscar os livros do Ciro vou buscar nos

livros de simiótica. Quando ele foi para a psicologia social eu fui buscar os livros de

psicologia social, escola francesa, para a minha tese de doutorado. E fiz não da mesma

maneira que ele mostrou no livro dele, eu fiz de uma maneira original. Então, é isso que eu

tento e acredito, principalmente em Idade Média, nós competimos com os europeus e nós

temos que construir nosso arsenal teórico original, mesmo com todas as influências e relações

que podemos fazer.

NUPEH: Suas pesquisas centraram-se em estudos de religião e religiosidade medieval,

alguns historiadores quando decidem estudar um tema como, por exemplo, a religião se

depara com entraves ou possibilidades que podem até se tornar um risco para a

imparcialidade da pesquisa, como por exemplo, um pesquisador que escolhe como

objeto a história dos judeus e não tem acesso a diversas fontes por não ser judeu, ou um

pesquisador religioso que está extremamente ligado a sua religião e decide tomá-la como

objeto de pesquisa correndo o risco de ter uma visão parcial de seu objeto, para o senhor

como o pesquisador deve lidar com essas questões?

PROF. BERRIEL: Bom, eu sei que existe o problema da parcialidade em história,

principalmente em um tema desses, um tema ligado à religião ou religiosidade, mas eu acho

que essa polémica foi muito significativa no passado, algumas décadas atrás. Na verdade era

um problema que poucas pessoas enxergavam o problema, cada um defendia e fazia uma

apologia do seu lado. Católicos, protestantes e os ateus marxistas, enfim todos defendiam o

seu lado. Era um problema, não exatamente uma polêmica, depois se criou a polêmica, porque

se enxergou o problema, mas acredito que essa polêmica esteja esvaziada porque acho que

hoje em dia os historiadores estão mais conscientes de como evitar essa parcialidade, evitar

fazer essa apologia, até porque pega mal e fica feio. Então é meio complicado, tanto que se

fala de neutralidade em fazer esse tipo de defesa. Em um mundo como o de hoje

politicamente correto, da globalização, etc. cada vez mais você se fechar, ainda mais na

academia, no mundo acadêmico é mais complicado ainda, uma propaganda negativa. Então

acho que as pessoas estão preocupadas com isso, não vejo muito problemas em relação a isso,

não desta maneira.

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Por exemplo, você falou da questão de acesso, também não vejo muito problemas com

relação a isso. Acho que pode ter sim, por exemplo, estas fontes que você citou em relação

aos judeus e tal. Nós não estamos falando de ditaduras militares e nem regimes totalitários

para esconder documentos, não é isso acredito que isso não é o principal, isso não é uma

questão de entrave, pode existir esse tipo de obstáculo, mas não são incontornáveis. Eu

acredito ainda, uma coisa que me preocupo, eu acho que existe uma parcialidade nos estudos

da religião e das religiosidades, sobretudo em história medieval, mas não desta forma. Creio

que não seja uma coisa assim como uma parcialidade inocente como se o historiador tivesse

que lutar contra uma espécie de força íntima, oriunda de sua crença pessoal, ele tem que evitar

a parcialidade, ele tem que lutar para ser neutro. Então, ele escolheu sua própria religião como

objeto de estudo, ele tem esse entrave, ele precisa romper uma espécie de barreira psicológica

para poder ser neutro, e não dizer e fazer inferências que as fontes não permitam que ele faça

não fazer juízos de valor, eu não creio que seja assim, eu acho que isso a gente está

aprendendo. Os historiadores de algumas décadas para cá vem evitando isso. Eu me preocupo

com uma coisa que eu considero pior que é a parcialidade deliberada, é você propositalmente

recortar um objeto de pesquisa com o intuito de legitimar alguma coisa, isso pode acontecer e

acontece com o tema religiosidade, mas como pode acontecer com o tema política, por

exemplo. A partir de uma orientação ideológica, que pode ser religiosa ou qualquer outra,

querer provar algo. Isso é complicado e isso pode ser comum para alunos de graduação, mas

infelizmente, tem historiadores formados e profissionais com mestrado e doutorado que fazem

isso e eu acho preocupante o uso da pesquisa histórica, o uso da Idade Média para esse tipo de

coisa, isso eu acho sério. Então, a responsabilidade social do historiador não está sendo

respeitada. Eu por exemplo tive um aluno e aluno a gente até perdoa, porque quem sabe um

dia ele aprende, pelo menos historiador profissional faz isso. Ele falou já no segundo período

que queria fazer monografia em cristianismo antigo e que iria provar uma coisa. Eu disse, mas

você já recortou? E ele disse “eu tenho certeza que eu vou provar isso”. Por motivos éticos,

eu não vou dizer quem é ou o tema.

Então eu acho complicado, porque a vida, a pesquisa histórica, e a própria experiência vai

ensinar a ele que não é assim. “Recortar por que eu tenho uma determinada orientação e eu sei

que eu vou provar isso”, não é por aí. E o problema são historiadores que costumam fazer e a

gente vê que faz.

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NUPEH: Quais as principais diferenças entre a pesquisa e o ensino sobre Idade Média

em países da Europa e no Brasil?

PROF. BERRIEL: Bom, em primeiro lugar é que na Europa os medievalistas não sofrem

tanto com alguns preconceitos como a gente tem aqui. Tem-se menos “desconfiança” com

relação a legitimidades dos estudos em História Medieval, que é uma coisa que meio que

ocorre aqui no Brasil, essa coisa de “será que é legítimo esse estudo em História Medieval”.

Então eu acho que isso não é o principal na Europa, embora tenha alguns entraves, e os

medievalistas de lá, os que a gente mantém contato, eles podem sofrer também de um tipo de

problema, de preconceito no meio acadêmico, que é a distância. A distância é a mesma, e

estamos falando de tempo, e não de local. Então, a Idade média e a Idade Antiga estão

distantes no tempo, o acesso às fontes é mais complicado, mais difícil, você tem não somente

a barreira das fontes, como a barreira da língua. Então fazer estudos de História

Contemporânea, são estudos, eu não vou dizer mais fáceis, mas são estudos que você tem

mais chances de fazer uma história mais variada. Falava-se muito há algum tempo atrás da

história serial, uma história quantitativa, baseada em fontes seriais, e isso em Idade Média é

muito complicado, principalmente aqui no Brasil. Então como se vai fazer estudos de fontes

seriais em Idade Média, como se faz em História Econômica, para a Idade Contemporânea?

Então é muito complicado. Esse tipo de distância e de problema que medievalistas encontram

eu acho que não é muito diferente entre o Brasil e os países da Europa. Agora no Brasil nós

sofremos algumas coisas que os europeus não sofrem. Então um colega meu europeu pode até

ter problemas em seu departamento que os colegas podem, enfim, achar que ele faz estudos

não tão legítimos e “Ah, estudar Idade Média para quê?”, que o mais correto é estudar uma

história mais recente. Então existe uma moda do que a gente costuma chamar de

“presentismo”, que estudos mais recentes, da História recente, da História do Presente, vão

resolver todas as questões, e não vão resolver. Então isso eu acho que não é só aqui no Brasil,

mas aqui no Brasil nós temos um acesso muito difícil às fontes, os europeus não têm essa

dificuldade, as fontes estão lá. Idade Média para eles é uma coisa mais “real”, ela está mais

próxima que com relação à nossa vivência no Brasil. Você pode ver os castelos medievais,

pode ver as igrejas góticas, você tem as esculturas e pinturas. Você faz qualquer passeio

turístico pela França ou Inglaterra e se depara com cidades medievais, é lógico que com certas

modificações, obviamente, mas você tem acesso a esse tipo de realidade. Isso é legal, e nisso

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você corta uma série de preconceitos que existem no Brasil e não existem lá. Não só os

preconceitos, mas isso traz uma vivência interessante. Eu costumo dizer que o historiador ele

precisa ir ao local, ele precisa viver, respirar, sentir aquele ar. É mais complicado. Como você

vai ter essa relação pessoal, essa relação subjetiva com o seu objeto de história, se você estuda

a Europa e é do Brasil? Eu vou sempre viajar para a Europa? Não tenho a possibilidade de

fazer isso sempre, e nem ser financiado para isso. Então, por exemplo, quando eu fazia a

monografia, que eu estudava o cotidiano dos mosteiros, que estudava o Ofício Divino, as

orações dos monges, é lógico, em mosteiros da Idade Média de Portugal, mas a minha ex-

orientadora me aconselhou “Vá ao Mosteiro de São Bento assistir a uma missa, que lá tem

canto gregoriano, que os monges fazem uma missa baseada no canto, no coro, então você vai

ter uma ideia do que é essa coisa que você está estudando, que é esse Ofício Divino, essa

liturgia dentro do mosteiro”. Então isso é legal, isso o medievalista europeu tem mais que nós.

E se isso reflete na pesquisa, obviamente reflete no ensino. Imagina um ensino que graduação

que pode ter acesso a coisas que nós não temos. Outra coisa que eu acho também, é que, pode

parecer lugar comum, mas ainda é um problema, é que a nossa formação é pior que a deles.

Então, obviamente que um medievalista europeu sabe paleografia, sabe latim. Aqui a gente

tem que correr atrás muito tarde. A gente tem que correr atrás para sanar as falhas na nossa

formação. Fazer cursos de latim medieval, de paleografia, vencer certas barreiras por conta

própria, como a barreira da língua, enfim, para a gente é um pouco mais difícil, mas é tão

legítimo quanto o que eles fazem lá.

NUPEH: Considerando a imagem negativa da Idade Média perpetuada ao longo de todo

o Ensino Fundamental e Médio, o recente distanciamento da religiosidade no meio

acadêmico e a corrente nacionalista que defende a importância de estudar a história do

próprio país, quais as dificuldades do professor de História Medieval no Brasil? Há

preconceito entre os próprios professores universitários?

PROF. BERRIEL: Bom, na minha resposta anterior eu já falei um pouco sobre isso. Lógico

que há preconceitos, não só entre os professores universitários, mas mesmo entre os de

educação básica. Quando eu estava dentro da educação básica percebia, não uma falta de

respeito, nada que chegue a esse ponto, mas eu percebi essa falta de consciência da

importância do estudo da História Medieval, não se dá importância a isso. Por exemplo, o

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período que eu lecionei no Colégio Pedro II, um ensino médio de excelência, um colégio

renomado e bem conceituado, obviamente que os professores também o são, eu tinha colegas

lá de história que eram ótimos, e mesmo não tendo seguido carreira no Ensino Superior, são

ótimos professores de educação básica, de ensino fundamental e médio. Têm ótima formação,

lêem, estão atualizados, têm pesquisa, muitos têm mestrado, alguns têm doutorado, só que

estão no Pedro II, fazendo carreira no Pedro II, ótimo! E mesmo esses grandes professores,

professores que eu aprendi a respeitar, me questionavam “Poxa, durante quantos meses você

vai ficar dando Idade Média? Tem que avançar isso”. A gente tem certa liberdade para

trabalhar o programa, e não é bem uma cobrança sobre essa liberdade, mas, enfim, em

conversas na sala de professores e corredor: “Você ainda está dando Idade Média?” E

detalhe, era o único momento, que na 6º série, agora chamado 7º ano, que esses alunos do

ensino fundamental iriam ver Idade Média! E mesmo assim: “Você ainda não saiu de Idade

Média? Tem que passar logo para Brasil. Eles têm que ver Brasil-colônia”. E durante

reuniões pedagógicas que eu tinha lá, na área de história, obviamente, era uma tônica, uma

coisa muito freqüente: “O importante é dar conteúdos em Brasil”. Eu cheguei a ouvir bons

professores de lá, inclusive, que mesmo questões fundamentais como Revolução Francesa não

era pra demorar muito não, que era um acontecimento importante para os franceses e para a

gente teria certa importância, mas não era para dar bimestre inteiro sobre Revolução Francesa,

e sim História do Brasil. Eu não tenho nada contra a História do Brasil, e acho que temos que

dar mesmo, estamos no Brasil, temos que estudar a nossa história, obviamente. Não é uma

guerra por que eu não estou participando dela. Uma guerra tem que ter dois lados e, eu não

estou participando dessa guerra, até por que eu gostava muito da História do Brasil quando eu

estudava no ensino fundamental. Agora, há um preconceito, porque, por exemplo, os

conteúdos de História do Brasil que eu precisei aprender para lecionar, os meus colegas que

gostam e se especializaram em Brasil, que atuam lá na educação básica, eles não correm atrás

do conteúdo de História Medieval. Eu tentava dar um conteúdo de qualidade em História

Medieval e tentava dar um conteúdo de qualidade em História do Brasil ou História Geral do

século XX, embora não fosse a minha especialidade, porque achava que os alunos mereciam

essa aula, não ficando preso tanto ao livro didático. O que os meus colegas que não são de

medieval contavam: eles davam uma aula de qualidade do que eles entendem História do

Brasil e Contemporânea, e Idade Média bastava o livro didático, cortavam décadas e décadas

de pesquisas em História Medieval. Então isso é um problema!

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Agora sobre a pergunta, entre os professores universitários existe, mais ainda, a gente está

falando do meio acadêmico, de financiamento de pesquisas, de bolsas, obviamente um colega

pode pensar: por que estudar isso? Isso é muito importante, vamos lembrar o velho Braudel

que fala da “longa duração”, existem questões no mundo atual, mesmo aqui no Brasil, que

não podem ser entendidas se não se conhecer História Medieval.

Uma coisa bem recente que aconteceu foi o terrorismo muçulmano e o assassinato do Bin

Laden, espero que nós brasileiros não façamos parte desta “festa”, mas pra quem não está na

sociedade americana, pra quem não festejou, eu pelo menos fiquei perplexo com uma

sociedade inteira comemorando um homicídio, uma execução sumária. Então, é bem

complicado entender essa relação Ocidente e Árabes, sem entender Idade Média, sem

entender o início do Islamismo no século VII e a história da expansão muçulmana vai faltar

alguma coisa, vai explicar muita coisa só com a história do século XX? Vai, mas tem toda

uma raiz que o Braudel chama de “longa duração”, que tem a ver com os valores da história

secular que não vai ser explicado. Então, assim o preconceito é muito complicado, eu acho

uma pena porque de minha parte não há guerra, não sei meus colegas medievalistas, mas pra

mim toda a história é importante. E quem sabe esteja mudando, pelo menos, por enquanto, eu

não vejo isso no meu departamento aqui na Rural, embora eu tenha visto isso em outras

universidades. Então acredito que as novas gerações de historiadores estão menos

preocupadas com esse tipo de problema.

NUPEH: Segundo o historiador Robert Darnton “Nós estamos vivendo neste período de

transição, onde a mídia impressa está em crise e a mídia eletrônica está crescendo, mas

ainda não se adaptou às necessidades dos leitores”, as vendas de livros digitais já

ultrapassaram as vendas dos exemplares de capa dura nos EUA, este foi um dos

assuntos debatidos na Festa Literária de Parati no ano de 2010. É indiscutível a

presença no meio acadêmico de publicações digitais, sejam elas artigos, revistas, jornais

eletrônicos ou até mesmo livros completos e fontes históricas armazenadas em grandes

acervos digitais. Então a pergunta que nos remete é: o historiador de hoje está

preparado para lidar com esta nova forma de fazer e pesquisar história? Caso não, o

que em sua opinião poderia ser feito para preparar os historiadores para usar estas

novas tecnologias?

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PROF. BERRIEL: Primeiramente assim, eu acho que tenho certo receio com generalizações.

Então acho que a gente tem que pensar o seguinte: existem historiadores que trabalham bem

isso e existem historiadores que não trabalham. Mas, mesmo não fazendo generalizações, a

gente tem que chegar a um ponto de vista que dê conta do que você está me perguntando, eu

acho que a maioria não sabe. Na verdade não é que não sabe, não está interessada em

desenvolver isso, não está preocupada em se especializar nesse tipo de informação, nesse tipo

de tecnologia nova e tal. Eu acho que se faz muito pouco ainda no campo da historia em

relação a isso, mas de forma muito recente se faz algo. De uns tempos pra cá as novas

gerações de historiadores têm um cuidado maior com isso. Eu posso dizer que a geração mais

atual de historiadores, está mais preparada com relação a isso do que a geração que nos

formou. Os nossos professores, os professores com os quais eu estudei realmente não sabiam

nada com relação a isso. Obviamente que a internet era outra, dentro desse mundo tecnológico

as coisas mudam em cinco anos, imagina em uma, duas décadas! Então os anos noventa pode

parecer muito perto do meu ponto de vista, devido a minha idade e tudo o mais, mas pra vocês

está muito distante! Enfim, muitos dos alunos que estão chegando agora nasceram na virada

dos anos oitenta para os noventa ou até na década de noventa, talvez, não sei. Então é

pensando nesse quesito de tecnologia, novas mídias, isso dá um salto muito grande em pouco

tempo e os historiadores, os professores com os quais eu estudei não estavam preparados para

aquela realidade Se você pensar que aquela realidade é completamente diferente de hoje, que

aquela realidade não existe mais, estão menos preparados ainda! São pessoas que estão quase

se aposentando e como é que eles vão ficar correndo atrás de cada nova onda, de cada nova

moda, cada nova tecnologia? Isso é muito complicado. Agora, para uma geração que está

começando, atuando no ensino superior agora, eu acho que já se pode prestar atenção nisso,

não só pode, como deve prestar atenção e eu acredito que estão fazendo, eu acho que ainda é

pouco, os historiadores estão muito limitados às publicações, muito limitados a debates na

internet. Você pode ver listas de discussões na internet, melhorou muito, é mais fácil, é mais

uma porta aberta, mais uma oportunidade para as publicações.! Talvez publicar CD-ROM

interativo, produtos paradidáticos, que também não é muito, mas ainda se faz esse tipo de

coisa, se pensa nisso. Mas não se mergulha a fundo nesse mundo tecnológico. Por exemplo,

pesquisas ainda se faz como antigamente, se vai em arquivos, a bibliotecas... Bom isso é um

pouco culpa dos historiadores, por não se atentar para essa forma de fazer pesquisa por um

lado, por outro lado há muito coisa pra ser feita, muitos trabalhos não estão digitalizados, não

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estão on-line, ai não adianta. No meu caso, por exemplo, praticamente tudo o que eu pesquisei

como fonte, não teve como ser pesquisado na internet, eu tive que buscar nas bibliotecas e nos

arquivos. Agora, para lecionar, por exemplo, você pode buscar fontes mais conhecidas, pode

pegar autores mais renomados. Agora dependendo da especificidade da sua pesquisa, você

não pode pegar na internet, mas se você quiser alguma coisa de Tomás de Aquino, talvez você

encontre. Tem arquivos que já estão digitalizados, não são muitos, mas tem. Acho que os

historiadores não têm feito suficiente para pesquisa. Para um debate acadêmico e para a

docência, acho que melhorou bastante, para pesquisa que acho que está muito limitado, ainda

não se entrou muito nisso.

Agora o que fazer para o historiador se formar? Ele tem que se informar, ele tem que estar

atento e antenado a essas mudanças. Prestar atenção no que existe e tentar usar isso a seu

favor. É muito mais uma queda de preconceito do que deficiência na formação. Ele tem que

derrubar algumas barreiras do preconceito, que não é só pra quem é novinho, criança ou

adolescente, que ele pode usar profissionalmente. Então, mais uma nova na internet, passou a

moda do Orkut, do Facebook, então é mais uma moda, é mais uma besteira? Pode ser, mas eu

posso usar essa besteira a meu favor?

Por exemplo, a primeira leva do Orkut tem muita porcaria, se você quiser ver alguma coisa

acadêmica, você toma um susto e também acaba contribuindo para o historiador não entrar

nesse mundo, quando ele se depara com um monte de porcarias na internet, porque ele vai

entrar naquilo? É difícil, são barreiras que são difíceis de serem ultrapassadas. Comunidades

de Orkut, eu particularmente não conheço nada que preste dentro da minha área, agora você já

encontra historiadores com perfil no facebook usando profissionalmente, publicando artigos,

então é uma forma de auxiliar na pesquisa.

Então tem que partir do historiador. É uma queda de preconceito em entrar nesse mundo e pra

isso ser provedor de uma pesquisa. Outra coisa é que o historiador tem que colocar na cabeça

que ele não sabe tudo. Existem profissionais especializados em tecnologia e meios de

comunicação que podem nos ensinar, então acho que é dialogar.

Esse é um tipo de interdisciplinaridade que não se fala no meio acadêmico, se fala em outros,

mas por que não falar disso? Fala-se tanto em tecnologia da informação, então porque não se

fazer projetos interdisciplinares com esse tipo de profissional, como já se faz com a

Antropologia, a Sociologia? Um projeto de pesquisa em comum de um produto em relação a

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esse mundo tecnológico, eu acho que se faz muito pouco ou acredito que nem se faça, até

onde eu sei, eu não conheço.

NUPEH: Qual o seu nível de utilização dos recursos da internet (termos, artigos, fontes,

bibliotecas, contato com outros historiadores, etc)?

PROF. BERRIEL: Então, pra pesquisa no meu caso é muito complicado dizer que eu busco

fontes na internet, porque as minhas fontes não estão na internet. Até hoje não foram

digitalizadas, eu espero que a Biblioteca Nacional de Portugal faça a digitalização, mas

também tem que pensar que em Idade Média tem coisas que não são possíveis de serem

digitalizadas. Tipos de fontes, obras raras que o manuseio tem que ser com muito cuidado,

então é muito complicado, o que vai se fazer ? Só se for foto, passar no scanner não dá. Então

é muito complicado achar que um dia todo esse acervo da Idade Média vai estar on line pra

todo mundo consultar de graça. Não vai!

Então, pra buscar fontes não, mas para os primeiros passos da pesquisa, eu uso. Não usava

quando era mais jovem, porque é possível usar, entrar em contato com grupos de pesquisa,

conhecer laboratórios que trabalham com determinado tema, isso internacionalmente, a

internet é global, então eu posso procurar determinado grupo da França, da Inglaterra, EUA,

onde eu quiser.

Eu posso procurar saber se têm coisas publicadas on line, posso ver se há uma forma de

contato, e-mail pra entrar em comunicação com essas pessoas.

Esse tipo de debate acadêmico que tem a ver com o processo individual de pesquisa do

historiador isso é possível fazer. Esses passos iniciais da pesquisa, essa sondagem, esses

recursos de internet são ótimos, coisas que quando eu estudei na graduação não tinha como

saber de grupos não tão famosos e renomados assim, hoje pela internet você pode entrar em

contato com eles.

Uma vez na internet uma pesquisadora da Espanha entrou em contato comigo por causa de

um artigo que eu publiquei, ela apresentou um trabalho num evento em Santiago de

Compostela e ela me citou lá, não sei se ela já veio ao Brasil, talvez ela nunca tenha pisado no

Brasil e ela me conheceu pela internet. Na época já era doutor, mas não estava lecionando

ainda no curso superior e a Espanha está me citando num evento por causa de um artigo

específico que interessava a ela e nós trocamos algumas impressões por e-mail e eu cedi não

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só o artigo que ela conheceu, mas um outro trabalho. Então esse tipo de troca não só eu uso,

mas como eu disse uma nova geração de historiadores está atenta a isso e quem não usa já

passou da época de usar, isso é fato. Como eu seria citado em outro país se nem na

universidade federal estava ainda se não fosse a internet?

NUPEH: Marc Bloch em uma passagem de seu livro, “Apologia da História ou o oficio

de historiador”, escreveu “nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do

estudo de seu momento (...). Os homens se parecem mais com sua época do que com seus

pais.”

O anacronismo é um erro que pode acometer muitos historiadores e por em risco todo

um trabalho histórico. Porem, a questão é como investigar o passado com os “olhos do

passado”? E no caso especifico do período medieval, como captar o pensamento ou as

características sociais de um determinado indivíduo que pertenceu a esta época?

PROF. BERRIEL: Essa citação do Bloch eu também não vejo como uma crítica ao

anacronismo, eu acho que é uma característica do historiador. Nós construímos conhecimento

de uma sociedade passada através do presente, então enxergar o passado com os olhos do

presente, obviamente isso pode acabar num anacronismo, então o historiador tem que ter

muito cuidado com o anacronismo, concordo. Mas, isso não significa em minha opinião de

que nós para evitarmos o anacronismo somos obrigados a olhar o passado com os olhos do

passado, no meu ver o passado tem que ser olhado com os olhos do presente, pois se eu olho o

passado com os olhos do passado não digo mais do que o passado poderia dizer de si próprio.

A pesquisa histórica anda porque nós estamos vivendo uma época diferente, eu posso hoje

criar uma coisa original e criar um conhecimento novo porque eu tenho a meu dispor

ferramentas, leituras, informações e a própria cultura da minha época bem diferente do início

do século XX. Então, por exemplo, eu tenho toda uma gama de trabalhos eruditos,

documentais e apurados das ideias sobre o Positivismo, tenho depois do século XX com os

Annales com caras fenomenais, eu tenho isso tudo e tenho ainda o que a minha época me traz,

então as perguntas que eu faço não são as perguntas que o passado faria pro próximo, então

hoje meu recorte de pesquisa diz respeito a Portugal em relação às ordens franciscanas com a

Dinastia de Avis, entender essa relação não só como uma questão religiosa, mas uma relação

de poder se eu posso falar isso hoje por quê? Porque já existe o Marc Bloch, o Le Goff, a

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História Política, o Bordieu... Esses caras me trouxeram coisas que eu posso com o meu olhar

do século XXI fazer esse tipo de pergunta, perguntas que nãos seriam feitas no século XIX,

não seriam feitas no início do século XX, não seriam feitas por aqueles historiadores-padres

ligadas a história das ordens religiosas, porque não tinha esse tipo de questionamento de

relações ideológicas entre os poderes, de comprometimento da ordem com a monarquia, com

a dinastia. Então isso eu consigo fazer hoje, devido o nosso tipo de educação, devido ao fato

da gente não ter uma ligação tão forte com as ordens, a ponto de fazer apologia, eu digo nós

historiadores profissionais, claro!

Eu olho o passado com uma lente do presente, é o meu quadro teórico, minhas crenças

pessoais, quando eu recorto meu objeto é a janela. Agora, se eu olho o passado com os olhos

do passado não vou dizer mais que os próprios teóricos diziam. Então, anacronismo é quando

é feito de forma equivocada, anacronismo é fruto de um senso comum. O anacronismo

quando é feito em uma pesquisa histórica foi o historiador que se equivocou que teve uma

relação anacrônica. Tem que ter o cuidado, mas não quer dizer que ele vai olhar com os olhos

do passado.

Uma coisa comum na Idade Média, já que eu sou medievalista, somos anões em ombros de

gigantes, então os nossos antepassados são gigantes, eu enxergo mais do que eles porque eu

sou um anãozinho nos ombros de um Marc Bloch, de um Le Goff que já escreveram isso

tudo, agora eu posso usar o que eles escreveram e colocar uma coisinha a mais, a minha

contribuição. Estou com o meu olhar acima deles, somos anões em ombros de gigantes!

NUPEH: O Período Medieval é bem especifico do Continente Europeu, não sendo difícil

imaginar uma dificuldade, por parte de pesquisadores medievalistas de outras regiões,

em se obter fontes dessa parte da História. Que tipos de fontes se tem acesso, e que é de

seu conhecimento, no Brasil e que compreendem o Período Medieval? É possível

realizar um bom trabalho mesmo longe das fontes?

PROF. BERRIEL: Bom, existe fonte suficiente para fazer boas coisas aqui no Brasil,

principalmente Rio e São Paulo, mas tudo depende do recorte histórico que você quer estudar,

você quer estudar vikings é mais difícil, se você quer estudar um reino germânico na alta

idade media dependendo do reino que você quer estudar. Península Ibérica é mais fácil achar,

Portugal então, nos temos um acervo muito bom no gabinete real, na biblioteca nacional na

sessão de obras raras, foi D. João que trouxe para cá, que foram eles mesmos que trouxeram

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para cá nos navios. Eu gosto muito da história medieval de Portugal e por questões praticas

de acesso as fontes. Então no Rio de Janeiro nós não temos muito o que reclamar, e a internet

está ai para isso, tem coisas, tipo de fonte que eu não tenho aqui, que por ser famoso, por ser

uma referencia já está disponível online, pode não estar na sua língua , pode estar em latim,

inglês, Frances. Eu não vejo problemas em estudar, o acesso as fontes no Brasil é diferente

do da Europa isso é óbvio, mas existem coisas aqui, e cada vez mais estas barreiras estão

sendo transpostas, existe outra coisa, se publica muitas fontes, nos brasileiros andamos muito

fazendo este trabalho de pegar uma fonte original, escondida, em um arquivo eu achei, os

Portugueses fazem muito isso, achar um manuscrito importantíssimo que ninguém trabalhou e

publicar, muitas vezes sem nem fazer um trabalho em cima deles.

Uma das fontes que eu trabalhei no Doutorado eu comprei, comprei o livro, era uma fonte do

século XV. O cara foi lá e publicou, Françoares Nascimento – Relógio da Fé, uma obra de

um franciscano português, fez uma edição bilíngüe, um lado em português e outro em latim,

eu pesquisava em casa. Ela estava disponível na biblioteca do vaticano, eu precisaria ir lá para

pesquisar, e não precisei ir lá. Eu não vejo problema com relação a isso. É lógico que dá para

fazer um bom trabalho. Você não está tão longe das fontes quanto pensa e mesmo que esteja

dá para se fazer um ótimo trabalho.

LeGoff já dizia que o medievalista por si tem um grande problema de ausência de fontes,

séculos de lacunas em alguns locais e temas e é por isso que eu gosto do diálogo com a

antropologia porque me traz um referencial teórico onde eu posso preencher essas lacunas, o

historiador trabalha quase como um etnólogo, usando além do documento escrito; fontes

simbólicas para chegar ao resultado, então é óbvio que é possível fazer um bom trabalho.

De historiador para historiador

Profº José D’Assunção: Os Medievalistas no Brasil contam com uma associação

específica - a ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais). O que você acha

desse organismo de representação dos medievalistas no Brasil?

PROF. BERRIEL: Eu acho bom, que exista. Mas a representatividade tem seus problemas,

principalmente no meio acadêmico, que tem seus problemas, suas dificuldades e vaidades. A

Abem, por exemplo, é um órgão que eu respeito, ótimos historiadores estão lá, mas também

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ótimos historiadores não estão, será que ela representa toda uma comunidade de medievalista

no Brasil? Pode vir algum dia a representar? Sim acredito que sim, mas hoje acho que ela não

tem todo esse grau de representatividade. Eu por exemplo não estou filiado a Abem, mas não

tenho problema nenhum com eles, nunca briguei com ninguém de lá, inclusive o presidente da

Abem entrou em contato por causa do nosso evento, querendo divulgar nosso evento no site,

eu não vi problema nenhum. Mas tem gerações de historiadores antes da minha que tiveram

problemas, que não estiveram na fundação da Abem, que não participaram da fundação, e que

talvez nunca vão se associar pois se consideravam referencia e não foram convidados para

participar da fundação. Tem esses problemas de vaidade no meio acadêmico que eu acredito

que esteja começando a diminuir. Eu não tenho nenhum problema com isso um dia eu posso

me filiar, eu acho que ainda não é o que parece, nem todo bom medievalista está na Abem,

você pode ter um bom medievalista que não está.

Você acha que a área de medieval está bem representada em grandes encontros, como a

ANPUH?

PROF. BERRIEL: Não. Está muito mal representada, a área de medieval acaba

sobrevivendo encontros específicos, dos pequenos eventos que são realizados pela própria

área, alguns colóquios, grandes encontros e simpósios que são realizados por grupos de

pesquisa em medieval, que convida historiadores internacionais, que lotam as universidades,

mas que é um evento de medieval, ai você mostra a força do dialogo, que os medievalistas

estão pesquisando, divulgando suas pesquisas, debatendo com os colegiados no Brasil e no

exterior, através de conferências e workshops. Em grandes encontros você pode procurar em

qualquer caderno de resumo ou fontes da ANPUH coisas específicas de História Medieval,

não estará bem representado. Ou, ainda, em títulos de simpósios, de vinte um ou dois é da

área de medieval, mas não é só Medieval, Antiga também tem problemas, é a tal história do

preconceito, reflete nisso!