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Q cinema e, antes de mais nada, ·W uma arte, um espetaculo artistico. E tambem uma linguage".l! estetica, poetica ou musical - com uma sin- taxe e um estilo; e uma escrita figu- rativa, e ainda uma leitura, um meio de comunicar pensamentos, veicular ideias e exprimir sentimentos. Uma forma de expressao tao ampla quan- to as outras linguagens (literatura, teatro, etc.), bastante elaborada e es- pecifica. Fazer um filme e organizar uma serie de elementos espetacula- res a fim de proporcionar uma vis~o estetica, objetiva, subjetiva ou poe- tica do mundo. Com coisas, e nao com palavras, numa linguagem que cabe a nos· decifrar, 0 cineasta oferece-nos uma visao pessoal, inso- lita e magica do mundo. Um PJlrfeito dominio da linguagem cinematogra- fica e necessario - forma e conteu- do estao intimamente ligados -, mas nao e 0 suficiente para realizar uma obra de arte. OPUS 86 IIIIIIIIIIIIIIIIIIII Martins Fontes

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Q cinema e, antes de mais nada,·W uma arte, um espetaculo artistico.

E tambem uma linguage".l! estetica,poetica ou musical - com uma sin-taxe e um estilo; e uma escrita figu-rativa, e ainda uma leitura, um meiode comunicar pensamentos, veicularideias e exprimir sentimentos. Umaforma de expressao tao ampla quan-to as outras linguagens (literatura,teatro, etc.), bastante elaborada e es-pecifica. Fazer um filme e organizaruma serie de elementos espetacula-res a fim de proporcionar uma vis~oestetica, objetiva, subjetiva ou poe-tica do mundo. Com coisas, e naocom palavras, numa linguagem quecabe a nos· decifrar, 0 cineastaoferece-nos uma visao pessoal, inso-lita e magica do mundo. Um PJlrfeitodominio da linguagem cinematogra-fica e necessario - forma e conteu-do estao intimamente ligados -, masnao e 0 suficiente para realizar umaobra de arte.

OPUS 86

I I I I I I I I I I I I I I I I I I I I

Martins Fontes

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Tiwfo do original:ESTI-IETIQUE DU CiNEMAPublicado pOl': Presses Univcrsiraircs de France, col. Que sais-je?© Presses Universitaires de FrzlIlce, 1983

l.G edir;fio brasileira: outuhro de 1987

TrodU/;(7o: Marina AppenzellerRevisiia: Alexandre Soares Carneiro

prodll~'aogrdjim: Geraldo AlvesComposiriio: Anel - Artes GraficasAne-final: Maadr K. MatsusakiCapa: Alexandre Martins Fontes

Todos os direilos para a lingua porluguesa reserl'ados ilLlVRAI~IA MARTINS "ONTES EDITORA LTDA.Rua Conselheirp Ramalho, 330/34001325 - Sao Paulo - SP - !3['asil

indice

[nlrodur;;ao.

CAPITULO I- As atitudes estCticas. Diferentes modosde representao:;iio da palavra ou do pensamento . 3

I. I'reparn<;ao rigorosa ou improvisa<;ao, :3II. 0 reali_,mo cinenmtogniflco, Z;

III 0-, icbllismos, 1.3

CAPITULO ll- as signos de uma escrita. as elemcntosde uma linguagem 17

. I. 0 tempo, J7Il, 0 espn<;o. 28

Ill. A paluna e 0 50m, 37IV. Oulros elementos (espcdfkos C !laO especificos) cia lingllagem

cinGm~togdfica. 51

CAPITULO III - 0 estilo ciae~crita: a~montagcm viwale a montageOl sonora, A organizao:;aodo real.

I. A "lOiltugem rftmica, 71II. A tl1()!ltagclll intetedllai 0\1 icieologicn, 74

III A lllontagem narrativa, 78

71

CAPiTULO IV - Do pensaOlento do HutOI' ii imaginao:;:iocriadorn do c~pcl.:tador 83

CAPITULO V- Tealm e cinCtnll. Litemtura e cincma .I. -I'c"lmed"o"ltl. 107

11. I.iterai""" e cinen,,", 115

)07

f3i!J[iogra!ia sumdda 121

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"\IntroduQiio

Realizar urn mille e pintar um qlladro e comporUUla sinfoQia.

Andre Delvaux

A magid€SSenciai exercida pelo cinema provemdo fato de 0 dudo real tomar-Sf: () pr6prioelernenlo de sua fab\lla~a(),

Chrislinn Metz

o cinema e,antes de mais nada, uma arte, urn espehiculoartlstico. E tambem uma linguagem esteticll, poetica au mu-sical-com uma sintaxe e um estilo, e umaescrita figurativa,e ainda uma ieitura, urn mein de comunicar pensamentos,veicular ideias e exprimir sentimentos. Vma foi-rna de ex-pres sao tao ampla quanta as outras linguagens (iiteratura,teatro, etc.), bastante elaborada e especifica. Fazer urn fUmee organizar uma serie de elementos espetaculares a Hm deproporcionar nma visao estetica, objetiva, subjetiva all poe-tica do mundo. Com coisas., e m'io com palqvras, numa lin-guagem que cabe a nos decifrar, 0 cineasta oferece~nos I1mavisao pessoal, ins6lita e magica do mundo. Urn perfeito do-mfnio ela linguagem cinematografica e necessario - formae conteudo estao intimamente ligado$ -, mas mlo e 0 sufi-•ciente para realizar uma obra de arte. A existencia artisticae a alma de uma obra-prima parecern decorrer da habili-dade, mas tambem e sobretudo da arte de escolher imagensem fUD<;:aode s:ua significa9ao e de sell valor rftmico Ao ladodas fonnas tradicionais que permanecem e que provavel-mente serao sernpre u tilizadas, a linguagem cinematognificaevoluiu bastante. Pois e evidente que a escrita varia confor-me tentamos '\lustrar'· ou nanar, ou, ao contnirio, exprimir;sugerir, e nan impor; apresentar um mundo que se organizaem nanativa, mais do que representa-lo.

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Capitulo I

As atitudes esteticas.Diferentes modos de represental.;iioda palnvra ou do pensamento

I - Preparw;ao rigorosa ou improvisa~ao

Con forme a concepo:;ao do diretor a respeito de seu millee cia cria<;ao cinematografica, a decupagem - ultima etapaiiteraria cia preparaQao do filme - pode ser extremamenteprecisa e detalhada ("decupagern de ferro"; todos as filmesde Fritz Lang, porexemp]o, passaram porum iongo trabalhopreparatorio) OU, ao contnirio, bastante £lexfvel, deixandouma grande margem para a improvisaQao e, portanto, paraas eventuais possibilidades de modificao:;ao durante a fllma-gem. Andre Cayette escreve a prop6sito de seu filme Ver-dict: "A partir do momenta em que Cabin e Sophia Lorenconcordaram em trabalhar comigo, 3I?iainei 0 roteiro e dei-xei propositaimente espaQos vazios para que eles pudessempreenche-los. Nao 5e aprisiona artistas de sua categoria emurn molde fixo. Com sua legenda e sell pas.sado, e precisodeixar-lhes 0 campo livre, dar-Ihes a possibilidade de deixa-rem brilhar sua personalidade." E acrescenta:

Confesso que ambos rne ,urpreenderarn. Sofia, em quell1 a rnu-ther est.! no mesmo nivel cia atriz, com seu fa'iciniO,.seu brilho,Gabin - qlle tinha vOl1tadede dirigir desde 1939, quando e,crevipara e Ie a adapta<:;'lOde Rlfmorqllfi,~- com sua ()bse,sao pela perlei-<:;ao_Muito se Edol! sobre sell lemperamento dilYcil. De [ato, era

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4 Estetica do cinCTfl(l

llill iilquieto que _Ie qLlcria completamcnte proflssional, mas queconscrvara 0 medo de lim iniciante na hora de reprcscntar suasccnas. Como dllas feras na arcnil, des mediram-sc, admiraram-sc,in!imidaram-<;c e lIltrapas.laram-se, I

Jeanine Meerapfel declara por sua vez:

"'leu filme (Ma/ou! ficou cinco arlOS na rninha cabcQa_ QucriaIngrid Caven para 0 papel principal da mile (. .. ). Ela leve conhan<;aem mim. Falamos durante Ires moses ante, do inicio cia> filmagens,e nao precisei lhe uizer mais nada dopois que come~amos a radar_Gmsha Hubert, que faz sua Rlha Hannah. exige ,cr trabalhadaate a hora de radar, tres hora.I a no, ela tern neccssidade de por,uas emo~6cs para fora, como <;e,aissem do fundo ela terra, Ingride bem mais atriz. Evitando 0 sentimentalismo cheap, sabe e.\ata-mente 0 tipo de emo~,ao que quer lIlostrar. e 0 que deve eonterFaz isso de moJo magico ( .).

E prossegue:

Estudei cinema com Alexander Kluge, em Ulrn. Aprendi a meinteressar por tudo 0 que diz respeito a um filme, 0 som, a luz.Posso eu mesma filmar com a camera na mao. Mas tenho horrordo autoritarismo no meu trabalho de filmagem. It preciso deixaro maximo de liberdade para a narrativa e para os atores, e COTJtara historia com corte, e rupturas, de modo que 0 espectador µossacontar-se a ,i pniprio. ,e ele () (wiser.!

Aimprovisac;ao depende do genera do flime, da estruturado tema tratado, daconcep9ao do diretor e da personalidadedo ator que, as vezes, procede como criador, podendo entaoser considerado um verdadeiro autor. Nao podemos deixarde aprovar as ideias daqueles diretores que veem 0 roteirocomo um material vivo, uma argila rnaleavel que carrega limfilme ern potencial, mas da qual se pode fazer nascer alga

1 M",.~ t .ambel'l ("I'"'l\l~I" [I'Cll(;D(;rvi"" "l. "{(de 7jour,·. 1"de .ilmh" dC' 1')(;1.-.p. ",2. Le ,\/"""11. 28 de ",a;o ,k 1981. p. 22.

'.•As atitudes esteticas 5

alem (e as vezes, infelizmente, aquem) do que estava men-cionado no pape!. E que as imagens sao apenas pretextosque nao devem nos aprisionar. Observemos tambem que,no cinema - assim como no teatro (na commedia dell' arte,nas pe9as de Copeau, Evreinov, Reinhards, Fabbri, Vitaly,bem como nas de Antonin Artaud) -,0 ator so pade desco-brir os caminhos de sua verdadeira liberdade quando se tor"na um "atleta afetivo", que consegue unir ao talento excep-cional e inato de ator 0 damfnio total de seu fisico, de seusimpulsos, de suas paix6es, em nome do rigor de sell traba-lho. Em resumo, a improvisaC;:lo"criadora" deve ser cuida-dosamente preparada. Improvisar e exprimir talento e des-tilar esfon;:as.

II - 0 realismo cinematografico

Para a sensa comum, a perCeP9aOidentifica-se ao objeto.Amelhor prava da existencia dos ohjetos nao eve-los, senti-los, toea-los? No infcio de Matiere et M6noire3, Bergson des-creve essa atitude da seguinte maneira: "Chamo de materiao conjunto das imagens." Para os filosofos ciaantigiiidade -as "ffsicos" -, 0 peso, a cor, 0 calor, etc., existiam comotais e pertenciam as proprias coisas. No entanto, ha vintee tres seculos, Democrito sustentava que todo conheci-mento vinha das sensa90es, mas podia elevar-se acima delasatraves da razao 0 precursor da teoria at6mica escrevia: "0doce e 0 amargo, 0 frio e 0 quente, as cores, tudo isso existeapenas em nosso jufzo e n50 na realidade. 0 que existe saopartfcuias imutaveis, os Momos e seu nlOvimento 110 espac;ovazio "

Foi preciso aguardar Illuito tempo, somente com P!ataoe que se com€o:,:aa indagar a respeito da natureza de nosso

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6 Estetica do cinema

conhecimento do muncio exterior. Para 0 grande fil6sofogrego, as idejas do espirito existem em si mesmas num"muncio inteligivel", do qual 0 muncio sensivel e apenas urnreflexo imperfeito; dande a quase impossibilidade de connarnos 6rgaos dos sentidos para conhecer () mundo exterior.No entanto, voltar-se-a rapiclamente ao realismo dos obje-tos, do mundo sensivel, e Arist6teles critica seu mestre des-sa forma: "mesma que Dunea tiv8ssemos vista as astras, eleshaa deixariam de ser subst<lncias eternas, distintas cias queconhecemos". A Escoiastica medieval retomara 0 ponto devista de Aristoteles, acentuando-o. Com 0 advento cia den-cia experimental, a intui<;ao sensivel e a experiencia estabe-iecer-se·,'io como base de nossos conhecimentos. Todavia,o realismo vulgar esbarra em um grande mimero de ohje-goes, hoje bem evielentes: assim, durante 0 sonho, nao duvi-damos do que vemos, do que escutamos e do que tocamos;no entanto, todas essas sensag6es nao correspondem de for-ma alguma a realidade (e uma realidade "construida"). 0conhecimento que temos dos objetos exteriores parece por-tanto intimamente ligado ,Is modificag6es de nossa conscien-cia. Nao conseguimos ter consciencia direta do mundo quenos cerca sem interpretagao, sem julgamento. A percep<;:aosensivel resulta essencialmente de uma cOTlstrugao do espi-rito. Enriquecido por experiencias anteriores, nosso cere-bra acrescenta aos dados de nossos sentidos um grande no-mero de propriedades. Por outro lado, sabemos que a ffsicadefine os sons, a luz e as cores como energias emitidas soba forma de irradia~:oes de varias freqiiencias. Mas essas no-(,x)es existem apenas em nosso espirito e nao na realidadeexterior. Alem dis so, sabemos que podemos ser facilmenteenganados pelos llOSSOSorgaos dos sentidos (ilusoes de 6bca,ilusoes sanoras, etc.)4. Deduz-se que a realidade e nao ape-

4. Todo, sabem qn~ ",na estrela ainda aparece. ",e,mo quando ja ni'o exi,tema;,. A rigor. V~Il'OS apena, 0 passado e lOilo0 que realmente c: a nebnlosa de

As atitudes esteticas 7

.,

nas complexa em sua infinita variedade, em sua infinita di-versidade, mas que ela e, alem disso, movente, Seria entaopossivel capta-Ia? A esse respeito, varias teorias se confron-taram, e continuam se confrontandoo. As formulag6es insun-cientes dessas doutrinas fazem com que as contradi<;:6es se-jam muitas vezes apenas aparentes. E, em uma como emoutra, parece que tudo foi dito, mas nada compreendido.E claro que lIma parte de nossos conhecimentos vem de nos-sas sensa<;:6es e que, sendo estas variaveis de acordo comos individuos, tais conhecimentos s6 podem ser relativos etransit6rios (relativismo). Alem elisso, estara provado que"num certo nivel de penetrac;ao, 0 real e a materia, mesmopermanecendo de fato conheciveis, ou provavelmente ca-nheciveis, deixam de se assemelhar aquilo que nossos sen-tidos, nossas faculdades de percep<;:ao nos permitem conhe-cer'? A celula deixa de ser a carne amorosa, a constelagaodos eletrons do :Homo deixa de ser a materia, a inscri<;:aoespectrografica eleixa de ser a [UZ, carne, materia e luz dasquais e feita nossa experiencia, nos sa espirituaJidade, nossavida"6. Independentemente das experiencias tecnico-cien-tificas que ampliam nossas faculdades sensoriais ou compen-sam suas deficiencias, resta compreender 0 que esta alemdo realismo, a imagina<;:ao, a intui<;:fioque permite sentir,pressentir, adivin~ar (intuicionismo); mas ainda af a teoriade Husser! mostrou que a representagao intuitiva tem seuslimites. Parece que nao podemos conhecer as coisas de mo-do absoluto, ou seja, "tal como elas sao nelas mesmas", que

OdOll, po~ exemplo. nus inrorllm sobre 0 que era lni mil e quilll;ento., anos, 0Space Tcl"sco]w (telesc6pio posto em Ol'bita no e.'pa\,o) nao permite "retrocede,no tempo". como disse~am alguns. mas "vet'·os primeiros instant"" do Universo.

.). F.xistiria uma realidade independentc. mas acc.%fvel a nos? (Questao queatl'avessa 0 princlpio de niio-separabilidnc1e,) 0 leitor interes.,,,do no problemado reul, sobretud"do ponto de vista mm,mco> pode se reportarao livro de Bernardd'Espagnat .. Illn ,'cchc,'che,JIi rie!, Ed. Gauthier·Villars, 1981.

6. Barthelemy Amengual. Clh µo"r Ied,,{ma. Eel. Seghers. p. 54.

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8 Estetica dQ cinema As atitudes esteticas .9

s6 conhecemos as aparencias, os fen6menos, mas Dunea as"eoisas em si" e que nao podemos conhecer a totalidade decoisa alguma, nem os princfpios primeiros das coisas, da ma-teria, do espirito, do tempo, do espa~o, da [Of9a, etc. Essaideia do m'io-cognosclvel e encontrada, na ciencia, nos prin-cfpios de incerteza e na interpreta9:lo probabilista cia meca-niea ondulat6ria. E evidente que essa impossihilidade decaptar 0 real em sua globalidade e a todo momenta DaQ excluide forma alguma a possibilidade de existirem fora de nosfonnas e verclades 16gico-matem:1ticas que possam seT des-cobertas, e nao inteiramente criadas pelos estudiosos. Ob-servemos que alguns sistemas filos6ficos admitem que areal, para alem de sua diversidade mliltipla, e essencialmen-te uno: urn taolsta, por exemplo, rode evadir-se pela relle-xao, pela contempiac;ao, e clepois relo extase, do muneIo ilu-56rio, atingindo a realidade suprema, 0 Tao, 0 "Caminho",oode todas as contradic;6es aparentes desfazem-se (sfotesedo !lin e do yang, do positivo e do oegativo, do verdadeiroe do falso, etc.). Os cientistas modernos nao teill a pretensaode atingir a realidade prime ira, e, mais "abertos", nao reeu-sam a priori nenhuma abstrac;ao {nao mais ignoram que asduas metades de nosso cerebra desempenham papeis igual-mente importantes, apesar de diferentes e complemeota-res: raciocinamos, percebemos 0 espac;o e as form as, e aomesma tempo exercemos nosso pensamento intuitivo)7. Co-mo escreveu Andre Breton, "a 11IH racionalismo aberto, quee a posiC;aoatual dos estudiosos (como conseqiiencia das con-cept;'oes da geometria nao-eucliciiana, e depois da geometriageneralizada, da mecanica nao-newtoniana, da ffsica nao-maxweliana, etc.), oao poderia deixar de corresponder urnrealismo aberto, ou surrealismo, que provoca a rUlna do edi-

ficio cartesiana-kantiano e subverte totalmente a sensibili-dade".

Por vias diferentes e ate opostas, 0 artista e 0 estudiosoacabam pOl' se reunir numa concepc;ao renovada e ampliadado real, que inclui "tudo 0 que este pode, alA segunda or-dem, conter de irracionaJ"8.

Desde 0 infcio do cinema, buscou-se uma reproduc;ao ca-da vez mais fiel e completa da realidade: cenarios dando umaimagem exata da natureza, com numerosos detalhes da exis-tenciacotidiana, sonorizac;ao e linguagem do diaa dia; poste-rionnente, a cor, 0 releva, a ampliac;ao das dimeosoes datela, 0 uso freqiiente do plano-seqiiencia, da profundidadede campo, 0 respeito a dura~;ao real do aconteciment09. Aimagem fllmica suscita certamente um sentimento de reali-dade no espectador, pois e dotada de todas as aparenciasda realidade. Mas 0 que aparece na tela nao e a realidadesuprema, resultado de inumeros fatores ao mesmo tempoobjetivos e subjetivos, imbricac;ao de at;'oes e interac;6es deordem ao mesmo tempo ffsica (integrac;ao e panlmetros"sensoriais" e, principalmente, do continuum espac;o-tem-po) e pSlquica (com todos os sentimentos e reilexos pessoais),o que aparece e um simples aspecto (relativa e transit6rio)da realidade, de uma realidade estetica que resulta da visaoeminentemente subjetiva e pessoal do realizador. E nohivelque a esse realismo captado pela perCePC;a0- 0 ciavida coti-diana com sua beleza, mas tambem com 0 que ele tern defeio e vulgar - possam se misturarintimamente e de modotao fecundo a magia, 0 sonho, ° fantastico, a poesia. Esse "casamento do realismo com 0 sonha e com a fantastico pode /

7 A btcraliza<",io das fllll~'6es cerebrais e comple.,a: f]Uanto a est" a,peclo Bco\J,'''l"""lenlentc comprovado q\Je 0 cerebrr> de 1I1ll o("idental c diferente do de umjapon,'"

8. Palavras de Andre Brelon recolhid", por Yvonne Dupkssis. Le s"rraalisme,'"Q\Je snis-je'(', n" 432. p. 25.

9. Cra9a, ao rlesenvolvimenlodaeletro!lsiologiu, da qUlmicae da bionicu. e'pe-m-,,,, lransmiti,. - n\Jm fi,tU'"Dprowve\m(mle longinquo, Indo 0 que ~Ollcerne ao,outros sentidos qne n.io a vi,ao '" a audi<,'''''' "s odores. os perfi.nnes. 0 go.,to. '".sen"Wile' IMeis (ef.. do me.,rno autor, Acnps;.s-, n:' 11. P' 23).

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10 Estetica d() cinema

ser encontrado em tocIas os grandes artistas e escritores (es-tetismos de Poe, de Gogol ... ): 0 horn em e igualmente capaLde imitar, de reprocluzir as formas do universo e de inventar.A poesia detem 0 privilegio de nos fazer cap tar os aspectosocuitos cia realidade "imediata", de "dar-nos a impressao deque existe alga por tras". "Se voce fornecer uma simples co-pia ciarealidacle, nao e muitoprov:lvei que a arte se beneficiecom isso. Nao 56 no cinema, a antinomia entre 0 real e 0sonho, entre a realidade e a verdade, e a fonte inesgohive\de toda criac;5.oartfstica (. ,.). 0 fato de UlTla aquarela poderdesnaturar a realidade a ponto de nos fazer admirar 0 que,na natureza, nan passa de urn objeto de inciiferem;a, ou atede aversiio, e 0 paradoxo da arte realista e, na verdade, 0

misterio da arte em geraL"j()Parece claro portanto que 0 conceito de realismo tem um

sentido muito amplo e vago, Como Roger Boussinot assina-la, "ha tantos realism os quantos metod os de conhecimento:realismo diaJetico platonico, realismo carte siano, realismoshegeliano, marxista, naturalista, impressionista, expressio-nista, realismo surrealista, realismo onirico ou freudiano,realismo tecnol6gico, etc." E, no limite, podemos dizer quetodo mme - assim como toda obra de arte - e realista.Assim, em Rua scm alegria, de Pabst, 0 realismo mescla-sea vestigios expressionistas; em Miracolo a Atilano, de Vitto-rio de Sica, encontramos uma mistura de realismo e de fan-tastico social ... E mesmo de idealismo, que simultaneamen-te se opoe e se mistura ao realismo: "Tocla obra de arte esempre a expressao de um idea]"', dizia Delacroix, "mas, pa-ra um artista realista, esse ideal nasce quase que imediata-mente do contatocom 0 real" a realismo nada mais e, Bnal-mente, que uma tendencia contra as tendencias irrealistas:uma rear;ao contra 0 preciosismo, 0 buriesco, 0 expressio-nismo, 0 romantismo, etc. Fala-se do "realismo poetico" de

10. Jean Don1>lfchi. /..1'.1'c(Jhicl"s d" (;;""""'.

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I

As atitudes esteticas II

Marcel Carne (Lejour se (eve, HOtel du nord), ou de AndreCavette (Les amants de Virane), do "realism a intimista" dePaul Fejos (Big house), dos filmes de Vittorio de Sica inspi-rados nas preocupagoes sociais da epoca (Umberto D, Ladridi bieiclelte), do "realismo intuitivo e de improvisagao" deRalph Nelson (Soldier blue) ou de Max Ophii!s (na vioienciaecrueldade de certas situar;oes; Ophiils e freqiientementeinfluenciado par r..-1aupassant, Flaubert e Turgucniev nabusca cIa "verdade humilde"); do realismo e do iinagin;irioque se controutam em certos filmes de Resnais (como Provi-dence). Mas todos os diretores, em nome de sua persona-lidade, e em cada uma de suas obras, oferecem-nos um as-pecto sempre diferente do realismo. 0 de Rene Clement(Gervaise, drama adaptado a partir de Zola, Au-dela des gri-lles) difere nm pouco do realismo de Gremillon, de Duvi-vier, de John Ford (The grapes afwrath), de Dina Risi (Pro-jumo di donna), do cineasta indiano Satyajit Ray (0 intenne-djario), ou ainda do realismo de Rossellini, Fellini, Fran-cesco Rosi, Visconti, Antonioni, Jules Dassin, Joseph Losey,Robert Rossen, Elia Kazan, John Huston.a realismo psicoi6gico classico manifesta-se em Griffith.

Cecil B. de Mille, Chaplin (Puhlic opinion) e, na mesmaepoca (por volta de 1925), no Kammerspiel (com Carl Mayer,Lupu Pick, Henrick Galeen e Murnau), no cinema sovie-tico, principalmente em Pudovkin (Amae), e mais tarde emBecker (Edouard et Caroline) e Bresson (Le journal d'uncure de campagne). Define-se por uma "realidade media",corrente, banal, verossimil, facilmente acessivel do pontode vista psicol6gico. Esse ciassicismo exclui 0 excepcional,o irracional, a expressao do desagradavel, a vulgaridade e,por isso, imp6e limites ao artista.

a realismo poetico (rea9ao anti-romantica) dos anos 30,proximo, sob alguns aspectos, do movimento impressionistafrances dos anos 20, anrma que a poesia Ii uma teo ria do co-nhecimento. Interessa-se com um3 impassibilidade objetiva

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12 t Estetica do cinema As atitudes esteticas 13

pelos fen6menos gerais, nao indiyiduais, pelos divers os as-pectos da realidade hist6rica, exterior, social e psicol6gica,deixando 0 hom em de ser considerado 0 centro do universo,a realismo poetico caracteriza notadamente as obms de JeanRenoir (de 1935 a 1939) e da dupla Marcel Carne-JacquesPrevert (Quai de brume), mas tambem de Robert Flaherty,(The man ofaran) e de Jacques Feyder (adapta<iiode Theri:seRaq1tin de Zola, La kennesse heroique). 0 realismo socialbaseia-se na objetividade, na descri<;aoexata dos arnbientespopulares e dos acontecimentos sociais, na reprodu<;ao darealidade em todos os seus aspectos, mesmo os mais vulga-res. Liga-s8 ao naturalismo e ao verismo, inspirando-se por-tanto nas ideias e nos romances de Zola, Balzac, Flaubert,Taine, dos Goncourt, do "grupo de Medan" (entre eles Mau-passant) . de G. Verga e outros (0 verismo italiano e umaadapta<;<ioao ciima italiano do naturalismo frances). Esse ti-po de realismo ja se encontra nos tempos do cinema mudo,principalmente na escola italiana (sobretudo em Martoglio)e na escola sovietica (Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko), mastambem em Criffith (Intolerance), Pabst (A rua sem ale-gria), e, na Fran<;a, em Carne, Duvivier, etc,

a realismo psicoi6gico 11l0derno(realismo existencialista)real<;aa ambigiiidade do real: cada espectador, diante de urnmunclo que se the apresenta, dev'e interpretar a realidadesegundo sua propria sensibilidade; a ambiguidade e mostra-da, mas nao destacada nem claramente expressa. 0 diretorpennite-nos olhar 0 real deixando-nos 0 trabalho de inter-prehi-Io. Ele tamhem pode mostrar-llOS este real sob dife-rentes aspectos, pelos olhos de diversas personagens. 0 te-ma essencial das filosofias existencialistas repousa sobre 0

principio cia liberdade absoluta: criamos nosso destino pornossa livre vontade e pOl' nossa a<;ao.

111- Os idealismos

Da mesma forma que lui uma grande diversidade de r~a-lismos, existem diversos iclealismos: idealismos racionalistas(cartesiano, leibniziano, kantiano, etc.), idealismos empiris-tas (Locke, Berkeley ... ), idealismos dialeticos (idealismosubjetivo ficbteano, objetivo de Hegel, ou sintetico de Ha-melin ... ), idealismo critico e reflexivo de Leon Brunsch-vicg), idealismos anglo-saxoes (de Bradley, Josiah Royce ... ).Finalmente, ohserva-se que nem sempre e facil distinguiro realismo do iclealismo: os dais simultaneamente misturam-se e op6em-se, e a distancia que os separa tende a diminuir,sobretudo nas doutrinas contemporaneas do realismo (berg-sonismo, fenomenologia - particularmente na teo ria deHusserl- existencialismo ... ) e no idealismo moderno (neo-kantismo, hegelianismo, empiriocriticismo, instnlrnentalis-mo, convencionalismo, crftica das ciencias, etc.),

o idealismo caracteriza-se pela escolha de assuntosfant<is-ticos, relo gosto do m6rbido ou do macahro, pelos senti-mentos levados ao paroxismo: ha lima transfigura<;iioda rea-lidade. Essa transmuta<;ao do real em imagens que refletema sensibilidade, a personalidacle ClU as inten<;6es deliberadasdo autor, pode ser encontrada, em diversos niveis, em todosos filmes, sendo tambem essa reorganiza<;ao do real, emgrande medida, fruto da imagina<;aocriadora do espectador(cf. cap. IV). Desta forma, a concepgao idealizada dos prota-gonistas inspirou lIluitos westerns, Da mesma maneira, aevasao no exotismo ou no passado, a busca antes da emo<;aodo que cia icleia clara, 0 apelo insistente para a imagiilagiiodo espectador, a livre expressao dasensihilidade (melancoliaou otimismo, sentimento da natureza), 0 inclividualismo(descri<;6esde aven turas ou confiss6es particulares), etc., to-das essas caracteristicas gerais do romantismo estao mais oumenos presentes em muitos filmes ditos "realistas". A trans-figura9ao yoluntaria da realidade manifesta-se particul<).r-

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14 Estetica do cinema

mente em imimeras obras que fazem apelo ao sonha, ao fan-histico, ao sobrenatural: filmes da escola expressionista a1e-mol, alguns filmes de Carne (juliette au fa cie des songes),de Clair (Les belles de nuit), de Fritz Lang (Os Nihelungos),de Cocteau (Orphee, Le eternel retour, La belle et la hete),de Hitchcock (em tocias as suas obms, exceto talvez em Iconfess, a imaginagao tern mais importancia do que aI6gica).

o idealismo simbolista tenta, por todas as mdos simb6-lieas, revelar a realidade oculta e, tanto quanta passivel, asdiversas facetas ciapessoa humana.' A combina9ao desses as-pectos, que decorrem de uma ieitura diferente cia imagem,fornece uma chave para a interpretag:lo; temos acesso assima urn numero maior de "verdades" diferentes, nao sendonenhuma delas, alias, mais verdadeira do que as outras.

"0 expressionismo nao v€:, tern visoes"; impoe-nos vigo-rosamente sua sensibilidade na representa9ao do mundo ex-terior, afastando-se assim da simples visao empfrica dos ob-jetos. Desta forma, para fazer com que 0 fator mental inter-venha e para que a n09ao de tempo entre emjogo, 0 artistaexpressionista (ver cap. II) recorre essencialmente a estili-za9ao do cenario, aos efeitos de ilumina9aO e ao desempenhodos atores. H<iuma deforma9aO voluntaria do mundo (comona visao surrealista, cubista11 ou na arte abstrata em geral),a18m de uma deforma9ao do comportamento humano. Cali-gari, de Robert Wiene, Nosferatu, de Murnau, e Metro-polis, de Fritz Lang, sao os filmes mais caracteristicos daescola expressionista, mas, julgando-se pela escolha de as-suntos fantasticos e pela inspira9ao freqiientemente morbi-da, incontaveis mmes tern um colorido expressionista, talcomo 0 drama 16gico de Dino Risi, Anima pena (1983).

o movimento surrealista recorreu essencialmente ao so-

11. 0 leilor iolt"ressado 00 cubisn1() e nH vida e obm de Picasso deve cOTlsllltaro Correia da Unesco de deze",bro de 1980. eo \ivro de Pierl'e C~bann", Le cubi,"'M, col "Quesais-je", ,;',' 1036. PUF, 1982,

As atituMs esteticas 15

oho, a sugestao do misterio do incousciente, a antilogica,a imagina9ao, buscando ultrapassar 0 real: "0 imaginario eo que tende a se tornar real", escreve Andre Breton. Quandose perguntou a Picasso sobre suas rela90es com 0 surrea-lismo, ele respondeu: "Tento sempre observar a natureza.Prendo-me a semelhao9a, uma semelhao9a mais real do queoreal, que atinge 0 surreal. Compreendio surrealismo nessesentido ... " "As possibilidades de emprego do surrealismono cinema sao amplas e excitantes", precisa Vincente Mine-lli. "0 surrealismo pennite exprimir 0 que pertence a urnuniverso mental, ao sonho ou a fantasia. Umasubitajustapo-si9ao de objetos ou de imagens que nao tern qualquer rela~~aoentre si na realidade. A SenSa9aOde fugir do tempo e doespa90, que todos nos ja experimentamos. 0 surrealismo8 capaz de explorar e de esclarecer, de uma forma nova emaravilhosa, toda a gama de em090es, a histeria, a alegria,o ciume, a confusao, a loucura, a temura, 0 delfrio e, eviden-temente, todos os aspectos do 6dio, as infioitas complexi-dades do amor, com seus extases e depress6es, seu setimoceu e sua agonia, sua Citera e seu Getsemani. Nao queroesperar nem mais urn in stante para me envolver nisso .. "12

Poucos filmes sao, na essencia, puramente surrealistas,e isso por v,l:rios motivos, diffceis de analisar aqui (diflcul-dade do cinema em captar 0 pensamento; contradi9ao coma arte progressista, que 8 profundameqte realista, ligada arealidades sociais concretas, a causas econ6micas; 0 fato detais filmes serem dirigidos a um publico muito restrito, etc.);La coquille et le clergyman, de Germaine Dulac; Un chienandalou e Cage d'or, de Bunuel e Dali; Cetoile de mer, deMan Ray e Desnoss, j\v{asmuitos outros filmes estao bastantepr6ximos do surrealismo: Entr'acte, de Rene Claire Picabia;Le sang d'un poete, de Cocteau; Zero en conduite e Cata-lante, de Jean Vigo; alguns filmes de Prevert, de Autant-

12, Surrealisme et cinema, HElude, cinelllatographique,' ,Il 40_42, p, 171

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16 Estetica do cinema

Lara .. Nao develTlos nos esquecer tambem dos filmes bur-lescos ou de humor negro, como 0 primeiro filme dos irmaosMarx, Animal crackers; de Victor Heerman (1930) e, natu-raJrnente, dm desenhos animados e de certos fllmes ameri-canos que dao livre curso a fantasia do espfrito. Bem fi"e-quentemente, hA tambem uma boa dose de surrealiSlllO nosfilr:les de terror, de suspense e de fic<;ao cientffica.

Capitulo II

as signos de uma escrita.as elementos de uma linguagem

1-0 tempo

o clomfnio cia escala do tempo e Uill dos proceciimentosmais notaveis do cinema: n3 tela, a dura<;ao de um fen6menopode sel", a vontade, interrompicla, aiongacla, encurtada eate mesmo invertida. "Assilll como a pedra fllosofal" -diziaEpstein - "() cinema tem 0 poder de trammuta(,'(Jes univer-sais. Mas esse segredo e extraordinariamente simples: todaessa magia reduz-se a capacidade de fazer com que a dimen-sao e a orient;l(,';io temporais varit'm," DescontiIluidade, ca-mera lenta, acelerao;;ao, inversao da escala do tempo, todasessas trucagens - que s6 0 cinema pennite - tern urn ines-timavei valor educativo, cientffico, fiIosJifico, humorlstico eartfstico.

1. A camera lenta - Sabemos que a camera lenta apresentaurn grande interesse para os cientistas que desejam estudar,anaiisar, e assirn conhecer melhorcertos fen6menos e certosmovimentos dos'seres vivos ()u de alguns elementos seusque 5e desenvolvem nipido demais para que 0 olho os acom-panhe. Esse procedimento permite colocar em evidencia abeleza de um gesto ou a eleg;lncia de uma atitude (exercfciosde um ginasta, evoluo;;6esde um cavaleiro, passos de UIll hale

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18 Estetica do cinema

au de uma dan~:a>etc.). Alem clisso, demonstrou-se que 0

efeito cia camera lenta provoca muitas vezes a adesao com"piela do espectador, um recuo de sua consciencia, acompa-nhado de reagoes afetivas cliversas (mal-estaI', ang(istia, tris-teza, nostalgia, exuben'incia imaginativa, etc.) e as vezes psi-comotoras (atividade onirica). A camera lenta pode sugeririmagens de paz, de resignagao, de esforgo intenso e contI-nuo, de impotencia, ClU, ao contr<irio, de palencia (tempes--lade em camera lenta em Le tempcstail"e). Em Zero en con-duite, assiSte-se a um curioso efeito, ao mesmo tempo poe-tico e psicoi6gico, provocado par um adminivel desfile emcamera lenta, sincronizado com uma encantadora musica deJaubert tocada ao contrario. As cenas que se pass am na ima-ginar;:aodas personagens siio tambem freqlientemente filma-elas em camera lenta: e esse 0 casu em Un chapeau de pailled'Italie, onde vemos m6veis voarem, em camera lenta, pelajanela do apartamento do recem -casado, que imagina a cena;o mesmo acontece em La ravi,'lsante Mme. Beudet, em Leddserteur (onde uma personagem pensa em se suicidar), emFail divers, ou ainda em Zabrinski Point (nesse filme, Anto-nioni recorreu a cameras especiais capazes de filmar 3000imagens por segundo, Daria Halprin imagina a explosao deurn apartamento luxuoso. Pulverizaclos num cogumelo ato-mico, as objetos que simbolizam a sociedade de consumovolteiam no arlo Voltamos a encontrar os efeitos ela cameralenta em Les chases de fa vie, nas cenas do aciclente de carrode Pierre (Michel Piccoli). Ap6s 0 acidente, este revive frag-mentos de sua vida durante as duas horas que preceelemseu falecimento_ 0 mesmo aconteceu em Choue em Sa.ntia.-go, de Helvio Soto, reconstitlli~:ao do golpe militar que p6sfim ao regime democr"ltieo de Salvador Allende no Chile,em 1.973. Os efeitos de dmera lenta S"lOlargamente utiliza-dos, ao !ado de outras trucagens, para traduzir () estaclo deauseneia de peso, isto e, para res saltar a queda ciaforgagravi-tacional nos filmes de fieO;:<locientfflca, como em The black

r

Os signos de uma escrita 19

hole, de Gary Nelson (0 movimento lento elo buraeo negro,a nave espacial atravessando uma chuvade metearitos, etc.).

2. A camera nap ida - Os cientistas usarn com frequenciaa tecnica da camera nipida ou cla camera ultra-rapida nossellS estudos sobre fen6menos lentos: processos de cristali-za9iio, crescimento vegetal ou animal, clivisiio dos ovos e ce-lulas, desenvolvimento de embrioes, corrosao de metais,etc. Sem essa tecnica, iIllimeros fenomenos escapariam to-talmente a observao;:aovisual normal. "A camera ignora a na-tureza morta" e, na tela, em alguns segundos, uma flor fe-cundada metamorfoseia-se em fruto madura. "Em camerarapida, a vidadas flores e shakespeariana", escreveu poetica-mente Blaise Cendrars, e Cermaine Dulac disse: "Podemossentir visualmente a dificuldade de uma haste para sair daterra e florescer."

Cra9as a Menica dOlcamera rapida, e possivel erial' inu-meros efeitos e6micos, e mesmo as cenas rnais dramaticasou mais dolorosas podem provoear risos ou tornarem-sefrancamente camicas (em comedias mimicas, nas persegui-90es e conidas do infcio do cinema, ou nos filmes mudos,especiaimente nos de Max Linder e Chaplin); produz-se noespectador um rebaixamento cla tensiio psfquica, resultantecia sensao;:aode uma espeeie de degrada9iio sem gravidadedas pessoas e dus coisasl. Alem disso,.o cineas,ta pode aeele-rar voluntariamente uma a9iio em fun9iio de necessidadespSicol6gicas precis as:! A aceiera9iio do tempo vivifica e espi-ritualiza, A camera l~nta mortifica e materializa/passa-seportanto clas aparencias espirituais as aparencias materiaisou vice-versa C.o) pOl' simples eontra90es ou extens6es dotempo", esereveu com justeza Jean Epstein. Em Lc tempcs-

I. t\'o tcalro cOlllico dn ""b()ll"·c'poq,,,,·', princip"lnlcnlc no dc Gcorges Fey,!,,,,.'"'si,timos ,nuit",; VCY.C'~ pcr,egui90C;; quc pj"()"ocnn, il"l'csistiv<J!lLlL-,"lc 0";.\0 in-ge,,"o e Icmh,"m 0 inicio do cincma.

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20 ' Os signos de uma escrita 21EstCticii do cinema

taire, por exemplo, acorrida desenfreada clasDUyenS no diumaterializa a fuga inexonivel do tempo, criando assim urnefeito dramatico intenso.

mente a morte. A interrupc;ao do movimento naa tern, por-tanto, nenhuill sentido fisico,Gll psicoi6gico. Por isso, as ten-tativas de utilizaresse proceciimento em alguns filmes, comoem Les visiteurs du soir, para mostar a interrupc;ao cia mar-cha do tempo, geralmente fracassaram (de fato, somas taomais sensiveis ao tempo quanta mais ha descontinuidades,mudaw;as, percep90es sllcessivas). Combinado corn outrosproceclimentos (efeitos de iluminac;ao, efeitos sonoros, etc.),poderia a parada do movimento evocar a morte? 0 efdtoproduzido e bastante estranho e surpreendente, par exem-plo, em Monsieur et madame Curie, quando Pierre Curiemorre esmagado pOl'um caminhao, mas ele nao e estetica-mente valido (JU psicologicamente justificado - tanto maisporque todos os' elementos, tOMS os componentes da ima-gem sao congelados, e, ainda, porque os seres vivos sao qua-se sempre imobilizados nas posi<;6esverticais ou obl1quas,o que exprime, ao contrario da marte, a for<;a,a domina<;iio,o movimento, a bnsca de equilibrio.

3. A interrup~ao do movimento - 0 cinema e essencial-mente movimento. Epstein escreveu: "Em sua essencia, 0

cinema e de tal forma ligado ao movimento que ele 0 detectapOl' toda parte, revelando, assim, a mobilidade universal(... ). 0 movimento parece inerente a forma, ele e, ele faza forma, a sua forma." Henri Agel 2 sublinha que 0 cinema"sente uma repugnancia instintiva por tudo 0 que e estatico,geometrico, razao raciocinante. Em fun<;aode sua fluidez,tem afinidade essencial com 0 movimento, com a sinuosi-dade".

a tempo nunca para ("nao tem descanso"), eum fluxo ine-sistfvel e, por sua obm incessante, tudo muda continuamen-te no mundo: os desejos manifestadospor Lamartine emseus celebres versos.

o temps suspends ton vol; et vous hcures propices.Suspendez votre cours. * 4. Invcrsao do movimento - Uma das possibilidades mais

nohlveis do cinema e a que pennifE' que 0 tempo se desen-volva na dire<;ao oposta a normal; reverslvel, aquilo que €atra<;aopode se tornar repulsa, e vice-versa. 1.1\lito cedo (defato, desde Lumiere), 0 processo de inversao do movimentoserviu para realizar imimeras trucagen''>'lfepara criar (sobre-tudo quando cornbinado com acamer<i rapida e lenta) efeitoscrlmicos interessantes; mergulhadores que saem da agua evo\tam ao tram polim, pessoas que andam para tras na rua;dan<;a ao contrario (principalmente quando sincronizadacom uma musica tocada ao contrario) ... Cacteau, Chaplin,Clair, Dreyer, Epstein, Guitry, Porter, etc. obtiveram atra-YeS de sse processo excelentes efeitas poeticos ou dram:Hi-cos: e 0 caso de Eisenstein em Outuhro, onde se ve a estatuado czar ser reconstitufda ap6s ter sido destruida um POIlCO

antes.

nao podem ser atendidos.A vida e dissimetria, desequillbrio, movimento; caracte-

riza-se (pelo menos entre os animais superiores) pela rnobili-dade, pela atividade, pelo dinamismo, nao pode ser suspen-sa (nao totalmente, peln menas, nem mesmo pOl'uma insen-sibiliza9aO completa no vazia mais elevado ou nos confinsdo zero absoluto). 0 comportamento humano -assirn comoqualquer fen6meno psiquico ou biol6gico - nao admiteequilibria naausencia de movimento. Sabemos pelaciencia,pela observa<;ao e pela intui9ao, que a imobilidade absolutanao existe e que a inercia aparente nao significa necessaria-

2. Eslheti'l"C du cinema, PUF, «Qnesais-je?" 0"751 .')'"d_, 1971* "6 tt'mpo. _""pende teu v6o:_e v6s, horas prop;cias,,' Suspendd "osso curso."'

{N do T)

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22 ' Estdica do cinema

"0 cinema clescreve de um s6 golpe, com uma nftida exati-dao, um mundo que caminha do sell fim para 0 seu inicio,um antiuniverso que 0 homem dificilmente poderia imagi-nal', Folhas mortas levantam-se do chao para agarrarem-sede novo aos galhos das arvores ... A flor nasce do seu envelhe-cimento e murcha num botao que volta a sua haste." E Eps-tein acrescenta, interrogando-se sobre a natureza do uni-verso: "Seria e\a ambivalente? Admitiria uma 16gicadu-pia, dais detenninismos, duas finalidades contrarias?"

A inversao do movimento (0 pintinho que volta ao ova,oobjeto reconstitufdo a partir de suas partes .. ) permite umamelhor compreen sao de certas nO<;<lesabstratas da fisica mo-dema, ligadas a principal dimensao daciencia: 0 tempo Tor-namo-nos testemunhas oculares da passagem do provavelao improv:lvel, da predi~'ao (estatisticamente infalivel):'t "re-trodi<;ao"(mais ou menos plausivel), da desordem OU desor-clem maxima (entropia) a ordem au a energia organizada(energia potencial) ... Mas nao nos deixemos enganar por is-SO:l; na realidade, 0 tempo (0 da consciencia) ''foge irrepara-velmente" (Fugit irreparabile tempus, escreve Virg{lio), es-coa-se necessariamente num sentido bem determinaclo enao pode retroceder. Jean Mitry escreve a esse respeito ,I:

"0 que chamamos de tempo e essa dire<;ao, essa evoluyaoperpetuamente voltada para urn fiJturo, bem como a repre-senta<;aodo passado, cuja cOllseqiiencia e testemunha cons-tante e 0 presente"; em suma, essa marcha das coisas quee a pr6pria existencia.

o tcmpo, port;mto, e neeessariamente irreversivel. QualquerrcloJ'110e illlj)os>ivel. Mesmo '>lI)lOIl(.I0 que, por \1macol1tecimcntoextraorrlin;\rio. pO",'Jmo<;rcviver os al1()~que vivemos rctornanrlono curso do tempo. ,"%,1 volta aill(b seria \Jma mareha "para fren-

3. Lewis CarnJl. elf] S!ll~;u "",I 8m"o, j"z com que 0 tempo corn< ao contd,.i\>,gra\',,, ao "mec""ismo de i""C<I·s;io"do l{e16gio do O"t,.o M"ndo.

4, J:;,·,I"ifi'l'1C (If 1'.1'!lciwlogi" <I" d"(;,,,,,, t II: Lesfom,es. flP. 202-:2(j3,

Os signos de uma escr1ta 23

te·'. Heviveriamos ao contnirio ()tempo vivido, mas depois de te-lojii vivicio. Seria umJ pcrsegui9iio as avessas, nito um retorno, 0verd"deiro retorno seri;) <! >lnula9iiopllrJ e simples do tClllpO. ouseja, do qlle foi. Apagnl'famos [lOSSOpassado retornando no cur<;odas cois<l.S- e. essaS'\)l'oprias coisa" 11>'ioas reviverimnos

Sc podemos nos deslocar no espa\:o e porque 0 espa90 tem variasdimens6es (0\1dire\:oes) e porCj\1Cno, situamo<; !iempre em llmudela, em rela~iio as duas outws, Se houvesse apenas uma dire9iio(e ~i nan seria mais um espa~o), m'io mais poderiamos nos deslocarneb. assim como niio podemos E:tze-lono tempo. Tempo e espa~()confundir-se-iam: seriam a mesma cois(l.

Os professores Cronin e Fitch, alias, dividiram 0 premioNobel de frsica de 1980 por terem revelado, a partir de umaexperiencia realizadadezessete anos antes, um novo aspectoda dissimetria clanatureza: a simetria por reversao do temponao e mais respeitada pela natureza do que as simetrias fun-damentais: a simetria dita "de paridade" (pensava-se que anatureza nan fazia nenhuma distiw;ao entre a direita e a es-querda) e a simetria dita "de conjugar;ao de carga" (a cadapartfcula deveria cor responder uma antipartlcl1la de cargaidentica oposta, ambas possl1indo as rnesmas propriedadese obedecendo as mesmas leis)5.Os trabalhos desses dais fisi-cos demonstraram finalmente que era imposslvel voltar notempo, Oll ao menos voltarcom exatidao ao ponto de partida,e que urn fenomeno, que teve lugai'"n0' passado, w'io ternreplica no futuro Como a simetria por inversao de temponao existe, e tambem pouco provavel (na realidade, impos-sive] em termos flsicos) que os macacos de Borel possam re-constituir os manuscritos da Biblioteca Nacional batendo aoacaso em maquinas de escrever e que as folhas mortas pos-

5. Em 1949. Feynmun s\lgeria flue 0 p6sitron talvez fosse I'm detron quc volt~·va temporaria11lCHte no tempo; disso na~ce" ~ idein quf.: 3' antip;Hticlllas nada"'ais seriam doqllc partic"las que voltam nO tempo, podencio serest<; enluo ,,,vcr·lido em rela~"io ~o no."o liaS g"l,)xi~s rorm~da, de a"timateria.

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/24 Os signos de uma escrita 25Estetica do cinema

sam voar do chao e voltar para as galhos nos pontos precisosem que estavam penduradas antes de cair.

Na tela, durante a projec;ao, quando viramos a peiiculaao contnirio, a direita e a esquerda tambem 5e invertem.Se 0 mme apresentar somente acontecimentos naturais, ainversao direita-esquerda nao apresenta qualquer inconve-niente e 0 espectadornem a percebera(assim como fla pintu-fa, para urn grande mimero de quadros ... ). 0 mesmo naoacontece quando 5e trata de cenas naturais contendo estru-turas 011 objetos realizados rela homem e bilateral mente as-simetricos (inscrir;oes num painel, numeros no mostradorde um rel6gio, veiculos indo por urn determinado !ado ciapista, au detalhes mais dif{ceis de detectar, como duas pes-soas apertando as maos esquerdas, por exemplo). Em seulivro 0 Uniuerso amhidestro (Ed. Dunod), Gardner pergun-ta-se: "Seria possfvel um bom core6grafo realizar um balepalfndromo com simetria bilateral no tempo, au seja, umbale que, filmado, produziria duas vers6es mais ou menosidenticas quando se projetasse 0 filme no sentido normal eno invertido'?" De fato, flO que concerce aos processos natu-rais hmdamentais (crescimento de um cristal, reaGao quf-mica desenvolvendo-se, etc.), os fisicos atualmente podemafirmar se um filme esta invertido ou nao, e isso desde quan-do os trabalhos de Lee e Yang, em 1956-1957, que recebe-ram 0 premio Nobel de fisica (e, posterior mente, a celebreexperiencia da Sra. Wu) revelaram a falencia da lei "de pari-dade". E preciso lembrar que os acontecimentos naturaispodem ser fllmados e 0 filme projetado ap6s inversao semque 0 espectador 0 perceba (e evidente que este n<10 disp6ede cobalto 60 nem do equipamento necessario para a expe-riencia, que ele nao quer nem tem qualquer motivo pararealizar).

sentada como identica a duraQao da aQao. um exemplo seriaThe rope, mme de Hitchcock rodado praticamente em umunico plano, a camera seguin do continuamente as persona-gens e a decupagem-espaGo suhstituindo totalmente a decu-pagem-ternpo. Evidentemente, 0 tempo da percepGiio, 0

tempo pSico16gico, diferem total mente do tempo cientffico,que e determinado por movirnentos exteriores, indepen-dentes do espectador (0 tempo vivido pela consciencia e 11maslntese do passaclo e do futuro). E essa duraQao eminente-mente subjetiva e percebida de forma muito diferente. Poroutro lado, e importante observar que, do ponto de vistaqualitativo, imlmeros filrnes (como The rope, High noon,Strangers on a train, Suspicion, Bad day at black rock) apre-sentam um aumento progressivo da ten sao pSico16gica, ha-vendo uma dramatizaGiio, 11mavalorizaGao cia dura<;:ao.

De fato, no univers{) fllmico, e raro que 0 tempo seja res-peitado. Ha quase sempre eJipses e concentraQoes tempo-rais (supressao das partes inuteis e dos tempos fracas daa9ao). Uma narraQao resumida, servindo-se de algumas to-madas marcantes - em numero recluzido - provoca fre-qiieutemente um maior impacto sobre 0 espectador. t pos-sfvel traduzirentao, com 0 maximo de inLensidade, emoGtlese sentimentos violenLos e inesperados. 0 plano de corte,que permite interromper a a9:10sem qualquer problema pa-ra retoma-la posteriormente, e largarflente utilizado paracontrair 0 tempo, para refor9ar a intensiclade das ideias, evi-tando assim 0 superfluo, e tambem para dar a entender algoSem que seja necessario exprimi-lo diretanlente.

As vezes uma personagem que se desdobra age, num mes-mo plano e num mesmo espa<;~odram<ltico, no presente eno passado, havendo assim a fusao de duas temporalidades·eo caso de i\lorangos silvestres, de Bergman, ou de Senlw-rita Julia, de Sjoberg, au ainda de Death of (I salesman,de Lazlo Benedek, etc.

Em imimeros filmes assistimos a lim ou varios saltas em5. Contra9fio e dilatagao do tempo. Prescote, passado e

futuro - l<: bastante raro que a dura9iio do filme seja apre-

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/1 26 Estetica do cinema

dire~iio ao proximo ou longinquo em rela9ao ao presenteD(rnais raramente, em reia9ao a urn primeiro passado) da fic-9ao, a retornos (jlashback de primeiro ou segundo grau).Quais as raz6es para misturar a a9ao presente seqiienciasrelativas a a90es anteriores? Antes de rnais nada pm raz6esesteticas, como explica Marcel Martin 7:

Com 0 objetivo de aplicar rigorosamente a regra de unidade detempo (e, eventualmente, ade lugar); seria errado sllbestimar aimportanda da unidade de tempo nagenese de uma atmosfera dra-tmitica. M\litos filmes encootraram ai uma das raziJes de sell valor(A !loUe de Sao Sikestre, Lejour Sf lh;e, Huit he11res de 8unis,The informers, Let portes de la mdt, etc.). Essa unidade de tempopode ser bastante abrandada, quando a aQiiose divide ern duasparte, separada, por urn longo perfodo: portanto, ao inve, de apre-sen tar as origens do drama e, em seguida, mostrar a conclusiiovinte ou trintaanos depois, comec,:a-se0 mme nesse segundo perfo-do, ap6s 0 que um retorno expDe 0 passado, antes que se volfeaopresente para 0 desenlace do drama: desta forma, a ohm fecha-seem si mesma segundo uma simdria estrutural 12 esteticamente bas-tante satisfat6ria, e, ao mesmo tempo. segundo uma simetria tem·poral que the fornece uma unidade centrada no presente, (jlle eo tempo mais eminentemente participavel.

Em Man in the wilderness, mme bastante nohivel de Ri-chard C. Sarafian, Zachary Bass (Richard Harris), grave-mente ferido par um ursa, revive a passado de forma inter-mitente, e as imagens de sua mulher, de seu mho e do capi-tao Henry (John Huston), que 0 abandonara it sua propriasorte, misturam-se a a9ao presente. Todo 0 atrativo desseretrospecto reside numacombina9ao sutil de d09ura e selva-geria. Ha tam bern admiraveis retrospectos em Lafaute, deAndre Cayette, com Michel Duchaussoy no papel do doutorLeroy, em Je vous aime, de Claude Berri, com Catherine

6. E 0 caso, por exemplo, do celebrc filme de Andrzej Wajda, 0 homem dem(innm-e, onclc pre'ente € pussado se fundem do eome<;o ao f[m la "bra.

.. Le.i(111f!,aceci"'!lIIatographiq"e, Les Editeurs Fran~ai' Rennis,. pp, 261-262.

as signal>de 1Hna escrita 27

Deneuve no papel de Alice, em Lola Montes, de MaxOphiils (sob a lona de um circo gigantesco, Lola Montes -Martine Carol - relembra momentos de sua vida, ao sabordas pergllntas e dos comenbirios do estribeiro. Nos filmesde Alain Resnais, passado e futuro, imaginario e real; sobre-poem-se e confundem-se, e ai encontramos muitas vezes 0

tema favorito do diretor: a perCep9:l0 de um acontecimentopassado sllperposto ao instante presente: assim acontece emCarmie derniere a Aladenbad e em Hiroshima, monamour, um dos mais belos fillTles franceses (em 1959, emHiroshima, cidade marth, durante a rodagem de urn filme,uma jovem francesa, EmmanueJle Riva, vive urn breve epatetico amor com urn japones, Eiji Okada, Essa liga9:l0 afaz lembrar de uma outra relao:;aovivida em Nevers durantea OCUpa9aOalema da Fran9a).

Evidentemente, e raro a tecnica do flashhack ser mane-jada com tanto talento e genio quanto na obra de Resnais,e seu emprego apresenta riscos: h8:0 perigo de, ao desvendaraconc\us;lo, suprimir-se ou atenuar-se °suspense, tornar-seo filme incompreensivel, ou de roteiro par demais elabo-rado, Hma sitlla(,~aoparalisada, n:lO"em tranSfOnlla9ao".

Tambem podemos assistir, embora com menor freqiien-cia, a um salta para 0 futuro a partir de uma seqiiencia nopresente (flash-forward). 11: uma montagem audaciosa, pohnem sempre 0 pensamento do autorjica evidente: como,na realidade, 0 futuro e incerto, ha m'uih;'s futuros possfveisnos quais 0 homem pode engajar-se e a fabu\osa inteligenciada hip6tese de Laplace, diante da qual "0 futuro, assim comoo passado, sera um presente", nao passa de uma constru9aodo espfrito. Nos filmes de fiC9:l0cientlfica (como nos roman-ces do tipo The time machine de Wells), tudo e possfvel,principalmente os deslocamentos no tempo8. as autores

8. Dc fato, dcwle h1 alguns nnos, 0' risicos nO, mostram CJuehaveria em nas>O\lniverso cs!rn!uras CJueencerrmn ,,,n espa\:o e mll tempo con'piemellta.es aquc·

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28 Estetica tin cinema Os signos de uma escrita 29

criam grandes mudanC;:3s de ambiente, 0 maravilhoso, 0 fan-tastico, at raves de hist6rias de viagens, em geral para 0 futu-ro (0 presente situ3-se no futuro e a narra!iva torna-se entaocompreensivel, a intrusao de um futuro oum determinadopresente e que pode nao parecer clara). Em Le livre desmondes oublies (Ed. rai Lu, p. 223), Robert Charroux diz:

men te 0 diretor contenta-se em reproduzir u In'espago globaltal qual ele e: ele cria um espago puramente conceptual, im'a-ginariolO, estruturado, artificial, pOl' vezes defonnado (fil-mes expressionistas), lim universe I-'flmico allele h,i conden-sagoes, fragmentac;:oes e jUllc;:oes espaciais (a imagem e 11mtransporte no tempo, mas tambem um transporte no espa-90). 0 espa90 fllmico nao e apenas um quadro, da mesmaforma que as imagens nao sao apenas representa90es emduas dimens6es· ele e um espa90 vivo, em nada indepen-dente de seu conteudo, intimamente ligado as personagensque nele evoluem. Tern um valor dram:Hico ou psicol6gico,uma significa9ao sirnb6lica; tem tam bern urn valor figurativoe plastico e urn considenivel carater esh~tico (Blmes abstratosde Len Lye ou de MacLaren; produc;oes de alguns cineas"tasitalianos dos an05 40 - os "caligrafos" - ou dos neoforma-listas, entre os quais Bolognini, principal nome dessa ten-dencia; inurn eros filmes de Antonioni; algumas obms deJohn Ford, como Stagecoach [No tempo das diligencias] ouRio grande, ainda que Ford seja urn mestre do intimismo;pensemos ainda no western de Willian Wyler, com GregoryPeck, The big country).

Ar6s a teo ria da relatividade, sab.:mos que 0 espa90 per-deu sLlaespecificidade; a realidade e um amalgama de dura-c;6ese comprimentos, 0 espar;o-tempo, complexo que e "01'-dem de situac;6es", "ordem de coexistencias possiveis", se-gundo Leibniz, "conjunto ordenado de posic;oes ocupadassucessivamente pOl" todas as coisas e toelos os seres". 0 espa-c;ofilmico nao e indissochivel do tempo, e Epstein dizacerta-damente II: "Na represenb19ao cinematografica, 0 espaoyoe

Nurn universo de cinco dirnens6es, poderfarnos prbvaveimenteviver, em e'itado consciente, na ldade Media e no seculo xx simlll-taneamente.

Em seis dimens6es, urn hornern poderia estar ao mesrno tempomorto, vivo, ca<;ar auroques nurn vale pre-hist6rico, pilotar urnarnaquina voadora rumo a Sirius e tran'imutar-se pelo pocier de seupensamento.

Nurn universo de oilo dirnens6es tudo se,ia permitido, desdea viagem no tempo e no espa<;o ate a integra<;iio dos varios reinosda natureza.

II- 0 espa~o

Acabamos de ver que 0 cinema tem totalliberdade parabrincar com 0 tempo; pode condens:i-lo, estic:i-lo, desacele-ra-lo, aceler:i-lo, inverte-Iu, imobiliza-lo, subverte-Io ou va-loriza-lo. Arte do tempo, ele e tambem arte do espaoyo·"Nunca antes do cinema", escreve Jean Epstein, "foj nossaimagina9ao for9ada a lim exercicio tao acrobatico de repre-sentaoyaodo espac;o quanto aquele a que nos obrigarn os fil-mes em que se sucedem ininterruptamente primeiros pia-nos e long shots, tomadas ascendentes e descendentes, nor-mais e obliquas, segundo todos os angulos posslveis."9 Defato, 0 cinema vale-se de um total dominio do espac;o. Rara-

les a que e.ltamos aeo,turnado$. Do outro !ado de nosso univcgo visivcl. onde,c e.,condem "'. buraeo, negro" 0 espa90 e 0 tempo irocum de I'upeis; '" 0 cspn~oe ",io mai$0 tempo 'l"e pnssa de nlll1eira ;"c.'odvel: e podc.sc passcar no tempoda mc""a forma que, do lado de d do u"iverso. podemos 110S desloc", no cspa~o.

9. Lc cincmo till <liable. p. 103.

10. Observe-so:;par e.~cmploque 0> j~l'oneses, por vivCl"<;mo:;tngl"J'lde ",'",orO"Ume,pU,o 11luitopequeno. oi,lIn 'lin espa<;oimagin,trio: h:i ull"lmultip);cidndede imagen, nns lojas. brcs. ,uas. lugnres pt',blicos. tebs do:; tdev;s;'(o gigr.mtescnsau m;niat\lri;:ud"s. dczcnus ,I., redes de (elevis,lo (ver Science digesl. n'.'2. mar~ode 1982).

\1 1;:sl''';/ <I" c;mim(J. p. 225.

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30' Estetica do cinema

o tempo estao inseparavelmente ligados, unidos para consti-tuir um quadro de espa<;:o-tempo, onde coexistencias e su-cess6es apresentam ordem e ritmos que variam ate a reversi-bilidade. Al, para balinr os fen6menos, existem apenas sis-temas m6veis de relaQ6es que nao podemos associar a qual-quer valor fixo." E acrescenta (Le cinema du diahle, p. 1(1):"5e 0 cinema ins creve a dimensao temporal junto com a di-mens:J:o espaciai, ele demonstra al8m disso que toclas essasreiac;6es nada tern de absoluto au de fixQ, mas que sao, aocontdrio, natural e experimentaimente variaveis ao infini-to," De fata, ora eo tempo, 0 sentimento de durac;ao, queimp6e sua presen<;a (principaimente nos mmes psicol6gicose de suspense), ora e a percep9ao do espa90, a sensat;'ao deextensao, que chama a nossa atent;'ao, ou ainda, tempo e es-pat;'o parecem fugir total mente de nossa intui9ao e de nos saperceP9ao, dando lugar a uma outra dimensao (principal-mente ada "fisionomia", nos primeiros pIanos de rostos, co-mo observa Bela Balazs). 0 sistema espa90-tempo (0 espagosem urn contel'ido) seria criador? Criador de materia, pri-meiro inerte, em seguida organizada, viva e pensanteI1. Maspara a materia - assim como para 0 Universo - ten} havidoum comego? Havera um Hm?

1. 0 primeiro plano - Juntamentecom a montagem, 0 pri-meiro plano e, certamente, um dos elementos rnais essen-ciais da linguagem cinematografica. Desde ha muito os gran-des diretores de cinema souberam empregar admiravel-mente os recursos do primeiro plano, de objetos ou de ato-res, para obter efeitos dramaticos e psicol6gicos e, freqlien-temente, para intensificar os efeitos ja obtidos, alternandoplanas gerais e primeiros pIanos. 0 ingles Smith, ja em 1900,

12. C"rlas J"ea\'(jes q\liln;c", p,'oI'OC"'ll (Jsc;bs::oes no tempo e "",n eslrlltllraC;jono e>pa90. Tais ,.ea~'(jc.1qllino;cas o"ci)a"tes podcria", prod",,;,· a vicln. segundoIlya Pr;goginc.

Os signos de uma esc rita 31

depois Griffith (Broken blossoms, Intolerance, The birth oja nation) e Cecil B. de Mille (The cheat), em seguida Epstein(Coel.lrjidele, principalmenle na celebre sequencia da festada feira), Eisenstein (em 0 encotlrar;ado Potemkin, ap6s 0

medico ter sido jogado na agua, vemos sell pince-nez balan-gar preso na extremidade de uma corda, imagem em primei-ro plano que ficou celebre na historia do cinema, e cujo con-telldo simb6lico reaka 0 comportamento ridiculo e sinistrodaquele homem), Pudovkin (A miie, Tempestade sobre aA.sia}e Dreyer. Bela Balazs escreve a respeito de La paissionde Jeanne d'Arc: "Encontramo-nos na dimensao de uma ex-pressao humana isolada na tela." E, mais tarde, Jean Renoirdiz sobre La Mte humaineI3:

E talvezo mme ondeeu tenha ultrapassauo as pr6prias imagens.E, alem disso, havia nesse filme, se me permitem a imode<;tia. umdos rnais belo, planas que jii rodei, e que nao se ve porque roi coria·do. Quando Simone Simon (Severine) jazia estirada sohre a camaapos ter sido esfaqueada por Cabin (Jacques Lantier), a camera,partindo do, pes, subia bem lentamente, acariciava seu corpo, pas-,ava sabre seu ferimento e chegava ate a sua cabega, terminandocom um plano de Cabin, com umaexpressao vazia. Para que Clau-de Renoir na camera pudesse conser"ar 0 ritmo da seqiienl!ia, umdisco toeava Le petit C06UT de Ninon. Nao me lembro muito bernpar que cortamos esse plano. Talvez temessemos que de Fosse vio-lento demaio. - .o primeiro plano interessa-se apenas por uma parte signi-

ficativa da pessoa. Cria assim uma proximidade e urn isola-mento privilegiados, oferecendo grandes recursos: em par-ticular, permitindo valorizar 0 rosto do ator, ele revela outrai uma expressao. Malraux disse: "0 cinema permitiu quese descobrisse a infinita diversidade do rosto humano." Eainda: "u m ator de teatro e um pequeno rosto numa grande

13. Entrcvista com Jean Renoir. "La biHe huma'ne. m;i\ha melhor Icmbra1ll,a",LeI/res jrauy'aises, 25 de agosto d" 1.966.

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EsMtica do cinema

sala; 0 ,ator de cinema e urn grande rosto numa pequena sa-la .." Gertamente, 0 primeiro plano mioconstitui a unica dife-ren9aeritre 0 cine mae 0 teatro, mas e urn elemento essencialde$sa diferen9a. Jean Epstein soube caracteriza-la admira-velrnentel4

:

Niio ha nenhuma ribalta entre espetaculo e espectadOL Nao seolha a vida, penetra-se neb. Esta invasiio permite todas as intimi-dades. Um rosto sob a lupa exibe-se, ostenta sua geografia ferven-te, E 0 milagre cia presengl real, a vida manifesta, aberta comouma bela rom:i sem casca, assimilavel, barbara. Teatro d~ pele.

Temos ent.§:oque concordar pienamente com IngmarBergman:

Hu muit05 dirctores que esquecern que 0 rosto humano e 0 pOO-

to de partida de OOS.lOtrabalho. Certamente, podemos nos dedicara estetica da montagem, podemos irnprimir ritmos adminiveis aobjetos au natureza.> rnortas, mas a proximidade do rosto e, segura"mente, a nobreza e a caractcrislica do mme. 0 mais belo meiode expressiio do ator e seu ollw,. 0 primeiro plano composto comobjetividade, conduzido e representado com perfei9iio, eo meiornai.l poderoso de que 0 diretordispiJe para influenciar seu publico,sendo tambern 0 criterio mais seguro para avaliar sua competcnciaou sua insuflcicncia. A ausencia ou abundancia de primeiros pIanoscaracteriza infalivelmente 0 temperamento do realizador e 0 seugrau de interesse pelos homen.>,

o estudioso de arle alemao Lichtenberg observa que "pa-ra n6s a superf{cie mais apaixonante da terra e a do rostohumano" ("a imagem da alma", como diz Cicero). 0 quefaz em larga medida 0 talento e 0 encanto de urn ator decinema e certamente a sua fisionomia, a expressao de seurosto ede s(ousolnos, que trai sentimentos que nos comovemenos penetram a alma. Renee Falconetti prestou-se admira-velmente a primeiros pianos (em La passion de Jeanne

14. La poesie d'a.,jorlrd·/w;, p. 171

Os signos de uma escrita 33

d'Arc, 1928, de Dreyer). 0 mesmo aconteceu com GretaGarbo (principalmente em Queen Christina, 1929, de Ma-moulian). Nao sao a fisionomia e 0 olhar uma lingiJagem uni-;versal?Nao e maravilhoso que num rosto, num olhar, todos,em todos os palses·, possamos instantaneamente ler todosos graus de amor, ternura, alegria, tristeza, indiferem;a,desprezo, suplica, ciumes, furor, 6dio? Quem de nos nuncase sentiu perturbado ou seduzido par urn primeiro planodo olharde Gerard Philippe, James Dean, Tony Curtis, PaulNewman, Yul Brynner, Steve McQueen ... ou de uma per-sonagem dos filmes de Alexandre Dovjenko? E 0 olhar deMichele Morgan, Marie Lafon~t, Romy Schneider, MarinaVlady, Maria Schell, Fram;oise Fabian, Sophia Loren, Ma-rie Dubois, etc., nao nos lembram os versos de Frarl(;oisCopee:

Dieu v()ulut resumer les charmes de la femmeEn un seul, mais qui flit Ie plus essen tieLEt mit dans son regard tout nnflni du cieL *

Existiria a fisionomia fora do espa90 e do tempo, teria elaacesso a uma outra dimen sao? Para Bela Balazs, ela podeser uma dimensao em si, que escapa a concepgao do espagoe do tempo: "Nos filmes mudos, a ex;pressao da fisionomia,isolada daquilo que a cercava, parecia permitir-nos alcam;aruma dimensao estranha e nova, a dim en sao da alma. Reve-la-lios urn novo mundo: 0 mundo da microfisionomia que,de outra forma, nao poderia ser percebido a olho nu ou navida cotidiana." 15

* "Deus 'luis l'esllmil' os encantos cia mulhel'Num s6, ",3, que !,>sse 0 mai, "s.'enciul.E co\oGOu em 'en o\h", lodo 0 infinito doccll." (N. dc)T.)

15. Theorynfthejl1m, p. 65.

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34 ' Estetica do cinema

2. as angulus - 0 :'ingula de uma tomada Dunea e gratuito,e sempre justificado pela configuragao do cenario, pela ilu-minagao, pela valoriza9ao desse au daquele aspecto do as-sunto, pela angula do plano precedente e do seguinte, mastambem pela desejo de mostrarfen6menos afetivo~, suscitarcleterminados sentimentos, determinadas emoc;oes. Cadaangula implica uma escolha (tada arte e escolha), uma pas-tura intelectual e, porvezes, afdiva do diretor. Distingue-segeralmente:

a) 0 iingulo "normal" - Geralmente a camera e rnantidahorizontaimente, na altura do homem. 0 ponto de vista e"normal", nao ha:deformac;ao de perspectiva.b) 0 plongee (a camera situa-se acima da pessoa) - Os di-versos pianos distinguem-se claramente. As personagensem primeiro plano parecem "esmagadas", "pregadas" nochao. Deforma96es muito marcadas fornecem uma visaoparticular geralmente desajeitada, au senao abstrata, emque subsistem apenas as estruturas essenciais. 0 plongee"diminui" a pessoa, cria um efeito de esmagamento, de rufnapsicolclgica, sugere () sllfocamento, a insensibilidade, a au-gustia, a sujeig:lo das personagens, que 5e tarnam joguetesde um destino inexoravel ou da vontade divina. As tomadasem plongee vertical produzem efeitos curiosos, como no m-me de Hitchcock, The paradine case, no momento em queo advogado, ap6s as conflss6es de sua cliente, deixa a salado tribunal, ou ainda naq uele estranho filme de GeorgeSchaefer, Pendulum, quando 0 jovem assassino Paul MartinSanderson (Robert F. Lyons) e pressionado contra a paredede sua cela.c) 0 Gontl-e-plongee (a peS50a encontra-se acima da camera)- Essa tomada tambem falseia a perspectiva: os varios pIa-nos, normalmente diferenciados, comprlmem-se, e as per-sonagens em primeiro plano parecem maiores. 0 contre-plongee magnifica os indivfduos, evoca a superioridade, 0

Os signos de uma escrita 35

poder, 0 triunfo, 0 orgulho, a majestade, ou senao a tragecliaeo pavor. Encontramos alguns bons exemplos desses efeitospsicol6gicos ou dramaticos em 0[tm de Sao Petershurgo dePudovkin, Alexandre Nevski e Que viva Mexico de Eisens-tein, ou ainda em Play time, obra-prima de Jacques Tab,quando 0 senhor Hulot descobre 0 mundo com seus grandesedificios de concreto e de vieiro, e on de a uniformizagao do-mina. As tomadas em contre-plongee verticais (pontos devista geralmente subjetivos) sao bastante raras: visao de umapersonagem que, por exempla, e transportada numa padiola(A farewell to arms de Frank Borzage), ou num caixiio emcuja tampa hoi(no caso) lima janelinha (Vampyr de Dreyer).

Quando a camera pende em torno de seu eixo 6tico, ob-tem~se enquadramentos ditos "inclinados" ou "desorgani-zados", 0 ponto de vista podendo ser 0 de espectador (came-ra objetiva) ou de uma personagem (camera subjetiva). Seriapreciso acrescentar que existem uma infillidade de anguiosque dao todas as nuances desejaveis, e que hoiapenas umaposigao ideal, todo 0 resto sen do fraquezas? Enfim, 0 efeitoobtido nem sempre e aquele que se espera (no limite, 0 dei-to produzido pode ser 0 contrario daquele que 0 cineastapreve teoricamente).

3. Os movimentos de camera - U ill movimento de camerae um meio de expressiio fllmica importante, podendo serbelfssimo. Busby Berkeley soube filmar bales de um modoadmirtivel, dando uma grande mobilidade a camera, impri-mindo-Ihe movimentos complexos e sutis, cleixando tn?s ouquatro aparelhos fixos dispostos em varios pontos do estu-dio. Gene Kelly escreve sobre esse realizador (e core6grafo)."Quem quiser aprender 0 que e possive\ fazer com uma ca-mera, deve estudar cada plano roclado por Berkeley. Elefez de tuclo." Em All quiet on the western {mnt, 1930, LewisMilestone soube utilizar adn).iravelmente todas as possibi-

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36 Estetica do cinema as signos de (Ima escrii(l 37

lidades elas novas Mellicas, principaimente Il'ovellings e p<1-l1onlrnicas. Os movimentos de acompanhamento sao insubs-tituiveis. Da mesma forma, as mudaor;:as de ponto de vistaimp6em-se quando 5e trata de descrever uma paisagem,umacena ou um objeto de grandes dimensoes. Mas um mo-vimento de camera cleve sempre corresponder a LIma neces-sidade imperiosa, seja ela ffsica, psicol6gica au dralmHica;cleve ser utilizado com uma intew;;:ao bem precisa, salida-mente motivada do ponto de vista artistico, podenclo ate seTvantajoso substituf-Io par urn encadeamento mais interes-sante de pianos fixos (como 0 mostra 0 maravilhoso filme deChris Marker, Lajetee, que e composto de uma sucessaode planas fixos tornados em slides). E recomend:ivel usarcom discernimento as movimentos de aproxima<;ao e deafastamento, alternando-os com pianos fixos· repetidos ex-cessivamente, produzem vertigem no espectador, ou senaourna sensa<;ao de mal-estar. Jean Mitry escreve sobre a inuti-lidade de alguns travellingsl6: "Nunca sera demais falar so-bre a inutili dade de alguns travellings, cuja tinica razao pare-ce serade acompanharo deslocamento de uma personagem,com 0 pretexto de descrever a realidade do acontecimento(. .. ). Em lugar desse travelling intitil (em The old maid, deEdmund Goulding), uma elipse teria si9h inelhor. Seguirinteiramente uma a~:aopara respeitar 0 "tempo real" e algomuito lfcito, contanto que a duragao tenha algum significa-do, pois, quando se trata apenas de descrever 0 vazio, pode-se faze-Io inciefiniciarneilte, e isso e uma arte ao alcance detodos. A quest9:o nao e, portanto, 0 travelling 'ern si', maso que 5e coloca nele, para que ele serve."

UIll movimento de camera nao tem uma fUl1gaounica-mente descritiva. Pade tambem ter uma funr;iio psicol6gicaau dram:itica, particulannente ao exprimir ou materializara tensao mental de uma personagelll. Finalmente, pocie ter

tambem uma funr;ao "rftmica", como nos filmes de Godarde Resnais. Marcel Martin escrj::veI7:

Em A bOlil de sOlljfle (Acossado), a camera, constantoomente mo-vel, cria uma espl::Cie de dinamizi!-<;<'iodo espat;:o, que. ao invcs depermanecer como lim quadro rigido, torna-5e fluido e vivo: a, per-sonagens·parecem se movimentar como num bale (quase poderia-mas [alar de umafimrao coreogni!ic(1 da camera, na medida e~1que ela propria danra): par oulro lado, as movimentos incessantes(da camera. ao modificarem a todo instante a ponto de vista do es-pectador em relao;:aoii cena, desempenham lim papel quase analo-go ao da montagem, terminando par conferir ao filme um ritmoproprio, que e \lm dos elementos essenciais de sell estilo<

Em Resnais (Hiroshima mon amOIII",L·anneederniereaMarien-bad enos seus curtas-metragens), as movimento'i de camera (prin-cipalmente a tr(l1xlling!orward mio tern ao menos e!isencialmenteurn papel propriamente descritivo, mas umajJ~!{a() de penetra·rao, seja no universo de urn pintar (Van Gogh) ou na lembrant;:a,nos arcanos da mem6ria (Nuit et Brouillard, o~ travelling; de Ne-vers em Hiroshima): pelo seu carater irrealista e qua~e o~frico (ebastante proximo dos movimentos que fazemos em no~sos sorihos-),o travelling completa e refort;:a 0 papel (analogo, em Qutros pIanos)da mlisica e do comentario falado no prescnte; final mente, os movi-mentos do aparelho valem, por vezes, apena.> por sua pura beleza,pela presen~a viva e envoI vente que conferem ao mundo materialc peb intensidade irresistfvel de seu lento e longo desenrolar (astrat;cllings nas ruas de Hiroshima).

Podemos dizer qlle hi uma!ullI;ao cncantat6ria dos movimen-tos de camera, que corresponde, no p)an~sensorial (sensual), aosefeitos da montagem rapida no planci intectual (cerebral).

ill- A palavra e 0 som

o material son oro tem uma grande importancia no cine-ma. Podemos afirmar que a estetica deste transformou-se

17. Marcd Martin, Le iUllgagecinhrwwgraphique, Lcs Editcnrs FraH\,n,s Ho:;u-nis. p. 51.16. EO'I/"W'IIIC ell's!Jc/'o{og;c d" c;m;mu. I Il. p. 33.

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38 ' Estetica do cinema

profundamente com 0 advento dos di.:ilogos e cia ffillsica. 0sam destina-se a facilitar 0 entendimento cianarrativa, a au-mentar a capacidade de expressao do filme e a eriar umadeterminada atmosfera. Ele compieta e reforra a imagem.Obtem-se resultados freqiientemente bem diferentes atra-yes cias diversas combina~6es cias duas linguageus, 0 some a imagern: combina~:6escompiementares, redundantes,contradit6rias (contrastantes) au ern contraponto. 0 acorn-panhamento musical e fundamental mente urn problema desensibilidade e de gosto, nan h3 regras imutaveis, mas COll-

vern que musica e efeitos sonoros se hannonizem com 0 co-ment:=irio e com a imagem. A dificuldade reside ua sobrie-dade e na proprieclade do comenUirio, a palavra - 0 menosabundante possfvel- tem 0 seu lugar, em principio, ime-diatamente ap6s a a~ao. A mudan<;a do timbre de voz (vozmasculina seguida por uma voz feminina, por exemplo),bern como a alternancia de pianos sonoras, on de rufdo esilencio, tern um grande poderdranuitico e sugestivo, sendofreqiienternente rnais eficazes do que 0 contraste que se po-de criar pelajustaposir;ao de imagens.

1. Os dial6gos - "0 filme mudo", escreveu Andre Bazin,"constitu{a urn universo privado de som, 0 que explica os

. multiplos simbolismos destinados a compensar essa defi-ciencia.·' A imagem, amputada de urn de seus cornponentesessenciais, 0 som, nao podia S8 limitar a um papel expres-sivo, psicol6gico ou dramatico: devia necessariamente tam-bern preencher uma fun~ao descritiva e explicabva; daf 0

emprego da sobre-impressao, de primeiros pianos e da mOll-tagem rapida (da mesma forma que nao se enxerga apenascom os olhos, mas tambem com 0 tato e 0 olfato, por exem-plo, tamb6n e possivel au vir com outros 6rgaos alem dosollvidos. na realidade, todos os sentidos participam, todo 0corpo e todo 0 esp{rito).

o som permitiu incremental" a impressao de autenticida-

Os signos de uma escrita -39

de, 0 senti men to de credihilidade material e esteticada ima-gem. Ele assegura Ulna continuidade no plano da percep9:l0e da unidade organica do filme; "As legendas sempre corta-nlo imperhnentemente as imagens", escrevia Pierre Porte,"obrigarao a ler ap6s ter visto, quebrarao 0 ritmo do filIlle.Ao ver um mme, temos sempre a impressao de que ha de umlado imagens e de outro legeodas. It preciso que esse antago-nismo desapare~'a: e preciso que texto e imagem fundam-see caminhem Dum mesmo ritmo." Alt'im disso, 0 som "valo-riza" 0 silencio e amplia seu poder expressivo: os filmes deTat! (como Play time), bern proximos dos filmes ditos "mudos",e apelando largamente para a imaginaC;aodo espectador, auainda os fllmes de Bresson, especialmente Le journal d' un curede campagne, comprovam-na abundantemente. "0 cinemamudo", escreve Edgard MorinJ8, "ja representava 0 silencio,mas 0$0001'0 pode traduzi-Io por rufdo, enquanto 0 mudo tra-duziao silencio pOl' silencio. 0 mudo colocava em cena 0 siien-do. 0 sonoro concede-Ihe a palavra."

Caso haja uma superposic;ao de som e imagem, suas lin-guagens se reforr;arao entao para apresentar a IIlesma infor-maC;''io(combina~:ao redundante). A atenc;ao do receptor econcentrada e condicionada, e este permanece passivo(mensagem "fechada"). Existe 0 risco de satura~ao e de rejei-c;ao. Aqui, a func;ao da rnensagem e descrever, formar oucondicionar. ,~ "

A combina~ao complementar e usada freqiientementenos documenhlrios. Por seu carater didatico, visa essencial-mente informar e descrever: nesse caso, som e imagem co-rnentam-se reciprocamente, cada uma destas duas lingua-gens sen do fonte de lima parte da informac;ao. A mensageme do tipo "semifechada", eo receptor e mais ou menos passi-vo; sua aten~ao e solicitada pela conjunc;ao dos dois tipos depercepc;ao, mas pode se dissipar 5e a mensagem for longa

18. Le CiminI(! ou (/10"''''(: ;mugi"airc. p_ 1-11,

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40 Estetica do cinema

au prolixa demais (hi sempre uma quantidade maxima deinforma<;;iiosuscetivel de ser comunicada e recebida).

Em rela9:lo a imagem, 0 sam pade ainda ser utilizado emcontraste (combina<;;iiocontradit6ria). Nesse caso, 0 samprincipal e a imagem tern conteudos opostos; a infonnagiioesconde-se num segundo nivel de leHura; sendu a atengaodo espectador estimulada 00 refi:m;ada (efeito choque) e suaimagina<;ao solicitada, este, em gera!, nao deixa de reagir(mensagem "semiaberta"), mas h.1risco de contra-sensa nainterpretw;:ao caso se compreenda apenas uma elas lingua-gens utilizadas; de fato, e alga delicado solicitar ao mesmatempo dais seotielos perceptivos quando as duas inform a-<;oe$ simultaneas"uao convergem 10,

Os grandes te6ricos da setima arte logo perceberam agrande importancia da nao coincidencia, da dissocia9ao en-tre sam e imagem. Eisenstein, Pudovkin e AlexandrafF ex-primem a ideia do "contraponto orquestral" no celebre Ma-nifesto rios [res, publicado em 1928,

Tambem Bela Balazs atribui nma grande importancia aoque chama de "assincronismo", Hene Clair observava que"e 0 emprego alternado da imagem de urn ser e do som pro-duzido por ele - e nao seu emprego simultiineo - que criaos melhores efEdtosdo cinema sonoro e falado". E que "podeser que essa regra, a primeiraa se destacar do caos da Mcnicanascente, tome-5e uma das leis da tecnica de arnanha".

Na "combinat;'ao em contraponto", 0 sam e a imagem sao,alternadamente, fonte de informat;'6es especffi:casque reme-tern umas as outras. A informat;'ao oferece-se a leitura de for-ma dialetica: ela m'ioe redutivel a nenhuma das duas lingua-

19 "A lei geml cia fun<:,,,onervosa e que us informa<;,oe, sensitiva, quo chegamao c6rtex SOfremlltlW 'triagcm' de acordo com as necG<sidades do momento. Unogato nan capta as mensagens andit;vus clesencadoadns por 'cliques' a partir do mo-mento <.'mqlle a inf""mH,',la 'camnnclo,;go' the chcgu pela vh visual" (Sdmwc eIvie, n:' 136, Prome'\"'6S de {" ",lirlec;ue, "Les molecules de la c1ollleu,- et du bien-c-tn," p. 122, DI"~Jacqueline Rt'rlnud),

Os signos de «rna escrita 41

gens, mas ao movimento dialetico que se estabelece entreas duas. A alternancia das linguagens pode ser vista numprimeiro momenta e escutada num outro. Num terceiro mo-menta, 0 espectador e ativo (mensagem de tipo "aberto"):participa, toma consciencia, analisa.

"5e 0 cinema se define como urn conjunto de sons e ima-gens", escreve Louis Porcher 20, "deve-se dizer com c1arezaque nenhuma dessas duas caracteristicas e mais importanteque a outra, e, alem ciisso, que eJas interferem-se con stante-mente, modificam-se mutuamente. (... )0 som contribui pa-ra 0 sentido daimagem e, mais do que esta, estimulaa imagi-naGao." No tempo da "literatura ilustrada", 0 texto preva-lecia sabre a imagem e, em principia, a precedia (como nofilrne de Alexandre Astruc, Le rideau crarnoisi). Contudn,a superioridade da imagem sobre a palavra ja se rnanifestaem 1929 em Applause de Rouben Mamoulian. Hoje ja sereconhece que 0 sam e um fator constitutivo, urn compo-nente privilegiado da imagem, E admite-se que 0 comel1-tario deve intervir apos a imagem, e mio antes dela. "Dessaforma", escreve Jean Mitry 21, "a em09ao precede a expres-sao (... ). Ora, uma emoGaoja significada nao podj2mais emo-cionar, \lma vez que essa ern09ao esta inteiramente na signi-fica9ao dada C .. ). No cinema, 0 que deve prevalecer nao enem 0 significado nem a significat;'ao, mas a passagern gra-dual e continua do nilo-significado aD significado, do emo-cional ao intelectual, atraves de uma significar;iio semprecontingente." A linguagem fotografica e mais "polissemica"(urn significante recobre varios significados, perrnitindo as-sim multiplas interpreta90es) do que a linguagem falada(que, no limite, quando constituida de tennos tecnicos, c"mono ssemica", admite apenas uma interpreta9ao). Ao sepas sal' da linguagem dirigida aos olhos a [inguagem dirigida

20. L'A'I(];o'T/;s,wl, Ed, Ret7., cup, "Le '0"--21 ESlhitique "I P,\~(.·hologie rill ~i"e",a, t, II, p, 105

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42 Est6tica do cinema

aos Qllvidos, passa-se do nao significado ao significado, acio-nando-se, primeiro, a afetividade do receptor, e s6 depoisa sua inteligencia.

o material sonoro e de emprego muito flexfvel, penni~tiwlo erial efeitos particuiarmente interessantes e variados.assim, nao e excepcional que diti!ogos e mon6iogos, que ex-primem 0 conteudo mental de uma personagem, e comeo-tarios de uma terceira pessoa, no presente, passado ou futu-ro, sejam utilizados alternadamente num mesmo filme (refe-rima-nos, por exemplo, acomedia de Woody Allen Take themoney and run (Um assaltante bem trapalhiio). Bern maisraros sao os mmes em que efeitos surpreendentes sao criadospor um simples descompasc.o entre palavras e ruidas: eocaso em Le million, Les belles de nlJit, MiracoZo a Milanoe Okraina. Efeitos curiosos podem ser produzidos quandoha contradi<;ao entre as imagens e as palavras: em Scarface,a mentira que uma personagem conta sobre seu passado (emvuz off) e desvendada pelas imagens que nao correspondema narrativa. A voz off tem um grande poder de sugestao epennite efeitos extremamente interessantes: isto acontece,particularmente, na famasa seqiiencia do filme de Aldo Ver~gano, Ilsole sorge ancora, quando 0 paroco e um outro resis-tente saoconduzidos ao supl{cio pelos nal.istas. 0 padre red-ta litanias; algumas pessoas respondem Ora pro nobis; emseguida, poueo a pouco, toda a multidao entoa esse re5ponsoDum crescendo extraordinariamente comovente; mas a ima-gem 56 mostra, em primeiro plano, 0 paroco e sell compa-nheiro, e mais dois ou tn§s homens da multidiio. "Escutamoso som inchar como 0 rugir de uma torrente. Sentimos a re-volta do povo; este som isolado, simb6lico, nao e5hi numespa<;o real, mas numa espede de espa<;omftico. Seu poderameac;:ador torua-se urn formidavel sfmbolo son oro, predsa-mente porque nao podemos ver a multidao."22

22. Bela Balazs, Theory of the film, p. 203.

Os signos de uma escrita 43

Trabalho eminentemente eoietivo, lim bom filme, ass,imcomo toda boa cria<;ao, 56 pode ser 0 resultado de um enten-dimento harmonioso entre todos os participantes. Destafor-ma, os sucessos de Resnais podem ser explicados em grandeparte pelo iato de 0 cinegrafista ser sempre 0 prolongamentosensfvel do diretor, a18m da estreitfssima colabora<;ao do ul-timo com seus roteiristas e dialogistas. Cada obrade Resnaise urn encontro, um entendimento e uma criac;:aocontfnuajunto a urn autor: com Jorge Semprum (La guerre est jinie),Jean Cayrol (Muriel), Robbe-Grillet (L'annee derniere aMarienbad) e especialmente com Marguerite Duras (Hiro-shima mon amour).

Esse acordo perfeito e pa;·ticularmente fecundo entre umgrande diretor e um criador de dialogos de talento pode serencontrado, de urn lado, em i\hrcel Carne e, de Dutro, emJacques Viot, Henri Jeanson, ou ainda, singularmente, Jac-ques Frevert. As obras de Carue~Prevert tem urn clima bemparticular ("realismo poetico"), nascido ciacolabora<;ao entreos dois hom ens. a hist6ria freqiientemente sombria e 0 des-fecho por vezes tragico sao atenuados por uma poesia terna,de inspira9ao popular, que exala tanto dos dialogos quantodas imagens (Quai des brumes, Le jour se leve, Les partesde la ntlit); por vezes, a poesia e bern caracterizada (Dr6lede drame, Les visiteurs du soir, Les enfant's du paradis).

Os melhores dialogos sao aqueles-que "alimentam" ouprovocam a a<;ao,correspondendo perfeitamente ao car:Her,ao temperamento, a personalidade intima e a sensibilidadedo ator: tal acontece, por exemplo, nos dialogos de MichelAudiard, bern adaptaclos a personagem de Jean Cabin (Lepacha, Les grandes familles, etc.). Por esse motivo, seriadesejavel- tanto nos dialogos "de comportamento", quenos esclarecem a respeito das personagens, quanta nos Jia-logos "de cena", qlie nos informam as pensamentns, as in-ten goes e os sentimentos dos her6is - que os atores pudes-sem, qualquer que seja a situa<;ao, improvisar largamente

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44 Est6tica do cinclI!{1

a partir de U111 texto escrito segundo as necessidades de COI11-

preensao cia hist6ria e segundo a psicologia dos parceiros.A simples auclic;50 de lllYla voz pode dar uma imagem incri-

velmente exata cia maior parte das caracterfsticas f[sicas ementais de Ulna pessoa, e particulannente de um atar. 0poder de convencimento cia palavra humana nao esta unica-mente nas palavras pronunciadas e nas icleias que estas suge-rem: ele reside tam bern no proprio som cia YOZ, e esta naosornente tern um paeler de sugestao, mas tambem um valorpSicol6gico incontestavel (eia exalta a emotividade). Na ve1"-clade, a entona<;ao, 0 ritmo e 0 timbre sao mais importantesque a sintaxe, e se aceitarmos, com Merleau-Ponty, que "aprodigalidade au a avareza de palavras, sua plenitude ou seuvazio, sua exatidao ou a sua afeta(,'ao fazem senti!" a essenciade uma personagem de forma mai~ segura do que muitasdescrio;oes", perceberemos 0 absurdo fundamental da du-blagem. Nenhuma dublagem permite, sem alteragao da ver-sao original, transportar para uma lIngua diferente 0 dialogode personagens que se exprimem na lingua de Dante, deCervantes, de Goethe, de Shakespeare ou de outros Certa-mente, uma obra pode ser refllmada com interpretes quefalam a lingua do pafs ao qual se destina: por isso, nos infciosdo cinema falado, Jacques Feyder tentou resolver 0 proble-ma contratando interpretes talentosos, como Andre Luguete Fran(,'oise Rosay, para as versoes francesas, que, alLis, fo-ram as vezes superiores as americanas. Mas nesse caso trata-se de Ulna nova cria<;~ao.Seria desejavel que todos os atoresde um fllme dominassem perieitamente diversas linguas epudessem, sem nada mudar de uma obra, interpretar, como mesrno talento e 0 mesmo SLicesso, a versao destinada aseu proprio pafs e aquelas destinadas aos oub-os. Mas, a ri-gor, seria isso posslvei? Meslllo antes do advento do generofalado, 0 cinema ja nao era um "esperanto universal", comoqueira Rene Clair, poi.'>uilla imagem nem sempre tem 0

mesmo significado em toclos os paf.ses.

Os signos de uma esc rita 45

Acredibilidade de urna narrativa falha q{wnclo uma perso-nagem 5e exprime ern qualquer lugare em qualquercircuns-h'incia nUllla lfngua diferente daquela que ela usaria normal-mente. em The enemy below, 0 capitiio Murell (Robert Mit-chum), que eomanda um destr6ier americana, e seus ho-mens falam frances, e iS50nos parece conforme a realidadeMas que 0 comandante Von Stolberg (Curd Jurgens), sellimediato Schwaffer (Theodore Bickel) e todos as outrosmembros ciatripulagao do submarino ale mao tambem falemfrances e um poueo desagrada:vel, nao dando ao filme 0 tomde autenticiclade desejado par Dick Powell. Mas qual seriaa sua sa(dar Em inumeros filmes de guerra (de Rene Cle-ment, Duvivier, Melville, Dewever, Autant-Lara, Lindt-berg, sobc'etudo em La derniere chance, etc.) as persona-gens, prineipalmente as alem:.'is, falam sua lingua materna,o que aumenta consideravelmente a credibilidade da histo-ria, mas 0 emprego prolongado clas legendas apresenta se-rios inconvenientes: as imagens sao desagradavelmente cor-tadas e quebra-se 0 ritmo do filme.

"Cada seqliellcia, cada plano, reclama uma certa hanno-Ilia entre dia]ogo e imagem - ou mesmo, mais generica-mente, entre som e imarem", escreve Etienne Fuzellier23.E acrescenta: "Em algumas circunstancias, a prioridade eevidente: pode haver sequendas 'mudas' de uma grande in-tensidade dramatica, oude a imagem-exprime naturalmen-te, por si propria, 0 que 0 autor quer dizer. POl' outro lado,ha outras - e penso particularmente em cedos confrontosdrama:ticos - em que 0 dialogo representa °elemento maisvivo, mais comovente. Nesse caso, seria um erro complicara imagem, fU'l..e-laexprirnir demais: e preciso conserv::i-labastante discretae quase neutra para que aaten~ao do espec-tad or volte-se ullicarnente para 0 jaga, para a expressao epara as palavras das personagens. (. .. ) 0 dia[ogo e insubsti-

23. Clm;",,, et litter"l",.c, Ed. d\l Ce,.f.

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46 Estetica do cinemn

tufvel, eleva vantagem quando se trata de dar ao publicoLltTIaidonna<;:ao precisa e nipida, ou quando a situa<;:ao atin-ge um n(vel clramatico que diz respeito particularmente aossentimentos cias personagens." De fato, em alguns filllles,a palavra e a expressao natural clas personagens e seu papeJe entaQ primordial, 0 que ocorre principal mente nos filmesde Eric Rohmer e de Joseph L. Mankiewicz.

Um born dialogo falado cleve ser simples, claro, espon-tan eo, eficaz, exprimindo a realidade vivida, dela conser-vando 0 natural e a verossimilhao9a. 0 eixo do desenvol-vimento 16gico, dramatico e psicol6gico prende-se a conti-nuidade visual, e "as palavras surgem da situa<;:ao". 0 textopode ser abundante, mas nao hi palavras inUteis, 0 ritmoe preservado, havendo sempre adequagao entre sons e ima-gens. 0 dialogo literario, "bern escrito", comentado, rico,onele se distingue facilmente a "opiniao do autor", suasideias filos6flcas e metafisicas, nao se adapta bem ao cinema.o mesmo acontece com 0 dialogo de teatro, que tem urnvalor "em sf': no teatro, "a situagao e criacla por palavras",o encadeamento verbal e eleterminante, a palavra e escravade urn feixe de conveng6es, a verdade LImconjunto de artifi-dos. 0 pior e que artistas em demasia pretendem-se capazesde desempenhar todas as fungoes. Assim, na maioria das ve-zes, os dialogistas de cinema sao tambem gente de teatro(ao menos na Frangal, poelendo urn unieo individuo 5er aomesmo tempo diretor, roteirista, elialogista, as vezes ator,e £linda autor e adaptaelor. E diffdl admitir que uma pessoacereada de uns poucos parceiros, por mais dotada que seja,possa reunir todas as aptidoes necessarias para a elaboragaode Limmme. Nao surpreende que a maioria clas tentativasten ham fracassac\o (sao excegoes homens completos comoSacha Guitry, Marcel Pagnol, Jean Cocteau, Jean Anouilh,de quem aclmiramos a verve, os di6logos brilhantes e 0 en-canto cintilante). No que COllcerne a transposigao de pegasde teatro para a tela, os reSl1ltaclo.ssao geralmente decepcio-

f

l AS signos de uma escrita 47

nantes: nao passam de simples pe9as filmadas, palidas e frias,"em relevo (a tela possui somente duas dimensoes), em quefalta 0 contato humano, e onele 0 publico se ve privado doprazer eleaplaudir atores em carne e osso. Contudo, algumasadaptagoes, especialmente do teatro shakespeariano, forambem-suceelielas: Hew'y V, Hamlete RichardIII eleLaurenceOlivier; Macbeth e Othello de Welles; A megera domadae Romeu e Julieta de Zefirelli; Julio Cesar de Mankiewicze Macbeth de Kurosawa. Mais recentemente, Roger Coggiotranspos com sucesso para a tela lima obra de Moliere, Lesfourheries de Scapin, dando a pe9a um realismo inusitado,uma contemporaneidade nohivel.

Devemos admitir que, ao menos na Fran9a, nao h::'ill1uitosdialogistas de talento preparados para escrever di::ilogos"realistas", que sao os mais aelequados para 0 cinema; citare-mos Daniel Boulanger (L'homme de Rio, La menace, Lesmaries de l'an II, Les caprices de Marie), Roger Vailland,que se revela muitas vezes urn moralista ir6nico e mordaz(Le jour et l'heure de Rene Clement) e Charles Spaak, quecolaboroll em muitos mmes de i\JarceJ Carne (Therese Ra-quin), de A. Cayette (Avant Ie diluge), de P. de Brocea (Car-touche), de Y Allegret (Germinal) e de Jean Gremillon

,. (Gueule d'a1l1our).

2, A musica - A musica tem umaconsideravel fU1l9aopsico-16gica no cinema, ja reconhecida nos tempos do cinema mu-do: ade darao espectador a sensa~'ao de lImaduragao efetiva-mente vivida e "de liberta-lo do terrivel peso do siJencio".Tem tambem uma fU1l9aOestetica e pSicol6gica de altfssimograu, criando urn estado onfrico, uma atmosfera, choquesafetivos que exaltam a emotividade. Escreve Lo Duca2'1

COJll 0 1';\mo, p1'evalecem os Jll()v;mcnI'OS curitm;cos (dan9'1~.and;)r): com a harmonia, ,I e.\press:'io humana; 0 elemento hanml-

24, r"d",jque "t! cindmlI. pur, "Q"e sai,;_j,-,'i",n~ 118, p. 92.

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48 ' Estetica d()cinema

nico e instrumental sugere e.ltados de alma. D'll,t, analogias entreo .Iome as imagen>, e entre as sensfl~,,3escri'ldas por urn e pehs ()utras.

Verificam-se 'novos ritmos: 0 sincronismo entre tnlhica e ima-gem mio e necessariamente apenas ritrnico, pode tam bern ser psi-eol6gieo (eena de movimento = rnusica unif()rme; eena estatica= musica sincopada, etc.).

A mllsica mIodeve parafrasear a expressao visuaL Nao de-ve "comentar a aGao",explica-la, sustenta-la ou amp liar seusefeitos visuais (salv'oexce<;6es:musira de fundo ou leitmotiv,isto e, refrao). Assim como 0 di,ilogo cinematografico, elamIo tem qualquer valor em si, "a m(lsica deve renunciar alima forma propria se esta aliadaa imagem", observa RolandManuel; ela e um e1emento constitutivo, urn simples e1e-mento de significa<;aodo espetaculo audiovisual, que deveevocar, sugerir sutil e discretarnente, suscitar operac;6es daconsciencia.

Nao vamos ao cinema para escutar lmisic,l. S6 pedirnos que elaaprofllnde em nos Ulila impressao visual. Nao pcdimos que ela nO.1"expJique'" as imagens, m~s que lhes acnoscente llma ress()nfinciade natureza especifl~amente diferente. Nilo Ihe peciimos que .\eja"expressiva" e que acre.lcente <;eusent imento ao cias per<;onagensou do diretor, mas que sej,l "dec()rativa" e Clueacre-'Cente .\eu pr6-prio arabesco aCjuele que a tela nos prop6e. finalmellte, que elase liberte de todos os seus elementos subjetivos, que nos (ornefisicamente semfvel 0 ritmo intenso ria imagem. sern que para issoqueira traduzir sell conteucio sentimental, dram,\tico ou poctico.

Por isso, acho essencial (lue a m\isica de cinema tenha um e,tiloproprio. Se ela tr01)xer a tela sua preOCllpa~ao tradicional de com-posi9ao ou de exprcssao, 010inves de entrarCOlllo associada no 111un-do das imagens, criani urn mundo ciistinto, urn mUlldo do som,que obedece as S\las leis pr6prias ..

Que a mtisica de cinema libeJ"te-se de todos esses elementoosllbjetivos; que se tome, como a imagem, realis\a: utiJi;:ando meiosestritamente musicais, e nao dramaticos, que eLl sustellte 0 ("OIl-

teddo piastico da irnagem eom urn material sonoro "irnpessoal",pOl'111eiode.\sa mistcriosa alquimia de correspondencias que per-tenl'e it propria eS.lencia da profis~;;:odo compositor de trilhas sono-

Os signos de uma escrita 49

ras. Que nos tome perceptive!, enfirn, 0 ritmo da imagem, sembbstinar-se em forneeer uma tradu9ao de seu conteudo, seja.elede ordem emocional, dramatiea ou poctica.

Libertada de to&as suas contigencias academicas (desenvolvi-mento ,infilnico, "efeitos orqueshais", etc.), a musica, gragas aocinema, nos revelanl um novo aspecto dela mesma. Resta-Ihe ex-plorar todo 0 domlnio que se estende entre suas fr()nteiras e asdo som natural. Atraves da, imagem cinematognificas, ela restabe-leceni a dignidade das formulas mais gastas, apresentando-as sobuma nova IlIz: se conespondercm ao que redarna uma determi-nada imageru, tn§s notas de aeordeao serao sempre mais como-ventes do que a musica da Sexta-feira Santa de Parsifal.

A m\isica nunea devc esquecer de que, no cinema, seu carMerde fenomeno sonoro prevalece sobre seus aspectos inlelectuais emesmo metaffsicos. Quanto mais ela se apagar por tras da imagem,mais chances ted de abrir HOVOShorizontes p~ra ,i. Z.'i

De acordo com as concepQ6es de Maurice Jaubert, a mu-sica de cinema nao e de forma alguma uma "musica paraoeupar espac;osvazios", urn simples elemento de "preenchi-mento"; prevista desde a decupagem, juntamente com 0

dialogo, a iluminac;ao, ° cemirio, etc., insere~se harmonio-samente no contexto visual. 0 papel que se Ihe atribui econsidenivel, mas discreto, e 0 alto poder dramatico do si-lencio e empregado com inteligencia: e 0 que acontece mar-cantemeute nos filmes de Bresson, de Antonioni e de Mizo-guchi. Na linha de Maurice Jaubert (Quatorze-juillet, Car-net de hal, Le jour se leve, Quai des b'rumes, LaIin dujour),temos excelentes compositores franceses e estrangeiros, co-mo Georges Aurie (L'eternel retour, La belle et la b&te, Or-phee, Les sorcieres de Salem, Gervaise), Joseph Kosma (LesenJants des paradis, Les amants de Verone, La biJte humai-ne), Francis Lai (Mariage, Mayerling, Anima persa), Mau-rice Jarre (Doutor Jivago, Lawrence daAnibia, The longestday), Francis Roubaix, Michel Magne, George Van Parys,Cl~ude Bolling, Michel Legrand (que compos a musica de

25. Maurice Jauber!, ~a musil/ric de film.

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50 Estetica do cinema

diversos filmes, principaimente para J. Demy, J. Losey,Rappeneau, Jean-Luc Godard), Georges Delerue e aindaMiklos Rozsa, Jerry Goldsmith, Hanns Eisler, Kurt Weil,Nino Rota, Giovanni Fusco, a quem se cleve, principalrnen-te (em colaboragao com Georges Delerue) a musicado fama-so Hiroshima mort amour. i\hrcel Martin26 escreve.

Giovanni Fusco reCllsa sistematicamente qualquer missao 0\1

cornprometimento dramalizante cia mllsica. 56 a hz intervjr nosmomenta, mais importantes dofllmc (qll8 nern scm pre sao os maiscruciais cia u(,:aoaparente. mas os mais decisiv()s na evojw;ao p,ico-16gica das personagens) como llma especie de l'undo mllsicuL bernJimitado em dtlra~ao, bern apagacio em volume, recusando qual-quer facilidade mel6dica, e perrnanecendo absolutamente neutrodo ponto de vista sentimental: aDque pal'ece, ,ell papel e .Iomenteo de dilatar 0 complexo espa~'o"dura~£io e de acrescentar it imagemlim elemento que c de ordem sensorial, lllas que concerne maisao intelecto do que a aktividade.

A compos~~ao intervem, em gera], sob a forma de lim solo instru-rnental (piano, saxofone) e e extremamente discreta; sua recusaa qualquer parafi'a~e servil da a<;aocarresponde a urna vontacie derle8dramatizflr;iio da musica de cinema: ela age como lima tataJi-dade afetiva, numa especie de e.ltad() segundo que se dirige antesde rnais nadll ,to suhconsciente.

Despojamento, objetividade, modestia na expressiio, dis-criyao dramatica, neutralidade no plano sentimentaL .. taisqualidades, altamente desejaveis nurn contexto sonoro, saogeralmente encontradas na musica cIassica e no jazz moder-no, POI' isso, muitos cineastas empregaram com sucessoobras ja existentes de grandes compmitores: Beethoven(Une Iemmemarieej, Mozart (La maison des Bodes, Fievre),Bach e Vivaldi (Les enIants terdbles), Verdi (FolIe ii luer),Rachmaninoff (Brief encounter), Franz Lehar (The merrywindow), Erik Satie (Entr'acte, Une his-toire immortelle),Gustav Mahler (sinfonias n~",3e 5, La Morte a Venezia), Of~

26. Le /rmgnge c;nemalographique,

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Os signos de uma escrita 51

fen bach (Le plaisir), etc., sem esquecermos, e claro, de Vi-cent Scotto, cuja musica facil e arias leves se adaptam parti-culannellte bern aas filmes de Pagnol (LaIemme du boulan-ger, La fille du puisatier, NaYs); quanto ao jazz, as improvi-sayoes de John Lewis (Sait-on-jamais), de Miles Davis o.:as-censeur pour rechafaud), etc.

IV - Qutros elementos (espceifieos e miD especificos)cia linguagem cinematografica

L 0 cenario - Vise 0 cineasta umarepresentagao impessoale desinteressada das pessoas e das coisas, ou, ao contrario,uma irnagem comovida, ha sempre uma disposiyao privile-giada para os diferentes elementos que comp6e essa ima-gem. A arte da composigao consiste essencialmente em or-ganizar e arranjar da melhor maneira passivel todos os ele-mentos, do principal aos secund<irios, a fim de obter urnequilibrio harmonioso do conjunto, ou urn efeito psicol6gicoau dramatico. Mas 0 cinema e essencialmerite movimento.E, evidentemente, nao e possivel controlar todos os compo-nentes de uma imagem animada, especialmente quando 0

objeto e demasiadamente muhiveL Alem disso - e mais doque em qualquer arte gnlfica - a composigao nao se sujeitaem quase nada ao raciocinio, antes t.racWz0 carater afetivo,instintivo, ou do que e pr6prio das tendencias do artista.omovimento, 0 ritmo e 0 desenvolvimento, a ideia diretriz,a progressao dos pensamentos e a expressao das personagensatraem intensamente a ateny,"iodo espectador e pOl' isso au-toriz.am umacerta displicencia na "diagramagao", certos de-sequilibrios transit6rios que seriam inadmissiveis em outrasformas de expressao artistica, como a fotografia. It neces-sario, contudo, nao perder de vista 0 fato de que "tudo eimportante em tudo", que tudo interfere em tudo. 0 eJe-menta principal e sell ambiente sao interdependentes e in-

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52 Est6tica do cinema

teragem, forrnando juntos um sistema macrosc6pico profun-damente vinculado ao tempo. A menos que 0 cliretor tomeo fundo deliberadamente nebuloso, jogando com a profun-didade de campo, 0 cenario e freqlientemente mais um pro-tagonista do que um simples ambiente sem outra implicagaoalem de sua pr6pria materialidade. Muitos cineastas atri-buem, com ra~dio, uma grande importancia ao cen<irio, ciamesma forma que n6s, a medida que nos acostumamos apensar complexamente, sentimo-nos cada vez mais solida-rios com 0 resto do mundo. "Numa civiliz3gao que glorificoumagnificamente 0 indivfduo", escreve Jean Hamburguer27,

"a cOllvivencia com 0 cemirio anele as homens evoluem, acumplicidade com os outros habitantes desse cenario, a ma-gia da pedra, daarvore e do passaro, 0 sentido do lac;osecretoque nos une ao resto do mundo COlllec;aralll a se atrofiarParece-llle que esse senti do de iigaC;3ocom 0 muncio voltaa suscitar, atualmente, impetos passionais, quase esteticos,que talvez estejam nascendo como uma reac;ao contra a securados sistemas devotados apenas ao culto do indivfciuo " Ape-sal' de 0 cenario ser muito importante, ele deve no entantoeclipsar-se par tras da a930 c contribuir para formar um tocloharmonioso, sob pena de a aten9ao do espectador deter-5enUlll detalhe, desviando-se assim da ideia principal do filme:"Realmente, no campo total", escreve Jean Mitrv'28, "devover tudo, mas minha aten~:ao deve se voltar a todo in stantepara aquilo que e 0 mais importante. Isto, porem, s6 podeme ser reve/ado pefa pr6pria arao, pois e ela que dirige meuolhar. Se, portanto, ela me guia, nao pas so mais escolher[iv.remente. Na verdade, 0 espectador e sempl"e atrafclo, nu-rna imagenl, pOl' aquilo que Minge, piastica ou dramatica-mente, ()maximo em signiflcat;ao." Cabe ao cllJ"etoJ"S8r sufi-cienteI1Honte convincente.

27. Un.i'''''' 'I"I""""'e. r:d. 1"1"",",,,,.;on. I). 129.2il. C,·/I,,;lill"" cI '''·!I',·I",{")!.ie,{,, ci"';'''rI. Ed. Unjvcrsi(ail"<'''. I. II. p.• 11.

.'

Os signos de uma escrita 53

as cenarios podem ser reais (naturais) - paisagens ouconstruc;:oes humanas - au artificiais - construfdos em es-tudio ou ao ar livre - com vistas a servir de ambiencia parauma ac;:8.o.as Genarios artificiais sao as vezes grandiosos, ma-jestosos, por vezes cicl6picos. Como nos filmes de Cecil B.de Mille, ou em superprodu<;:6es como Ben-Hur, Quo Va-dis, Giani·(Assim caminha a humanidade}, Spartacus, Cle6-patra, Fara6, A Blblia, Os centuri6es ... Toda uma cidadepode ser reconstitufda (Aurora, La kermesse hero"ique), oumesmo uma paisagem: um [ago gelado (Alexandre Nevski),uma floresta (A ?!lo·nede Siegfried, Juliette ou fa ele des son-ges), uma selva (King Kong), etc.

Podemos distinguir varias tendencias na concepc;ao geraldo cenario:

a) Realista ou neo-realista - Da escola realista dos anos trin-ta, representada par Renoir, Feyder, Duvivier e Carne, doscineastas sovieticos e americanos (as paisagens grandiosase majestosas dos Estados Unidos, Texas, Montana, Oregon,Wyoming, etc. sao cenarios naturais incomparaveis, espe-cialmente para os westerns) e da escola italianado p6s-guerra(uma tendencia reune os cineastas que possuem uma visaorigorosamente "realista", pontilhista e direta da vida, comoAntonioni, Blasetti, Renata Castellani, De Sica, LucianoEmmer, Germi, Rossellini, Zampa,~Z<vattini; uma outra,alguns cineastas ditos "romanticos", cuja visao e menos "du-ra", mais colarida e calorosa: De Santis, Lattuada, Vergano,Visconti, etc.).b) lmpressionista - 0 cemirio, quase sempre natural, e es-colhido, vo[untaria ou intuitivamente, em fun98.0 da linhadominante (psicol6gica ou dramatica) da a9ao. as artistasdessa inspira9ao tem um grande sentido de clima. Uns po-dem ser ciassificados uuma tendencia mais intelectualista,cerebral, conceitual e objetivista (Antonioni, Bergman,Bresson, Dreyer, Fellini, Visconti, etc.); outros, numa ten-

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54 Estetica do cinema

dencia predominantemente sensorial (au sensualista) e in-tuitiva (Bunuei, Dovjenko. ).c) Expressionista - Da escolaalema, nascida nos ano.';vinte,e cuja inf1uencia estetica bastante profunda marcou e ainclamarca as obms de um grande numero de realizadores docinema mundial: Bergman, Dreyer, Carne, Eisenstein,Epstein, Lang, Staudte, Sternberg, Welles. Esse movi-menta rejeita 0 realismo, 0 naturalismo e 0 impressionismo,baseando-se numa visao subjetiva do mundo, na tradu~aoda interioridacle, expressas pela deforma<;ao, pela estiliza-9:10,pela abstra<;:lo e pelo simbolismo. Ivan ColF9 comentaa respeito do filme expressionista aleman Da aurora it meia-nolte, que conta a hist6ria de urn caixa de banco que [ogecom 0 conteudo do cafre: "Tudo se desenvolve numa atmos-fera febril, e eis que urn grande ejovem diretor, Karl HeinzMartin, tambem d,iretor do Deutsches Theater de Reinhardt,apodera-se do assunto e cria com ele, auxiliado pelos melho-res pintores de sua cidade, 0 primeiro mme expressionistacubista: isto e, todas as paisagens, todos os objetos sao au-mentados ou diminuidos desmedidamente, segundo a con-cep9aO da cena; tudo e visto atraves dos olhos db caixa aluci-nado: guiches de banco oscilantes, mas oblfquas, homensque gritam como loucos; toda a alma do her6i e reproduzidanas coisas, nas formas e na atmosfera interior do mme."

o gahinete do dOlltor Caligari e a ohra-prima do expres-sionismo pictllral: 0 cen<irio, composto sobre panos por trespintores-cen6grafos, Walter Rohrig, Hermann Warm eWalter Reimann, exprime 0 ponto de vista de um louca: asdeforma9rleS, a estiliza9ao e 0 simbolismo sao levados ao pa-roxismo. 0 cenario entra em correspondencia intima Coma mentalidade pato\6gica do her6i (neurose, anglistia, confu-sao, morbidez). A mOrie de Siegfried, Os niebeLllngos, lv/e-tropolis sao obras-primas do expressionismo arquitetural:

29. III Cinea. n" 1

Os signos de uma escrita 55

os cenarios sao grandiosos, majestosos, estilizados, organi-zados em superficies simples oude se confrontam zonas deluz e de sombra.

2. A i1uminas:ao - A ilumina9ao e "urn cenario vivo e quaseurn ator". Cria lugares, dimas temporais e psico16gicos, criaestetica. Assim como as linhas, as formas e as cores, a luzpode produzir efeitos sobre a sensibilidade de nossos olhos,mas tambem sobre nossa sensibilidade como urn todD. Aspercep90es efetivas (au mentais) sao acompanhadas de sen-sas:oes e de seutimentos agrada:veis au desagradaveis, dondeos efeitos de uma bela paisagem ou de uma musica harmo-niosa, beneficas ao carpo e ao espirito. Atraves do jogoe da arte dos valores - ou seja, das diferen tes grada90esde sombra e luz - 0 cineasta pode obter a sensas:ao de real-ce, dando a seu assunto a atmosfera e 0 valor expressiv~ quedcseja. A arienta9ao do criador em rela9ao a luz condicionao modelado. "A ilumina9ao", escreve Ernest Lindgren 30,

"serve para definir e moldar os contomos e pianos dos obje-tos, para criar a impressao de profundidade espacial, paraproduzir uma atmosfera emocioual e mesma certos efeitosdramaticos." A ilumina9ao de ambiente (1uz gera1 e difusa)serve para criar urn ambiente psico16gico geral, enquantoa iluminas:ao de efeito (tuz dirigida e contrastada) permiteobter efeitos dramaticos precisos. Reguiaudo conveniente-mente os projetores e refletares, todos os efeitos desejadossao posslveis; imagens muito suaves, contrastes fracos oumedios, com inumeras nuances intermediarias entre 0 pretoeo branco, ou, ao contrario, imagens duras, com Iuzes vio-lentas, sombras exageradamente acentuadas, fortes oposi-90es entre sombras profundas e luzes intensas, silhuetas es-curas sobre fundo branco, sem meios-tons ... Os italianos edinamarqueses ha muito mostraram-se capazes de utilizar

30. The An oj the film, p. 129.

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Estetica do cinema

as possibilidades expressivas da luz artiflcial, mas foi CecilB. de Mille 0 primeiro a faze-1o,em The cheat, sombrio dra-ma de dume, onde se avan90u ern muito na pesquisa deuma dramatiza9ao da luz, abusando-se das contraluzes, dosclaro-escuros, dos efeitos de si]hueta, das sonibras projeta-das, e das ilumina<;oes dos rostos ern contra-plongee, etc.A partir de 1919, 0 expressionismo alemao e 0 Kammerpielinspiram-se largamente !laspesquisas de De Mille sobre a ilu-rnina<;ao, a Bm de expressar valores psicol6gicos e drama-bcos e simbolizar plasticamente os estados de alma. EsseStimmung, esse ambiente sentimental do claro-escuro apa-rece no famoso Caligari de \Viene e, particularmente, nosfilmes de Lang (A morte can<;ada, Os Niebelungos, Whilethe city sleeps) e de Murnau (lv'osferatu, Fausto, 0 ultimohomem ~ a obra-prima da Kammerspie{j e tambem A noitede Sao Silcestre, de Lupu Pick, A rua sem alegria de Pabst(corn 'Verner Kraus, que fez 0 doutor Caiigari, e ValeskaGert, atriz de ffsico ingrato, que mais tarde trabalhara comFellini).

Aapresenta<;ao do con£litoda luz e da sombra, a ubliza9iiodramatica do claro-escuro, sao encontradas em varios filmes"noirs", psicoi6gicos ou polidais, onde 0 confronto das luzesacompanha a violencia da a<;ao:filmes de Carne, \Vyler,John Ford, depois de Welles, Dassin, Kazan, Wilder, Dmy-tryk, Robson, Huston, Siodmak, etc. Urn born exemplo eo filme Laura de Otto Preminger.

Apartir de 1945, 0 neo-realismo italiano reintroduz a mo-da da ilumina<;ao natural, plana e poueo contrastada, estilo"jornai". Essa rea<;aoantiexpressionista acentua-se mais ain-da por volta do final dos anos dnquentacom a nouvelle vaguefrancesa e movimentos similares: as tomadas sao feitas aoar livre e em cemirios reak

3. 0 guarda-roupa ~ 0 guarda-roupa dos atores estamuitas vezes intimamente ligado a atmosfera geml, sobre-

Os signos de uma escrita 57

tudo nas comedias burlescas e de pasteiao enos filmes ex-pressionistas, oode as roupas sao extravagantes e a maqui-lagem exagerada. Em gera], 0 guarda-roupa cias comediasmusicais e rico e suntuoso: Yolanda and the thief, An ameri-can in Paris, The bandwagon, de Vincent i\Hnelli, The wi-zard ofOz de Victor Fleming, Cabaret, de Bob Fosse, Ba-bes on Bradway de Busby Berkeley e Singing in the rainde Stanley Donen. 0 ohjetivo do guarda-roupa e exaltar abeleza, 0 carater, a personalidade dos "'her6is", e "valorizaros gestos e atitudes das personagens". "Num mme", escreveLotte Eisner:l], "0 guarda-roupa nunca e urn elemento isola-do. Devemos avaJia-Ioem rela<;aoa um certo estiJo de ence-na<;ao,do qual de pode ampliar ou dimuir 0 efeito. Sobres-saini do fundo dos diferentes cemirios para valorizar os ges-tus e atitudes das personagens, d~ acorda com a postura ea expressao das mesmas. Deixara sua marca, por harmoniaou contraste, no grupo dos atores e no conjunto de urn plano.Finaimente, sob esta ou aquela ilumina<;iio,podera ser mo-delado, real<;adopela luz ou apagado pelas sornbras."

Os trajes pod em serfrancamente realistas, tendo 0 cineas-ta enb'io um grande cuidado com a reconstitui<;ao hist6rica:La kennesse heroique, obra-primade Feyder,Jeanne d'Arc,de Victor Fleming, Othello, de \Velles, Horneu eJulieta, deCukor, Os sete samurais, de Kurosawa, etc. As imagens po-dem ser muito elaboradas, as encena9i3es~reciosas, rebus-cadas com exalta<;aopoetica, como em Mayerling, de Teren-ce Young, Fattj di gente per bene, de Bolognini, La ronde,de Roger Vadim, nos filJnes de Max Ophuls (La ronde, LolaMontes), etc. 0 quarda-roupa pode ser intemporal quandoa exatidfio hist6riea cede a LImapreocupa<;ao maior: a de su-gerir ou traduzir simbolicamente caracteres, :;stados de al-ma, au, ainda, de criar efeitos dramaticos au psicol6gicos (Ale-xandre Nevsky, Metropolis, 0 anjo azul, 0 11ltimolwmem).. .

31. In HCLue ,z" Cillema (num"ro wbee 0 guunla-roupa). p. (i8

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58· Est6tica do cinema

4. A cor - Lembremos desde ja que a ausencia de corese uma das conveo96es cinematograficas das menos discu-tlveis (sentimos bern menos as cores do que os vaiores, istoe, as diferenQas relativas de i[uminaQao entre as partes clarase as partes escuras de um mesmo objeto). Dito isso, arepre-sentaGao em preto-e-branco e pelfeitamente justificavei emfilmes puramente psico16gicos (como Le journal d' un curede campagne, Les enfants terribLes, Brief encounter, etc.)enos filmes de violencia. "0 principal problema", escreveRoger Boussinot .'32, "6'saber se a cor cleve ser 'realista' aumIo. Na primeira concep9:l0, a cor tentara 5e conformal' arealidade: lembremos que hto e realmente diffcil, e que 0

cineasta corre 0 risco da 'bela imagem', do 'cartao postal'.Ocupando lim espa90 desproporcional em rela950 aque ocu-pa na visao natural, a cor impoe uma nuance 'decorativa' aimagem flimica, 0 que conduz facilmente ao maneirismo:razao pela qual parece ser contra-indicada paraalgum assun-tos violentos (como filmes de guerra, filmes policiais e filmesde terror)." E 0 que acontece com A rua da vergonlw., deMizoguchi (que, no entanto, e um dos mestres da cor), como filme de Martin Scorcese, Raging bull ~ retrato de umhom em quase primitivo, brutal tanto num ringue como numquarto ou num escrit6rio, possu{do pela vontade de destruire mesmo de se autodestruir - obra notavelmente feita empreto-e-branco. Eric Moreau 33 escreve a respeito do mmeElephant man de David Lynch· "Elephant man tenta serdecididamente uma ohm de arte, buscando a em09ao, 0 sen-sivel, 0 sensual e 0 cultural. Narrada quase como uma hist6-ria infantil por lima mae bela e feminina que quer adormecerseu filho monstruoso, dar-HIe finalmente 0 sono ciasestrelase a paz do .'leu amor, a filme comove-nos a cada imagem.Mas nao 58trata apenas de uma singularidade de nOS50Ssen-

32. L'cl1e"dophiie d" cine",,,. Ed. Borelas, p_ 33.1.:):3 L'Ecolelih'mlricli, n"25. p. 1175

Os signos de uma escrita 59

timentos; extremamente cuidada, utilizando os recurs osmais sutis do preto-e-branco, a fotografia revela urn mundopesado, sensorial, onde a procura do estranho, da nor domal, acompanha necessariamente uma abordagem decidi-damente realistadas coisas. John Merricke 0 mme em came-ra lenta de seu nascimento, que ele decomp6e em sua cabe-9a, sao produtos do real, surgem de uma minllciosa obser-va9aOdaqi.lilo que e: realismo das s6rdidas mas do Soho (eclaro!), do hospital, do teatro. David Lynch (assim comoScorcese em Raging bulT) devolveu a nobreza ao preto-e-branco. A verdade e que e diffcil imaginar esse mme emcores. Precisamente por ser 0 mundo colorido em demasia,a cor paradoxalmente apaga 0 que e, atenua a luz, os contras-tes, ela suaviza, ou melhor, absorve os fragmentos de sen-sualidade de que os objetos sao feitos. Dickens escrevia cer-tarnente ern preto-e-branco." Em seu tJ.lmeChasse-croise,Adelle Dombasle tambem emprega admiravelmente 0 pre-to-e-branco para cap tar a obsessiio e 0 misterio das persona-gens masculinas. CO!l1preendendo que os momentos dra-lwiticos ou de grande intensidade psicokigica mesclam-semuitas vezes corn momentos de dis ten sao all de feJicidade,alguns cineastas (Alain Resnais, Marcel Hanolln, EttoreScola, etc.) tentaram, em geral com sucesso, introduzir mo-mentaneamente acor, Oll combina-la, de forma permanenteou nao, com 0 preto-e-branco (Nuit ethyouillard, Le huitie-•me jour, C'eravamo tanti amati). Marc Hillel e ClarissaHenry foram extremamente bem-sucedidos ao combinar core preto-e-branco em sell documentario hist6rico (Ern nomeda ra9a), filme-dentincia que revela uma das mais miste-riosas institnigoes nazistas, os Lehensborne. Contudo, emcertos casos, a cor, sern apoio do preto-e-branco, destacaa violencia: e 0 que temos, pOl'exemplo, nos epis6dios virisdo filme de John Sturges, Gunfight at the 0 K. Corral.

Acor se irnp6e em filmes onde ela possa exibir sell caraterfeerico, caloroso, artificial e invasor, onde possa "frustrar a

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60 Estetica do cinema

a~ao de recalque": comedias rnusicais (Singing in the ,rain,de Donen, An american in Paris, e The bandwagon, de Mi-nelli), as mmes mio-realistas (Le ballon rouge, de Lamorisse,Henry V, de L. Olivier, Sadka, de Ptochko), as fihnes ex6ti-cos (Porta do inferno, de Kinusaga, Orfeu Negro de Camus),hist6ricos (La carrosse d'or, de Renoir), as mmes de aven-tura e os westerns. 0 cineasta nao busca sistematicamente"a-reprodugao exata das COfes: pode expJorar as tonalidades"mais quentes"-(vermelho alaranjaclo) ou "mais frias" comfinalidades artisticas, visando 0 contraponto com 0 conteudodramatico das imagens. Escreve Jean Mitry 31:

Sc naD e possivel modiflcar os valores nas tomadas, ao menospode-se esc-olher seus elementos e compor cemirios adequados.Urn detcrrninado quadro que responde melhor, par suas tonali-dades naturais, Ii. expressiio de um deterrninado sentimento, podeser preferido a um outro. A melhor prova disso e Set:en men/romnow, western exaltante, cuja progressiio nos arrasta, a medida q llC

a tens:io dramatica cresce, de uma pai,agem verdejante do Oesteamericano ao fosco implacavel das rochaS', a secura dos areais. nomeio dos quais acontece 0 aeerto de eontas final, enq uanto a peque-na cidade de madeira evoca, peio eneanto ins6lito dos s(;loons !ill-damente dccorados, todaa nostalgia de urna epoea que fil'OUdefini"!ivamen!e para tds.

E.I<;aprogressao, essa mudall9a de paisagem, teria sido possivelscm dllvida em preto-e-branco, rna., a cor af tem UIll papellladallcgligenciaveL As cores, ao me.'mo tempo brutais € matb-:adas,daa urn tom, uma res.loll:incia tragiea a rudeza do cemirio, algaque 0 prcto-c-branco mais suave nao scria capn de reproduzir,e a cidadezinha do oeste deve todo seu esplendor ao ('fomatismosuti! dos falbala.l 1860

As cores imprimem em nosso ser sentimentos e impres-s6es, agem sabre uossa alma, sobre nosso estado de espfrito;podem servir, portanto, para 0 desenvolvimento da a<;iio,

3<1.Eslhe!ique el psychologic r/" cinema, Ed. Univcrsitair",. t. II, p. 128,

Os signos de uma esciita 61

participando ditetamente na cria<;iioda atmosfera, do climapsicoI6gic'); ess'e alto valor psicoi6gico e dramaticd cia core judiciosamenteaproveitado na segurida parte de Ivan; nterr{vel, de Eisenstein, onde uma dominante vermelha e~-'prime 0 dinamismo, a exalta<;iio das cenas de ba~q-uete e.de dan<;a, e uma d.ominante azul glacial, ° terror do preten-'dente ao trbno que percebe que vai ser vftirnade urn enganoe que a S4~hora chegou. Qutros cineastas que tambem fize-ram,e~celentes filmes depesquisas de cores foram Antonioni(It deserto rosso), Renoir (La fleuve) Tchukhrai' (Aquadra-gesima primeira), Visconti (Senso, Il gattopardo), ReneClement (Barrage contre le pacifique, Plein soleil" La mai-son sous Ies arbres - neste filme, 0 amarelo brilhante expri-me a alegria de viver do pequeno Patrick [Patrick Vinc'ent],o azul, a d09ura e afemiriilidade de Jill Hallard [Faye DUlla--way], os lil~ses, a inquieta<;iio do amanhii, a angustia'de Jill).Mamouliai-dinha ideias precisas sobre 0 emp;ego da~or:como comprovam Dr. Jekyll andi\'lr. Hyde, de 1931, Beckysharp'; de 1935, primeiro longa-metragem em Technicolorti-icromo da hist6ria do cinema, e Blood and sand, de.1941.:Para 0 coiorido deste ultimo filme, Mamoulian inspirou-se,na pintU:ra espanhoia, no reaiismo mfstico .de Coya, Crecoe Velasquez" ~ ..

No,estado atual de nossos conhecimentos, e dificil, seniioimposslve!, racionalizar ° uso de imagens para fins psico16-gicos: e principal mente a subjetividade do criado[ que de-termina seu emprego. E verdade·queexiste lim simbolismodacor, mais ou menos confusamente sentido, podendo estaser associada a sentimentos, a signos ea conceitos: A difictil-dade e considerar as cores nao isoladamente, mas com vistasa formar..um todo harmonioso entre elas, em sua continui-dade, em sua ligaryaoimediata ou longfnqua e em seu dina~.mismo. "A signifiea<,;iiopsicol6gica das cores e feita de har-

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62 Estetica do cinema

manias reiativas, naa de cores 'em sj' ", escreve Jean,Mitry3.,\"associar 0 vermelho a c61era, 0 azul a ternura·e 0 amareloa traig:'io e de urn simbolismo priIO<lrio" senao infantil. Damesma forma que as sonoridades musicais s6 ganham sen-tido relativamente umas as Gutras, somente as relag6es detonalidades rel'acionadas a uma dominante qualquer (e asharmonias que daf seguem) podem orientar 0 espfritu numsentido determinado. Sendo este sentido impasto pela situa-<;8:0 dramatica, ele s6 pode ser urn acordo, uma ressonancia,vista que as sensag6es coloridas combinam, em grande par-te, com as implica<;oes que S8 Ihes atribui, seu 5imbolismosen do apenas acess6rio. Por isso as significados inversos con-cedidos ao tema da bran~ura em A linha geml e AlexandreNevski. (. .. )Ascores sao bem menos ferteis do que as formas,nao podendo aquelas, portanto, dominar estas, mas apenassubmeter-se a sua suposta realidade au irrealidade. Sao coi-sas que nao impedem de forma alguma que as rela90es cro-maticas criem novas analogias, isto e, que determinem su-gestoes ou associag6es que podem modificar ou desviar assignificag6es formais. Embora permitam, no plano realista,sublinhar mais intensamente a qualidade mais substancialdas coisas, 0 que importa, bern mais que as cores, e seu dina-mismo, suas relagoes na continuidade e sua transformagaogradual em outras cores."

"Sob esse ponto de vista, as cores podem ser trabalhadas,interpretadas e escolhidas em flingaO daquilo que 0 autorquer exprimir. Podem fugir ao realismo sem deixarem deser verdadeiras ou verossfmeis; podem se adaptar aos senti-mentos das personagens e a seus dramas. Mas, nesse caso,entra emjogo a slIb.ietividade do criador bem como a supostasubjetividade de lima determinada personagem da hisMria;a visao de lim autor, nao a tradllg30 convencional de limaimagem mental. ,. E indiscutfvel que existem Iigagoes entre

·35. Eslhetique et I's,!choiol'.ie d" C;,,,jIllQ, Ed. Universitaire,. t. ll, pp. 129 e 139

Os signos de uma escnta 63

as sens3Qoes visuais, e mais especificarnente entre a Coi·ev,irios estfmulos, especialmente as auditivos, da mesma for-ma que podemos associar lim colorido a um odor ou inversa-mente: "os perfumes, as cores e os sons se correspondem".Mizoguchi nao declarava que gostaria de tornar 0 tato e osodores de seus mmes perceptiveis? Essas associag6es desentidos (sinestesias) e correspondencias sensoriais, essaideia da correspondencia universal,.ia cara aos romanticos,sao evocadas por Paul Eluard "Tudo e compadvel a tudo,tudo encontra seu eco, sua razao, sua semelhanga, seu opos-to e seu devir por toda parte. E este devir e infinito." Sines-tesias e correspondencias sensoriais sao fen6menos intuiti-vos ou de ordem afetiva: da{ a dificuldade de extrair suasregras gerais ou, ao menos, certas relaQ6es rigorosas, equa-goes matem:Hicas que poderiam interferir na elaboragao deurn filme. 0 que e certo e que as palavras - assim cdmoos sons e as imagens - nao sao apenas a expressao do pens a-men to: elas tem por vezes uma virtude magica. Por isso,sublinhou justamente Pierre Brisson, h3: nm versos doAnnonce a Marie de Claudel "0 odor da pradaria, dos poma"res, do gada trabalhador e lento, a fioresta, os campos ceifa-dos, a lavoura e os diversos trabalhos que seguem () rilmodas estag6es"

5. Atela larga - Permite ampliar 0 hoi·izBnte para fins espe-taculares. Impoem-se particularmente o<i. apresentaQao de'vastas paisagens, cenas de massa ou rnovimentos de multid50(numerosos atores e figurantes). Reconstitui sUI1)reendente-mente a sensagao de relevo (gra9as a visao periferica e aorga-nizagao do campo em prohmdidade' exibigao de todos os pla-·nos de cena, de personagens, de movimentos, do plano de[rente ao extremo plano de fundo). A contribui<;8.oestetiCa'do scope e consider:ivel nos filmes de espehiculo (bales, mu-sic-halls, cenas de circo) enos filmes onde 0 espa90 deter-mina ou condiciona a agao (westerns, aventuras maritimas,

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64 Estetica do cinc1JW .

tem~s historicos), como em A Tunica, grandioso melodramacristao de H. Koster (em Cincm.ascope); em White Christ-mas, music-hall de M. Curtiz, especialista em lilmes_ deaventuras mar{timas (em Vistavision), Cle6patra, de J.Manckie\vicz e,Oklahol1w, de F ..Zinnemann,(em TQddA 0);-Ben-HUT, com a batalha naval a a carrida: de bigas, de W.Wyler" e Spartacus, de S Kubrick (Panavision); El Cid, s-u-perprodu~iiode A. ~hnn (Technirama); A Bfblia, de John.Huston (D-150); A conquista do Oeste, de. John Ford e-.Aqveda do imperio romano, de A. Mann (Cinerama).·.

E;l!l compensac;ao, nao,permitindo a tela Jarga, em prind-pio,Q pri.meiro plano isolado, elaadapta-se mal ~tScenas dra-maticas de interior e aos assuntos "intimistas", de-colora\,aopsicoi6gica (no entanto, Max Ophiils conseguiu·:notavel-meqte, y,arias vezes - em Lola Montes por exempJQ--, dei-xarno ~scuro as cantos da tela de Cinemascop.e, au empregarfrqg~entos docenario como caches*; Teinosuke Kinugasaconseguiu 0 mesmo em A Gan;a Branca).

6.A profundidade de campo - Reintroduzindo a ter('ceiradim en sao (0 relevo) na encena9ao,. a profundidade.de campopern).ite ef(?itos interessantes e muito eficazes. 0 fot6grafopode ou procmar uma grande nitidez em todos as planQs(do primeiro plano ao plano geral), ou limitar a nitidez emprofundidade (decupagem :virtual), com vistas a isolar esse~)Uaque1e elemento da imagem, para criar efeitos espeeiais,dar a ilusao de relevo, ou pi-ender mais forte mente a atengao.

Durante muito tempo, a encena9ao no cinemaJoi conce-bida da mesma forma como 0 era no teatro, 0 ator evoluindodiante_d9. cemirio (tela pintada) e nao com 0 cenario: 0 valorexpressivo especfnco da encenagao em prohmdidade {au seja,cOll-'itrufda em torno do eixo de tomadas, num espaqo longi-

'Cache _ nO sentido literal, "esconde "; na linguagern ciIJematogr:ifica, papel ne-gro usado,Para cobrir llma parte cia pelicllla a Wr impressa. (N. do T.,)

Os signos de uma escrita 65

tudinal'em que as personagens evoluem em liberdade) eradesconhecido Encontramos uma utilizagao sistematica nu-tavel da profundidade de campo na obra de Renoir (Boudusalve des eam:, com fotografia de L.H. Burel, La regle dujeu, fotografia de J. Bachelet) e sobretudo na de \Velles (Citi-zen Kane, com fotografia de Greg Toland, urn dos maioresfot6grafos do cinema mundial, The magnificent ambersons(Soberbal, com a celebre seqiiencia do baile que devemosao excelente diretor de fotografia Stanley Cortez), mas tam-bern nos filmes de 'Wyler (The best years of ow"liues, Wuthe-ring heights, que tern uma sequencia difleil, j:'i celebre, ad-miravelmente fotografada por Greg Toland) e em Ozoguchi(A elegia de Osaka e As irmi1s de Cion).

Com a encena9ao em profundidade, os deslocamentos noquadro tend em a ser substituidos pela mudanga de planoe pelos movimentos de camera. 0 espago nao e mais frag-mentado, estatico, temporalizado, mas representado em suatotalidade, urn verdadeiro "espago-tempo", com suas estru-turas espaciais mais-dinamicas e mais psico16gicas. Com aintrodugao do pluno-seqiiencia (plano longo Ull muito lon-go), a decllpagem classica e substitllfda por uma decupagemvirtual, baseada ou na mobilidade das personagens e na suadisposi9ao relativa durante 0 plano (a £"1mosacena da cozi-nha, em Soberha, onde cunversam George e sua tia), ou nasimultaneidade de varias agoes, no e_5cakmamento em pro-fundidade de diversos centros de interesse (a cena de tenta-tiva de suiddio de Susan, em Citizen Kane: 0 copo e 0 Frascode veneno em primeiro plano, sua cabe9a na sombra em se-gundo plano e, ao fundo, a porta). A profundidade de camponao necessaria mente ohriga a camera:'i. imobilidade (comoResnais admiravelmente demonstrou), nem os longos pianosfixos implicam fon;osamente estatismo teatral ou monotonia(sobretudo Welles e Ow conseguiram escapar notavelmen-te a esse risco, gra9as a escolha judiciosa dos enquadramen-tos, clos angulos e clos efeitos de ilumina.:;ao).

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66 Est6tica do cinema

Com adecupagem tradicional (montagem analftica de pIa-nos slIcessivos), participamos diretamente na a<;:1o,sentimo-nos diretamente envolvidos e comprometemo-nos apaixo-nadamente. Com 0 plano-sequencia, a encenagao "realista"cria uma ten sao dramatica intensa, valoriza 0 drama psico16-gico do qual nos tornamos testemunhas atentas e objetivas(nossa liberdade em reia9iio ao acontecimento e ilus6ria, aocontnirio do que pensava Andre Bazin).

7. A representm;:fio - 0 cinema -exatamente como 0 tea-tro (segundo a concepgiio de Grotovski) - pode existir semguarda-roupaou cenarios, sem muska, sem efeitos de ilumi-Oa9:10,sem palavras, mas mlo existe sem atores. "A repre-sentagao (jeu) e uma atividade natural ao homem, constatadaem todas as sociedades desde a aivorada de nossa hist6ria.Nada mais espont:1neo do que 0 gosto do simulacra ou dodisfarce, que permitem a todos projetar-se em imagens desi mesmos, reunidas para dar prazer, para reconfortar all,mais agressivamente, para conquistar 0 mundo e dominaru outro. "36

Normalmente distingue-se:

- A representa9ao estilizada, altamente teatral, voltadapara urn dramatismo tenso dos dia]ogos. Cada replica, densae penetrante, exprime 0 pensamento, 0 estado de espiritu,a ideia, 0 carate)". A psicoiogia nao e expressa, tudo e "repre-senta9ao", sfmbolo (Ivan, a tenivel de Eisenstein). Obser-ve-5e que os grandes atores do expressionismo (ConradVeidt, Emil Jannings, Werner Krauss, Heinrich George,entre os mais celebres), tern tun desempenho bastante pes a-dO",teatral, pr6ximo da enfase, as vezes da exibic;:ao.

- A representag:lo est:itica, que e ados atores que, por

36. Hob~rl Abiraclwd ... Lc jCHX d" r~1rc ~ dn p",.a;I",,··. Le thJm I"e. Ed. Ho,··,bs. p. 154.

\

\ Os signos de urna escrita 67

sua per;sonalidade forte, imp6em sua presen<;a excepcionaJna tela (Raimll, Jannings, Cooper, Wayne, Cabin, Welles,Laughton .. ).

- A representa<;ao dinamica, vohivel, quE"correspondebem ao temperamento mediterranico (filmes italianos emgeral).

- A representa<;ao frenetica pode ser encontrada COI1S-

tantemente no cinema japones, no frenesi dos adolescentese no humor "glacial": Kurosawa, principaimente por inter-media de seus dais interpretes favoritos, Toshiro Mifune eTakashi Shimura, apresenta-nos em sua abra aspectos COll"-

tradit6rios: ora e a violencia, a fuga, a exuberancia, ora co comico, ora a serenidade harmoniosa, a medida, 0 paderde uma sabedoria e de uma reflexao amadurecida.

- A representagao excentrica: e particuiarmente 0 estiloda FEKS (Fabricado Ator Excentrico), movimento sovieticode vanguarda fundado em 1922 por Kozintsev, Trauberg,Yutkevitch e Guerassimov, e que se op6e ao cinema-olhode Dziga vertov (que pretendia captar a realidade·ao vivo)e ao "laborat6rio experimental" de· Kulechov (que contavaunicamente com a expressao do ator, "modelo vivo", e coma montagem). Deve-se observar que os atores da escola ex-pressionista representavam, de acordo com a concepc;:ao docenario, estaticamente au, ao contnirio, desarticuladamen-te, com gestos e movimentos acelerados·.

Na realidade, 0 estilo de representac;:ao dos atores padevariar ao infinito: elemento essencial de uma ohra, deve semoldar a exigencias plasticas, psicoi6gicas e dramaticas bemdeterminadas Pode exprimir a violencia e a paixao (Fagosna planicie de Ichikawa, Ham-Kiri de Kobayashi), a violen-ci~ e a cruelclade, mescladas ao realismo e a poesia (os filmesde Yamamoto, por exemplo), a anglistia (Lola Montes), pro-blemas nervosos (Beiissima, de Visconti), 0 vigor (Due soLdidi speranza, de Castellani, com Maria Fiore e Vicenzo Muso-

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(

/lino), a paixiio conticla (filmes com Marie-Jose Nat), a paixaodesenfreada. Robert Enrico diz sabre.Romy Schneider37;."e

I1ma atriz maravilhosa e de \lma fotogenia diab6lica. Quer5er a primeira. Ela sabe 58 entregar a fundo -a um pape!.Na cena crucial (do mme Le vieuxfusil), em_CJue eia e vl0len-taela, onele 5e debate e assiste ao ass3ssinato ela filha de seumarido,- estava possuida a ponto de kr,derrubado urn atardas escadas. No final da filmagem estava cheia de hemato--~nas, tinhas -as unhas quebradas e urn declo machucado. Cor-tei cle'proposito 0 sam para s6-cleixar a imagem agir, masos uivoserarn aterrorizantes, .. " Por vezes as atores sao ob1'i-gados a rep res en tar de forma introspectiva, como, porexemplo, no filme de Bresson, Lejottrnal d'un cure de camepagne, ou no de Dreyer" La passion de Jeanne d'Arc (as dra-mas e as paixoes sao lidos nos rostos e nas atitudes). Os gran-des atores tem uma deterrninada personalidade, mas tam-bem 0 dom de se transformar"facilmente. Michel Piccoli dizde si mesmo. "H:i atores que Beam fora de si, que·tentamagradar, que gostam de ser vistos Quanto a rnim, gostoquevejam as personagens que interpreto. Nao estou que-rendo 'aparecer', .. Dobro-me, eclipso-me. Para ser ator,e preciso ser flexfvel." 0 desempenho dos atores adolescen-tes e sernpre natural, espontaneo, cheio de pureza e poesia:Fran(,~oisTruffaut diz a respeito ela atua9ao das criangas3~:

"Como as criangas trazem automaticamente poesia, achoque se deve evitar introduzir elementos poeticos num filmede criangas, de maneira a deixar que a poesia nasga por simesma, como lIm acrescimo, como urn resultadq e nao comoum meio, nem tampouco como um objetivo a ser atingido.Para dar urn exemplo, eu acharia mais poetica uma sequen-cia que mostrasse llma crianqu enxugando louga do que umaoutra em que a mesma cHauga, vestida de veludo, colhesse

68 Estetica do cinema

37 '"I.e" belles de M Cinema '. 0126. /m(1gesct 10;0'11'.<38. "Fair" dn cinema a\"('c Ie, enfanti . Le cOllrrier de rUlle.,'eo, mdr~'()de 1979.

Os signos de uma escrita 69

flares numjardim ao som de MozarL" E acrescenta: "Bas-ta urn sorrisu de crianga na tela e a partida esta ganha (... ).Osatores adolescentes trazem uma pureza extraordin:hiaque nem sempre se obtem com atores profissionais (.,.), Aocontnirio dos atores profissionais, as criangas nao disp6ernde truques. Nao procurarn se colocar em posigao vantajosaem relac;ao a objetiva, niio sabern se tem um perfil 111elhol'do que 0 outro, nunca usam maliciosamente um sentimento.Tudo 0 que a criam;:a hlZ na tela parece curiosall1ente estarfazendo pela prirneira vez." Essas observa~:()es explicam,sem duvida, 0 grande Sllcesso do filme de Yves Robert, Aguerra dos boWes, que, no entanto, mio foi do agrado dosdistribuidores.

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Capituio III

o estilo da escrita: a montagem visual ea montagem sonora. A organiza(,iio do real

A montagem naa 5e limita -longe disso -'a urn simplestrabalho de cortes e colagens: e tambem e sobretudo umacriar;ao. Linguagem do realizador, "ela imp6e urn estilo erevela uma visao-original do mundo," A montagem presidea ,organizac;ao do real visando satisfazer simultaneamente ainteligencia e a sensibilidade provocando a emo<;:ao artfstica,o efeito dramatico ou onrrieo. faz malabarismos com 0 tempoeo espaQo, com cenarios e personagens (trucagens e dubles).Eo elemento mais especifieo cia iinguagem cinematognifica,"0 funclamento estetico do filme" (Pudovkin). Os gran descineastas e estetas (Eisenstein, Pudovkin, Balazs, Arnheim,etc.) esfofc;aram-se em estabelecer a nomenclatura dos di-versos process os de montagem e em analisar seus efeitos.psi-co!ogicos..., '"

A partir desses estudos pod em os classificar os tipos demontagem em tres categorias principais:

1. A montagem ritmica --':";CQmQafinna Bela Balazs, ciaarleda montagem resulta 0 ritmo do Hlme: "Gragas a montagem,o movimento da narrativa sera ora rapido e amplo como 0

hexametro do canto epicodos Antigos, orasemelhante a umabalada, ,cuja cadencia, a inicio impetuosa, vai aos pOUCOS S8

abrandando ,. Para Eisenstein, "quer se trate da composigaodos conjuntos, ciahar-monia das massas justapostas, da orde-

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72 Estetica do cinema

na<;aomel6dica das fonnas au do martelar rftrnico qpsdeta-,Ihes, estamos em presen<;a de uma 'dao<;a'. Essa mesma'danga', que eshi na origem das cria<;oes musicais e picturai,s,preside a ll1()uta'gelil dnematograBca".' Para 'Elie' FaU're' '\)'ciheMa,.'arquitehira em movimeritd; consegue despertar.sens3<;oes musicaLs que 5e solidarizam no esp:l<;o atraves desensa<;oes visuais que se solidarizam no tempo". "Na verda-de", cliz, "e lIllla ffi!lsica que nos atinge por intermedio doolho." Alternancia peri6dica de tempos fortes e tempos fra-cas, "ordem e propon;iio no e5pa<;0 e no tempo", tudo issodecorre de uma montagem criativa habilmente realizada,que faz de urn born mme.l1m poema, uma "arq\i'itetura: emmovimentd', lima ·"m6sica que 'nos' atinge'por intermeclio 1

do olho", uma criaQao pictural; uma dan<;a:It diffciLdar' unia definiQao p1'ecisa,do 1it\l1o ((ill .umipa),

dos fatores extremamente \\ibjetivo"s e vahaveis que inter-vem (como aaten9ad do espedador)f,Ele-resulta do movi-mento das:imagel1s'entre si is da,cohvergenciaentre 0 rhovi-mento·cia aten9ao'do espectador e 0 das imageris. "Um pia-no", did, -Po Chartier;'''naO'e percebidoda'mesma maneirado come(,'o'ao nm'. A princip'id, e reconhecidbe'situa:do': e,digail1os, ,'ae.xpo_~{9ao.'VelD entao,um il1oment'o'deaten9ao,mdxima em que a-s-ignincaQdo/-a razao-de set de l1rri'planoe captada: gesto, palav1'a;ou 'mov.inient6 fazem"Q'des8livol-vimento progredir; em seguida, aaten<;ao baixa, e, 5e0 planose prolongar, nasce uin moiue'nto de aborreeiihento-, de im-paciencia. 5e cada plano for'co1'tado no m(imento'exato dabaixa da aten<;ao para ser substitufdo par outro, a aten9aosera sempre mantida, 0 filmeteni ritmo;-·O'que chtnnamoslde ritmb cinemat-ograflcd nao e port'allto a apreensao das re-la906s de tempo entr'e os pIanos', mas a coincidencia entrea dfll'a~'ao de cada phoo e os'mbvimehtos de ateogao ;qoe 'ela suscita e satis,hz. Nao se tratade'um ritmotemporabhs-trato, mas de 1'lln ritrhry,da aten¢ail," A<I':ietceP9ao iillui,tiv(/.;do ritnio pelo-espedadornasce da.sllcess'ao dos'pl'aods, se- ;

.J

o estilo da escrita 73

gundo as rela96es precisas criadas pelo cineasta (e monta-dor): rela96es de extensiio, que determinam no espectadoLuma impressao de duragao definida simultaneamente pelaextensao real do plano e par seu conteiido dramatico, e rela-goes de densidade, que se traduzem por um choque psicol6-gico que e tao mais intenso quanto maior for () plano. "Ascombiha(,'oes rftmicas", escrevia Leon Moussinac, "que de-correrao da escolha e da ordem das imagens, provocaraonoespectador uma emogao complementar a em09ao determi-nada pelo tema do filme (... ). It do rHmo que a ob1'a ciilema-togranca extrai sua' ordem e sua ProPor9ao, seril ° que naoteria ela as caracteristicas de uma obra de arte." Diferentesfatores intervem na cria9ao do 1'itmo, especialmente 0 movi-mento no plano (conteudo estatico ou din<lmico da imagem),a musiea, acomposi9ao daimagem (Iinhas e fonnas domin'i.n-tes), a extensao do plano (uma 511cessaode primeiros planascria umaelevada tensao dramatica). Mas a ritmo e sobretudouma questao de distribuio:;ao metrica, sendo a extensao dosplanas 0 elemento decisivo. 0 ope'rador insistira neste-ounaquele detalhe signiflcativo para mostrar (valor,documen-tario), e tambem para sugerir(efeito dramatico). Procuraraos efeitos e 0 ritmo melhor adaptados a a9ao. Em pHncfpio,os acontecimenfos que se precipitani em ritmo rapidb numfilme de aQ3.oserao traduzidos por lima sequencia de pIanoscurtos (ritmo nervoso, dinamico, violento"" tnigico, etc.), en-quanto que lIma seqliencia lenta; oum "filme psicoI6gico",sera, ao contrario, 1'epresentada por uma slices sao devianosIongos que darao uma impressao de languidez, de tedio, deociosid9-d\,:,de tristeza, de monoton-ia, de sensualidade, etc.Pianos cada vez mais cl1rtos traduzem, em princfpio, um au-mento da iotensidade dramatica em di'regao ao n6 oua revi-ravolta da m;ao. Os planoscada vez mais longos provocamnormalmente a impressao inversa: volta acalma, relaxamen-to Pfogressivo, abrandamento da angl1stia, etc. Finalmente,uma sequencia de pianos breves e longos lllllna ordem qual-

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74 Estetica do cinema

querprovoca um ritmo sem tonalidade dram<itica au psico]6-giea especial. E alternando as dUJ"at;oes e varian do com fre-quencia a extensao dos pIanos que 0 filme adquire diversi-dade e vida.

II. A montagem intelectual au idco16gica - Opera9ao comurn objetivo mais ou menos descritivQ, que consiste emaproximar pIanos a Bm de comunicar um ponto de vista, urnse~timento all urn conteudo ideol6gico ao espectador. Ei-senstein dizia. "Uma vez reuniclos, dois fragmentos de fil-mes de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em \lmnovo conceito, em urn nova qualidade, que nasce de sua jus-taposi<;ao (... ). A montagem e a arte de exprimir au dar signi-ficado atraves cia reia<;ao de dois plan os justapostos, de talforma que essa justaposigao de origem a ideia ou exprimaalgo que nao exista em nenhum dos dois pianos separada-mente. Oconjunto e superior a soma das partes." No cine-ma, como em quase todos ramos das ciencias, quando 5eI:eune elementos (no sentido amplo) para ubter um re5ul-tado, este e freqiientemente diferente daquele que se espe-rava; e 0 fen6meno dito de "emergencia". Assim, aprende-mas em biologia que pai e mae misturam seu patrim6niohereditario para criar uma terceira personagem niio peb so-ma desses dois patrim6nios, mas, ao contrario, pela combi-nagao deles em um novo patrim6nio inedito_ Em qufmica,sab~mos sef possivel misturar dois elementos em quaisquerproporgoes; mas nao e possivel combina-Ios verdadeiramen-teo em urn corpo novo se nao se tern proporg6es perfeita-mente deflnidas (Lavoisier); da mesma forma, na montagemde um filme, os planos s6 podem se)"reunidos 11umarelagiioharmoniosa. Andre Lwoff' tern opini6es semelhantes as deEisenstein: "As propriedades da molecula de cloreto de so-dio nao sao a soma das propriedades dos :Homos de cloro

[ .I~Ii,"al comlmil>'. Ed. ["ny""d, p_ 2G6,

o estilo da esc rita 75

e de sndio Um celuia viva e mais do que a SOlllado nlicleoe do citoplasma, sen do que, considerados separadamente,n8m um nem outro sao vivos. Ull1a l1<1<:;aoe mais do que asoma de seus cidad:los. Uma desintegrag:)o at(lmica e maisdo que a libera<;ao de algumas partfculas: e a destruiQao daunidade atomo." E acrescenta. "r~evidente que, qlla~do selibera contigente, ou seja, quando se desincorpora os recru-tas que estavam incorporados ao exercito, este nem por iS50se desintegra. Quando se desincorpora partes, a perda naoacarreta a desintegragao do todo. Quando se desintegra umtodo, este deixa de existir." Essas li!timas observat;oes noslembram que longas-metragens podem niio ser projetadosintegral mente, e isso sem muito prejulzo, sem altera<:;iiodaobra, ainda que essa pnitica (a nao ser quando vise suprimircertos prolongamentos, isto e, certas fraquezas) possa preju-dicaJ' a inteligibilidade e a com preen sao da narrativa: pois,em principia, como sublinha Scherer: "S6 e possivel com-preender algo em sua liga<;aocom todo () resto."

A mantagem icleo16gica consiste ern dar da realidade umavisao reconstru(da intelectualmente. "Fotografar apenas deum ,'-inguioum gesto au paisagern qualquer", escreve Pudov-kin, "como um simples fot6grafo poderia faze-lo, e utilizara cinema para criar uma imagem de (lrdem puramente tecni-ca, poisnao devemos nos contentar em observar passiva-mente a realidade. t necess:hio ten tar 'WCrdiversas (Jutrascoisas que nao seriam perceptfveis a qualquer um t precisonao somente olhar, mas exalllinar; nao somente ver, masconceber. nao somente to mar conhecimento, mas com-·preender. E e nesse ponto que as procedimentos de monta-gem sao de UI113 ajuda eficaz ao cinema ( ). A montageme entao insepanivel cla icleia, que analisa, critica, une e gene-raliza (. .. ). A montagem e en tao um novo rnetodo, desco-berto e cultivado pela setima arte para precisar e evidenciartoc1as as liga<:;6es,exteri()res ou interiores, que existem n:1realic1:1dedos acontecimentos diversos_"

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76 Estetica do cinema

A montagem pode criar ou evidenciar relai;6es puramen teintelectuais, conceituais, de valor simb6lico: reJa<;oes detempo, de lugar, de causa e conseqiiencia. Pode fazer urnparalelo entre openirios fuzilados e animais degolados (Agreve). As vezes, a liga<;i'ioe sutil e pode nao atingir 0 espec-tador. Em Le Langage cinematographique (p. 176), MarcelMartin relata urn efeito de montagem em Montanhas de au-ra (de Serge Youtkevitch), resultante daaproxima<;ao simb6-tica pOl' paralelismo entre "uma manifesta<;ao openiria emSao Petersburgo e uma delega<;<'iode trabalhadores que vaipedir ao seu patn'io a assinatura de lima pauta de reivindi-ca<;oes (em Baku)",

"- os operaTio:; diante do patrao;- as manifestantes diante do oHcia! de poiicia;- 0 patrao com a caneta na mao;- 0 oHcia! ergue a mao para dar ordem de atirar;- uma gota de hnta cai na folha de reivindicagoes;- 0 oficial abaixa a mao, salva de tiros; urn manifestante

tomha;- uma segunda gota de tinta cai no pape! (essa segunda

gota evoca simbolicamente lima gota de sangue)."

Em seu filme Zuyderzee, Joris Ivens aproxima varias ve-zes cenas de destruigao de cereais (trigo incendiado ou joga-do no mar) durante a crise capitalista de 1930 da imagemcomovente de uma crianc;;afaminta. "0 reaiizador", escreveBalazs, "apenas fotografa \Jma realidade, mas ele 'recorta'uma determinada significagao. Suas [otos sao incontestavel-mente a realidade. Mas a montagem da-Ihes lim sentido (... ).A montagem nao mostra a realidaele, mas a verdade - oua mentira." It nessa perspectiva - procurar 0 maximo efeitode choque que a imagem for capaz de produzir a servigode uma causa - que a montagem ideol6gica p6de ser utili-zada pelos cineastas sovieticos para fins de propaganda, co-mo uma arma eflcaz na longa batalha relo triunfo da Revolu-

o estilo da escrita 77

gao. A "experienciade Kulechov" demonstra 0 papel criadorda montagem: urn primeiro plano de Ivan Mosjukine, volun-tariamente inexpressivo, era relacionado a urn prato de sopafl.lmegante, um rev6lver, urn caixao de crianga e uma cenaerotica. Quando se projetava a seqiiencia diante de especta-dores desprevenidos, 0 rosto de Mosjukine passava a expri-mir afome, 0 medo, a tristezaou odesejo. Outras Illontagenscelebres podem serassimiladas ao "efeito Kuleehov": a mon-tagem dos tres leoes de pedra - 0 primeiro adormecido,o segundo acordado, 0 terceiro erguido - que, justapostos,formam apenas urn, rugindo e revoltado (em Potemkin\ ouainda 0 da estatua do czar Alexandre III que, demolida, re-constitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situagaopolftica (em Outubro). Robert Bresson precisa: "Assim co'-mo as palavras do dicionario, as imagens s6 adquirem poderatraves de sua relagao." It faeil constatar que imagens (ousons) neutras, tomadas isoladamente, sao "influenciadas"peb justaposigao de outras imagens (ou de outros sons) (0mesmo se da com a justaposi9ao de cores). "0 cinema devese exprimir", diz Bresson, "nao por imagens, mas por reb-goes de imagens, 0 que nao e de maneira alguma a mesmacoisa. Da mesmaforma, urn pintornao se exprime porcores,mas por relagoes de COres: urn azul e um azul por si mesmo,mas 5e esta ao lado de urn verde ou de urn vermelho, ja naoe mais 0 mesmo azul."2 Ternos a tend~ntia natural de proje-tar, sobre todas as coisas, nossas impress6es, nossos senti-mentos e nossos pensamentos. Estes, alias, podem sercons-cientes ou inconscientes. Albert Einstein dizia que "quantoa mirn, naa ha duvida de que nosso pensamento funciona namaior parte do tempo sem utilizar palavras e, a18m dis so,de forma largamente ineonsciente". A impassibilidade dorosto de Mosjukine, que assumia diversas tonalidades na fa-mosa "experiencia Kulechov", com eerteza levou os direto-

2. Pabvra, de Robert Bresson, in Cahiers <I" dntmlJ. n'.'75.

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78 Est6tica do cinema

res a acreditarem no grande poder cia montagem, 0 papeldo ator sen do, no limite, totalmente negligenciado.

III. A montagem narrativa - Utilizada para coqtar uma 3(aO

atraves da reuniao de diversos fi·agmentos de realiclade, cujasucessiio sedestinaa formar lima totalidade significativa. Es-se tipo de montagem tern uma hm<;ao "descritiva" - a maisnatural e a mais comum -, enquanto a montagem rftmicae a intelectual antes se clistanciam do domfnic descritivo.Sendo 0 tempo a dimensao fundamental de qualquer narra-tiva, pode-5e clistinguir, de aeordo com a ardem das suces-soes, quatro tipos de montagens narrativas:

a) A montagem linear - E a mais simples e a mais ci::issica:um3 a9ao tiniea e exposta em uma sucessao de cenas dispos-tas umas ap6s as outras numa ordem l6gica e cronol6gica.

b) A montagem invertida - Nessecaso, a ordem cronologieanao e mais respeitada. 0 filme e eonstrufdo a partir de uma011 varias regress6es (}lash-back) Um au mais fragmentosda a9ao passada sao inseridos numa <l9aopresente, eomo emLe jour- se leve, Citizen Kane, Brief encountu, Le diableau corps, Morangos silvestres, Ela s6 danr;ou um veraa,Monsieur Ripois. A tecnica, que consiste em misturar 0

passado ao presentc, tern sido muito usada - e talvez abusa-da - hoimeio seculo, tanto no cinema quanto no teatro (nape9a de Salacrou, L'inconue de An-as, Ulisses, que se matouporque sua mulher 0 enganava, reve, em alguns minutosantes de maner, toda a sua existencia; alga comparavel aofilme Les chases de fa vie, com Michel Piccoli). Pode haverum presente, um primeiro e um segundo passado (The bare-foot confessa) au introdw:;ao de urn futuro no presente emlugar do passado (j7asli-Iorwar-d), como em Underworld.

o estilo da escrita 79

e)A montagem alternada - Baseia-se no paralelisl110entreduas ou varias a90es contempon1neas: imagens justapostasque mostram alternadamente personagens numa discussao,um perseguidor e urn perseguido (como nos westerns e fil-mes de perseguigao), etc. As montagens alternadas rapidaspodem sllScitar no espectador uma em09ao intensa e man-te-Io em suspense, traduzindo a iminenciado drama, dafata-lidade, como vemos frequentemente nos filmes de Hitch-cock (Strangers on a train, par exemplo). A sequencia daprocissao em A linhageral e um celebre exemplo de monta-gem alternada bem elaborada: e construfda a partir de umaserie de linhas de forga visuais, dramaticas e plasticas, mon-tadas alternadamente, analisadas pelo proprio Eisenstein daseguinte forma3.

1) a linha de for9a do ealor, que aumenta de uma imagempara outra;

2) a linha de fOfgados diversos primeiros planos, que cres-cem em intensidade plastica;

3) a linba de for9a do extase crescente, que perpassa 0 con-telido dramatico dos primeiros pIanos;

4) a linhade for9adas "vozes" femininas (rostos dascantoras);5) a linha de for9a das "vozes" masculinas (rostos dos can-

tores),6) a linha de for9a dos que se ajoelham sob os leones que

passam (tempo au crescendo); essa-coiltracorrente animaurna contraconente mais ampla que atravessa 0 tema pri-mario - 0 dos carregadores de leones, de cruzes e de es-tandartes;

7) a linba de for9a dos que se prosternam, unindo as duascorrentes ao movimento geral da sequencia, "do ceu apoeira". Das pontas brilhantes das cruzes e dos estandar-tes erguidos para 0 eeu.aos personagens prostrados, as ca-be9as mergulhadas no p6 ..

3. Thej1/"'-'Cllse. p. 65.

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80 Estetica do cinema

d) Amontagem paralela - Baseia-se na aproximac;ao simb6-licade varias ac;oescom 0 objetivo de fazer surgir uma signifi-cac;ao de sua justaposic;ao. A simultaneidade temporal dasvarias ac;6es[Jaoe absolutamente necessaria. Encontramosurn exemplo tlpieo de montagem paralela em Intolerance,de Griffith: quatro epis6dios - a tomada de Babi16nia porCiro, 0 massacre de Sao Bartolomeu, a Paixao de Cristo,e urn drama moclerno, acondenac;ao a marte de urn inocentenos Estados Unidos - tudo conduz a urn unico tema: a into-lerancia social e religiosa atrave.s das eras. "A audacia", es-creve Jean Mitry1, "reside no fato de as quatro narrativasnao serem sucessivas, mas entremeadas, 0 autor passandode uma para autra segundo a tecnica, entao completamentenova, da montagem alternada. Para 0 espectador, tudo sepassa como se cada elemento de uma hist6ria continuassedramaticamente urn elemento da outra, os acontecimentosrelletindo-se uns nos outros num ritmo cada vez mais 'cerra-do'. Vejamos 0 exemplo da sequencia final: 0 movimentotresloucado dos carros de Cira e 0 das radas dos autorn6veissucedem-se de forma tao precipitada que acabam se confun-dindo para aMm dos seculos na visao do espectadoT. Psicolo-gicamente contestavel, de certa forma ingenuo e tambemum pouco primario, esse filme nao deixa de ser urn dos mo-numentos do cinema mudo. Seu ritmo e prodigioso." Outro~xemplo de aproximagao simb6lica encontra-se em A maede Pudovkin, entre a ascensao do povo russo rumo a suaHbertagao e os hlocos de gelDarrastados pelo degelo do Ne-va. Marcel Martin5 escreve:

o eineasta tende cada vez menus a decupar seu filrne de maneiraa destacar uma serie unilinear e inequivoca de acontecimentos;ja nao sublinha par meio de montagem ou de movimentos de came-ra aquilo sabre 0 que ele deseja fixar a atengao do espe("'.adoc a

4. D;ctiomw;re </" cimima5. Le {a"ga!;e cine"'atogrlllJhiqlle. pp. 2.83-281

o estilo da escrita 81

camera nao desempenha mais 0 seu papel habitual de nos dar 0

ponto de vista de uma testemunha virtual e privilegiada sobre to-dos os acontedmentos facilitando assim 0 trabalho perceptivo eestirnulando a preguiga intelectual do espectadur (. ). 0 abandonoda linguagem concebida como conjunto de procedimentos de es-crita \igados a tecnica, lal como era praticada por Eisenstein auWelles> e portanto acompanhada de uma rejei9ao do espetaculo.nogao ligada a da diregao (... J. Passamos a urn outro plano: 0 cinemade roteiristas cede espago ao cinema de cineastas_ 0 cinema miomais CDusiste essencialmente em con tar uma hist6ria pOTmeio deimagens, como outras 0 fazem por meio de palavras Ollnotas musi-ca;s: consiste na necessidade insubstituivel da imagem, na prepon-derancia absoluta da espec;ficidade visual do filme sobre seu cara.-ter de veiculo intelectuai ou litenirio.

Nos filmes decididamente "modernos", 0 espectauor nan maistem a impressao de estar assistindo a um espetaculci lnteiramentepreparado. mas de cstar sendo acolhido na intimidade do-cineasta,de estar participando COlli ele da criag:lO:diante desses rostos quese oferecem, des5es personugens disponivcis, desses aconteci-mentos em plena constituigao, desses pontos de intcnogagao dra-maticos, 0 espectadur conhece a anglistia criadora.

Tais filmes oferecem bern freqiientemente uma riquezade reflex6es sobre 0 nosso devir, referindo-se de certa formaa todas as esfera5, a todas as dimens6es de nossa existencia.Convidam-nos a sonhar, a meditar sobre urn c'aminho nova-liseano, que se faz ao caminhar, uma rota sem balizas ondeoprovavel se misturaconstantemente ao iircerto e ao inespe-rado. No cinema, hem como no teatro, 0 sentido Hunea edado ao espectador, e5M sempre em projeto, sernpre emconstrugao. Encontramos essa ideia de mudan!)'a, no teatro,na narrativa brechtiana, que se op6e a concepgao dramaticaaristoteIica da narrativa em que todas as partes sao interde-pendentes, articularn-se entre 5i com perfeigao e subordi-nam-se ao desfecho.

A dificuldade em racionalizar, em homogeneizar ou con-cluir pode desnortear 0 espectador que nao esta preparadopara 0 inesperado, para apostar no improvavel e para pensar

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82 Estetica do cinema

de forma complexa6. E e hem mais faeil educar urn ator doque 0 publico, pais este naa e homogeneo, apreendendo assignas de forma diversa.

Os mmes nos quais "0 espectacior conhece a angiistia cria-dora" lembram, pela estrutura cia narrativa, pela processode narra98.0, as reflex6es de Michel Salomon: "Nada e sim-ples. Nada e estabelecido, nenhum resultado e definitivo,e as mudanQ3s mais desconcertantes podem nos desviar aqualquer momenta em direQao a novos horizontes, termsprometidas au miragens, triunfos inesperados au impas-ses ... "7 E ainda 0 teorema geral evocadd; por Ilya Prigo-gine: "Qualquer qU'e seja 0 seu grau de complexidade, ne-nhum sistema e estruturalmente estaveL Nenhum sistemaesta ao abrigo das transforma<;6es ligadas a introdu<;iio denovos atores, de novas perspectivas. Niio existe urn final dahist6ria. "

6. Entre os grandes pensador6s contemporaneo.s dotados de llma grande preo-cupaQao de sintese, os mais mafcantes sao. sem duvida, Eimtein e Teilhard deChardin (mortos elIl 1955). Falando do ultimo, disse (em col6quio da Une.,co)Amadon Mahtar M'Bow: "Tal COmO\lOla partitura musical, seu pensamento naopode ser compreencliclo em fragmentos ,eparados.·

7. L'aveu;r de la vie, Ed. Seghcn, p. 29.A vida, a evolu~ao dos acontecimentos cnracterizam-se por periodos de conti-

nuidadc intcrrompidos por bifllrca,,6es. Quando se chega a um ponto de hifurca-"ao, diversas solu,,6es sao possiveis, e basta que \lm pequeno f"enomeno chamado"flutuu"iio" intervenha para quc se En--ore<;apreferencialmente uma da" evolu-,,6es. 0 que desmente 0 proverbio pell!: "Se conheces outem e hoje, conhecerasamanhii,"'

S.lhid" PI', 69-70. r

Capitulo IV

Do pensamento do autor it imagina9iiocriadora do espectador

Como escreveu Renato Mav, "0 cinema e uma arte de cola-bora<;ao, e 0 mme, obra de urn s6". Exceto nos casos emque estamos diante de autores completos, como Chaplin,Clair, Eisenstein, Keaton, Stroheim, etc. e de certos repre-sentantes da "Nouvelle Vague", 0 problema e saber quemeo guia desse empreendimento coletivo. Jeanson nao temduvidas de que 0 autor do fllme e seu roteirista. Para outros,eo ator principal (nao [alamos de um mme de Fernandel,de Cabin, de Marilyn tvlolUoe?); mais raramente, 0 publicoatribui a autoria de um filme ao autor da adapta~ao Oll dotexto, ao autor das composi~6es musicais, ao responsavel pe-la fotografia, pelos efeitos especiais o.uao cen6grafo (0 (iltimotem as vezes, contudo, urn papd determinante: no expres-sionismo alemiio, pOl' exempl0, e em igllmeros filmes emque se celebrizaram cen6grafos como ~hxDouy, BernardEvein, Alexandre Trauner, Cedric Cibbons, Lyle Wheeler,Mario Carbublia; Excalibur e um bom exemplo de mme re-cente [1981] em que os achados forarn obra mais de cen6-grafos e guarda-roupas do que de roteiristas). Enfim, sobre-tudo nos Estados Unidos, 0 produtor pode ser considerado° "autor do filme", da mesma forma que ° dire tor: e 0 casode Stanley Kramer, executive producer de 0 Trem apitanitres vezes, dirigido pOl' Fred Zinnemann. Quanto a n6s, ad-mitiremos - salvo exce<;6es e com 0 objetivo de sirnplificar

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- 0 diretor como sen do 0 autor do filme, concordando comas afinna<;:oes de Christian-Jacque; "0 verdadeiro autor deum filme e () diretor, da mesma forma que 0 roteirista e 0

autor do roteiro. 0 diretor eo diretor-autor do filme, quee uma obra figurativa original, sem qualquer rela<;:flocoma obra literaria. Se 0 mesmo roteiro for filmado por dois dire-tores diferentes, teremos dois flImes diferentes 0 que pro-va que 0 autor do filme e exatamente 0 diretor." Desta formadiremos: Ordinaql people (Gente como a gente), filme ame-ricaoo de Robert Redford com Donald Sutherland, Mary Ty-ler Moore, Judd Hirsch, Timothy Hutton

Certamente, cia rnesma forma que uma partitura traz emsi urn concerto em potencial, om roteiro, obra literaria, trazem si um filme; mas 0 dire tor, junto com os atores, cen6-grafos, figurinista5, iluminadores, fot6grafos, etc" tem,mais tarde, a possibilidade de fazer brotaralgo mais e melhordo que a roteirista escreveu.

Alguns diretores, como Julien Duvivier, Edouard Moli-naro, etc., mostr3m-se a vontade em qualquer genero, e suaprodu9ao, muito abundante, mio se atem a nenhum estilodefiniclo: em vao procuramos em suas obras a expressao deurn pensamento au mesmo de um temperamento, de umareal continuidade au de uma repeti9ao. Mas normal menteo autor 5e conta em suas obras, fazendo sempre 0 mesmomme: todas as obras sao mais ou menos autobidgrJficas esempre se repetem. Assim como todos os criadores (pinto-res, mtisicos, escultores), os diretores, quaisquer que sejamas categorias em que os ciassificarmos, fingem con tar 0 mun-do exterior quando con tam a si pr6prios e ao mundo interiordo pensamento dos homens. As ideias de um autor coinci-dem com as de suas personagens ou com a apresentaQao desua obra. Na realidade, pOl' pudor, e raro que um artista"desnude-se" total mente em sua obra; uma parte de sua inti-midade e sempre preservada. E quando os criadores expri-mem tudo 0 que tt;m a dizer, nada mais fazem aiem de se

.",,=,

Do pensamento do autor .. 85

repetirem: os quadros de Chagall, as pegas de Anouilh desdesua Antigona, as de Ionesco desde Le roi se meurt e La soilet laJaim (os mesmos temas aparecem em assuntos diferen-tes). "0 artista faz seu mundo e 'revela-o a mim' (e problemameu aceita-lo ou fugir dele). Ele fabricou-o em suas dim en-s6es, que sao variaveis Sua importancia, tao evidente quan-to impossivel de delimitar, depende da extensao e da rique-za de seu mundo."1 "A vida", diz Breton em Nadja, "e urncriptograma. Os cineastas decifram-no a sua maneira, e suasobms sao outros criptogramas, cujos signos falam a algunsespectadores e emudecem diante de outros." E Ceorge Lu-kacs: "Os grandes cineastas sao aqueles que colocam e perse-guem problemas que eles pr6prios nao superararn." Atravesda camera, os cineastas realizam os desejos reprimidos desua infancia Oll de sua maturidade (a repressao e um dosmeios acionados pelo individuo para fugir da angustia, quee provocada pela amea9a de perda do objeto amado ou pOl'

qualquer conflito que ameace sua seguranga pr6pria). Comotodos os artistas, os cineastas s6 estao felizes quando criam.;s6 se realizam plenamente na agao, no exercfcio de sua liber-dade criadora, segundo 0 tema sartriano. E suas obras daoa impressao de uma incrfvel flexibilidade evasiva, de umaleveza aerea, de uma facilidade negligente. Nunca se sentenelas 0 esforQo, a aplicagao, 0 cansw;~o, 0 trabalho, e tem,geralmente, 0 aspecto de um jogo .. _D~raTlte a filmagem,liberam-se, brincam (toda criagao e um ate ludico, um jogoelaborado), provam emog6es fortes, dificeis de distinguir,alias, daquelas que nos, espectadores, sentimos "passiva-mente". Isto e particularmente caracteristico em Fellini eStroheill1 It flagrante como quase sempre Fellini conta-sea si mesmo" (geralmente par intermedio de Marcello Mas-

l. Jean Jacques, in Les cOllj".-siollS ,fUll chillliste IJrd;)luire, Ed. Fayard, 1981,p. 170.

2. Fdlini, por e.,eml'lo, du vida a ,uas oi.:>sessOcse a seus hnt""""" n" cOHlcdb

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86 Estetica do cinema

troianni, seu interprete-fetiche)3; Renzo Renzi escreve aprop6sito de Vitt.eloni (Os boas-vidas), referindo-se a Felli-oi: "eJe sobrep6s seus pr6prios complexos a epis6dios quesua mem6ria Ihe trazia de forma cleformada, nao para falarde outras pessoas, mas para contar-se a si pr6prio. Nao exis-tern 'Vitelloni' como os de Fellini Mas existe um estado dealma analogo, de desconfian<;a, de aspira<;6es insatisfeitas,de revolta .. Esse estado de alma e, em suma, a mais verfdicaexplica<;ao do filme". Urn hom diretor explara os temas eas assuntos que 0 preocupam e obcecam, num estilo queIhe e hem particular. Antonioni e obcecado pela fragilidadedo casal, pela impossibilidade do amor, pela incomunica-bilidade entre os seres, pelo universo feminino, em Berg-man, e a vida, a morte, 0 amor, 0 sexo, a homossexualiciade(seus filmes, como os de Dreyer, f3.zem con stante apelo aossortilegios da agua); Liliana Cavani Hda com os fantasmasda sexualidade e ciamorte; os filmes de Vittorio de Sica inspi-ramose nas preocupac;:6es sociais cia epoca; os de RichardBrooks sao ousados e virulentos, e, com Orson Welles e Sa-muel Fuller, a violencia atinge a condic;:aodo estetico; AkiraKurosawa prefere os confrontos, os contrastes surpreenden-tes (para esse grande cineasta, a estetica substitui a moral),os temas comuns dos westerns de Howard Hawks sao justic;:ae injusti9a, coragem e covardia; Georges Lautner e um espe-cialista em filmes policiais, de espionagem e de humor ne-gro. Hitchcock e 0 mestre do suspense, John Ford distin-gue-se em westerns (e tambem om grande autor intimista),e Michael Curtiz em aventuras marftimas; Marcel Carne eurn mestre do realismo "poetico"; Jean Cocteau, clas "ima-gens-surpresa" que brotam do inconsciente; Jacques Tati,

d raIl "it i~·"C (lSi! !I()~lI dc Fell; II; (J1lli<;" tll;l ", ul Iid,io de "'0,,>1 ros e [anta"""l5 I)o\'oa",,' lIl1ivcrw(Osln",bo.

3. Muit(J' grandes cj",:ast~s 10m (ou tiveram) S~lIS;ltor(.'s-f~liches: ~1;lSt,.oiH-nnilFellini. Willialll Dictcrlell'a,,) ;Vtllni. lean-Vaniel Pollet/Claud" M"lki.Edol,urd l...l"linaro/JacqUQS 1.Irel.

J.'

Do pensamento do autor. 87

da arte da poesia; Mankiewicz, da arte da introspecg:io, asobms de J. Donio-Valcroze, de uma elegancia suprema, es-tao cheias de nuances esutilezas; as de Eric Rohmer revelamuma grande fineza na analise psicol6gica; as qualidades es-senciais dos filmes de Jean Gn§millon sao 0 realismo, a 050-

briedade, 0 sentido agudoda verdade humana; eo tema maiscaro a Rene Clement e 0 do homem prisioneiro de si mesmo,a dificuldade de viver, a coragem para "permanecer depe" - mas, de fato, se localizamos tendencias (0 hiera-tismo de Mizoguchi, 0 sopro epico de Kurosawa, 0 intimis-mo de Ozu, a introspec9ao onirica de Terayama, 0 anticleri-calisrno e 0 erotisrno de Bunuel), a verdade e que nenhumcineasta, nenhum artista de urn modo geral (se for grande),deixa-se encerrar numa classificac;:aorigorosa que pretendaatribuir-lhe uma linha dominante. Feita essa reserva, todocineasta, assim como todo criador, revela-nos, atraves desuas obras, seus pensamentos, suas emo96es e suas angus-tias. Tem a liberdade de escolher seu tema, mas nao de tra-ta-lo ou de exprimir-se sem revelar sua personalidade e semtrail' seus pr6prios pensamentos e emo96es4. Na realidade,podemos dizer que ele esta como que encerrado numa redo-ma: nela evolui livremente, mas nao pode escapar nem tam-pouco se subtrair ao olhardo observador: como Albee, nuncatermina de explorar as fronteiras do mundo totalmente fe-chado em que esta - em que todos estamos - encerrados.

Ja se disse que, uma vez concluido, urn filme basta-se asi proprio, sendo espectador dispensavel, diferentementede uma pec;:ade teatro, que, na ausencia do espectador, eapenas uma criac;:aoem potencial. Essa afhma9aO seria exatase 0 autor de um filme, em fun93.0de sua "analise", nao sen-

4. Georges Simenon contt"3diz ardentcm<Jute, afirmaudo que a arte e. ~{)con-tdrio. uilla "'exteriorizll9iio·· Mns nao h:l 'cmelha,,~,a, extl"aordillarias entre a vidade Simellon c a de suns personagens? (mfcrimo-nos. pOl" exemplo. ~sroln<;'ocscom 3., tlllllheres e ,,0 cornportamento sexual do P~d ..e Gonin [Georges M","c),,,l]em ,\Iaig,·ct sc trompe)

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88 Estetica do cinema

tisse nenhuma necessidade de 5e!" ()uvicio e observado, ne-giigencianclo a intera9ao c1assica entre "analisando" e "ana-lista" (sern £alar da "micropsicamilise" de Silvio Fanti e seusdiscfpulos que consiste, entre outras coisas, numa aproxi-ma9ao bem maior do pacientel). A cineasta Liliana Cavanidiz: "Espectaclora de cinema au de teatro, quero ser sur-preendida rela que vejo. Caso contrario, terei a impress:l0de estar escutando pela centesima vez um concerto au umdiscurso. Isto mI0 me impede de preferir alguns momentasa Qutros, mas quero receber uma impressao imediata parasaber se 0 espetacuio sera bom au nan (. .. ). Nos meus filmes,o horror e uma categoria esh§tica. Nao e provocagiio, masuma vontade de surpreender, de provocar uma rea\,ao (. .. j.Fa~o 0 cinema que gostaria de ver na tela, sentada numasala. Nada mais que isso. ".";Notamos com prazer que LilianaCavani, ao contrario de muitos cineastas - e dos atores deteatro ale 0 seculo passado -, faz 0 que gosta, ao mesmotempo em que se preocupa com seu publico. Quer agir ejulgar seu ato, estar na a<;aoe depois fora dela. No cinema,como em outras artes, nao ha temas ruins, apenas maneirasruins de trata-los. 0 que importa e a arte, a maneira de abor-da-los. Pouco importa se encontramos freqiientemente asmesmos temas. as re!a<;6esdiffceis entre um pai e sua filhateimosa, dificil, agressiva, irredutfve!, fechada em si mesma(La gijZe, de Claude Pinoteau, com Lino Ventura e IsabelleAdjani, Un etrange voyage de Alain Cavalier, com Jean Ro-chefort e Camille de Casabianca, Tout feu tout jlamme, deJean-Paul Rappeneau, com Yves Montand e Isabelle Adja-nj), 0 amOTdesenfreado e imposs(vel de lim adolescente pOIuma mulher casada (Le diahle (iU corps, de Claude Autant-Lara, Tea. and sympathy de Vincent Minelli, La maison desBories, de J. Doniol-Valcroze).

5. Pnlavras f"colhid", por Colette Godard. Le ,\/O/ule. 28 de Ill>ljo de 1981p. 21

Do pensamento do auior. 89

o espectador gosta quando hi! uma rela~ao de harmoniaede simpatia entre suas pr6prias ideias, seu modo de pensar,suas convic90es pessoais e aquila que 0 autor exprime (mes-mo se for bem objetivamente) e isto alias vale para qualquerobra de cria~ao. Chocado por uma ohra, por uma imagemou pensamento, 0 "receptor" nem sempre tem 0 espfritosuficientemente aberto para dizer: "0 filme e born, bem in-terpretado, embora me choque". Tais observa90es poclemexplicar um grande numero de insucessos: 0 fracasso comer-cia!, nos Estados Unidos, do belo filme de Michel Cimino,Heaven's gale, onde 0 espectadortem dificuldade em se en-volver e em se identificar as personagens (ele considera im-possive! assimilar-se a uma personagem se esta for r.1Uitoindividual ou muito excepcional); da mesma forma, 0 filmede Samuel Fuller, The big red one, foimal recebido naepoca(1953) nos Estados Unidos. Ha diversos outros exemplos:lH. Victor de Jean Gremillon; Casque d'or, de Becker (comSimone Signoret), etc. No entanto, os bons diretores naohesitam em fazer filmes que perturbam, culpabilizam, queoferecem oportunidade para a introspec~ao, que colocam in-terroga~6es (Eugenio de Luigi Comencini, Sauf qui peut-Lavie de Jean-Luc Godard, Inquerito sobre uma paixao deNicholas Roeg ... ) Uma obra, principal mente uma tragedia(como.ia observava Racine), exige um certo "distanciamen-to", um certo afastamento no esp3<;Oou no.tempo. Por moti-vos mais complexos, inumeros filmes hoje celebres (La findu monde, Citizen Kane, Hiroshima mon amour, L'anneederniere a Marienbad, 81/", Les pones de la nuit, 0 Jlautistade Hamelin .. .) s6 5e tornaram sucessos muitos anos depoisde serem lan~ados. Durante muito tempo, tais fllmes naoforam compreendidos; os diretores eram provavelmentemuito avan~ados para sua epoca. Talvez 0 filme de Fellini,A cidade dasmulheres, POllCO apreciado hoje (0 inconscientedo espectador nao reagiu ao inconsciente do diretor, !laohoLlveacordo, eco, ressonancia), seja um sucesso !TIaistarde,

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90 EstCtica do cinema

quando aumental" 0 interesse pelas divagag6es e fantasmasfelinianos e quando 5e conhecer melhor 0 mecanismo do so-uho (no caso, 0 sooho de Mastroianni no trem): acompanha-menta deformado e disfan;ado de urn desejo esquecido aureprimido, proJu~~a()de imagens inexplid.veis que 5e im-p6em sem qualquer i6gica, mas segundo urn simbolismo de-cifrtivel.T ais fUmes exigem do espectador uma "participa9:l0de 500ho a sooho" (J. Delay), 0 mesma acontece com asrealiza96es de grandes cineastas, cujos simbolos demos saodificilmente decifniveis (Possessao de Andrezj Zulawski,Fantasma d'amore de Dina Risi, Da vida das marionetesde Ingmar Bergman, Shining [0 IZurninadoJ de Stanley Ku-brick, etc. Ninguem pode afirmar se, no futuro, esses filmesseriio esquecidos ou se serao urn sucesso)6. Pois 0 cinema,como observa Bresson, nao e urn espetticulo, mas uma lin-guagem com uma sintaxe e urn estilo: existe uma diferen9aentre saber ler e Saber Ler (dificuldade de Saber Ler ____dificuldade de compreender urn filme, de acompanhar 0

pensamento do diretor); qualquer urn percebe que se assis-tirmos a urn fUme n vezes, iremos interpreta-Io de n manei-ras diferentes, de acordo com 0 nosso momento pSicol6gico,nosso estado de espfrito do momenta ... e, a1em disso (como

A. No que -'(' refere ao teatro. e snrpreendente cOllstatar como p01lca.S pe.;;""'re.sistiram a prova do tempo. A mai",. parte das obms d"U!witici\, .foi esquecida."Rejeitamos em bl"co todo 0 teatro do final do seculo XIX e do.s quinze primcirosanos de nosso seeulo" (Emile Henriot). Alfred Carllls, 0 ator cclmico mais aplau-dido nOcome\iO do sekulo. estii completamen te e,'l )lecido hoje. E m compensa~'fio.Ubu mi. de Jarry. a prindpio vaiado em Pari,. foi a~\llhido Gnlu~iasticamenlepeio p\lbJico sessenta anos mais tarde.

No que se refere a pintllra, os quadros de La Tour OUde Nattier. muito apre_dado.s hi I,.iola Oll qllarenta anos. nao 0 siio de ,ieito algum hoje. as de Vermeer.muito procurados hoje em dia. serao tao valorindos daqui a algumas deeadas?A m\lsiea est" sujeita as mesmas l1utll~oes da moda (a., obras de Mendelssohn.por exemplo. sao hoje menos apredadas que onlmra). Em 5e lratando de litera-tura. execto Balzac, n!)ohum dos eontempor:lneos de Stcndhal soube reeonheeero carat!)r e a imporl:ineia da obra do escritor, que iri", pouco a pouco, obler S)l-cess".

Do pensamento do autor. 91

veremos mais tarde), quase nunca da mesma forma que ima-ginou °autor do filme ("E 0 espedador que se torna~ dire tordo filme, e ele quem 0 cria", observa MartlOulian). Vma obrade arte depende menos da obra do que da pessoa a quemse dirige: a apreciac;ao depende do individuo, de seu passado(urn efeito de remanencia marca inevit:ivel e indelevelmen-te nossa imaginaC;aoe nossa mem6ria), de sua educac;ao, desua r3c;a, de seu meio, de seu humor no momento. Assim,em uma obra sobre Van Gogh, um autor come9a seu livroexpondo suas recorda96es de infancia, seus primeiros juizossobre 0 pintor: "Havia grandes manchas de cor, grossas pin-celadas, uma espeSSUr3excessiva, nao era liso,., eu rejeiteiesse pintor. .. ": para uma crianc;a, uma tela deve ser lisa ebern estruturada, e preciso que a representa9ao seja absolu-tamente conforme a realidade corrente, ou ao menos :'i. suavisao das coisas, A opiniao, portanto, varia tambem com aidade, com a maturidade. Roger Caillois escreve7

: "A ideiade beleza parece variar de acordo com as latitudes, com asepocas e mesmo com os individuos. As esteticas provem dobabito, ciaeducac;ao, Divergem a ponto de as dizermos con-tradit6rias. Cada cultma prop6e insidiosamente ao homeminclinac;6es inconfessas, que ele considera naturais mas quevern da hist6ria ou da escola. 0 mundo senslvel sempre ecaptado atraves de uma tela que in£lui sobre nos so modode ver as coisas, sugerindo prefen§neia5).secretas que, emprincipia, excluem-se." E acrescenta: "Como entao e possi-vel ao olho deixar-se domesticar por uma arte de antipociasau de umaoutra era, que repousam visiveimente sobre esco-lhas opostas? E necessaria urn suporte comum ao consenti-mento quase unanime, sem 0 que seria inexplicavel que al-gumas rela96es de grandeza, algumas combinac;6es de coresparec;am tao amplamente harmoniosas, provoquem urn fre-mitodimplice, enquanto outras, nan menos geralmente, de-

7 Estl",li'lllegh"jrulisee, Ed. Gallima ..d. p. 19.

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sagradem, ou seja, traiam uma obscura e irremediavel dis-cordia." E Jean Jacques escreveH, "Ninguem lentaria de-monstrar que 0 conhecimento para 0 qual ela (a. arte) contri-bui pocle encontrar sua confirma9ao na all pela prova do tem-po. A importancia atribufda, num determinado momenta,a urn pintoI', muska, escuitor, arquiteto (ou cineasta) nadaprova quanta it qualidade de sua obra. 0 rename entre oscontemporaneos, 0 favor dos mecenas, 0 montante de eoco-mendas ou pn§mios comerciais, 0 numero de discfpulos oude imitadores medem apenas a importancia social de urn fe-n6meno artlstico datado_ Esses interessantes dadas ajudama tra~ar, em fUflgao elas latitudes e dos anos, aeurva elas varia-90e5 de gosto que valorizaou de,svaloriza, quase semp1'e p1'o-yisoriamente, as obras passadas· em reia9ao as obras pres en-tes que se sucedem."

Da mesma forma que nao ha uma realidade, mas uma infi-nidade de realidades ~ a "Healidade Absoluta", total, queintegraria todas as verda des elementares (parciais), e inaces-sfvel~, nao h8:uma 16gica, mas uma infinidade de 16gicas,A lOgica dos filmes de Hitchcock e sempre inesperada, razaodo interesse desses filmes, mas tao verossimil quanto a 16gicapel a qual 0 conceito precede aquila que e percebido. EmHitchcock, 0 objeto da percepgao esta sempre adiantado emrela9ao a ideia express a pela imagem 0 milagre realizadorelo filme de Franklin] Schaffner, Patton, e que podemosinterpreM-lo como \lma saUra antimilitarista au ainda comoa apologia deste general rubicundo. Ha imlmeros exemplosde interpretag6es passfveis de serem completamente COll-

trarias as ideias do autor. Muitos artistas, especialmente as"vanguardistas" revolucionarios (abstratos, surrealistas,etc.), cujo renome foi superestimado, benellciaram-se bas-tante ~ e, sem ch'tvida, para sua grande surpresa~, cla in-terpretagao das suas obms dada pela pliblico bem como das

~. Les cOOljessioJl.\',/""" chimiste ","dilUlire.Ed. du Seuil, Pl'. 133·134.

Do pensamento do autor. 93

conclus6es a que este chegou (e necessaria constatar que.em ciencia, a revolu9ao - alias permanente ~ e sin6nimode progresso, em materia de arte e frequentemente sino-nimo de catastrofe).

Diz Alain Virmaux9:

E Cjlle0 espectador de cinema enC()ntra-se numa situa9ao muitoparticular, a meio-caminho entre a consciencia e a inconsciencia:assim como 0 sonho, 0 filme instala-se numa especie de alucina9aoCQosciente. nascida da, pr{)prias concii"oes da representa9ao (obs-curidade, feixe luminoso. fundo musical). Corolario: de maneirabern mais f:kil dQ Cjlle a lingllagem corrente, 0 filme permite-serep!ldiar a /6gica Para nos convencer, Jean Goudal citava urn ver-so de Philippe Soupau!t:

"Une eglise se dressait eclatante comme line cloche. nt

Ao analisar a constru9ao da imagem. 0 autor desse estudo de-monstrava sem dificuldades que esta era diffcil de ser aceita logica-mente por urn !eitor. mas que, se v cinema nosmostra,-uma igrcjancslrondosa'· e dcpois, scm t,-ansir;ao, um sino "esl,-ondoso ... nos-sos olhos aceita,-ao esta S!lcessiio Ele acrescenta que essa visao.imediatamentc aceita por n6s, sem referencia a um mecanismo16gico, corresponder:i bem melhor que 0 poema escrito ao processocerebral que sugeriu a imagem ao poeta. "5e eu conto" - diziaCocteau - que um homem entra n!lm espelho, as pessoas dao deombros, mas, se eu m08tro isso. elas mio mais Jao de ombros"

E sabemos a que ponto Cadeau, maid ito pelos surrea-listas, foi habil em assimilar suas ligoes. J>m sua EsthetiquegeneraliseelO

, Roger Caillois escreve:

No inido, exige-se que urn discurso au urn quadro sejam exatos.ou seja, que colTespondam precisamente aquilo que pretendcmexprimir ou represcntar. Depois. percebemos que a arte esta nomodo de dizcr ou de representar. ~ mio no qu~ e dito au represcn-tacio, de maneira que a exatidao imediata deixa de ser 0 mcrito

9. S!lrrea/isme et cinema. co!. "Etudes cinernatognlphiqum·. t. I. p. 106* ··Urna igrcja crgu;n-se. estrouciosa comO urn 'ino.'· {N. do T\0. Ed. C~llimal'd, [l[l. 32-33.

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94 Estetica do cinema

principal. Desconfia-se, descobrem-se as virtudes da sugest:io, dareticencia, do desvio, que, em surna, sao os recursos da urtc, etambem sells dircitos_ Passa-se aadmitir as andacias, as liberdades,que, de toleradas, tornam-se e:rigiucis e logo obrigat6rias. Esseprocedimento e feliz, essencial e constitutilJo cia propria arte. Nao58 conseguiria mais interrompe-lo. Oeve-se leva-Io ate 0 Hm. Co-mo conseq(iencia, na avaliaQiio do rnedto artlstico de urn texto oude um quadro, aparece irnediatamente urn elemento novo, quee a diHculdade de atingir seu ,entido, 0 que faz com que pintore pacta sejam levados a dissimula-lo. Atraves de rcfinamentos epesqllisas, oncle demomtram sua seriedade e provam que nao 58contentam em repetir receitas vas, adiam no leitor ou no aprecia-dor 0 prazer de penetrar imediatamente em seu segredo. Na ver-dade, esse prazer sed tanto mais vivo quanto melhor ele recqm-pensar uma inicia<;:aomais prolongada_ Os atores sao levados a acil-mular obstaculos, Mastam-se da expressao direta, da representa-<;itofiel (... ). E quando e dado 0 passo decisiYo: 0 artista suspendeseus procedimentos dificeis e fornwla de urn s6 golpe 0 resultadoou, ao menos, a improvisar;iio fulgurante que 0 substitui.

Cabe ao apreciador interpreta-Ia a sua yontade, ou obstinar-seem procurar 0 significado oculto, a chave do enigma que nao eapenas Ulna.

As reflex6es precedentes dizem respeito a poesia e a pin-tura, mas poderiam ser igualmente aplicadas ao cinema ea arte em geral. Na boa produgao contemporanea estamoslonge do cinema de outrara, com sua superabundancia, coma ingenuidade de seus roteiros, com 0 exagero e 0 caboh-nismo de seus atores, com seus textos "pn'i-digeridos": hojeas imagens mais mostram do que contam; cabe ao espectaclordecifrar 0 real a partir de um mundo tal como ele e, em trans-formagao, com suas incertezas, suas mutagoes, e naodecifrarurn .mundo construfdo em imagens: ele e bern mais livre esua atividade mental e,bern mais apaixonante, mas e, emcontrapartida, mais diffcil. Como enfatiza Henri Angelll,"antigamente, uma sequencia articulava-se a partir da pre-

11, "J)u film en forme de chronlque", Ret:llc des lettre,< jranQuises, n~'36-38.

l'Do pensamento do autor. 95

cedente e clava infcio a seguinte, de acordo com uma pro-gressao dramatica implacavel: um plano formava com 0 pla-no anterior, e este com todos os outros, uma constrm;<iocujorigor matematico denotava 0 gosto pelo equilibrio e 0 amorpela dialetica. Mas ocorre que 0 homem mio e apenas umser conS~Tutore dialetizante, ocorre que - e toda a existen-cia do romance, sobretudo clepois de Joyce, pode testemu-nha~lo - 0 homem, antes de mais nada, e talvez e funda-mentalmente um ser inacabado, sempre em muta9ao, quese procura e que hesita, tateando em urn universo que, elepr6prio, nao me parece completamente revelado", E Mar-cel Martin observa12

:

A no~ao de espetacu!o cede 0 seu lugar a de contempla~:i() pebreintrodu~ao da objetiddade do cineasta e da liherdade do espec-tador. Quero dizer, essencialmente, que 0 Que aparece na tela tor-na a ser semelhante ao Que havia sido filmado, pois a decupageme a montagem desempenham cada vez meno, seu papel habitualde amHise e de reconstru<;:ao do real: ao contrario, a profundidadcde campo e a montagem lenta, ao reintroduzirem 0 espa<;o e 0 tem-po reais, bem como 0 estati<;mo da camera. ao deixar de fazer debllma personagem do drama, tendem a dar uma imagem cada vezmais realista e objetiva dos acontecimentos e das coisas. 0 mundoe apresentado em blocos inteiros, macic;:os e plenos, em suas di-mensoes espaciais e temporais, nao e mais oferecido ao espectadorcompletamente recortado, as<;imilado, dirfamos ate "digerido", 0

e,;pectador nao e mais prisioneiro da mon~gem e da decllpagem,de tern a impressao de assistir a acolltecimentos que estao se fazen-do sob seus olhos, com seus tempos mortos, seus prolongamentos,seus desvios, suas ambigiiidades e suas obscuridades: contudo, 0

realismo e a intellsidade da visao de mundo que Ihe e propostainduzem-no a um estado poicol6gico que concerne a contempbc;:aoe a Iiscinac;:ao, na medida em que est! diretamellte envolvido pelaac;:ao, ma" ao mesmo tempo, alheio a ela em virtllde da objeti-vidade nova de suas reb~6es com () universo do filme (... ). Sendosua autonomia (a do espectaaorl e ,ua liberdade reopeitadas, sua

12.Le lang<lgecilliillw(ogrliphiq,,,,, L~, f.ciitc\1rs F,.anpi, 8.('\1ni" Pl'_ 280-281

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96 EstCtica do cinema

participaQao e ao mesmo tempo rnais deliberada (cahe a ele fazero esfol'(;o de penetrar no univerno que Ihe e apresentado) e maisdificil (puis 0 mundo da tela, repitamos, nao the e !TIaisoferecidode maneira total mente as_limilada como na epoca da montagem-soberana) (.. ). 0 espectador lem a impressao de que 0 aconteci-mento 5e constr6i sob <;eusolhas e de que assiste agel18se de umaa<;aodramatica, em l'ela"ao a qllal 0 realizador deixou-o livre paraparticipure para aderir - 011 nao.

Aliberdade e 0 valor do julgamento do espectador clepen-clem de sua maturidade de espirito, de sua cultura e princi-palmente dafamiliaridade com a linguagem visual, que dife-re da linguagem verbal com a qual ele esta acostumado.Diante cia imagem, a atitude do espectador pode ser esque-matizada da seguinte forma:

imllgem __ ohjet!! da percepr;(/O (alitude passica)w1lceit!! __ ohjeto dll percepr;iio (emfilmes ruins)

e nos casas mais favoraveis:

objeto dll percepr;ao __ srmtimentos

ou:

objeto da percepr;{10 __ cOllceit!! __ emor;iJes __ rear;oesafe-liws di1;ersas (as t;Czes psicomotoras [atividade on[ricllj)

Asitua<;aoimprevis{vel das persanagens "em evolw;ao"13,procurada pelos cineastas de hoje, e as vezes encontrada atea ultima imagem do filme, que entao nao e uma conciusao,mas um esbo<;ode prolongamento da hist6ria: assim, no fil-me de Claude Berri, On moment d'6garement, como acaba

13. No filme de Pierre Cranier-Deferre, Le to"hih (encal"ll~dopur Alain De-Ion), pociia·,e preyer qne Harmonie (Veronique Jnnnot), alingidn por lesnes irre-versivei, nos pnlmocs" condenada a mOn-er em breve, fo,"c moner com a explo-"jo de nn"'lllinu~ Nesse, fllmes, 0 provavcl nao exclni d" forma algnmao poss;ve!.

Do pensamento do autor. 97,o idI1ioentre a adolescente Fran<;oise (Agnes Soral) e 0 ho-mem de quarenta anos, Pierre (Jean-Pierre Marielle)? En-contramos muitos mmes sem conclusao definitiva em Clau-de Lelouch (La bonne annee), Michel Drach (Elise ou fa vmivie), Lam-Ie (Encontro das nuvens e do dragiio) e mesmoem Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi.

Nos bans filmes, 0 eoneeito vem sempre depois do objetodOlpercep9ao: os filmes de Hitchcock, High noon (de Zinne-mann), Last trainfrom GunHill(de John Sturges) sao exem-plos tfpic9s - a emo<;aoe 0 suspense vao num crescendo.o espectador nunea con segue preyer 0 que vai acontecere encontra-se permanentemente 11amesma situa<;ao deLouis Pasteur quando 0 ilustre quimico J.-B. Dumas pediuao cientista para estudar a doen<;ado bicho da seda: "Tantomelhor que 0 senhor nada saiba sabre 0 assunto", escreveuDumas a Pasteur14, "pais assim 0 senhor s6 empregara asideias provenientes de suas pr6prias observa<;oes." Sabe-mos, alem disso, do lugar de homa atribuido pelo surrea-iismo ao deseonhecido, 0 unieo criador (a cria<;aonao seriaresultado de urn conhecimento pelfeito do passado e do pre-sente). Os grandes filmes sao geralmente hist6rias simples,mas, como em todas as grandes cria<;oes, a simplicidade eapenas aparente, dissimulando um enorme trabalho de pes-quisa e de elabora<;ao: 0 tema e tenue, frequentemente avida em sua complexidade cotidiana,~o n.Umerode persona-gens e restrito (dois ou tres), e cada espeetador pode "ver"seu pr6prio filme, como em Man oncle d'Amerique, de Res-nais, La fiUe prodigue, de Doillon, Un etrange voyage, deCavalier, Un mauvais fils e Une histoire simple, de Sautet,Cons-tans, de Zanussi, Pourquoi pas nous?, de Berny ..

As emogoes vivas libertam-nos momentaneamente denossas angustias. Nossas obsessoes sao substituidas par ou-tras obsess6es. E 0 espectador parece sentir cada vez mais

14 Cnrta dc 6 de junho de 1865.

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98 Estetica do cinelJUl

a necessidade de 5er, antes de tudo, surpreendido, chocado,de tremer hsicamente, e mesmo de 5er agredido, para de-pois ser tranqiiilizadol3. It 0 que pro vavel mente explica quefilmes violentos (como A Pele de Cavani au Apocalypse nowde Coppola) e de terror (nascidos do expressionismo ale maoe, depois, dos "nairs" americanas: Sexta-feira 13, de 5Cunnigham, Terror eyes, de K. Aughes, Mother's day, deC. Kaufman, etc.) estejam tao em voga hoje em dia (apre-dados sobretudo pOl' urn publico cuja media de idade naoultrapassa as trinta anos)lG. 0 fen6meno nao e novo: duranteas anos que se seguiram a crise econ6mica de 1929, Holly-wood propunha ao publico comedias musicais, filmes queconvidavam ao sonha au a fuga ciarealidade (Dnicula, Fran-kenstein, A mumia, King Kong), mmes c6micos (com Laurele Hardy, W. C. Fields, as irmaos Marx), que beiravam 0

surreal. Cra<;as a tais filmes, as espectadores podiam se en-tregar, atraves dos protagonistas, as suas puls6es de mortee destrui<;ao.

o cinema permite que cada espectador conte-se a si pr6-prio, veja-se viver, julgue-se. Revela-nos imJ.meros desejosinsuspeitos ("ha muitas coisas que poderfamos desejar dasquais nao temos qualquer ideia"). Como disse 0 presidenteRonald Reagan: "0 cinema revela-nos nao apenas a formacomo nos exprimimos, mas, 0 que e ainda mais importante,revela-nos 0 que sentimos." Escutemos Barthelemy Amen-

15. \Valtel"Benjamin "econheee nOcillenw Um poder terapclltico: '\) cinemae a forlllade arte correspondente a vida cada vez mai.'.pCl'igosapromelida aoho·mem de hoje. A necessidade de se of"recer ao.\choq\les e uma adapla<;ii(}do ho-mem ao, pengos qne 0 amea<;aralll:'

16. Podemos imaginar as consequencias e 0 impacto rla deseoberta, previ,tapara 0 ano 2000 ()llanle,. de S11bslfinciaspsieotr6picas q11edariam comcienci3ma;s profUlld~do Be!o!A inform,Hi~aja no.<aeoslllmon a llma nOvaesteliea. ado e()mputador eapaz de inveotar on fabriear cenario.se atores, e de eriar flJmesa partir de modelos matematic()s..,cm a interven<;ffode dmems e objetos reais(ver Sc;erlcese/ acen;r, dezembro de 1981. p. 56. "L'orJillatcnr raitdu cinema"e Scieroce el ~;e. oll\Hbrode 1982, p. 52. '"Lecinema synthetiqne··j.

/ ,\ \\ Do pensame'1to do autar. 99

guaJl7: "Quem se conta se ve, observa-se naquele a quemcanta como num espelho", e, analisando as palavras de Rich-ter ("De pe diante de um espelho, digo a mim mesmo, ater-rorizada: quero ver nesse espelho com 0 que me pare~oquando meus olhas estaa fechadas") Amengual acrescenta:

'Ril:hter vi! af urn terror que seria a unicajustificativa do carMeraparentemente insensato da experiencia. Mas 0 desejo que 0 ins·pira e bern natural. Ele quer se ver de olhos fechados, ou seja,tal como e quando n:io e ele quem .Ie olha. Quer se ver como osoutros 0 veem, como ele e para os outros. Quer sair de si mesmoe tornar-se ooutro. E este 0 sonho que 0 romance quer realizar,e, mais ainda, 0 cinema, cnjas narrativas sao dotada.I do proprioser do acontecimento. Valery define perfeitamente a funo;iiodo ci·nema: "0 cinema sansfa::. µerfeitamente 0 desejo ou a necessidadeque ()homem temdeseassist;rvivendo." Afinai, diante de um mmeou de umromance, dcspersonalizo-me. Torno-me, por projeo;aoou par simpatia, o(s) heroi(s} do mme. Vivo em oeu lugar, em seumundo. E, como estou aDmesmo tempo na salae na tela, vejo-mevivel'. Quando vou emhora, vejo-me ir embora de costas, pOSSOficar a janela para me ver passar na ma. "0 auto,. dmmdtico".confia-nos Sar\re, "apresenta aos homens 0 eidos de sua existenciacotidiana: moslra-lhes slta propria vida como se eles a vissem defora." Alias, ver-se pode, as vezes, significar nao se vel'. Se desejo,do fundo da minha alma, saber 0 que sao minha vida e os seresque sao importantes para ela quando nao estou presente para Ihesimpor essa inevitavel "relaO;:iiode indeterminao;:ao" teorizada parHeisemberg, posso imaginar uma abordagem do mundo que tenhaa objetividade radical do cinema. .....

Toda ham em se angustia com a ideia da solidao, da desco-nhecido, da morte - de sua morte - e sente uma neces-sidade constante de ser amado e de se sentir existindo, vi-vendo. Ele projeta sobre os Qutros seus pr6prios pensamen-tos, suas emo<;6es, seus sentimentos, e 0 contato direto (ouimaginario) com seus semelhantes tranqi.iiliza-o, certifican-do-o de sua existencia real. Ver e escutar os outros, final-mente, e escutar-se ever-se (tados n6s samas um pauco mais

]7. Cleo' po",. Ie cinema, Ed. Seghers. PI'. lOS-lOg.

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100 Estetica do cinema/,

all menos narcisistas). A necessidade de 58ver liga-se tam-bern a necessidade consciente au inconsciente de se con he-eer melhar para melhar 5e julgar. Se por vezes tern os horrorde espelhos e de vef-OOS a n6s pr6prios, e taivez porqueisso nos mostra impiedosamente a imagern (mesma que in-vertida, em termos de direita/esquerda) de nosso envelheci-mento, que nos recorda a ideia de nossa morte, que no mini-ma nos repugna, pois 0 envelhecimento vai contra 0 110S50

desejo de agradar, dito claramente, contra 0 nosso desejode sermos amados.

Para cada mme lui tantas interpretaQoes quantos especta-dares. 15s0 5e cleve a complexidade da vida, oode nada eabsoluto, e a relatividade das caisas. Em Hythme Helle Clairescreve poeticamente: "0 pensamento rivaliza em veloci-dade com 0 desfile de imagens. Mas ele atrasa e, vencido,e dominado. Abandona-se. A tela, novo olhar, imp6e-se anosso olhar passivo. (0 pensamento) gaJopa, cavaleiro. Tor-ne-5e est,itua, casa, cachorro jovem, saco de ouro, rio arras-tando carvalhos. Nao sei mais isolar-te no meio de teu reina,6 cac;:ador."E conclui: "Louro, ergue tua cabec;:ae tua cabe-leira revela teu rosto. A esse olhar, a esse gesto, posso atri-buir 0 sentido que eu escolher. Voce e meu, 6 cam ilusaode 6tica. It meu esse universo recriado cujos aspectos servisdirijo segundo a minha vontade."

No cinema, oao h:i uma L6gica, mas i6gicas; nao h:i umaVerdade, mas verdades; nao h:i oposic;:6esou contradic;:oes;o pensamento dito racional desaparece e, como diz AndreBreton no Second manifeste dll slirrealisme, "tudo leva acrerque exisLeum certo ponto no espfrito onde vida e morte,real e imagin:irio, passado e futuro, comunic:ivel e incomu-nicavel, deixam de ser percebidos contraditoriamente. E se-ria vao procurar para 0 surrealismo Hmaoutra motivac;:aoquenao a esperarH;a da determinac;:ao deste ponto". Objeto ousujeito, contfnuo e descontfnuo, contnhios ou oposic;:oestor-nam-se aspectos de uma mesma realidade

.'

Do pensamento do autor. 101

A imagem filmica suscita no espectador um sentimentode realidade (muitas pessoas veem 0 que acreditam ver), doque resulta uma participar;ao "ativa", total ou tocada peloespfrito crftico (no espectador mais evolufdo), don de decor-re a noc;:aode conteudo aparente ou explidto (diretamentelegfvel). da imagem e de conteudo latente Ol! implicito damesma (ieitura eventual, de segundo grau). "Podemos man-ter urna certa 'distancia' das coisas", escreve Jean Mitryl8

"Certamente, naa como na vida real, poh a vida da qual par-ticipamos eshi inserida em um devir que nao nos perteneee que se submete a condic;:6esque s6 descobrimos il. medidaque vivemos. Mas podemos ao menos afastanno-nas limpouco dos aeontecimentos ao mesmo tempo em que as ob-servamos e os julgamos. Se nos submeternos a eles, e namedida em que os vivemos e, mais ainda, em que sua viven-cia nos e imposta. Pensamos e agimos com as personagensao mesmo tempo em que refletimos sobre seus atos, porqueas sentimos e lhes medimos a contingeneia (... ). Ternos aimpressao de que talvez pudessemos modifiear 0 curso dascoisas. Ao mesmo tempo que mantemos um certo recuo emreia1;ao aos atos ou comportamentos, participamos plena-mente deles. Ao inves de sermos introduzidos em umareali-dade fletfcia apenas pelo poder do 'fato fJ1mieo', vivemosmn simulacro de realidade. Nossa 'convicgao'e estabelecidapelo sentimento de atualidade ativa que{0Saconteeimentasconsiderados nos dao. Em suma, nossa participac;:aoe mais'ativa'.» E, ainda ref1etinda sobre a participac;:ao do espec-tador, Barthelemy Amengual escreve19: "Qualquer que sejaela, e necessario urn mfnimo de aeordo entre as solicitac;:oesdo filme e nossas disposig6es. Se perteneesse a cada espec-tador toear ()filme-instrumento de aeardo com as suas possi-bilidades, seria passlvel eseonder que muitos filmes sao ViDe

18 i':sthelique d" cinema. Editions Univer,itaircs. p. 37.19. S",.n!a.li.ww ct ci"enw. "Elude, cinen»ltogrnphiqll€S'. l. 1I, pp. 210-211.

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102 Estetica do cinema

Joes sem cordas? Com justeza, Ado Kyrou aconselha enri-quecer 0 mme com nossas pr6prias hcgoes. Se Dele projetar-mos nossas fantasias, nossos desejos,nossas obsess6es, assis-tiremos a urn filme compietamente diferente daquele a queos Qutros estao assistindo. Por que nao trazera relicula assimrecomposta para fora da tela e mistura-Ia a nossa vida real[alias, nao e 0 que acontece? Veremos i550 mais tarde] (., .).Durante a projegao, Bossa participa9ao e espontanea aumesma obrigat6ria. Basta que a obm seja capaz de conquis-hi-Ia. Mas, olhando pelo lado negativo, llossa recusa seguiriaantes a tendencia inversa it cias disposi90es tao favoniveismencionadas por Kyrou, au seja, a de empobrecer aindamais 0 mme." Mora a fen6menu de participa~ao, aconteceum fen6meno de identificac;ao20 com as personagens, urnmecanismo psfquico -comum e narmal nas criaw;as - pe-10 qual nos canfundimos com outras pessaas. Tamama-nospor nossos her6is familiares e fixamo-nos um ideal de seme-Ihanga em relagao a eles. 0 espectador relaciona diretamen-te a si as imagens da tela, podendo assim idenbficar-se aspersonagens e as situag6es nas quais estas esUio envolvidas.H:i uma transformagao na personalidade. Em um profundoestudo sobre 0 efeito catartico, D. Barrucand fala da seguin-te formasobre os processos detomadade conscienciae sabrea emogao: "A tomada de consciencia (distanciamento) naosucede a emogao (identi{tcat;ao), pois 0 compreendido estaem relagao dialetica com 0 experienciadu. Ha menos umapassagem de uma determinada atitude (reflexiva) a uma ou-tra (existencial) do que oscilag6esentre elas, por vezes tiiopr6ximas que quase poderfamos falar em dois processos si-muitaneos, cuja pr6pria unidade e catartica'" "0 especta"dor", escreve Marguerite Bonnet2\ "experimenta as rea-

20. 0 processo de idenlifica950 lambem pode aconlecer com 0 alor. quandoeste, complelamenle lomado por "-'" [lapel. poo-,c a viVCl".,un [Jel"sonagem.

21. S"""ea/isme «I dnema, "Etude, cinematographique,', t. 1, p. 86.

Do pensamento do autor. 103

goes e us sentimentos do her6i, identiflca-se completamentea ele; vive 0 mme de dentro, se e que se pode dizer isso,e nao 0 olha como a um espetaculo. Estamos bem longe doque normalmente se chama de crftica: 0 que conta e sentir,perturbar-se, emocionar-se, e niio julgar em nome de crite-rios esMticos; afronteira entre obra e vida deve serabolida."As formas e os nfveis de identificagao com os her6is das ag6esrepresentadas - fantasmas disfar~ados - sao infinitos.

Assim como 0 pensamento de nossa vida cotidiana, a pen-samento do espectadar e condicionado pelo consciente e pe-10inconsciente, como explica-nos Jean-E. Charron22

:

Tudo 0 que vivemos desde 0 no.lso nascimento transi'fou por nos-so Espirito, deixando nele lembranQas conscientes ou subcons-cientes. Eo conjunto de'>sas lembranQas que mode!a a cada instan-te 0 pensamento que teremos, a palavra que dirigiremos a outrem,a nossa pr6xima aQao. It esse espirito qu'e nos fa?: amar e odiar (... ).Nossocorpo e portador de milhares de emanat;6es( eons) Sao essasemanaQoe<;> e apenas eias, que contem 0 que chamamas de nossoespirita. Cada uma delas possui uma memoria de milh(les de anos,lembranQa de existencias sucessivas vividas atraves de imimerosorganismos evolutivos. Essa mem6ria de mtiltiplas raizes, que nar-ra experiencia.> completamente diferentes, 11 0 rwsso inconsciente.Urn grande numero dessas emanw,iles, as que acompanharam nos-sa vida do inicio ao flm, de nosso nascimento a nos.>a mOite (asque pertencem ao ADN de nossas celula<; nervosas, por exemploftem em comum, poroutro !ado, a meI"Q6ri~do que vivemos desdeo )105<;0nascimento, ou seja, 0 conjunto de informa90es sobre avida que vivemos, fonnalizado por meio de nossos pre-julgamen-tos e de no,sa linguagem: e 0 nosso consciente. Consciente e in-consciente constituem a personalidade humana. Na verdade, apersonalidade, 0 "eu" de todo organismo vivo, da ameba ao ho-mem

No cinema, 0 espectador esta a meio caminha entre 0 so-nha e a reaiidade. Esta num estado simultaneamente cons-

22. Le}igaro.magazine. 22 de dezembro de 1979 (Jean-E. Charron e 0 mltorde L'esprit eet inco"'''' e Mort, void ta deJaile. Ed. Albin Michel).

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104 Estetica do cinema

ciente e inconsciente: consciente, pode ver as imagens,apreender,a linguagem filmica, julgar e retIctir sabre a artcdo diretor; inconsciente, vive em universo aparentementei16gico, irracionai, do qual ressurgem desejos e frustra<;oesreprimidas.

o que acontece depois da projc<;ao? "Depende do filme",escreve Barthelemy ArnenguaP3; "ele pode enfeiti<;ar au0010. Depende ainda mais cia idade. Garato, vivi semanasinteiras junto com todas as personagens dos filmes que via.Junto com as heroinas, vivia novamente as aventuras, pro-longava-a~, corrigia-as. Imaginava novas aventuras - queterminavam melhar - e desenraizando-as, transplantava-asno mcu universo familiar. Mais tarde, quis reencontraressesrostos de sonho nas pessoas que me cercavam e, na ausenciade um arquetipo, pelo menos sua imagem em negativo.Quantas vezes me voltei para os cabelos, para uma voz', paraos olhos, uma silhueta, um andar, que eram os de Marthe-Micheline Presle, de Lulu-Louise Brooks, de Marylin-Che-rie? Por muito tempo, conservei no cora9ao a revolta ambi-gua de Le jour se leve, a Festa amarga de A 6pera dos tresvintens, a felicidade 'apesar de tudo' de Unrath em 0 anjoazul- exemplos entre cem outros. E curiosa, isso infeliz-mente acabou, mas nunca, mesmo nos 'bons tempos', en-contrei rnaravilhas ou paralsos nessas aflitivas investiga-90es." E realmente bastante freq1.iente que esse fen6menode identifica<;ao evocado acima persista ap6s a proje9ao, 50-

bretudo entre as jovens: e a adolescente que imita conscien-te au inconscientemente sua herolna favorita (os gestos eatitudes, 0 p'enteado, a maneira de se vestir, etc.), 0 meninoque imita () grito do Tarza, 0 adolescente que adoraria teras temporas grisalhas do sedutor mundano para parecercomPiccoli, Paul Newman, Cary Cooper ou Stewart Granger.

o ator Larry Hagman -que viveuJ. R. Ewingna famasa

23. Surniali.<me et cinema. "Eludes cincmalographiqllC" . t. IL p. 21I.

r Do pensamenta do autor. 105

serie americana Dallas - s()ube encarnar corn tanta perfei-930 a personagem odiosa que representa~~, que a polfcia deLos Angeles e guarda-costas sao obrigados a protege-Io e ga-rantir a prote9ao de sua familia. Ele diz: "E a primeira vezna hist6ria da televisao americana que 0 publico identificaa este ponto uma personagem odiosa ao ator que representao seu papel (... J. SOil atualmente ° homem mais odiado dosEstados Unidos e tenho de levar a serio as il1l.imeras amea9asque recebo." H:i milhares de pessoas que nao separam 0

cinema da realidade: um deles, John Warnock Hinckley,atentou contra a vida do presidente Ronald Reagan (em Wa-shington, a 30 de mar90 de 1981). ApaixoIlado pela jovematriz Jodie Foster, do filme Taxi drir.;cr, Hinckley teotou im-pressiomi-Ia e chamar a sua aten9ao sobre ele. ldentificou-seao ator Robert De Niro (melhor ator do filme Raging hull)que, para se vingar da sociedade, tenta, em Taxi driver, as-sassinar um candidato a presidencia dos Estados Unidos.

••

24. Algun_1~torc->(Roge" Hanin nos hlmes dc Molinaro. por e,,,'mploj cncnr-nam", notavclmcnte pcrsonagen, odio""

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Capitulo V

Teatro e cinema.Literatura e cinema

1- Teatro e cinema

Por muHo tempo, 0 cinema foi considerado pelos grandeshomens de teatro (que foram e continuam a ser, em suamaiaria, grandes cineastas) como artc menor, teatro rebai-xado. Com exce~iio do cinema mudo, que priyilegia a "tea-tralidade", all de algumas obras-primas, os filme., dos aDosb-inta nao passavam de pec;as filmadas, submetidas a tiraniado palavreado e das "opini6es do autor", 0 texto escutadosubstituindo 0 texto au 0 diaJogo falado diante de urn publicopor atores fisicamente presentes. t preciso render hamena-gens a alguns faros pensadores !ucidus, notadamente a Coc-teall, que com preen de ram rapidamentegue 0 cinemafaladoera uma outra forma de teatro, detentora de seus pr6priosmeios de express:lo, lange de ser, como pretendia Pagnol,uma tecnica que permitia "conservar 0 teatro", as signifi-cados verbais permanecendo essenciais. Reall1lente, cons"tatamos na evolugao da arte teatral que 0 texto nem semprefoi considerado lim elemento maior, pod endo ao menos serdissociado dos componentes capitais da a<;ao.Assim acon-tece na "commedia clell'arte", onde as palavras s50 apenasmurmuradas Em Grotowski, partid:hio de um "teatro dodespojamento total", a escolha e radical: 0 ator eo urrico

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108 Estetica do cinema

elemento essencial j. Essa ideia foi retomada por Qutros dire-tores; por Stanislawski: 0 ator e "[onte criadora de vida artls-tica e de emo9ao verdadeira"; porVitez: "0 mundo inteiroe represenUivel no carpo, em um carpo", etc. Mas ffiuitoshom ens de teatro tern uma visao mais sintetica das coisas,bastante semelhante ados grandes cineastas; consideramque 0 verbal e a visual devem formar urn todo indissociaveLArtaud, por exemplo, deseja urn teatro total, composto poratores (com seus gestos, movimentos e gritos), pOl' muska,iluminagao e (em mellor propon;ao, e verdade) por um tex-to.. Sonha com urn espebkulo total, urn cerimoniai, umafesta, "onde 0 teatro conseguisse englobar 0 cinema, 0 mu-sic-hall, adreu e a propria vida, que sempre the pertenccll".Tambem para Ionesco, a expressao verbal, as "palavras queinterrompem e paralisam 0 pensamento" (segundo Artaud)nao sao de forma alguma elementos essenciais da a\!ao: "Aprogressao dramatica resulta do encadeamento de imagensobsessivas, da linguagem, dos gestos, da liberdade dos jogoscenicos que precedem a palavra, tornada simples apoio doconjunto cenico de imagens." Peter Brook preocupa-se emvalorizar 0 texto atraves do vigor e da beleza de uma imagem,dando uma grande imporhincia ao cenario, ao guarcla-roupae ao fundo musicaL Essa preocupa<;ao em realizar uma sinte-se entre poesia, musica, dan\!a e encena<;ao pode ser encon-trada em Wagner ou naqueles muitos outros que desejamampliar 0 grau de receptividade dos espectadores e a comu-nica<;aoimediata (consciencia e inconsciente coletivo) entreestes e os atores, lan<;ando mao de todos os recursos do ver-bal e do visual para fazer da representa<;ao teatral uma festa,um espebiculo audiovisual completo. Svoboda revelou-se

1. 0 a!vr nao e apenas 0 (mie() clemeIlt() que nao se pode dispem",- Ele e.como todo arlda. e diferen!emente do eientista. imubs!ituivel, scm )I.·jozar!.ncnhuma de sua_, sinfonia, leria existido (sem E. Gallois ou Einstein. a leoriarlos eonjuntos 011 a da relatividade lerimn sido inventadas rna;, tarde)

TeatrolLiteratura 109

urn dos mestres da arte de utilizar a luz paraconstruiro espa-<;0,completar ou substituir 0 cenario, criar uma atmosfera,isolar ou agrupar (como no primeiro plano do cinema) os atores.Da mesma forma que, no cinema, todo espa90 de tempodeve ser acompanhado por um ato concreto, ou, ao menos,poruma imagem do espa<;o, no teatro, todo espa<;ode tempocleve ser sustentado por lIma expressao verbal. No teatro,o silencio torna-se rapidamente insuportavel, ainda que sejaeste aexpressao supremadalinguagem, ainda que as pessoass6 se compreendam quando nao se falam. lsto sem duvidaexplica, ao menos em parte, 0 fracas so de algumas pe9as deTardieu e de Mauriac, par exemplo; tais pegas, principal-mente se sao diffceis (corno Le pere humilie, de Mauriac), saomais adequadas para leitura do que para 0 palco, Evidente-mente, nao se deve confundir silencio com 0 "nao expresso",em Claude Vildrac au Jean-Jacques Bernard, por exemplo,nada e dito, tudo 6 sugerido, assim como nas obras de muitoscineastas e escritores de hoje. Ibsen coloca quest6es semdar respostas, Brecht nos faz tomar consciencia dos proble-mas colocados pelarealidade da vida, tendo suas pe<;as, a16mde um sentido imediato, urn sentid(i mais escondido que de-vemos decifrar. Em suas pegas, Gatti prefere recorrer -como acontece no cinema - a sfncopes e a alus6es do queao discurso. A dificuldade aparece quando se quer exprimirid€ias filos6ficas, orientar-se segunoo !teu temperamentoem dire9ao a urn simbolismo capaz de fazer as personagensviverem - objetivo prirnordial-, e, ao mesmo tempo, fa-zer um teatro vivo e dramatico, que nao seja reservado ape-nas a uma elite intelectual. Id6ias filos6ficas sao bem melhorrecebidas em literatura do que em teatro ou cinema (a maio-ria das obras dramaticas estrangeiras, e mesmo francesas,s6 sao conhecidas pela leitura). Em oposi9ao ao teatro deideias, existe a interpreta<;ao realista e naturalista das obmsdram<iticas, que da uma imagem bern descorada da "fatiade vida": e a concep~iio aristotelica (realismo dos objetos,

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110 Estetica rW cinema

do mundo senslvel), que consiste simples mente em capiar,em procurar, em imitar a vida (claramente oposta as ideiasde Shakespeare e de Evreinov, segundo as quais "a vida etocia ela marcada pela 'teatralidade' "). Brecht, Piscator,Strehler e Litterwood, entre Qutros, compreenderam perfei-tamente que (}teatro devia tentar reproduzir a vida, masatraves de conveogoes, segundo urn estetismo, e nao dara ilusiio do real. Hoje a arte teatral consiste mais em estilizardo que em capiar; em sugerir, mais do que em impor: assisti-mos, portanto, ao reCUfSOa SOlu96es intermediarias entrea precisiio e a exatidiio de Kazan, Visconti, etc., e os excessosde inspirag30 simbolista, expressionista, surrealista ou abs-trata dos anos vinte e trinta.

o abandono do naturalismo e a escolhade uma enCena!;aO suge,-tiva, liberando a imagina!;ao e entregando 0 palco ao espirito, pres-supi'iem que 0 espectador saiba percorrer 0 caminho necessariapara encontrar a significado por tds do signo, como diante de urnquadro cubista ou abstrato. Signo alusivo au exp!icito, pouco im-porta: a orienta!;ao da encena!;ao nao se baseia nem na escolha dosmeios cenicos nem tampouco em sua utiliza9iio, mas no conjuntode inten90es. Ela aceita tanto 0 despojamento de Vilar e a exube-dincia de Chereau quanto a mimicia racionalista de l'lanchon eo sentido de Festa de Mnouchkine.'

o que mais conta no teatro e 0 latente, 0 oculto, 0 informuladoe, ao mesmo tempo, apluralidade Jo texto e da imagem 0. Lassa-lie)

Dizer sem discorrer, mostrar sem demonstrar, con tar a hist6riasem mergulhar nela. (Copferman)

Acabou 0 mundo - e 0 teatro - onde tudo e explicado, ondetudo e definido, Racine obstinava-se em trazer a consciencia claraos estadas de espfrito mais turvas. A atitude inverteu-se ha cin-qiienta auos, Dos diversos planas de conscicncia, 0 mais rico eaguele onde se situam os sonhos, as angustias do homem diantecia absurdidade do mundo, 0 sentimento de umaculpa sem causa,os poderes do imaginario e as deforma9i'ies da memoria. 0 real

2. Michel Corvin, Le tl"Wt,.e nO""eau en France, PUF, "Que sais',ie?", n°1072p. lOQ,

TeatrolLiteratura 1lJ

nao e apenas complexo, mas descontinuo. Os diversos pIanos deconsciencia interpenetram-se, sobrep6em-se sem se deixar reco-nhecer. 0 princfpio de identidade e aholido; 0 mesmo e 0 outro,o riso e lagrima. 0 tempo mia e mais sentido como homogeneo,uniforme, mas estando a passagem da tempo ligada a subjetividadede uma eonscieneia dilacerada, presente e passado confundelll-sena imobilidade do instante. De on de vern 0 sentimento de desdem,de engodo, 0 homem canhece apenas uma par6dia da existencia.Cada qual encontra-se aprisionado Il\lJna rede de aparencia<;, defingimentos, incapazde comunicar·se e de instauraro menor dialo-go com a outro, mesmo ao nivel das verdades mais elementares.:l

Nao se trata de comover {)espectadar, mas de traumatiza-Io:nao se trata de ajuda-Io a pensar, mas de rorneeer-Ihe um materialbruto e iuerte ao qual 0 publico, como criador, e ehamado a dar() sentido que 0 autor evita impor ou mesmo propor. As obras evi-tam desenvolver-se de acordo com uma linha progressiva euja teu-saa conteria 0 germe de uma significaC;ao (.. ), Acontecimento, enao narrativa: choque, e nao reflexao sobre 0 drama. As pe!;as ape-lam mais para os sentidos do que para a inteligencia. Ela, contamcom .leu poder de agressao para obrigar opublico a entrar ern con-tata com elas.;

Somas obrigados a constatar as rela<;:6esIntimas entre 0

teatro e 0 cinema. Neste como naquele, encontramos, prin-cipalmente a partir de uns cinqiienta anos, a in£luencia deFreud e Pirandello: a importanciado inconsciente, os miste-rios da personalidade, as rela<;:6esdo real e do imaginario,etc, Os graves problemas relacionadQSa incomunicabilidadeentre os seres, ii impossibilidade de amor e de captar 0 Euverdadeiro, as dramas dasolidao em qualquercircunstancia,da dificuldade de viver, do homem em sua infinita diversi-dade e mesmo da angustia diante da absurdidade da vida,podem ser encontrados em Salacrou, Anouilh, Adamov,Strindberg, Billetdoux, Beckett, Ionesco, Montherland,

3. Michel Corvi", Lethallre ,w"~ea,, en FrarICe, PU F, "Que sais-je? " n': 1072,p, g,

4. 1>'1ichelCorvin, Le tj,{(il"e ,W"~C{j,, it ((;trauger, PUF, "Que sais-je?', n':11:16, p. 31

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112 Estetica do cinema

Camus, Lorca, Alberti, assim como em Antonioni, Fellini,Rene Clement, Bergman, etc.

Desta forma, 0 tema do belo filme de Ingmar Bergman,Sonata de Gutono, serviria bem para 0 teatro. um pesadoconflito afetivo que surge entre mae e filha: a antiga admi-ra9ao de Eva (Liv Ullmann) por sua mae, Charlotte (IngridBergman), transforma-se poueo a poueo em agressividaderanconJsa. Na verdade, convencemO-llOS de que esse conflitoedipiano teria fannas diferentes no palco e na tela principal-mente porque: 0 teatro se beneficiaria da presen9a de duasatrizes (com receptividade m,ixima da libera9:l0 de suas [or-yas pSlquicas e fisicas), mas 0 cinema pode oferecer closesde rostos torturados pela sofrimento moral, alga que as ma-quilagens e as efeitos de sombra e Iuz nao podem substituir.Cinema e teatro tocam-se e distanciam-se e isto e bern evi-dente quando se reve 0 excelente filme de Julien Duvivier,Marie octohre, construfdo como uma tragedia classica (uni-dade de ,1(;aO,de tempo e de lugar).

Voitamos a ideia fundamental de que 0 cinema e 0 teatroSolO artes com pIetas e, sendo meins de expressao diferentes,s6 podem exprimir diferentemente as mesmas coisas, mes-mo quando eneontramos os temas mais comuns - porexemplo, os b(ms contra os maus, que no final recebem 0

castigo mereeido, em Brecht ou em Giraudoux (em LafolleClwillot, por exemplo) - 011 nos melodramas chissicos ewesterns da mais pura tradigao. If hcH constatar que muitosdiretores (Meyerhold, Brecht, Piscator, Gatti, Salacrou,Rozewicz, Planchon, Bernstein, Miller, etc.)souberampre-servar, em suas pec;:as, as caracteristicas especificas do teatroao mesmo tempo em que se inspiravam em tecnieas cinema-tograficas: proje<;oes, decomposiC;:cles das pe<;as numa se-quencia de quadros mais ou menos dramaticos, recurs,o assfncopes e alus6es, mais do que aos diseursos, exposi<;ao di-ferenciada, flash-backs, reversibilidade do tempo, justapo-si<;ao dos lugares .. Piscator, Meyerhold, Brecht, etc. em-

TeatrolLiteratura Il3

pregam proje<;oes cinematograficas para dar 010 teatro umavisiio realista do mundo. A obra dram:itiea de Brecht, porexemplo, tem como missao niio arras tar 0 espectador paraum universo magico, mas, ao contrario, permitir-Ihe tamarconsciencia dos problemas colocados pela realidade da vida.Os outras recursos ffimicos, tais como 0 flash-back ou a re-versibilidade do tempo, parecem ser bern adaptados ao tea-tro, mesmo que freqlientemente tenha-se pretendido 0 con-tnirio (Death of a Salesman, de A. Miller). Com efeito, 0

teatro baseia-se "numa fic<;ao consentida do pensamento"(Paul Arnold); 0 ator tem uma presen9a fisica e objetiva, masvive num mundo imaginario, e, a rigor, a realidade 8 umarealidade de uconvenc;:ao", uma realidade "ensinada". LouisJouveteaptou hem toda a importancia dessas relac;:oes piran-delianas entre 0 real e 0 imaginarin. "0 teatro serve paramostrar as pessoas que existe algo aJem daquilo que aconteceao seu redor, al8m daquilo que acreditam ver all escutar,que existe urn avesso do que acreditam ser 0 lugar das coisase dos seres, serve para reveLl-los a si mesrnos", dizia eleQunto com Brecht, VilaI' e outros, Jouvet e partidario do dis-tanciamento; 0 ator deve ter uma "segunda lucidez"). 0 ci-nema, ao eontrario, pareceria, a priori, poueo adequado aoemprego dessas tecnicas, que se op6em a visao realista domundo, a uma ilusao dos sentidos que conduz a uma reali-dade diretamente percebida. Mas, ...Jonge de ser uma artepassiva, ela apela, al8m da ilusao dos sentidos, para 0 acordocllmpliee do pensamento do espectador, para a liberdadedeste criar fic96es.

Teatro

presen9a do ator _ palavras ---- sentimentos proceden-tes de uma realidade "ensinada"fisica, objetivae "dramatica"e mundo ficticio

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114 EsMtica do cinema

Cinema

presen<;:ado atar _ imagens _ sentimentos proceden-tes de uma realidade percebidacom espac;o e cenario(presenC,'a do mundo)

o teatro nao traz ao cspectador, como 0 cinema, Uilla irnagemja completamente construida (6 0 espectador que vai focaliza-lae enquadni-Ia), nem uma imagem ahstrala, !!las urn scr ao mesmotempo presente e ausente; cabe ao espectador organizar e5sa pre-seoga-amencia A todo momenta, sua perccpgao ()scila. 0 trabalhopsiquico, que e () proprio prazer do tcatro, consiste justamentcnessc vaivem do presente ao ausente, do agora ltD pussado, do realao representado, do jogo a ilcqao. Vaivem que mio deixa de 10mbraro jogo do carrete], de celebre memoria freudiana.'\

Todo artista (ao contraria do cientistaj tern necessidadede urn publico (que pode se reduzir a urn unico admirador,no caso de uma proje9ao cinematografica), e muitos deles,alias.notaveis, tern necessidade de aplausos constantes, deurn pl:iblico que lhes repita que siio admiraveis. 0 teatropressup6e necessariamente a presenra de espectadores eml1l.imerosuficiente, ativos e talentosos, au seja, capazes detransmitir sua energia aos atores e de entrar de bom gradono jogo da representa<,~ao.

o publico do dramaturgo e uma pessoa l!oletiva eonv{)cada fisica-mente para um lugar concehido e preparado para a celebra<;:iio deum rito cultural de comunhiio social. Esse rito scria inoperantescm a presew;a magnetica do ator. quc, por SUfi vet., niio provocariaqualquer cldto em lima ,ala vazia. Os ,lplausos (ou vaia.l) sao ossinais convencionados pelo costume <lessa recie de intercambioscarnais. 0espectador do illnle pode se sentir angustiado, enterne_cido, cheio de horror ou tomado pelo riso. mas sequer pema em

5. Antle ULersldd, 'oLe textc draIllLltique·. Le l/'hlll"e, Ed. Borda.,. p. lOG

4··

,

:'~

TeatrolLiteratura 115

aplaudir as imagens projetadas na tela, sejam ebs a fotograHa literalde Othello ou de A. megera.domada. r,

No teatro, 0 publico nunea esta isolado, "forma um carpo,oude 0 olhar de cada um reage aos olhares de tados". Exis-tem mUltiplos e complexas intercambios entre emissares ereeept()res, mas tambem dentro do pr6prio audit6rio. Todasessas interaGoes entre quem abserva e quem e observado,vis6es multipias e moventes, contribuem em iarga medidapara fazer de llma pera de teatro uma cria9ao unica, eminen-temente nao reprodutivel, que desaparece eom seu publico.Um filme e uma obra nao perecfvel em si, mas porem sujeitaaos juigamentos de urn publico dividido e heterogeneo, astransformar6es e as mudanGas reverslveis ou nao da modae do gosto,

II - Literatura e cinema

Um breve exame do delieado problema colocado velaadapta9ao de lima obra literaria a tela pela sua transforma9aoem cinema, permite-nos fazer um ap~nhado das inumerassemelhan9as, bern como das divergencias consideraveis queexistem entre estas duas linguagells.o cineasta pode se eonten tar emjnslJlirar-se na hist6ria

hteraria e segui-la passo a passo: "ele reproduz 0 equilibriae os centros de interesse do original" (Karel Reisz), sendoo fUme apenas representaGao, ilustra9ao de uma narrativa,transcri9ao de linguagem a linguagem. Mas a fideiidade aobm original e rara, senao imposslve!. Em primeiro lugar,porque nao se pode representar visualmente signiBcadosverbais, dOlme sma forma que e praticamente impossfvel ex-primir com palavras 0 que eshi expresso em linhas, formas

6. Robcrt Pignarrc. Histo;rc d" Ihhilrc, PUF, "Que sais·je?·, n'; 160. p. 6

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116 Estetica do cinema

e cores. Em segundo lugar, porque a imagem conceitual,que a leitura faz oascer no espfrito, e fundamentalmente di-ferente da imagem ffimica, baseada em urn dado real quenos e oferecido imediatamente para se vel' e nao para 58 ima-ginar gradualmente. "0 tempo do romance e constru{clocom palavras. No cinema, ele e construfdo com {atos. 0 ro-mance suscita lim mundo, enquanto 0 filme nos coluca diau-te de urn mundo que ele organiza de acordo com uma certacontinuidade. 0 romance e uma narrativa que S8 organizaem mundo, enquanto 0 mme e urn mundo que se organizaem narrativa" (Jean Mitry). A fidelidade de uma aclaptagaogeralmente mio coloca maiores problemas quando se tratade descrever "do exterior", como testemunhas objetivas quenao emitem qualquer ponto de vista subjetivo a respeito daspersonagens e dos eventos, quando a narra<;aocinematogra-fica se coloca sob forma de um espetaculo, de uma rep res en-ta<;ao,de uma introdu<;ao a tudo 0 que eabstrato, "interior","conteudo latente" ou subjetivo, ela coloca imediatamentegraves problemas: 0 filme nao pode sugerir ou revelar tem-peramentos e provocarimagens mentais senao por uma rela-<;30de imagens e pela palavra 7. It possfvel perceber todaa difkuldade, talvez impossibilidade de transpor para telauma obra literaria eminentemente psicoi6gica. Podemos ex-plicar assim os fracassos das tentativas de transposi<;ao cine-matografica de inumeras obras-primas (Os misera.veis, Cr!.-me e castigo) e a quase impossibilidade de colocar as her6isstendhalianos~ ou balzaquianos na tela, pois os narradores-psic610gos souberam iluminar suas personagens a partir deseu interior, com sutileza, precisao e profundidade extre-

7. ju em 1931., Rnuben Mam()lllian lltili"loU ua tela tim rccnrso tipicamentelitenirio, 0 mon6logo interior, em City st!"Ce/s.

Il. Clallde Antant·Lara lran,pos em imagen., alguns rOmanCes de Stendhal. porexemplo Le rouge et Ie "oil", e tambem de Colelte (I.e hie en herhe), de MarcelAyme, de Raymond Radiguet. etc.

\

TeatrolUteratura 117

mas, revelando com perfei<;aoos temperamentos, as ideias,os sonhos, as opini6es e 0 cora<;aodos homens.

Adificuldade daadapta<;ao tambem reside na necessidadede tornar a narrativa perfeitamente inteligfvel a primeira vis-ta (ao contr:irio do lei tor de romance, 0 espectador nao podevoltar ahas, apesar de poder - e nao deve deixar de faze-Ioquando se trata de obras-primas - ver um filme varias ve-zes, quando captara todos os aspectos, todas as sutilezas quelhe escaparam nas proje<;oes precedentes). Alem disso, hao problema de "temporalidade": e importante reunir 0 maxi-mo de coisas num mlnimo de tempo, exprimir tudo pela a<;:1onum tempo limitado; donde a necessidade de estilizar, desuprimir uma grande parte dos elementos do romance quese esta adaptando para conservar somente 0 essencial daa9:10,0 que existe de mais significativ() nas individualidades.E, nesse sentido, a escoiha ja e um ato de cria<;:1o,por maisque a adapta<;ao seja passiva e altamente respeitosa e cons-cienciosa, como a de Wutherin heights, de Wyle. Dadas asdiferenps fundamentais entre os meios de expressao da lite-ratura e do cinema, a adapta<;aomais escrupulosa e necessa-riamente a passagem de uma linguagem a outra, e lima tra-du<;aoe, portanto, "uma trai<;aocriativa", segundo RobertEscarpit.

It importante que 0 roteirista (ou adaptador) e 0 diretol"sejam fieis ao original, mas, mais ainda, Finefa9am uma obrade arte "preocupando-se com aexpress30 atraves da imageme com a contribui<;ao que ela fornece", e fazendo viver aspersonagens, para que elas nos comovam, nos intriguem,nos surpreendam, nos sujeitem. Essa foi a preocupa<;aode Robert Bresson quando adaptou para 0 cinemao romancede Georges Bernanos, Lejournal d'uTi cure de campagne.Jean Semoule escreve (Bresson, Ed. Presses Universitai-res):

o romance de Bernanos e um longo grito: em .Ieudiario, 0 paro-co de Ambricourt q lle,tiona-se ora com temor, ora com desespero.

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118 Est(jtica do cinenw TeatrolLiteratu ra 119

Por vezes a ang\istia anora, por vezes irrompe violentamente (. .. J.A intensiclnde da obra velll de~~:l .lerie de questiJes e de reflex6essabre a <lnglls!;a, que constituem um elemento lragico no estado]luro. Sofi-cndo-a, e depois superando-a, 0 paroeo d'Ambricolirtlorna-50 pOll eo a pOUCO!l1n santo, "prisioneiro da santa Agonia"

Na adapta~ao (. ), era preciso dominar 0 aspecto tnigico, tor-mi-lo suporHvel scm suaviza-lo, dar a hist6ria lim a<;pectodrama-tieo ( .J Que existe mas que e pOlleo aparente no livro

o problema era entao reror~ar a progre<;siio e a continuidadedo romance sem sacl'ificar seu tom, continuando 0 mElle a scr (comosell modelo) antes de ludo uma longa meciitac;ao sobre a angustia.

A ligag:lo d05 acontecimentos, como no livro, mio e apenas llmasimples liga~'ao de eausa e efeito: e llma ligaQao interna. 0 mmenasce inteiramente do diario, Vemos 0 p,iroeo esereve-Io e escuta-mos sua voz dar-lhe vida. Os acontecimentos exteriores sucerlem-se perdendo seu contorno pr6prio e impregnando-se de vida inte-rior Nao no, desligamos do paroeo d'Ambricourt como aconte-ceria em uma narrativa impessoal. 0 tom do diario intimo e umajustilicativa estetica e psicol6giea do fUme, como era no romance, g

mo "ilustrador", mas como urn verdadeiro criador: inspira-se numa obra literaria - todo artista extrai sua argila, suamateria bruta, do patrimonio cultural. Mas, sem a preocu-pa9ao de continuar fiel a letra ou ao espirito, repensa total-mente seu terna para Ihe canferir uma visao inteiramentepessoal., as vezes completamente diferente da do romancis-tao "0 adaptador", dizia Bela Balasz (Der Geist des Films),"deve usar a obra existente apenas como materia-prima,considerando-a sob 0 anguio especifico de sua pr6pria formade arte, como se Fossea realidade bruta: nao tern de se ocuparda formaja conferida a essa realidade." Foi assim que Mur-nau, Welles, Buiiuel e Renoir sempre souberam transfor-mar uma ideia ou um tema em urna cria9ao eminentementepessoai e nao numa simples caricatura medIocre, emba9adae sem alma. Se muitos escritores nao se interessam por aqui-10 que 0 cinema pode fazer de suas obras, outros, ao contra-rio, preocupam-se bastante em preservar seus sentidos esignifica90es. Georges Simenon e indubitavelmente bastan-te exigente quando declara que nunca ve as adapta90es cine-matogr:ificas de sellS livros (cerca de 58 filmes de Renoir,Fellini, Duvivier, Clouzot), pOl' considerar extremamentedesagradavel ver na tela personagens diferentes daquelasque imaginava em seus !ivros. Esse desejo de fidelidade naopo de ser satisfeito, nao passa de uma quimera, mesmo sendo"observavel que a inconsciente de urn h"f)mem pode reagirao inconsciente de um outro homem" e, mais concretamen-te, apesar de uma colaboragao par vezes bastante estreitado escritor durante a adapta9ao.

Um DOS gran des meritos das adapta90es fieis e/ou inteli-gentes e de qualidade (Ha'mlct, La bete iUl'maine, Le rougeet le noiT, Le diable au corps, Lejournal d'un cure de cam-pagne, GerlJaise, de Rene Clement, inspirado no romancede Emile Zola, L'assomoir) e permitir que um grande nume-ro de pessoas tenha acesso as obras-primas da literatura, vis-ta que esses filmes geralmente fazem com que 0 espectador

(

Essa foi igualmente a preocupa9aO de Pierre Tchernia narealiza9ao de seu filme para a televisao, Le voyageur" impru-dent, a partir do romance de Rene Barjavel:

Eu .lei que Le wyageur imprudent e uma obra de imenso liris-mo, e que me dediq uei, nos limites de uma obra feita para televi-sao, com ()cora\"lo partido, a uma afetuosa trai9iio a Harjayel: cleslo-quei-me atraves de .leu romance como Uill yiajante imprllclente.Espero que dele re,te 0 el)Canto da, personagens, a melancoliadoclesenlace e a v()ntade de ler 0 romance. Sei que os atores (exce-Jenks desempenhos de J eall-Yiarc Thibault e Thierrv Lhermitte)deram vida, COIllO eu desejava, as pel's()nagens que adaptei (poiso adaptador e um pai adotivo) e ell Ihes agrade90.

Na maioria dos casas, a transposi9ao para 0 cinema e umare-cria9ao. ~ tradutor - alem da escolha fundamental quese impoe - realiza uma obra pessoal e manifesta-se nao co-

9, l'"lavfllS ]"(:col],id"., po,- Hog"r l-\o!LSSi!Lot CII' Sua Encyclopedia d" cim!m",Ed. BonJas, p. 697

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120 Estetica do cinema

tenha vontade de ler os originais. E podemos apenas nosalegrar com 0 fata de que sempre, para 0 bern de todos, osgran des cineastas 10 ten ham se inspirado nas obms dos gran-des mestres cia literatura (Shakespeare, Dumas pm, Dickens,Toistoi, Hugo, Balzac, Puchkin, Jack London, Zola, Dos-toievski, etc.). Vma transposi~a() que peca pelos excessosde liberdade, e as vezes por erros de interpreta9:l0, podeprovocar 0 desejo de lef 0 livro. foi 0 que aconteceu, porexemp!o, com 0 filme de Roger Vadim, Les liaisons dange-reuses, inspirado no romance de Chordelos de Ladas, ro-mance cujo sucesso, apesar de imediato e consideravel, tor-nou-se em pOlleos meses fulminante. lvJasacontece tambemque 0 filme seja decepcionante, nao dando qualquer motiva-<;aoa leitura do livr~, como ocorreu, por exemp]o, com afilme de Jean-Louis Richard, Le corps de Diane (apesar debern interpretado par Jeanne Moreau e Charles Denner),adaptado de urn helo romance de Frangois Nourissier. 0obstaculo e que, se tais adaptag6es nao levam 0 espectadora se reportar a obra, este nao enriquecera de forma algumaseus'conhecimentos litenirios. Ao contnirio, arrisca-se a teruma impressao compietamente falsa da obra.

10, A obm de Jean DelalHlOY,por exemplo (apejidado "0 mais lited,.io dos di,.c-lares"), inspiru-se freqlienlemente nas obras dos g:l'andesescritores clUssicosemodern os: La prillces.se de eMus. de Mme. de La Fayette, Notre-Dame de Paris,de Vidor Hugo. L"ctcrnel retour. de Coctcau. La simpliorlie pastomle, de GiJe,etc.

Geol'ge Cukor adaptou com Bdelidade para a tela in,imeros romances de Dic-kens, Shakespearee Alexandre Dumas Blho(Romcu eJn/ieta, David Copperfield,La dame aux Glm,,!!;as).

William Dieterle fOiigualmenle uw especialista em adapta~"cs de obras litera.ria.' (50,,1108 de "ma noite de oeriJo, em colabora\,iio com 1I-hx ReinharJL [lor",empIo),

Aobra de Dostoiev,ki imp(rou (numeros artislas, principalmenle cineastas (0idiota, de Ivan Pyricv> COIll Yuri Yakovlev no papel do principe Mvchkinc e LParkhom(enk" nOde Rogojinc).

')

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