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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS - CAMPUS I

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDO DE LINGUAGENS JONALVA SANTIAGO DA SILVA

    DO CORDEL NARRATIVA BIOGRFICA:

    A INVENO DE BESOURO, O HERI DE CORPO FECHADO

    SALVADOR BA

    2010

  • JONALVA SANTIAGO DA SILVA

    DO CORDEL NARRATIVA BIOGRFICA: A INVENO DE BESOURO, O HERI DE CORPO FECHADO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Estudo de Linguagens da Univers idade do Estado da Bahia, como requis ito parcial para ob teno do ttu lo de Mestre, sob a orientao da Prof Dr. Mrcia Rios da Silva

    SALVADOR BA 2010

  • Ilustrao da capa: Desenho de Carybe. Extrado do livro O Jogo da capoeira. 24 desenhos de Caryb.K.Paulo Hebeisen. (org). Coleo Recncavo. Salvador, Livraria Turista, 1951.

    S586

    Silva , Jonalva Santiago da Do cordel narrativa biogrfica: A Inveno de Besouro

    heri de corpo fechado/ Jonalva Santiago da Silva- Salvador, 2010. 126 f.:i l

    Orientador Prof. Dr. Mrcia Rios da Silva .

    Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia DepartamentoCincias Humanas - Campus I Programa

    de Ps Graduao em Estudo de Linguagens.

    1. Besouro Mangang - Capoeira na literatura brasileira 2.Capoeira Bahia 3 .Capoeirista I. Titulo

    CDD B869.00

  • Dedico este trabalho, in memoriam,a Jnatas Conceio da Silva. Tal qual Besouro, lutou , resist iu e ho je tambm brilha no cu. Virou estrela.

  • AGRADECIMENTOS

    minha especial orientadora, Profa. Dra. Mrcia Rios da Silva, pela pacinc ia e cumplicidade no acompanhamento e construo deste texto ; Profa. Dra. Florent ina Souza, desde o Exame de Qualif icao, pelas contribuies valiosas e laborao desta pesquisa; Ao Prof. Dr. Slvio Roberto de Oliveira, desde o Exame de Qualif icao, tambm pelas sugestes enr iquecedoras a este trabalho; Aos meus pais, Jos e Marina lva responsveis pelo meu exist ir e por sempre me incent ivarem a cont inuar crescendo ; Aos meus irmos e em especia l s minhas duas irms, Lad ismar e Adla por todo o incent ivo; A Vado e Igor, famlia que constru e que me faz sempre buscar novos ideais; Edna Viana pela ajuda na organizao do texto final; p ro fessora Beatr iz Ribeiro, pela a juda em algumas correes do texto; s minhas grandes amigas, irms do corao e anjos que encontre i, Andra e Margarete, pela convivncia intelectual, o que me fez amadurecer para a vida acadmica; Hildete, bibliotecria do PPGEduc, pelos textos interessantes que conseguiu para que melhor fundamentasse a minha pesquisa; Antonio Reinaldo , Mestre Lampio, incansvel pesquisador sobre Besouro, pelo acesso ao seu acervo e disponibilidade; Profa. Zilda Paim, pelos deta lhes sobre as hist rias de Besouro e pacincia para cont-las; Aos professores do PPGEL, pelos ensinamentos, em especial, Luciano Lima e Edil Costa; s secretarias de educao do Estado da Bahia e Mu nicipal de Santo Amaro pela concesso de licena, para a rea lizao deste estudo ; minha turma de mestrado, e ao meu grupo de estudo, Edna, Geraldo, Elizabete, Raquel por todas as trocas de exper incias; Aos atenc iosos secretr ios do PPGEL, Camila e Danilo; todos aqueles que, de alguma forma, contriburam para a rea lizao desse trabalho.

  • RESUMO

    Este estudo tem por objet ivo analisar as imagens ou representaes sobre o

    capoeirista Besouro Mangang, tornado um mito, produzidas na literatura de

    cordel, de autoria de Antnio Vie ira e de Victo r Alvim Garcia, e na narrat iva

    de Marco Carvalho , como textos f iccionais que se a limentam de uma

    textualidade popular. Buscando articular literatura, mito e histria,

    entendidos como discursos, recorre-se a pesquisadores que contribuem para

    uma compreenso da construo do mito Besouro, capoeirista ba iano que

    nasce no contexto histrico da nova ordem republicana e ps -abolio, de

    forte represso, por instnc ias jurdicas, ao jogo da capoeira. As narrat ivas

    ana lisadas contribuem para ampliar uma tradio da literatura brasileira,

    como textos f icc iona is que tensionam valo res das produes literrias

    legit imadas.

    Palavras-chave: Besouro Mangang. Capoeira. Textua lidade Popular.

    Literatura Brasileira

  • RSUM

    Cette tude a comme objectif analyser les images ou les rpresentations sur le capoeirista

    Besouro Mangang, qui est devenu un mito, produites dans la littrature de cordel, crit par

    Antnio Vieira et Victor Alvim Grcia, et dans le rcit de Marco Carvalho, comme des textes

    de fiction que se nourrissent dune textualit populaire. En cherchant articuler la littrature,

    le mythe et l'histoire, compris comme des discours, il fait appel aux chercheurs qui

    contribuent une comprhension de la construction du mythe Besouro, capoeirista de Bahia

    qui est n dans le contexte historique du nouvel ordre rpublicain et daprs l'abolition, de

    forte rpression, pour les cas juridiques, au jeu du capoeira. Les rcits analyss contribuent

    pour agrandir une tradition de la littrature brsilienne, comme des textes de fiction que

    tensionnent les valeurs des productions littraires lgitimes.

    Mots-Cls: Besouro Mangang capoeira textualit popu laire littrature brsilienne

  • SUMRIO

    1 INTRODUO

    08

    2 NO RECNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERI

    17

    3 OS VOOS DE BESOURO NA LITERATURA DE CORDEL

    46

    4 MORTE E NASCIMENTO DO HERI NEGRO EM FEIJOADA NO PARASO

    85

    5 CONSIDERAES FINAIS

    118

    REFERNCIAS 120

    ANEXO 126

  • 8

    1 INTRODUO

    O capoeir ista Besouro Mangang nasceu provavelmente no ano de

    1895, no municp io de Santo Amaro , no Recncavo Baiano, vindo a falecer

    em 1924. Filho de negros escravizados que atravessaram o Atlnt ico, o

    capoeirista viveu uma poca em que muitos deles viram-se obrigados a usar

    seu corpo como mquina na co lheita e moagem da cana-de-acar, nas terras

    dos senhores de engenhos. Contudo , apesar dessa vio lnc ia, fizeram do seu

    corpo uma arte, no jogo da capoeira luta e dana , sncopa que marca a

    cadncia, a firmando sua fora, como resistncia, em pro l da abolio.

    Manuel Henrique Pereira, nome civil de Besouro Mangang,

    conhec ido ainda como Besouro Preto ou Besouro Cordo de Ouro, viveu num

    perodo de fo rte represso capoeiragem entre f inal do scu lo XIX e

    comeo do sculo XX , tempo em que muitos negros vagavam e vadiavam

    pelas ruas de muitas c idades da Bahia, particularmente a sua capital e as do

    Rec ncavo, sem emprego fixo , explorados como mo-de-obra temporria. As

    ruas passam a ser palco de um jogo encenado por muitos negros qu e

    libertavam seu corpo inventando modos de viver e de se relac ionar,

    protagonizando muitas histrias, que iam sendo retidas na memria de sua

    comunidade.

    Dentre as muitas histrias tecidas com os f ios do real e da

    imaginao, as histrias produzidas por e sobre Besouro esto preservadas por

    uma trad io oral, vindo a se const itu ir em uma textualidade popular, que

    passou a alimentar as pginas de a lguns gneros literr ios, como o cordel, e,

    recentemente, invadiu as telas do cinema, s inalizando a permanncia de um

    mito, vindo a ser estudado por algu ns pesquisadores, que constatam naquela

    textualidade um processo de construo da f igura de um heri popular.

    A permanncia desse mito gerou as inqu ietaes deste trabalho, de

    auto ria de uma estud iosa negra, tambm filha de Santo Amaro da Purif icao.

    A minha vivncia em um ambiente soc ial impregnado da experinc ia histrica

    dos negros, no qual compartilho os muitos causos sobre esse capoeir ista,

    levou-me a indagar e a pesqu isar sobre a permanncia do mito Besouro to

    famoso, seguidos por ou tros como Mestre Bimba e Mestre Past inha , um

    heri a fro-baiano , que nasceu em um estado cujas oligarqu ias subjugaram os

  • 9

    modos de vida e de luta de um expressivo segmento de descendentes de

    escravos.

    Pelo tempo exguo em um Curso de Mestrado para desenvolver um

    estudo que, como primeira etapa, exigiria o levantamento das histrias

    contadas sobre Besouro pelos moradores do Recncavo Baiano, optei po r

    ana lisar produes literr ias sobre esse capoeirista: os textos de cordel de

    auto ria do santoamarense Antnio Vie ira, O encontro de Besouro com o

    valento Doze Homens (s/d) e A valentia justiceira de Besouro (2003), e do

    poeta e capoeirista car ioca Victo r Alvim Itahim Garc ia, Histrias e bravuras

    de Besouro o va lente capoeira (2006) e narrat iva de Marco Carvalho,

    Feijoada no para so : a saga de Besouro, o capoeira (2002). O objetivo

    principal deste estudo ana lisar as rep resentaes sobre Besouro nesses

    textos f iccionais, considerando o contexto histrico em que viveu esse

    capoeirista, no intuito de entender a permanncia desse mito.

    Essas narrat ivas contam a histria de um heri negro, que se

    singulariza em relao aos heris forjados pelas e lites de uma c ivilizao, a

    exemplos dos heris gregos, ptr ias ou naes modernas. Ao cont rr io, o

    heri Besouro protagonista de contranarrativas, de lu tas de resistncia a um

    sistema opressor, de um Brasil colonial, imperia l e republicano, que sempre

    sentenciou, muitas vezes de forma cruel, o apagamento dos negros e

    afrodescendentes.

    Na primeira seo desta Dissertao, No Recncavo da Bahia nasce

    um heri , realiza-se uma composio b iogrfica desse capoeir ista,

    articulando-a com o contexto histrico, no intuito de puxar os fios da cu ltura

    afro-baiana para se pensar a const itu io do heri Besouro . Para compor a

    paisagem hist rica do Brasil e da Bahia, particularmente a do Recncavo

    Baiano, entre f ins do sculo XIX e inc io do scu lo XX, perodo tensionado

    por conflitos sociais, mudanas de regime poltico e ps-abolio, recorre-se

    aos estudos de Walter Fraga Filho, Eu l Soo Pang e Antonio Risrio, bem

    como aos de Almir Areias, Adriana Dias, Josivaldo Olive ira e Muniz Sodr.

    Visando entender a constitu io do her i e sua mitif icao, recorre -se

    a Mircea Eliade e Joseph Campbell. Como o estudo proposto trata de um

    su jeito da his tria esquecido pela historiografia ofic ia l, buscam-se as

    contribuies de Jos Geraldo Vasconcelos, Ecla Bosi, para a qual as

  • 10

    experinc ias do passado so refe itas, reconstrudas, um trabalho da memria,

    e Lo iva Otero F lix, com sua noo de memrias subterrneas. Pelo

    entendimento de que uma pesquisa se alimenta de fontes diversas, a lgumas at

    desau torizadas pela academia, no se pde desprezar a contribuio da Profa.

    Zilda Paim, conhecida como memoria lista, sobre o Recncavo Baiano.

    Na segunda seo, Os vos de Besouro Mangang na literatura de

    cordel , so analisadas e interpretadas as narrat ivas do co rdel de Antnio

    Vie ira e Victor Alvim Garcia, nas quais se biografa a hist ria de Besouro

    Mangang. Para tanto, recorre-se s contribu ies de Mrcia Abreu, Antnio

    Arantes e Doralice Alcofo rado, em seus estudos sobre o cordel, gnero

    produzido por escritores do chamado segmento popular, aqu i entend idos como

    su jeitos que se viram privados, historicamente, dos direitos bsicos de

    cidadania, cultura letrada, mas, ainda que numa incluso degradada, como

    ana lisada, e cr it icada, pelo socilogo Jos de Souza Martins 1, aprenderam a

    ler e a escrever. Tal conquista possib ilitou uma escrita que lhes permit iram

    registrar histrias e socializ- las, s ilenciadas pela Histria oficia l, entendida

    aqu i, dentro do campo historio grfico, como um d iscurso elaborado pela

    perspectiva da cultura dominante.

    Na terce ira seo , Morte e nascimento de Besouro em Feijoada no

    paraso , analisada a narrat iva Feijoada no paraso , de Marco Carvalho,

    jornalista e publicitrio , a qual tem como narrador e personagem centra l o

    capoeirista Mangang trazendo sua verso acerca de muitas histrias co ntadas

    sobre ele prprio: sua morte, seu apelido, seu nascimento, o jogo da capoeira,

    relaes de amizade, bem como o enfrentamento ordem republicana, com

    relatos alinhavados por reflexes, digresses ou comentrios.

    Em Feijoada no paraso , o jogo da capoeira ganha destaque, como

    uma prtica cultural e performt ica : a ginga do corpo, seus golpes, a

    mandinga, a p ro teo dos orixs so postos em relevo. Em vista d isso , so

    importantes as reflexes de Stuart Hall sobre os repertrios culturais dos

    negros da dispora, bem como a noo de performance , elaborada por Paul

    Zumthor, compreendida como corporeidade e teatra lidade.

    1 Cf. MARTINS, Jos de Souza. A excluso social e a nova desigualdade. So Paulo: Paulus, 1997. Apud PEREGRINO, Mnica. www.anped.org.br/reunioes/25/monicaperegrinoferreirat06.rtf - Acesso em 21/05/2010.

  • 11

    A narrat iva de Marco Carva lho inspirou um longa-metragem do

    cinema nac ional, Besouro , da capoeira nasce um heri , que estreou em 2009,

    f ilme dir igido pelo renomado pub licitrio Joo Daniel Tikhomiroff.2 A

    pelcula, buscando aproximao com a textualidade popular tec ida sobre

    Besouro, conta a histria de Mangang, com uma superp roduo que realiza o

    esforo de traduzir a viso heroicizada sobre o lendrio capoeir ista. Para

    tanto , as cenas de luta, marcadas por efe itos especiais, foram coreografadas

    pelo chins Huen Chiu Ku, o mesmo que dirigiu Kill Bill e O tigre e o

    drago . Rodado na Chapada Diamant ina , na Bahia, a produo cuidou de

    trazer capoeiristas para atuarem, e Ailton Santos, professor de capoeira,

    protagonista da histria. 3 Destaque-se que em 1980 foi lanado Besouro

    Capoeirista , do diretor Tato Taborda, tendo o ato r baiano Mrio Gusmo

    atuando como Besouro.

    Os d iferentes sites que divu lgaram o lanamento do filme de Joo

    Daniel T ikhomiroff destacaram a re levncia de Besouro Cordo de Ouro no

    universo da capoeiragem, ressaltando seus fe itos extrao rd inr ios, as fugas

    espetaculares, a sua agilidade, denominando-o de her i, de mito, uma

    referncia para a arte da capoeira. Tais rep resentaes tm longa data, como

    imagens cint ilantes na cultura afro -baiana, particularmente no Recncavo

    Baiano e no universo da capoeiragem. O filme p rojeta Besouro num universo

    mais amplo, com a promessa de torn-lo conhecido por um pblico maior, que

    vive distante de um tempo em que o jogo da capoeira era t ido como uma

    prtica de pretos, vad ios e ind ivduos perigosos, ou seja, de negros que

    ameaavam a nova ordem republicana, at ser enquadrado como crime em

    1890, dois anos aps a abolio da escravatura.

    Como este estudo tem a preocupao de articular literatura e

    histria, os pesquisadores e estudiosos que se fazem presentes na primeira

    seo desta dissertao so retomados nas demais sees, para art icular suas

    contribuies com os textos ficcio nais que dramatizam a his tria de Besouro

    Mangang.

    2 Disponvel em http://www.interfilmes.com/filme_21174_Besouro-(Besouro).htlm. Acesso em 20/08/2009. 3Cf.correio24horas.globo.com/noticias/noticia.asp2codigo=367048mdl=4http://www.cordaodeouromangalot.com.br/index.php?opt. Acesso em 07/10/2009.

  • 12

    As narrat ivas de Antnio Vie ira, Victor Alvim Garc ia e Marco

    Carvalho, insp iradas na textualidade popular, trazem traos dessa

    textualidade, f iliada a uma c lasse de narrat ivas que se apresentam como

    fantst icas e que terminam com uma aceitao do sobrenatural, na viso de

    Tzvetan Todorov, 4 sem uma exp licao lgica causa l. Os feitos e

    acontec imentos envo lvendo o personagem Besouro, e at mesmo sua vida

    cotid iana, so marcados pela presena do inusitado, do sobrenatural e de

    metamorfoses.

    Assim, o personagem capoeirista protagoniza situaes

    extraordinr ias: vira besouro, um mangang, voa, transforma-se em planta,

    morre e renasce, tem o corpo refratr io aos metais, enfrenta lobisomem,

    convive com mundo sagrado dos orixs, retorna ao mundo dos vivos sem ser

    visto e ainda se encarna no corpo de outras pessoas. Muitas das situaes

    extraordinr ias ou metamorfoses ocorrem quando se torna necessrio driblar

    os adversr ios, escapar dos inimigos, defender-se ou proteger a lgum

    injust iado. Ainda de acordo com Todorov, no plano da recepo ocorre a

    hesitao experimentada por um ser que s conhece as leis natura is, face a um

    acontec imento aparentemente sobrenatu ral da que o pblico ou le itor

    dessas histrias vai conviver com o extraordinr io, o inslito, o estranho , o

    encantamento e a magia experimentando uma sensao que o suspende da vida

    cotid iana.

    As histrias cr iadas por Antnio Vieira, Victor Alvim Garc ia e

    Marco Carvalho podem ser lidas como b iografemas, segundo Roland Barthes,

    trao acentuado em Feijoada no paraso , narrat iva em 1 . pessoa, em que o

    personagem Besouro assume o lugar de narrador. So lendas inventadas,

    relatos biogrficos ou ainda instantneos fotogrficos, que Barthes va i

    designar de biografemas: gosto de certos traos biogrficos que, na vida de

    um escr ito r, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traos

    de biografemas 5

    Todas elas se f iliam a uma textualidade popular, tecida por uma

    superposio de fa las, vozes, textos, histrias, causos, enfim, fices sobre 4 TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura fantstica. Trad. Maria Clara Correa Castelo. So Paulo: Perspectiva, 2007. p. 58. 5 Cf. Roland BARTHES. A cmara clara; nota sobre a fotografia. Jlio Castaon Guimares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 51.

  • 13

    uma lenda, tambm uma fico, do Recncavo Baiano, cuja histria de vida,

    marcada pela rebeldia, fertilizou a imaginao de uma comunidade,

    ampliando-se continuamente. Tais f ices devem ser entendidas pe la noo de

    f ictcio, apresentada por Wolfgang Iser .

    Questionando a viso corrente de que os textos f icc iona is se opem

    aos textos factua is, Iser considera que aqueles no so de todo isentos de

    realidade. O texto ficc ional contm e lementos do real, sem que se esgo te na

    descrio deste real. Assim, como o seu componente f ictcio no tem o

    carter de uma fina lidade em si mesma, , enquanto fingida, a preparao

    de um imaginrio. 6 Segu ndo Iser, um texto ficcional guarda muita realidade,

    de ordem socia l, sent imenta l e emocional. Tais rea lidades no so fices

    nem se convertem nelas ao entrarem nos textos f icc ionais, pois no se

    repetem por efeito de si mesmas.

    A repetio um ato de fingir , pelo qual aparecem fina lidades que

    no pertencem rea lidad e repetida, da que o ato de fingir uma transgresso

    de limites. Por isso, Iser prope substituir o par oposit ivo fico/realidade

    pela tr ade rea l, fictc io e imaginr io. Em relao ao imaginr io, seu

    carter d ifuso transfer ido para uma configurao determinada, que se impe

    num mundo dado como produto de uma transgresso de limites. Ou seja, no

    ato de fingir, o imaginrio ganha uma determinao que no lhe prpria e

    adquire, deste modo, um pred icado de realidade : po is a determinao uma

    definio mnima do real.

    Para Iser , as f ices no existem s como textos ficcionais :

    desempenham papel importante tanto nas at ividades do conhec imento, da

    ao, do comportamento, quanto no estabe lec imento de instituies, de

    sociedades e de vises de mundo. Entendendo o texto literr io como um

    modo de temat izar o mundo, para Iser esse modo no est dado a priori .

    Assim, preciso que seja implantado, para se impor, o que no s ignifica

    imitar as estruturas de organizao previamente encontrve is, mas sim

    decompor. Nessa decomposio ocorrem as seguintes operaes: a seleo e

    a combinao .

    6 ISER, Wolfgang. O ato de fingir ou o que fictcio no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura e suas fontes. Vol. II. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 384-416.

  • 14

    A seleo , necessr ia a cada texto f iccio nal, dos sistemas

    contextua is pr-existentes, sejam e les de natu reza scio -cultural ou mesmo

    literr ia, uma transgresso de limites na medida em que os elementos

    acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturao semnt ica ou

    sistemt ica dos sistemas de que foram tomados. Isso va le tanto para os

    sistemas contextua is, quanto para os textos literr ios a que os novos textos se

    referem. Cont inua: Os elementos contextuais que o texto integra no so em

    si f ictcios, apenas a seleo um ato de f ingir pelo qual os sistemas, como

    campos de refernc ia, so entre s i delimitados, pois suas fronte iras so

    transgred idas.

    No ato de seleo ocorre uma perda de articulaes precedentes e

    uma reintegrao dos elementos esco lhidos em uma nova art icu lao.

    Suprimir, complementar, valorizar vm a ser , de acordo com Iser, operaes

    bsicas da produo de um mundo. A seleo , como ato de f ingir , encontra

    sua co rrespondncia intratextual na combinao outra operao e

    transgresso de limites, dos e lementos textuais , que abrange tanto a

    combina lidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os

    esquemas responsveis pela organizao de personagens e aes.

    Como ocorre quase sempre, segundo Iser, nos textos narrativos so

    acentuados os espaos semnt icos const itudos a partir de elementos

    se lec ionados das realidades extratextuais , que se revelam pela ap resenta o

    esquemtica das personagens do romance (caracteres posit ivos e negat ivos).

    Nos relac ionamentos intratextua is, ocorre um rompimento de fronteiras, pois

    a f ico agrega, em um nico espao, uma var iedade de linguagens, de nveis

    de focos, de pontos de vista, que ser iam contraditrios noutras espcies de

    discurso, organizadas quanto a um fim emprico particu lar.

    Compondo uma textualidade popular, as histrias sobre Besouro

    elaboradas a partir da se leo de elementos da realidade extratextual,

    seguidas da combinao intertextual, e na ruptu ra de fronteiras so

    contranarrat ivas que pem em xeque um modelo de nao , um desenho

    ident itr io homogeneizador do Brasil, segundo Florentina Souza, tecido por

    um grupo social, a saber, as elites do pas. Para a pesquisadora, este desenho

    ident itr io,

  • 15

    individual ou coletivo, consiste num processo de const ruo simblica uti l izado como ponto de referncia e auto -afirmao do grupo ou indivduo. As fraturas, dvidas, deslizes, heterogeneidades sofrem um p rocesso de esmaecimento par a que seja garantida a const ruo de um desenho uni forme, unit rio e total izante, acima de qualquer suspeita quanto propriedade ou plausibil idade. Legit imado pela imposio de um grupo social , pelas repeties de figuras retricas, o desenho ser rat ifi cado e ret i fi cado pela tradio e arvorar -se- capaz de definir e s ingularizar indivduos e/ou grupos sociais. 7

    O capoeirista Besouro viveu uma poca em que estava em curso o

    projeto de consolidao do Estado-nao brasile iro , traando seu desenho

    ident itr io, e a literatura e a histria, inst itucionalizadas como disciplinas e

    domnio do conhecimento, vo se irmanar em tal projeto. Enquanto

    produes, ambas vo contribuir , em sua maioria, na construo de um

    discurso ident itr io homogeneizador.

    A identidade, para os intelectuais dos primrdios da nao, estava l igada necessidade de construo de um pas, de uma histria, uma cultura, atravs dos quais todos s e reconhecessem simultaneamente semelhantes e di ferentes da Met rpole (contradies de colonizado. . . ) . rgos so criados, um projeto l i terrio delineado, escri tores, estudiosos, art is tas e pol t i cos art iculam-se; todas as energias intelectuai s dirigem-se e concentram-se no es foro de inventar o Brasil . preciso inventar o pas, preencher os vcuos da memria com aquilo que no propicie constrangimentos maiores que o de ser uma ex-colnia. Como construo simblica que , a identidade cultural brasil ei ra vai ganhar perfis mais ou menos ot imistas de acordo com as idias , princpios e valores hegemnicos de cada poca. 8

    Para Florentina Souza, os intelectuais brasile iros tm frente um

    desafio, cercando-os de constrangimentos: Como forjar uma ident idade d igna

    se o imaginr io j t inha cr ista lizado como verdadeira a ind ignidade d e dois

    segmentos tnicos [o ndio e o negro ] da populao? 9. Segundo a autora, o

    7 SOUZA, Florentina. Imagens e contra imagens do negro. In.: Congresso ABRALIC, Anais... Rio de Janeiro. 1988.p. 243. Nesse trabalho, a autora analisa a srie Cadernos Negros, um peridico criado por escritores afrodescendentes, em fins de 1970. Segundo a autora, Cadernos Negros, produzidos com inteno expressa de abalar a autoridade do discurso do saber e do poder, podem ser vistos como tentativa de constituir uma suplementariedade cultura oficial brasileira; buscam inventar uma contra-imagem que desautorize a unanimidade proposta pela imagem instituda. p. 245. 8 Id., p. 243-244. 9 Id., p. 244.

  • 16

    processo de construo simblica no descarta as significaes p r -

    existentes.

    Desse modo, no processo de construo da identidade nac iona l

    brasileira, pelas elites do pas, de cunho homogeneizante, a trad io ocidental

    desempenhar um papel fundamental, uma vez que tece narrat ivas sobre o

    Outro [o ndio e o negro] de acordo com o seu projeto de dominao,

    incu lcando-as no imaginr io do prprio colonizado de modo que o m esmo

    chega a acred itar na verac idade do texto.10 Assim, o perfil do Outro

    inventado pela tradio ocidental presc inde de ser comprovado ou organizado

    logicamente, a repetio garante a sua validade. 11

    Na contramo de um desenho ident itrio homogeneizador, uma

    textualidade popu lar emerge quest ionando -o , com histrias que tm Besouro

    como heri, reve lia da Histria oficia l. Tais narrat ivas so elaboradas por

    su jeitos que enco ntram nesse capoeirista a referncia de uma luta e

    res istncia ao processo de colo nizao , que subjugou os negros, colocando-os

    num lugar inferio r, em diversos nveis, naquele desenho, a despeito de sua

    inegvel contr ibuio na construo do pas. Assim, um refro insiste,

    furando tal desenho, em riste: zum zum zum, zum zum zum, capo eira mata

    um.

    10 Id., loc. cit. 11 Id., p. 244.

  • Fonte: CARNEIRO, Edison - Caderno de Folclore 1 Capoeira, 1977

  • 17

    2 NO RECNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERI

    Quand o eu morrer No quero gri to e nem mi str i o Quero u m beri mbau Tocand o na porta d o cemit r i o Com u ma fi ta amarel a Gravada com o nome dela Ai nda depoi s de mort o Besouro cordo de ouro Como o nome? Cord o de Ouro. 12

    Vida breve, longa histria

    Manuel Henr ique Pereira o nome c ivil do mestre de capoeira

    Besouro Mangang, ou Besouro Cordo de Ouro. A data provvel de seu

    nascimento tem como refernc ia o processo movido em 1918 , pelo Exrcito

    Brasile iro, que resultou na sua expulso da corporao, no mesmo ano , po r

    incapacidade moral, conforme o fcio do Ministr io da Guerra, 13 no qual se

    atesta que o acusado tinha 23 anos poca. Besouro Mangang nasce no

    quilombo Urup y, Olive ira dos Campinhos, distr ito de Santo Amaro da

    Purif icao, na regio denominada Recncavo Baiano, 14 filho de Joo Martins

    12 Letra da cano Cordo de ouro, do mestre Trara de Santo Amaro, o Jos Ramos do Nascimento. Capoeirista famoso da Bahia, marcou poca e ganhou notabilidade mpar na arte das rasteiras e cabeadas. No disco fonogrfico, produzido pela Editora Xau, intitulado "Capoeira", hoje uma preciosidade para os estudiosos e adeptos dessa arte, tem presena marcante envolvendo os ouvintes. Sobre a beleza e periculosidade do seu jogo, assim se referiu Jorge Amado: "Trara, um caboclo seco e de pouco falar, feito de msculos, grande mestre de capoeira. V-lo brincar um verdadeiro prazer esttico. Parece bailarino e s mesmo Pastinha pode competir com ele na beleza dos movimentos, na agilidade, na rigidez dos golpes. Quando Trara no se encontra na Escola de Waldemar, est ali por perto, na Escola de Sete Molas, tambm na Liberdade". Mestre Trara tambm teve importante participao no filme "Vadiao", de Alexandre Robatto Filho, produzido em 1954, junto a outros grandes capoeiristas baianos, como Curi, Nag, Bimba, Waldemar, Caiara, Crispim Disponvel em: http://sites.br.inter.net/capueirameialua. Acesso em 06/06/2009. 13 Cf. VASCONCELOS, Jos Gerardo. Etnocenologia e histria: percorrendo indcios da vida de Manoel Henrique Pereira, vulgo Besouro (1895-1924). p. 25. In: MATOS, Kelma Socorro L. de. VASCONCELOS, Jos Gerardo. (Orgs.). Registros de pesquisas na educao. Fortaleza: LC-UFC, 2002. p. 27. Na Seo Judiciria do Arquivo Pblico Municipal de Santo Amaro (Data limite: 1920 1927: Subsrie: Tentativa de Homicdio: Cx. 4; N. 104: Vol. 18), tem-se o seguinte registro, de 04/02/1922, no auto de perguntas dirigidas vtima Caetano Jos Diogo: um homem moderno de cor escura quase preto. 14 O Recncavo abrange a regio Bahia de Todos os Santos, com 23 municpios, incluso o de Salvador. Partindo do litoral, onde comeam as dunas e praias do Litoral-Norte, a linha limite inflete para o Oeste, para o interior, passando ao Norte de So Sebastio do Pass, at alcanar o norte do municpio de Santo Amaro, e encontrar Humildes, onde seu traado curva-se para o Sul, correndo paralela ao sentido do litoral, atravessando os leitos dos rios Jacupe e Paraguau, envolvendo os municpios de So Gonalo dos Campos, Cachoeira, Conceio da Feira e Cruz das Almas; deste, a fronteira retorna em direo costa, passando por Santo Antnio de Jesus, apontando em linha reta para o mar, margeando as Matas do Sul, passando abaixo de Nazar, Aratupe e Jaguaribe, at encontrar a praia, nas alturas da Ponta do Garcez, ao norte da Barra do Jequiri. Cf. COSTA, Pinto. Recncavo: laboratrio de uma experincia humana. In. BRANDO, Maria de Azevedo et al. Recncavo

  • 18

    Pereira e Maria Auta Pereira 15. Zilda Paim, conhec ida como memoria lista

    santoamarense, traz a lguns dados biogrficos desse capoeirista, fa lec ido em

    1924: Nasceu em Santo Amaro. Filho de Joo Matos Pereira e Maria Jos. O mais ladino e malicioso capoei ris ta da Bahia. Mestr e de capoei ra no Exrcito, de onde se desligou depois da guerra. No conhecia o medo, vencia a pol cia dando pernadas e rabos de arraia, com seus famosos saltos acrobti cos. Foi fria e covardemente golpeado em Maracangalha, no lugar de nome Quimbeca. Veio para Santo Amaro em canoa , fi cando no Port o em frente a Loja Nova, at que foi t ranspor tado para a Santa Casa da Misericrdia, onde faleceu aos 32 anos de idade. 16

    O capoeirista Besouro Mangang d continuidade a uma p rtica, a

    capoeira, que chegou ao Brasil desde o incio da colonizao. Segu ndo

    Car ib, os capoeiristas chegaram Bahia no bo jo de pau dos ant igos ve leiros

    do sculo XVI. Eram negros da Angola, talvez guerreiros jogadores dessa luta

    em que ps e cabea tm mais importncia e que as mos passam a segundo

    da Bahia Sociedade e economia em transio. Salvador: Fundao Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; UFBA, 1998. p. 103-105. 15 No h informaes precisas sobre a data de nascimento de Besouro. Segundo Vasconcelos, s foi possvel desvendar a sua origem mediante a certido de bito do seu irmo Caetano Ccero Pereira. O autor ainda cita relato de Joo Pequeno, citando-o em seu livro: Besouro morreu com vinte e tantos anos ou trinta. To ouvindo falar que ele morreu em 1924. Cf. Etnocenologia e histria: percorrendo indcios da vida de Manuel Henrique Pereira, vulgo Besouro (1895-1924). p. 29-32. In: Matos, Kelma Socorro Lopes de. VASCONCELOS, Jos Gerardo. Orgs. Registros de Pesquisas na Educao. Fortaleza: LCR UFC, 2002. O autor transcreve na ntegra a certido de bito, expedida pela Santa Casa da Misericrdia de Santo Amaro, em 1925, a pedido do Dr. Joo de Cerqueira e Souza, promotor pblico da Comarca de Santo Amaro, para o arquivamento do processo movido contra o capoeirista por Caetano Jos Diogo em 1922, em virtude do seu falecimento em 1924. C.f.; certido de bito em anexo. A Santa Casa da Misericrdia de Santo Amaro, mantenedora do Hospital Nossa Senhora da Natividade, uma entidade filantrpica sem fins lucrativos que presta servios de sade de urgncia/emergncia, h cerca de 235 anos, a toda a populao santoamarense e de cidades circunvizinhas, tendo como finalidade principais o atendimento aos mais carentes. O objetivo maior da Santa Casa da Bahia, como de todas as Santas Casas, desde sua criao, era praticar a caridade crist, observando o estatuto, a lei escrita da Misericrdia, chamado de Compromisso. A Santa Casa da Bahia seguia o Compromisso datado de 1516, que regia a Santa Casa de Lisboa. O Compromisso prescrevia as quatorze aes ou obras de misericrdia que concretizavam a prtica caritativa, sendo sete Espirituais ensinar aos ignorantes; dar bom conselho; consolar os infelizes; perdoar as injrias recebidas; suportar as deficincias do prximo; orar a Deus pelos vivos e pelos mortos e sete compromissos Corporais resgatar os cativos e visitar prisioneiros; tratar os doentes; vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; sepultar os mortos. SANTANA, A. C. S. de. Santa Casa de Misericrdia da Bahia e sua prtica educativa, 1862-1934. 227f. Tese (doutorado em Educao) Faculdade de Educao, UFBA, Salvador, 2008.p. 44. 16 PAIM, Zilda. Relicrio popular. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo: EGBA, 1999. p 53. Conhecida pela divulgao da cultura santoamaresense, a autora nasceu em 1919 e iniciou o magistrio, em Santo Amaro, de 1937 at 1988. Foi vereadora pelo PDC e MDB nas legislaturas de 1959-1963 e 1997-1982, presidente do Legislativo de Santo Amaro entre 1980 e 1982. Seu grupo folclrico Maculel de Santo Amaro atravessou fronteiras para ser aplaudido por cariocas, paulistas, mineiros e paraibanos. In: Isto Santo Amaro. 3 ed. Salvador Academia de Letras, 2005. Zilda Paim apia-se na memria popular para referir-se ao nome da me de Besouro como Maria Jos, enquanto na certido de seu irmo Caetano Ccero Pereira, consta Maria Auta Pereira.

  • 19

    plano.17 So detentores de uma cultura que contribuiu para formar a cultura

    afro-brasileira, fortalecendo o combate opresso, uma arte que usa da

    ginga para disfarar a luta, dando-lhe um carter ldico ino fensivo e

    cadenciado, de certa forma, locomoo e preparao dos ataques e

    defesas.18

    Nas histrias sobre Besouro, que compem uma textualidade

    popular, sobressa i-se a imagem do capoeirista como um indivduo alt ivo,

    destemido, rebelde, corajoso, va lente, audacioso, ju stice iro, representante dos

    segmentos oprimidos num perodo de ps-abolio e mudana de regime

    polt ico . Besouro torna-se uma lenda, mito , acima do bem e do mal pelo poder

    de que se investe e investido, para enfrentar a elite econmica e polt ica da

    terra de Santo Amaro, no Recncavo Baiano.

    Graas a uma tradio oral, pode-se recontar a sua histria,

    praticamente ausente das pginas da literatu ra canonizada, exceo feita a

    Jo rge Amado, que o ap resenta em Mar Morto , publicado em 1936, um ano

    depois de Jubiab , narrat iva que elege um negro o heri da trama. Em Mar

    Morto , o escritor faz uma homenagem a Mangang, no captulo int itu lado

    Viscondes, condes, marqueses e Besouro. Na trama, Besouro Cordo de

    Ouro , um negro valente, o save irista amigo de Guma, personagem desta

    narrat iva:

    Essa cidade de Santo Amaro, onde Guma es t com o saveiro, foi ptri a de muito baro do imprio, viscondes , condes, marqueses, mas foi t ambm de gente do cais, a pt ria de Besouro. Por esse motivo, somente por esse motivo, no por produzi r acar, condes, viscondes, bares, marqueses, cachaa, que Santo Amaro uma cidade ama da dos homens do cais. Mas foi al i que nasceu Besouro, correu naquelas ruas, al i derramou sangue, esfaqueou, at irou, lutou capoeira, cantou sambas. Foi al i p erto em Maracangalha, que o cortara m todinho a faco, foi al i que seu sangue correu e al i bri lha a sua estrela, cl ara e grande [. . . ] ele virou estrela, que foi um negr o valente [. . . ] . Besouro nunca casou, alm de mart imo ele era jaguno, alm do remo tinha um ri fl e, alm da faca de marinhei ro t inha uma navalha. [. . . ] a estrela de Besouro pisca no cu. cla ra e grande. As mulheres dizem que ele est espiando os mal feitos dos homens (bares, condes, viscondes,

    17Cf. CARIB, op. cit., Zilda Paim em Relicrio Popular, transcreve essas mesmas informaes no corpo do seu texto, porm no cita a fonte pesquisada. op. cit.; p. 47. 18 AREIAS, Almir, O que capoeira. 3 ed. Brasiliense. (sd), p.24.

  • 20

    marqueses) de Santo Amaro. Est vendo todas as injustias que os mart imos sofrem. Um dia voltar para se vingar. 19

    Besouro se metamorfoseia, torna-se uma estrela, clara e grand e

    depois de ter vivido como martimo e jaguno , atento s injust ias dos

    poderosos do Recncavo, como os bares, co ndes, viscondes e marqueses.

    Assim como o personagem Macunama, de Mrio de Andrade, que tambm

    vira estrela, Besouro faz parte de uma conste lao, organizada pelo

    pensamento mt ico, const itutivo dos homens, em diferentes pocas ou

    sociedades, visando dar sent ido e reflet ir sobre a existnc ia, os cosmos, as

    situaes de estar no mundo ou as relaes soc iais. 20

    Ao se rememorar a vida de Besouro, deve-se considerar que a

    lembrana a sobrevivncia do passado. O passado, conservando -se no

    esprito de cada ser humano, aflora consc inc ia na forma de imagens -

    lembrana.21 Portanto, o ato de lembrar acontec imentos que se transformam

    em histria vivifica s ituaes e perpetua o seu aprendizado. Assim so as

    histrias sobre Besouro Cordo de Ouro, idea lizadas em imagens elaboradas

    pela memria de quem as conta. Segundo Ecla Bosi, o instrumento

    socializador da memria a linguagem. Ela reduz, unifica e ap roxima no

    mesmo espao hist rico e cultu ral a imagem do sonho, a imagem lembrada e

    as imagens da vig lia atual. 22

    As narrativas sobre Besouro Mangang so produzidas num

    momento histrico e social e ta is acontecimentos, num processo de se leo e

    combinao, so memorizados, contados e recontados, dispensando -se ass im

    uma cobrana aos seus narradores quanto a dados histricos p recisos, pois a

    importncia da narrat iva est no personagem vetor do acontec imento narrado.

    Como representante de um expressivo segmento populac ional

    afrodescendente, a hist ria desse capoeirista, que Car ib destaca, dentre

    vrios nomes da capoeiragem, como bom faquista angola, mas jogador 19 AMADO, Jorge. Mar Morto. 36 ed. So Paulo, Martins, 1973. p. 123-127. 20 ROCHA, Everardo. O que mito. So Paulo, Brasiliense, 1991. 5. edio. P. 7. De acordo com o autor, o mito, presente em todas as pocas, no possui slidos alicerces de definies. No possui verdade eterna e como uma construo que no repousa no solo. O mito flutua. Seu registro o do imaginrio. Seu poder a sensao, a emoo, a ddiva. Sua possibilidade intelectual o prazer da interpretao. E interpretao jogo e no certeza. Id., p. 95. 21 BOSI, Ecla. Memria e sociedade. Lembrana de velhos. 9 ed. So Paulo Companhia das Letras, 2001. p. 53. 22 Id.; p. 56.

  • 21

    escasso,23 foi, como a de tantos ou tros, esquecida pela Histria oficial,

    comprometida com o projeto ident itr io das elites do pas, na construo de

    um Brasil europeizado. Por isso, a ausncia de documentos escr itos, devendo

    o pesqu isador recorrer memria oral para elaborar uma histr ia da capoeira,

    pela importncia dos afr icanos na construo da memria do pas. Ao

    considerar o trao livre e quase onrico da memria, Bosi afirma o seguinte :

    [. . . ] lembrar no reviver, mas refazer, reconstrui r, repensar, com imagens e idias de hoje, as experincias do passado. A memria no sonho, trabalho. Se assim , deve-se duvidar da sobrevivncia do passado, tal como foi e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrana uma imagem construda pelos materiais que esto agora nossa disposio, no conjunto de representa es que povoam nossa conscincia atual . 24

    Transmit idas de gerao a gerao, h quase um sculo, as

    narrat ivas sobre Besouro so fios de uma memria subterrnea, tecendo

    outros tranados, a fim de evitar o seu esquecimento.

    Estudar memria falar no apenas de vida e de perpetuao da vida at ravs da histria; falar, tambm, de seu reverso, do esquecimento, dos s i lncios, dos no ditos e, ainda, de uma forma intermediria, que a permanncia de memria s subterrneas ent re o esquecimento e a memria social. E no campo das memrias subter rneas, falar tambm nas memrias dos excludos, daqueles que a fronteira do poder lanou marginalidade da histria, a um outro t ipo de esquecimento ao lhes ret i ra r o espao ofic ial ou regular da mani festao do di reito fala e ao reconhecimento da presena social . 25

    Por esse entendimento, tais histrias so reconstrudas,

    ressignificadas pelo traba lho da memria, que se efetua pelas operaes de

    lembrar e esquecer. Toda vez que um acontecimento narrado, ou tras

    performances so colocadas e trazidas do inconsciente e, num misto de real e

    imaginr io, confluem para o mesmo ponto, ou seja, a recriao das faanhas

    ou feitos realizados por Besouro, num pas que fez do negro o seu Outro, um

    23 CARIB. Op.cit.; 24 Ibid.; p. 55. 25FLIX, Loiva Otero. Poltica, memria e esquecimento. In: TEDESCO, Joo Carlos (org). Usos de memrias. (Poltica, Educao e Identidade). Universidade de Passo Fundo. RS Brasil. 2002, p. 31.

  • 22

    estranho a quem se podia maltratar, ao ignorar que se trata de um ser

    humano .

    Segu ndo Vasconcelos, ao tratar da importncia da memria para a

    so lidificao da histria, se o esquecimento nos protege das dores, no

    impedir que os homens s intam saudade ou rememorem seus mitos, s mbolos

    e imagens.26 Assim, ao se propor um estudo sobre o capoeirista Besouro, no

    se tem a inteno de esquecer as dores que certamente viveu . Ao contrrio,

    busca-se entender as razes pelas quais esse p ro tagonista rememorado como

    um mito, um smbolo, rep resentante de um segmento social margina lizado.

    Para se entender o lugar que Besouro Mangang ocupa no

    imaginr io popular, necessr io contextua lizar o perodo em que viveu,

    marcado por mudanas soc iais e polt icas do Brasil do f ina l do sculo XIX e

    incio do sculo XX. A abo lio da escravatura, com a assinatura da Lei

    urea em 13 de maio de 1888 , e a Primeira Repblica, que comea a vigorar

    com a sua proclamao, em 15 de novembro de 1889, pelo Marechal Deodoro

    da Fonseca, at 1930, criam a esperana de transformar o Brasil em um novo

    pas.

    Nesse perodo, o Recncavo Baiano o principal veto r das relaes

    econmicas com o plant io e a colhe ita da cana-de-acar, e os engenhos so

    os p rincipa is nc leos para os contatos . A maioria dos engenhos estava

    loca lizada em Santo Amaro da Purif icao, terra de Besouro Cordo de Ouro.

    Para Z ilda Paim, o Recncavo tornou-se em pouco tempo o mais importante

    centro agrcola da era colonia l. 27 Ainda para a autora, Santo Amaro fo i, sem

    dvida, o municpio que mais escravos possuiu. Seus primeiros povoadores,

    os portugueses, dado s aventuras, vidos de lucros, queriam t irar da terra o

    mximo que ela pudesse dar. Destacam-se a inda os agrupamentos negros que

    vieram para Santo Amaro:

    [. . . ] os hausss habitavam o Sudo Central , ao norte dos rios Niger e Binue. Formavam a nao mais importante de todas as negrt i cas sudanesas. Os mals eram africanos is lamizados, possuidores de mediana cultura e portador de ofcios de

    26 VASCONCELOS, Jos Gerardo. op. cit.; p. 24. 27 PAIM, Zilda. Isto Santo Amaro. 3 ed. Salvador. Academia de Letras, 2005, p.51.

  • 23

    pedrei ro e ca rpinteiro, timos agricul tores, exercend o influncia sobre escravos de diversas procedncias. 28

    No perodo em que Besouro viveu , preva leciam ranos muito

    fortes do regime monrqu ico no pas, e a abolio era ainda uma s ituao a

    ser aceita por muitos ex-donos de escravos. Segundo o historiador baiano

    Walter Fraga Filho, nos lt imos anos do sculo XIX, o Recncavo era a

    regio economicamente mais importante da provnc ia. Era tambm a mais

    densamente povoada e a que concentrava maior nmero de escravos. 29 E para

    Antnio Risr io a sociedade que se formou na cidade da Bahia e seu

    Rec ncavo esteve marcada por um processo contnuo de mest iagem, apesar

    de todas as desigualdades entre os grupos que a constitu ram. 30

    Com essa composio populacional s ingularizando o Recncavo

    Baiano e a cidade do Salvador nos primeiros anos da Repblica, as e lites

    loca is vo fazer uso dos capoeiristas. De acordo com Risrio, a c lasse

    dir igente baiana se ops, at quando isso foi possvel, mudana de regime

    polt ico, e a Bahia foi a lt ima provncia do imprio a ad er ir Repb lica.

    Risrio destaca que a elite baiana, por seu conservadorismo, de fundas e

    contorcidas razes, via no novo regime o sinnimo da anarquia e, tanto a

    elite po ltica quanto o empresariado agromercant il, consideravam que, com a

    alterao do regime, s ter iam a perder o poder adqu irido durante anos de

    domnio senhorial. 31

    Assim, com a Primeira Repb lica, surge a f igura do coronel, que va i

    atuar como escudo das foras polticas vigentes, cabendo -lhe, po r muitas

    vezes, escolher os lderes loca is ou formar novas parcerias, pois a

    sobrevivncia do sistema poltico dependia do contnuo e da manipu lao do

    poder pelas o ligarquias trad iciona is.

    Para o histo riador coreano Eul Soo Pang, a Bahia, devido ao seu

    tamanho fsico e demogrfico e sua importncia econmica, era o maior e

    28Id. Ibid., p. 45- 48. 29 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histrias de escravos libertos na Bahia (1870-1910). Campinas/SP. UNICAMP, 2006. p. 34. 30 RISRIO, Antonio. Uma histria da cidade da Bahia. 2 ed. Versal, 2004. p. 103. Segundo, Josivaldo Pires de Oliveira, Salvador, capital da Bahia, , historicamente, conhecida como uma cidade de muitos nomes. Cidade da Bahia, So Salvador, Cidade do Salvador ou Bahia de Todos os Santos, principalmente quando se trata da cidade da primeira metade do sculo XX. 31 RISRIO, Antonio. op. cit., p. 404-405.

  • 24

    mais poderoso estado do Nordeste do Brasil e os seus coronis chegaram a

    participar de campanhas militares ao lado de determinados grupos polt icos

    estaduais e naciona is. 32 Ainda com Eul Soo Pang, o co ronelismo tem como

    base patriarca l, soc ial e econmica os engenhos de acar do sculo XVI, e a

    sua principal funo era a hbil u tilizao do poder privado acumulado pelo

    patriarca de um cl ou uma famlia mais extensa. 33 Josivaldo Oliveira entende

    o coronelismo como fruto de situaes histricas especficas em uma

    sociedade, inclusive em soc iedades urbanas, a exemplo de Salvador na

    Primeira Repblica.34

    Destaque-se que o poder senhor ia l do interior do Brasil a inda

    manteve a sua fora at a segunda metade do sculo XX, como afirmam

    Vilaa e Albuquerque, tendo, portanto, sobrevivido por mais de meio sculo

    a seus precursores, o s coronis do acar. 35 Nesse contexto, muitos

    capoeiras, assim tambm conhecidos, homens fortes e destemidos, aptos a

    todo tipo de servio, vo trabalhar como capangas ou homens de confiana

    dos coronis uma espcie de seus protetores particulares e de suas terras e

    vo ter os coronis como seus protetores.

    Segu ndo Muniz Sodr, desde pouco antes da Abolio e durante a

    Primeira Repblica,

    os capoei ris tas passaram a ser usados, sob retudo no Rio de Janeiro como capangas (s vezes contra os prprios negros, ou contra os republicanos ) por pol t i cos e pessoas de influncia. No sendo esse o caso, o capoeiris ta era freqentement e

    32 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira Repblica Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979. p. 9. No perodo em que viveu Besouro Mangang, a diviso geopoltica do Brasil estava demarcada por duas regies: Norte e Sul. O termo nordeste usado inicialmente para designar a rea de atuao da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criado em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita s estiagens e, por essa razo merecedora de especial ateno do poder pblico federal. [...] Em 1920, a separao Norte e Nordeste ainda est se processando; s neste momento comea a surgir nos discursos a separao entre a rea amaznica e a rea ocidental do norte, provocada principalmente pela preocupao com a migrao de nordestinos para a extrao de borracha e o perigo que isto acarreta para o suprimento de trabalhadores para as lavouras tradicionais do Nordeste. ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. A inveno do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife: FJN, Ed. Massangana; So Paulo: Cortez, 2001. p. 68-69. 33 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira Repblica Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979. p. 9. 34 OLIVEIRA, Josivaldo Pires. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005. p. 90. 35 VILAA, Marcos Vinicius; ALBURQUEQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronis. Apogeu e declnio do Coronelismo no Nordeste. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 23.

  • 25

    apontado como autor de t rop eli as e desordens, suscit ando mais uma vez medidas l egislat ivas espec fi cas. 36

    Ainda com Sodr, a crnica da capoeira at quase o f im do Imprio

    reve la d isposies permanentes de resistnc ia marc ia l aos dispositivos

    repressivos de ordem escravagista. Assim, no final do sculo XIX, o jogo da

    capoeira comea a so frer forte represso socia l e polic ia l, tanto na capital da

    Repb lica, o Rio de Janeiro, quanto na Bahia e seu Recncavo, decorrente da

    insurgncia dos negros ao sistema poltico vigente. Nos primeiros anos ps-

    monrquicos e de Repb lica Velha (1889-1930), a capoeira vem a ser

    considerada crime, com o Cdigo Penal de 1890.

    De acordo com Manuel Querino, no Rio de Jane iro o capoeira

    const itua um elemento perigoso, tornando-se necessrio que o governo , pela

    portaria de 31 de outubro de 1821, estabelecesse cast igos corporais e

    providncias ou tras, relat ivas ao caso . 37 Os t ipos, ento descr itos nas

    narrat ivas, podem bem representar caricaturas do sistema soc ial da

    poca.Desse modo, dominantes e dominados lideravam um conflito freqente.

    Afirma Edil Costa : Prati cada pelos a fro-brasil eiros como um jogo, uma forma de divert imento que dis farava uma luta perigosa, a capoei ra parece no t er deixado de ser p rati cada em momento algum de sua histria, apesar da represso policial violenta que sofreu. Ao cont rrio, ganhou fora enquanto s inal de resis tncia e de descoberta da negritude. Em um momento seguinte, fi rmou-s e como luta e, mesmo prati cada ent re os negros, no havendo combate direto entre o oprimido socia lmente e o seu opressor, o combate s imblico estava estabelecido: jogar capoei ra s igni fi cava a fi rmar-se como negro, herdeiro da tradio a fri cana e fazer frente e resis tncia aos valores sociais do branco. 38

    A represso ao jogo da capoeira no se estendia s e lites, que

    faziam uso da fo ra e da valent ia dos capoeiristas. Segundo Almir das Areias,

    o Cdigo Penal de 1890 confere capoeiragem um tratamento especfico:

    36 SODR, Muniz. A verdade seduzida; por um conceito de cultura no Brasil. 3 ed. DPA editora. Rio de Janeiro, 2005. p. 155. 37 QUERINO, Manuel. A Bahia de outrora. Salvador. Progresso, 1955. p. 80. 38 COSTA, Edil Silva. Comunicao sem reservas. Ensaios de malandragem e preguia. 2005 (236 p) Tese (Doutorado em Comunicao e Semitica) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo 2005. p.88.

  • 26

    Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de agil idade e destreza corporal conhecidos p ela denominao capoeiragem; ser o autuado punido com dois meses de priso. considerada ci rcunstncia agravante pertencer o capoei ra a alguma banda ou malta. Aos chefes e cabeas se impor a pena em dob ro. No caso de reincidncia ser apli cada ao capoeira, no grau mximo, a pena do art igo 400. Se for estrangeiro, s er deportado depois de cumprir pena. Se nesses exerccios de capoeiragem perpetra r homicdio, prati car alguma leso corporal , ul traja r o poder pblico e part i cular, e perturbar a ordem, a tranqil idade ou a segurana pblica ou for encontrado com armas, incorrer cumulativamente nas penas cominadas para t ais crimes. 39

    Tal cdigo destitudo em 1937, na Repblica Nova, com o ento

    presidente Getlio Vargas, e a capoeira torna-se um esporte, inst itucionaliza-

    se, como um modo de contro lar a atuao dos capoeiristas, atravs da

    organizao de academias para o seu ensino. 40 De acordo com Walde loir

    Rego, a capoei ra foi inventada com a finalidade de divert imento, mas na realidade funcionava como faca de dois gumes. Ao lado do normal e do quotidiano, que era divert ir, era luta tambm no momento oportuno. No havia Academias de Capoeira, nem ambiente fechado, premeditadamente para jogar capoeira. Antigamente havia capoei ra, onde havia uma quitan da ou uma venda de cachaa, com um largo bem em frente, propcio ao jogo. A, aos domingos, feri ados e dias s antos, ou aps o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos a tagarelarem, beberem e jogarem capoei ra. 41

    Com a ass inatura da Lei urea, muitos negros libertos cont inuaram

    a trabalhar em troca de salrios ou arrendando terras dos seus ex-senhores,

    segundo Walter Fraga Filho :

    preciso lembrar que a populao que emergiu da escravido era bastante di ferenciada internamente. A posse de alguns bens, o direi to de acesso t er ra, o domnio de uma profisso especializada, a posio de fei tor de servio, estabelecera m

    39 AREIAS, Almir das. O que capoeira. 3 ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983. p. 43. Em A verdade seduzida, Muniz Sodr, em nota de rodap, afirma o seguinte: O Cdigo Penal de 1890 previa desterro e castigos corporais para quem praticasse a capoeira. Exemplos clebres de desterro: Manduca da Praia, Juca Reis, mandados para a Ilha de Fernando de Noronha, durante o primeiro governo republicano; de castigos corporais: as chicotadas aplicadas pelo famoso Major Vidigal, chefe de polcia do Rio de Janeiro, no incio do sculo XIX Cf. SODR, Muniz. Op. cit.; p. 155. 40 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit., p. 31. 41 RGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio scio-etnogrfico. Salvador: Itapo, 1968, p. 35-36.

  • 27

    algumas di ferenas dentro do contingente escravo, definira m escolhas e poder de barganha frente aos ex-senhores. 42

    Antes escravos, agora os negros passam a const itu ir um expressivo

    segmento de exc ludos, deixados prpria sorte. Como a grande maio ria no

    teve acesso cultu ra letrada, restava- lhes fazer parte do grande cont ingente

    de-mo-de obra barata e desqualificada que povoava as c idades do Recncavo

    Baiano e do Brasil.

    Para a historiadora Adriana Dias, muitos negros eram

    trabalhadores braais, como carregadores, estivadores, engraxates, capangas,

    polic iais, 43 e a rua era o p rincipa l cenrio de conflito s constantes, pois

    muitos trabalhavam esporad icamente, e lugar do jogo da capoeira. Nesse

    contexto, negros e mest ios so c lassif icados de vadios, valentes,

    desordeiros ou ainda pobres viciosos. 44

    Ainda segundo Adriana Dias,

    [. . . ] no final do sculo XIX, muitos viviam de ocupaes espordicas t endo um ri tmo de vida bastante ir regular, o que lhes proporcionava freqentes perodos de ociosidade ent remeados por momentos de diverso quase sempr e acompanhados de muitos goles de cachaa e, lgico, muitas brigas e provocaes. 45

    Assim, como afirma Walter Fraga, justamente por suas hab ilidades

    ou p ro fisso especia lizada, os negros do ps-abolio usam seu poder de

    barganha junto s e lites, e os capoeiristas tambm vm a negociar suas

    hab ilidades, ao serem usados como capangas por polt icos e pessoas de

    influncia, como tambm analisa Muniz Sodr.

    A capoeira, misto de arte e lu ta, compe o repertrio cultural do

    negro , uma estratgia cr iada em sua defesa e estabelec imento de poder entre

    outros negros. No Rio de Jane iro , aps a abolio, um enorme cont ingente de

    ex-escravos tambm vagueava pelas ruas, resid indo nos morros e na s

    42 FILHO, Walter Fraga. Op. cit., p. 232. 43 DIAS, Adriana Albert. Mandinga, manha & malcia; uma histria sobre os capoeiras na capital da Bahia (1910-1925). Salvador: EDUFBA, 2006. p. 70. 44 Ibid., p. 26. 45Ibid., p. 17

  • 28

    periferias, circu lando normalmente nos locais de maior movimento da cidade

    [ . .. ], mal conseguiam um trabalho que lhes garant isse a sobrevivncia. 46

    Entregues prpria sorte, por conta de um passado que no

    esco lheram, envolviam-se em assa ltos, cr imes e emboscadas. Por isso,

    vad iavam pe la cidade dividindo-se e o rganizando-se em grupos, os negros

    caminhavam cada vez mais para a marginalidade. Surgem as famosas maltas

    de capoeira. 47 Em relao a essas maltas, Edson Carneiro afirma o segu inte:

    As maltas da Bahia foram desorganizadas por ocasio da guerra do Paraguai: o governo da provncia recrutou fora os capoeiras , que fez seguir para o Sul como voluntrios da Ptria. Manuel Querino conta que muitos de les s e dist inguia m por atos de bravura no campo de batalha. 48

    Ao reconst ituir um percurso hist rico da capoeiragem, Lbano

    Soares destaca que, antes de ser descoberta pelos historiadores, h poucas dcadas, a capoeira j t inha vivido suas aventuras nas pginas da l i teratura, dos cronistas , dos memoriali s tas do passado imperial do Rio de Janeiro. E antes mesmo destes e de forma muito mais freqente -, num passado remoto, a capoei ra s era testemunhada pelos escrives de Polcia. 49

    Alus io de Azevedo, em O cortio , (1890) e Manoel Antnio de

    Almeida, em Memrias de um sargento de milcias , (1854) registram nas

    pginas desses romances episdios envo lvendo personagens capoeir istas, os

    quais contr ibuem para entender a dinmica socia l do Rio de Janeiro, no sculo

    XIX, perodo que marca a passagem da o rdem imperial para a o rdem

    repub licana.

    Cont inua Lbano Soares:

    [. . . ] junto com ramei ras, prosti tutas , vagabundos, est ivadores, malandros, bomios, poli ciais , os capoei ras faziam parte da buliosa fauna das ruas da Corte, que assustava as camadas mdias e tambm a elit e dirigente. Persegu idos pelo aparat o

    46 Cf. AREIAS, op. cit., p. 29 47 Id., p. 29. 48 CARNEIRO, Edson. Capoeira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. 2 ed. Cadernos de Folclore. V. 1. 49 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A capoeira escrava e outras tradies no Rio de Janeiro. (1808-1850). 2 ed. Campinas, So Paulo: Unicamp, 2004. p. 35-36.

  • 29

    policial os capoei ras foram p resena freqente nas pginas do crime do sculo XIX. 50

    Concomitante aos ep isdios da Corte Imperial no Rio de Janeiro,

    envolvendo indivduos desses segmentos sociais, a Bahia e seu Recncavo

    tambm possuem os seus vadios, valentes, desordeiros ou ainda

    pobres e vic iosos. Segundo Josiva ldo Olive ira, na cidade de Salvador das

    primeiras dcadas republicanas a capoeiragem assim era vista : Configurou-se de forma aproximada ao Par republicano. Os capoeiras eram associados vagabundagem e a outros t ipos sociais do universo das ruas, a exemplo do capanga pol t i co e do soldado de polcia, mas t ambm ao trabalhador nas principais ocupaes das camadas populares: pedrei ro, carregador, car roceiro, mart imo, peixeiro, etc. 51

    Para Muniz Sodr, a capoeira implicava, como toda estratgia

    cultu ral dos negros no Brasil, um jogo d e res istncia e acomodao .

    Luta com aparncia de dana, dana que aparenta combate, fantasia de luta, vadiao, mandinga, a capoeira sobreviveu por ser um jogo cultural . Um jogo de destreza e malcia em que se finge lutar, e finge-se t o bem que o concei to de verdade da luta se dissolve aos olhos do espectador e ai del e do adversrio desavisado. 52

    Sodr traz uma descrio p rimorosa dessa arte :

    Vadiao e brincadeira so outros nomes com que os negros designavam na Bahia o jogo da capoeira. Capoeir a se luta, joga, brinca, algo que se faz entre amigos ou companheiros. Como? Primei ro, forma-se uma roda composta por um ou mais tocadores de berimbau (a rco retesado por um fio de ao, percutido por uma vareta e ao qual s e prende uma cabaa capaz de funcionar como caixa de ressonncia), pandeiros, caxixis ou reco-recos. Em seguida, dois homens entram no c rculo, abaixando-se na frente dos msicos, ao som dos instrumentos e de canes (chulas) espec fi cas. 53

    50 SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A negregada instituio. Os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999. p. 3. Segundo o autor, os feitos dos capoeiras no Rio de Janeiro capital da Repblica Bahia e seu Recncavo vinham desde o perodo monrquico, o que validava a sua coibio. Por conta disso, o Cdigo Penal de 1890 passa a ser o principal recurso de punio para esse tipo de luta. 51 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit.; p. 33. 52 SODR, Muniz. Capoeira, um jogo de corpo. op. cit.; p. 155. Grifos do autor. 53 Id. p. 153. Grifos do autor.

  • 30

    Ento, mobilizam-se totalmente os corpos dos jogadores. Mos, ps, joelhos, braos, calcanhares, cotovelos, dedos, cabeas combinam-se dinamicamente em esquivas e golpes, de nomes variados: a, rasteira, meia -lua, meia -lua de compasso, martelo, rabo-de-ar raia, beno, chapa-de-p, chibata, t esoura e muitos outros. 54

    Em sua cartografia da capoeiragem baiana, Josivaldo Oliveira

    mapeia os princ ipais loca is de conflitos dos capoeiristas, ruas, logradouros, e

    a moradia de muitos dos indivduos ident ificados como capoeiras. 55 As e lites

    so teropolitanas consideravam esses locais espaos suscet veis

    crimina lidade.

    O cotid iano da rua na Cidade do Salvador, inclusive nas obscuras

    e embriagadas noites, urgia ateno especial por parte das autoridades e os

    edito ria is dos principa is jorna is da poca cobravam das auto ridades polic iais

    melhor segurana e ordenao pblica. 56 Contudo, a despeito da forte

    represso, os capoeir istas mant iveram clandest inamente o jogo, praticando -o

    nos quinta is, nas praias, nos terre iros e nos arredores da cidade, ao tempo em

    que transmit iam seus ensinamentos s geraes fu turas. 57

    A ginga e malcia da capoeira estavam nas ruas, fert ilizando a

    imaginao de segmentos sociais e lit izados, amedrontados com as possveis

    agresses, endossando a mxima de que o capoeir ista malandro, um

    detentor de artimanhas, aprimoradas a cada luta e, princ ipalmente, na roda da

    capoeira.

    Nesse contexto histrico, comea a saga de Besouro Mangang, cuja

    fama alcanada ass im compreend ida por Pedro Abib: No imaginrio da capoeiragem e dos capoei ras no exi s t e figura mais representativa do que Besouro Mangang. [. . . ] na memria dos mais antigos moradores do Recncavo, a figura de Besouro, vive e protagoniza um sem-nmero de histrias e causos envolvendo suas peripcias e astcias no enfrentamento com a pol cia, sua valentia ao brigar e bater em vrios oponentes ao mesmo tempo [. . . ] . 58

    54 Id. p. 153-154. 55 Id. p. 41. O autor destaca a importncia das crnicas e da literatura urbana para os estudos africanistas e a etnografia, vigorando at os anos 1930, por contriburem com a reconstituio do cotidiano dos capoeiras baianos que viveram em Salvador nas primeiras dcadas do sculo XX. Cf. OLIVEIRA, Josivaldo. p. 39-40. 56 Id. p. 45. 57 Cf. AREIAS, p. 61. 58 ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP. Unicamp/ CMU; Salvador: EDUFBA, 2005. p. 160.

  • 31

    Ao sair de casa com 13 anos de idade, Besouro vai para a sede do

    distr ito em que morava, Santo Amaro da Purif icao, vindo a res idir no ba irro

    do Trapiche de Baixo , zona suburbana da cidade que passa a ser a sua escola.

    Aprende a jogar capoeira com o tio Alpio e trabalha em diversos o fc ios:

    vaqueiro, amansador de burros, save irista, num tempo de conflito entre

    maltas, disputas a nava lha, capangas ele itorais e represso do Estado

    repub licano ao jogo da capoeira.

    nesse perodo conturbado do pas, em espec ial a Bahia e o seu

    Rec ncavo, cu ja at ividade econmica, em seus modos e relao de produo,

    no abriu mo da fo ra de trabalho dos negros, mesmo com a abolio da

    escravatura, que passam a compor predominantemente os segmentos populares

    que Besouro ganha evidncia com seus feitos que desafiam a ordem vigente.

    Naquele universo da capoeiragem baiana, muitos capoeiristas se

    tornaram notveis. Contudo, Besouro Cordo de Ouro lidera o perodo, com

    maestria, sncopa, qualif icada por Muniz Sodr como um espao a ser

    preenchido com o corpo 59 e, nesse caso, o corpo do negro : em movimentos

    r tmicos, envolvido pela msica e a ginga da capoeir a, quase um bailado que

    hipno tiza o adversr io. Edson Carne iro o destaca : o mais famoso dos

    capoeiras nacionais era natura l de Santo Amaro, na zona canavieira, e tinha o

    apelido de Besouro Venenoso. Era invencvel e inigualvel. Ainda agora as

    chu las de capoeira cantam as suas proezas lendr ias. 60

    Besouro Mangang ensinou a outros o que aprendeu com o seu

    velho mestre, a inda garoto . Nesse ap rendizado comea a conhecer o corpo

    como elemento agregador para fortalecer a arte da ento capoeira escrava, 61

    um instrumento para defesa e ataque, uma das estratgias dos escravos para 59 SODR, Muniz, Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 11. De acordo com Walnice Nogueira Galvo, a sncopa uma espcie de padro rtmico em que um som articulado na parte fraca do tempo ou compasso, prolongando-se pela parte forte seguinte. Um corpo sincopado valoriza mais intensa e expressivamente o tempo fraco da msica. E isso se reflete de diversas maneiras. Porque rompendo com a hegemonia do tempo forte, esse corpo se fraseia de um outro jeito: como se ele tomasse a liberdade de brincar se expressando. Conectado com o esprito da msica esse corpo tanto ginga por dentro como por fora; saracoteia, deixa-se tomar por trejeitos, por negaas, remelexos, balanos, meneios, volteios, sungues.... A sncopa se traduz no corpo e o corpo traduziria o ritmo caso ele fosse dessincompado. como se no tempo fraco o corpo pudesse exprimir certas sutilezas para as quais o tempo forte no dispe de durao suficiente. Pois o tempo forte nos prende ao cho enquanto o fraco nos liberta dele: o tempo forte peso, o tempo fraco leveza. Cf. GALVO, Walnice Nogueira. Grandeza e encanto de Naturalmente, de Antnio Nbrega. Disponvel em http://www.conectedance.com.br/matria.php?id=9 60 CARNEIRO, Edson. op. cit., loc., cit. 61 Denominao usada por Carlos Lbano Soares para a capoeira jogada no sculo XIX. In: A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2004.

  • 32

    lidar com a brutalidade do poder escravista. Segundo Almir das Areias, a

    capoeira surge no Brasil como arma, em funo da necessidade do escravo de

    se defender dos maltratos e cast igos dos seus opressores e, ao mesmo tempo,

    como folguedo, para expresso e manifestao dos seus sent imentos. 62

    Assim, a capoeira era uma prtica necessria a um segmento da

    populao afro -baiana, cada vez mais oprimida e marginalizada. s

    escondidas, os capoeiras, nos qu intais, nas pra ias, nos terreiros e nos

    arredores da c idade, exerc itavam a sua prtica e transmit iam os seus

    ensinamentos s geraes futuras. 63 Nessa p rtica, tem-se um jogo de corpo

    que marca um movimento de res istncia, o scilando entre a revolta e o embate

    direto s foras da ordem.

    Besouro Cordo de Ouro, um her i da cultura afro -brasileira

    Ona preta foi l em casa/ t um tum tu m bateu na porta/ M e chamou pra conver sar/ Tem u m n ego que u m touro/ Viaj ando para c/Usa cord o d e ouro/ Cal a chapu e abadar/ Usa brinco e patu/ Ona pret a foi l em casa/ Zu m zu m zum boat o corr e/ Besouro Mangang64 Zum, zu m, zu m, Besouro M an gang Batendo nos soldad os da pol cia mil i tar Zum, zu m, zu m, Besouro M an gang Quem no pode com mandinga no carr ega patu65.

    Quem o heri Besouro? Que narrat iva protagoniza? Em sua

    trajetria, no abraou uma nobre misso, como os heris das epopias

    clss icas: r epresentar grand iosamente a sua ptria ou nao ou a humanidade.

    Besouro va i compor a galer ia de ou tra tradio, a do her i popu lar, erguido na

    contramo dos valo res de uma cultura hegemnica. Por esse entendimento,

    so tidos como ant i-heris, marginais ou picarescos.

    No Ocidente, as narrat ivas sobre os feitos extraordinr ios dos

    heris comeam na Grcia, as quais registram histrias de personagens que

    62 AREIAS, Almir. O que capoeira. 1 ed. Brasiliense, So Paulo: 1983, p. 22 63 Id. p.60-61. 64 Cantiga de capoeira identificada por Areias, de autoria de Dado. In. O que capoeira. p. 55. 65 Cantiga de domnio pblico.

  • 33

    enfrentaram situaes desafiadoras de sua condio humana. O heri dessas

    narrat ivas jovem, corajoso e destemido, que vivencia incrveis faanhas.

    Assim os her is so figuras imorta lizadas como semideuses, p ersonagens de

    narrat ivas mt icas povoando o imaginrio dos ind ivduos em diferentes

    cultu ras. De acordo com Massaud Moiss, at o sculo XVIII, [ . . . ] grosso modo a pica caracteri zou-se por um tom majestoso e mesmo religioso, e por conter as sublimes faanhas dum heri que simbolizava as grandezas de sua pt ri a e mesmo de toda a Humanidade: num mundo estrat i fi cado, havia lugar certo para o heri . Com o advento do Romantismo e a conseqente derrubada das carcomidas e tradicionai s estruturas, desaparece o heri e nasce o no-heri ou o anti -heri , pois no mundo novo deixou de haver espao para as concepes mti cas segundo o antigo figurino. 66

    O heri das narrat ivas ocidentais uma espc ie de super -homem,

    um semi-deus, da a ambigidade, o que mantm sua co nd io humana. Nas

    epopias gregas, o heri ap resenta uma faceta blica, protagonizando uma

    histria de conflitos, que tem o seguinte enredo : a preparao (apresentao

    do heri e descrio das armas); o combate (peripcias, espectadores,

    proezas); o desenlace vito rioso (despojos, injria aos cadveres inimigos,

    jogos fnebres). 67

    Besouro, heri de extrao popular, protagonista da epopia

    dolorosa dos negros no Brasil, tornando-se um personagem da histria que va i

    alimentar, ainda hoje, muitas narrativas sobre suas aventuras. O capoeirista

    rasura a noo de heri como a elaborada por uma conceituao tradicional do

    gnero pico, vindo simbolizar a rebeldia dos negros, como resposta ao

    sistema escravocrata no pas.

    O enfrentamento dos negros escravizados ao s istema dominante

    sempre foi vigiado, controlado, objeto de punies severas, se ja atravs de

    cd igos criados pelos senhores escravistas, seja atravs de leis elaboradas

    pelo campo ju rdico, que inc lusive d respaldo queles cdigos. Em seu

    estudo acerca do papel dos negros na desagregao da ordem escravista no

    66 MASSAUD, Moiss. A criao literria. 4 ed. So Paulo: Melhoramentos, 1971, p. 70. 67 Cf. E-Dicionrio de Termos Literrios. http://www2.fcsh.unl.pt/edtl//verbetes/H/heroi.htm. Acesso em 01/05/2010.

  • 34

    Brasil, a historiadora Lane Lage Lima ana lisa a aliana entre a campanha

    abo licionista e a rebeldia negra. 68

    Para a auto ra, a insurreio const itui a resposta do escravo

    violncia do s istema de dominao imposto pelo branco. Vio lnc ia traduzida

    por precrias condies de subsistnc ia, aliadas compulso a um trabalho

    extenuante e a lienador, atravs de mecanismos de coero particularmente

    violentos e legitimados, legal e ideologicamente, na consc inc ia do senhor. 69

    A autora constata os limites dessa rebeldia, como suas

    possib ilidades. Limitada, porque no se abrem para o escravo perspectivas

    de atuao poltica dentro do sistema, que condena o negro rebelde

    marginalidade e vio lncia sem expresso social, como se apresentam

    dificuldades mater iais de mobilizao de uma classe constantemente

    vigiada e, sobretudo, impossib ilidade de o escravo at ingir uma

    consc ient izao mais ampla de s i mesmo e do sistema que o oprime. 70

    Porm, dois fatores vo possibil i tar ao negro ultrapassar os l imites dessa rebeldia fechada em si mesma. Em primeir o lugar, a preservao da rel igio e cultura a fr icanas; na medida em que no s aglutinam e organizam os negros pela reproduo de hierarquias transplantadas da frica, mas, principalmente, permitem-lhes autoconceberem-se como pessoas, dotadas de individualidade prpria , fora do sis t ema escravista, que passa a s er vis to, de forma globalizante, como um todo cultural que lhe hosti l . E , em segundo lugar, o aproveitamento das conturbaes sociais surgidas nos momentos de crise do s is tema, quando os negros canalizam sua revolta para os movimentos revolucionrios que agitam esses perodos, como forma,

    68 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra & abolicionismo. Rio de Janeiro: s/d. A pesquisadora elenca os movimentos de insurreio no pas, principalmente os ocorridos no sculo XIX, momento em que o sistema escravocrata apresenta sinais de crise, isto , quando o trabalho escravo inviabiliza a expanso do capitalismo. A autora destaca a rebeldia do negro em movimentos de cunho poltico, como a Conspirao dos Alfaiates, na Bahia, em 1798, a Cabanagem, no Par, a Balaiada, no Maranho, a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, a Sabinada, na Bahia, no sculo XIX, e de cunho religioso, como as insurreies dos Mals, na Bahia, tambm no sculo XIX. 69 Idem, p. 153. 70 Id. p. 154. Segundo a autora, esses limites, por sua vez, so determinados pela estrutura de produo brasileira, que, ao integrar a produo para mercado de subsistncia, alia num s ncleo o lar e a empresa, permeando com relaes pessoais as relaes de produo. De acordo com Lana Lima, nas relaes pessoais, senhor e escravo, de base patriarcal, no mbito da esfera privada, o negro se percebe em sua condio humana, enquanto pelas relaes econmicas, patro e empregado, colocado como instrumento de produo, portanto, coisificado, o que conduz o escravo a auto-representar-se como no pessoa, destitudo de vontade prpria, posto que submetido ao arbtrio do senhor. Isso limita no escravo a capacidade de identificar o sentido real das relaes de produo do sistema escravista, percebido apenas do ngulo particular, vivenciado no cotidiano da fazenda. Assim, a atuao divergente do negro restringe-se revolta parcial e imediatista contra as situaes de opresso que povoam o seu dia-a-dia. Cf. LIMA, loc. cit.

  • 35

    consciente ou no, de ampliar suas possibil idades de expresso social . 71

    A preservao da religio e cu ltu ra africanas possib ilita aos negros

    uma integrao entre s i. A p rtica da religio do candombl, trazido ao Brasil

    pelos sacerdotes afr icanos escravizados, assegura a permanncia do idioma e

    da cultura dos negros. No candombl, so cultuados os deuses orixs,

    voduns, inqu ices , preservados em rituais sagrados, com vestimentas

    prprias, danas, cnt icos, o ferendas, homenagens, integrando -se vida

    cotid iana, a despeito da proib io estabelecida pela Igreja Cat lica ou

    governantes. 72

    Para Lana Lima, no sculo XIX que a ampliao das

    possib ilidades de expresso social dos negros alcana seu limite mximo, com

    o movimento abo lic ionis ta, que absorve, funcionando como agente

    catalizador, uma rebeldia sempre manifesta, com a promessa de um mundo

    diferente da marginalidade em que viviam.

    Mas, ao alia r-se rebeldia negra, uti l izando-a para pressionar e desgastar o s is t ema [escravocrata], o abolicionismo impe-l he seus prprios l imites , enquanto ideologia nascida de int eresses espec fi cos, que depois da abolio o negro percebe no coincidirem exatamente com os seus. Trans formadas as relaes de produo, no se modi fi ca o lugar ocupado pelo negro no processo produtivo, e desfeitas as al i anas, seu comportament o divergente vai s er novamente relegado a mera questo policial . 73

    Nasc ido no contexto de ps-abolio, tempo de alianas desfe itas,

    portanto, o capoeir ista Besouro const itui-se, enquanto su jeito, num ambiente

    quilombola, de negros rebeldes dominao, preservando a religio do

    candombl, que se expande com a abolio da escravatura, bem como a

    cultu ra africana. Ainda menino, conhece o mestre Alp io, que lhe transmite,

    na prtica, os ensinamentos da capoeira, uma arte, um fazer que se aprimora

    incorporando a religiosidade de religare, ou seja, l igar de novo , de

    integrao ao mundo de seus ancestrais . Para tanto, crenas e va lores da

    71 Id. p. 154-155. 72 Informaes disponveis em: http://www.turismoreligioso.org.br/system=news&action=read&id=88. 73 Id. p. 155.

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    religio do candombl vo const itu ir o ethos dos capoeiristas, com rituais

    prprios e princpios t icos.

    Os capoeiras no presc indiam de suas crenas, da proteo e

    orientao de seus orixs, do atendimento a suas qu izilas, pois aprenderam,

    com o so frimento, os limites da co ndio humana. O capoeirista Besouro,

    protegido de Ogum, deve atender as suas quizilas como no passar po r

    baixo de cerca de arame farpado , no ter relaes sexuais em dia de jogo ,

    respeitar as proibies de seu santo e cumprir suas obrigaes (o brigaes

    dizem respeito s cer imnias internas, a serem cumpridas pelo iniciado,

    preparadas para o seu orix) . Caso contrr io, so frer punies. 74

    Assim, Besouro encontra foras e alt ivez para quest ionar uma

    estrutura socia l perversa, jogando capoeira, lu tando , zombando, como um

    heri pcaro, do mundo da ordem senhoria l, const itudo de mentalidade

    escravocrata, mesmo com a Abolio. Em sua rebeldia, valent ia e ginga

    aprimorada, ele vai se to rnando conhecido e reconhecido, principalmente no

    universo da capoeira.

    Segu ndo Abib, no imaginr io da capoeiragem e dos capoeiras no

    existe f igura mais expressiva e representat iva do que Besouro Mangang. 75

    Ainda com o autor, a fama e a admirao nu tridas pela memria co let iva

    sobre as faanhas e p roezas de mitos como Besouro Mangang, de certa

    forma, explicam a insistnc ia de alguns mestres em marcar sua ligao com

    esses mito s, a exemplo de Cobrinha Verde, que diz ter comeado a capoeira

    com Besouro aos quatro anos de idade.

    Segu ndo Cobrinha, Besouro ensinava capoeira aos alunos

    escondido da polcia, porque a polcia persegu ia muito . No dia que estava

    aperriado quando a polcia vinha para acabar, e le se revoltava, mandava os

    alunos fugirem e dava testa a po lcia sozinho. 76 Ainda, quando Besouro

    74 Quizilas so proibies rituais, referentes a alimentao, mas no se restringem a ela; dizem respeito tambm a aes cotidianas. A desobedincia quizila de um santo provocar sanes. Cada um deles tem suas preferncias e repulsas e desobedec-las significa tornar-se suscetvel a sanes. So as chamadas quizilas de santo, que tudo aquilo que o orix rejeita, causando uma reao negativa que atinge as pessoas. De acordo com o antroplogo Vilson Caetano, toda iniciao ao candombl passa por tabus alimentares. As quizilas so proibies rituais que tm uma nica funo: lembrar ao iniciado a sua relao com aquele ancestral. Seguir essas restries uma forma de reforar a identidade com o seu orix, explica o antroplogo. Disponvel em http://www.iroin.org.br/onl/clip.php?sec=clip&id=326. Acesso em 22/05/2010. 75 ABIB, Pedro. Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. p. 160. 76ABIB. op.cit. p. 163. apud SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991.

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    ensinava aos seus discpulos e via que o aluno estava preparado, testava o

    aprendiz, fechando-se em uma sala com o d iscpulo, para o qual diz ia : vamos

    trocar facas com uma toalha amarrada na c intura dos dois, p ra um no fugir

    do outro .77

    Tambm o mestre Joo Pequeno de Past inha afirma que, desde

    menino, queria aprender capoeira para ser valento como Besouro. 78 Esse

    capoeirista endossa uma viso mit ificada de Mangang, dotado de poderes

    sobrenaturais, ao afirmar que seu pai, primo do capoeirista santoamarense

    Cordo de Ouro, lhe contava histrias sobre ele, que tinha o poder de se

    esconder de algum, to rnar- se invisve l, em qualquer lugar, a a lgumas

    pessoas.

    Abib menciona que Joo Pequeno diz ia ser o seu pai, assim como

    Besouro, preparado de orao e revest ido do poder de se tornar invisve l:

    Ele andando assim, num caminho e quando avistava uma pessoa que ele no

    queria que visse e le, a pessoa no via mesmo no. 79 Segundo o estudioso, tal

    fenmeno revela muito do ethos dos capoeiras de ant igamente e mesmo

    dos capoeiras de ho je - por mais que se evitem ta is comparaes, quando se

    busca associar a capoeira com valores mais ace itos socia lmente. 80

    Para Josef Campbell, o heri o homem ou mulher que conseguiu

    vencer as suas limitaes histricas pessoais e locais e alcanou formas

    verdadeiramente vlidas, humanas. 81 Nesse sent ido, os fe itos e atr ibutos de

    Besouro Mangang, guardados na memria dos mais velhos e renovados por

    uma tradio oral, vo construir a f igura do heri, assim como o seu apelido,

    Besouro Mangang, que s imboliza a sua histria de luta e res istncia. Jos

    Raimundo Cnd ido apresenta uma explicao para essa a lcun ha:

    Quanto ao apelido Besouro Mangang, conta -se que surgi u quando, aps arrumar mais uma encrenca com a polcia, desapareceu misteriosamente. Atordoado, um policial perguntou para um dos que assis t iram cena: Voc viu pr onde foi aquele negro? Vi, sim senhor. Ele virou besouro e

    77 Cf. SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991. apud ABIB. op. cit. p. 163. 78 .Id. p. 163-164. 79 Id. p. 164. 80 Id. p. 164-165. 81 CAMPBELL, Josef. O heri de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. 11 reimp. da 1 ed. de 1989. So Paulo: Pensamento, 2007. p. 28.

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    saiu voando. Mangang um tipo de besouro cuja picada muito perigosa e s vezes fatal . 82

    As tess ituras que compem a biografia de Besouro, da o rigem do

    seu epteto s suas faanhas, constituem-se por uma aliana entre real e

    imaginr io num texto f icciona l, num processo de seleo e combinao

    dos elementos textua is, reais e imaginrios. No processo de heroic izao

    destacam-se os feitos de Besouro Mangang, com suas fugas espetacu lares,

    sem deixar vestgios. Adr