Betty Beaty - Um Sonho de Viagem - Bianca 52

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Um sonho de viagem (Doctor On Board) Betty Beaty Bianca nº 52 Um sonho de viagem (Doctor On Board) Betty Beaty Título: Um sonho de Viagem Autor: Betty Beaty Título original: Doctor on Board Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991 Publicação original: Publicado originalmente: 1964 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Gênero: Romance Contemporâneo – Bianca nº 52 Digitalização: Estado da Obra: Corrigida PROJETO REVISAR Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida. Cultura: um bem universal. Digitalização: Palas Atenéia 1

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Varando lentamente a neblina que envolvia o rio Tamisa, o Palias Athene, majestoso navio para milionários em férias, iniciou seu cruzeiro de sonho, navegando em direção ao alto-mar... Debruçada sobre a amurada, Cristie via os contornos de sua terra sumirem dentro da bruma, quando uma força estranha atraiu seu pensamento. Voltou-se e, entre os passageiros, viu um homem fascinante sorrindo para ela. Foi como amor à primeira vista! Cristie soube nesse momento que o desconhecido lhe prometia todas as maravilhosas delícias do amor, mas também muito, muito perigo!

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Um sonho de viagem (Doctor On Board) Betty BeatyBianca nº 52

Um sonho de viagem(Doctor On Board)

Betty Beaty

Título: Um sonho de ViagemAutor: Betty BeatyTítulo original: Doctor on BoardDados da Edição: Editora Nova Cultural 1991Publicação original: Publicado originalmente: 1964 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Gênero: Romance Contemporâneo – Bianca nº 52

Digitalização: Estado da Obra: Corrigida

PROJETO REVISAR

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente

proibida. Cultura: um bem universal.

Digitalização: Palas AtenéiaRevisão: Renata Almeida

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Varando lentamente a neblina que envolvia o rio Tamisa, o Palias Athene, majestoso navio para milionários em férias, iniciou seu

cruzeiro de sonho, navegando em direção ao alto-mar... Debruçada sobre a amurada, Cristie via os contornos de sua terra sumirem

dentro da bruma, quando uma força estranha atraiu seu pensamento. Voltou-se e, entre os passageiros, viu um homem fascinante sorrindo

para ela. Foi como amor à primeira vista! Cristie soube nesse momento que o desconhecido lhe prometia todas as maravilhosas

delícias do amor, mas também muito, muito perigo!

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Capítulo I

Naquela manhã do dia oito de abril, um nevoeiro espalhou-se pela baixada do rio Tamisa. A neblina elevava-se até as pontas mais altas dos guindastes das docas e caía ao redor, rarefeita, como se fosse uma saia feita de tênues teias de aranha. No canto dessa teia aparecia, todo branco e reluzente, o S.S. Pallas Athene, um navio turístico para milionários. Era nesse navio da companhia de navegação Gold Star que eu ia trabalhar.

Um dos passageiros não tirava os olhos de mim. Estava junto de sua tia, uma velha senhora. Eu tentei decifrar a etiqueta das malas da tia. Se minha vista e a escrita cheia de rococós não estavam falhando, ela era a condessa D’Albi e, junto com o sobrinho, deveria ocupar a suíte número três do deck A.

O sobrinho se dirigiu a mim, enquanto esperávamos no cais.— Acho que um navio tem algo de misterioso e excitante... — disse ele —

Seu inglês tinha apenas um ligeiro sotaque. Podia ser italiano ou francês, não dava para distinguir bem.

Notando que eu estava prestando atenção na tia, o sobrinho aproveitou para fazer as apresentações.

— Podemos nos apresentar? Minha tia, a condessa D’Albi.A velha senhora estendeu uma minúscula mão repleta de anéis, quase à

altura de meu rosto, fazendo com que eu me sentisse na obrigação de beijar sua mão, em vez de apertá-la simplesmente.

— Acho que vamos ter uma viagem agradável e um tempo ameno — disse eu com delicadeza.

Ela nem sequer esboçou um sorriso. Penso que uma das razões era evitar que a pesada maquilagem desmoronasse. Até seus enormes olhos empapuçados, que não necessitavam de qualquer realce, eram circundados por uma espessa camada de sombra, dando-lhe a aparência daqueles ursinhos panda.

— Espero que o mar se mantenha calmo. Sofro de enjôos desde o momento em que piso no convés — explicou a velha senhora.

O sobrinho sorriu-lhe com indulgência, em seguida inclinou-se em minha direção.

— Meu nome é Paul Vansini.Ao contrário de sua tia, tinha um aperto de mão firme e decidido. Ficou

segurando minha mão por um tempo que seria considerado exagerado pela maioria dos homens ingleses.

— Como vai, Sr. Vansini? — respondi — Eu me chamo... — Mas a tia interrompeu-me, sibilando uma admoestação.

— Conde Vansini, por favor!O rapaz deu uma risada de pouco caso.— O que é isso! Insisto que me chame somente de Paul. Isso faz com que

eu me sinta mais à vontade, como em minha própria casa, na minha querida Inglaterra!

Não me pareceu o momento mais oportuno de explicar-lhe que, tanto a companhia de navegação em geral, como o capitão Doubleday, comandante do Pallas Athene, em particular, detestavam que os passageiros e as recepcionistas se tratassem pelos nomes de batismo. Portanto, resolvi continuar apresentando-me.

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— Oh, mas não vai ser preciso apresentar-se — disse Paul Vansini. — Posso ler no seu crachá. Você é a Srta. C. Cummings e pertence à tripulação do navio. Tudo muito fácil e evidente.

— Realmente, foi fácil — Dei um sorriso.— E o que significa esse C?Eu encabulei. Desde que me conheço por gente, meu primeiro nome

sempre me causou embaraços. Meu pai era um fanático por poesia clássica e, infelizmente, grande admirador do poeta Coleridge.

— Cristabel — respondi, à espera da reação.— Cristabel — ele acentuou as últimas sílabas. — Lindo! Que nome mais

charmoso! E como lhe cai bem! — Com voz macia, ele identificou a personagem. — A graciosa lady Cristabel.

Da mesma forma que seu aperto de mão, seus olhos demoraram-se sobre os meus, um pouco mais do que o conveniente.

— Presumo que seus amigos a chamem de Cris, não é verdade?— Às vezes. A maioria me chama de Cristie. Aliás, é como me tratam em

casa.— Então, para mim, você também será Cristie. Naturalmente, você não é

o capitão do navio. E mesmo os fleumáticos ingleses não permitiriam que uma jovem como você fosse marinheiro. Bem... Você também não é suficientemente anti-séptica e emproada para ser uma enfermeira. E também é elegante demais para uma simples camareira... — Fez uma ligeira pausa. — Portanto, só sobrou que você é nossa recepcionista social. Esta é a resposta correta, não é mesmo?

Dei um sorrisinho, sem me deixar impressionar.— Foi muito sagaz. Como adivinhou?— Como já lhe disse. Por eliminação e por dedução.— Eu poderia ser comissária de bordo, ou então, cabeleireira, ou ainda,

pajem das crianças...Mas ele não me deixou continuar.— Não, você não poderia ser nada disso.Em seguida, começou a fazer-me perguntas. Quis saber se eu fizera

outras viagens e para que partes do mundo. Mas quando esclareci que aquela era minha primeira experiência em matéria de viagens, comentou:

— Então, você vai precisar de ajuda. Pelo menos até se sentir segura. Minha tia já foi a rainha das festas, Antes de estabelecer-se na Inglaterra, era conhecida como uma das mais famosas anfitriãs de Milão. Suas recepções eram comentadas mundialmente. Eu também tenho muita prática em divertimentos, na minha modesta carreira de homem solteiro.

Tal como a tia, ele tinha o dom de dar um destaque especial a certas palavras, nas frases que emitia. A palavra solteiro, por exemplo.

— Precisamos combinar para promovermos juntos alguns bailes e reuniões, você não acha? — Ele começou a falar, mas, na verdade, não tivemos muita chance de discutir nosso programa social, pois o trem estava chegando ao seu destino e já podíamos divisar os carregadores da alfândega empurrando seus carrinhos pela plataforma, em nossa direção.

— Muito agradecida — disse eu, cortesmente, tão logo o sobrinho levantou-se, pegando primeiro as bagagens da tia e, depois, ajudando a descer as minhas do bagageiro.

— Espero reencontrá-los freqüentemente a bordo.

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É incrível como a gente nota certos detalhes, aparentemente sem importância. Quando ambos nos levantamos, pude verificar que ele era só um pouco mais alto do que eu. Por ser magro, quando sentado, dava a impressão de ser bem mais alto.

Quando o trem finalmente parou no ponto final, virei-me para dizer adeus à condessa. Acho que ela é uma daquelas pessoas que só de olhar para o chaminé de um navio já se sentem enjoadas. Era evidente que estava ficando verde, sob a camada de maquilagem. Seus pequenos pés bambearam dentro dos sapatos de salto alto, incapazes de sustentar seu peso por mais tempo.

— Venha, apóie-se no meu braço — ofereci gentilmente, fazendo com que se sentasse novamente. — Não há pressa. O navio só vai partir daqui a algumas horas. Sentei-me perto dela, o mais à vontade possível, enquanto o sobrinho desentocava um frasco de sais para ela aspirar e me dava um vidro de água de colônia para passar-lhe na testa.

Pela janela, podia ver os demais companheiros de viagem movimentando-se pela plataforma, acotovelando-se no estreito espaço e desaparecendo pelo escuro portão que levava à alfândega e ao Departamento de Imigração. Os carregadores seguiam atrás deles, muito atarefados, levando as bagagens ou oferecendo seus serviços, aos gritos. À distância, soou o apito de um navio.

Comecei a sentir-me como se estivesse sonhando que ficaríamos ali sentados por toda a eternidade, despejando água de colônia na condessa e dando tapinhas em suas faces, enquanto o Pallas Athene levantava âncora e a vida seguia adiante, deixando-nos para trás.

Passados dez minutos, ela disse que estava melhor e ajudei o sobrinho a reunir todos os seus pertences: a frasqueira verde de crocodilo, o rádio portátil, um monte de máquinas fotográficas, as malas brancas de couro de porco e uma valise que parecia ser uma caixa de jóias. Quando, finalmente, pisamos na plataforma, havia aquela mesma calmaria que sucede às tempestades. Todos os outros passageiros tinham ido embora e, conforme eu havia previsto, não tinha sobrado um só carregador para consolo. Ficamos ali, de pé, sem ação, enquanto o rapaz fazia sinais e gritava: — Carregador! — de forma imperiosa, porém infrutífera, a todos os que passavam, vestindo jaquetas ou guarda-pós. O remédio foi nos encaminharmos lentamente em direção à alfândega, por nossa conta e risco.

Era uma curiosa caravana: a velha senhora apoiada com todo o seu peso no braço do sobrinho que, com muito esforço, equilibrava toda a bagagem da tia, e ainda fazia com que sobrassem mãos para carregar suas próprias malas. Eu ia atrás, seguindo a ambos, carregando um embrulho de papel pardo que o rapaz pedira que eu levasse. Logicamente, a essa altura, a alfândega estava abarrotada de gente, em meio a uma algazarra infernal. Nós nos colocamos atrás de uma pequena multidão e fomos avançando aos poucos, à medida que o pessoal era liberado.

Passar pela Imigração era somente uma formalidade. Tinham nos avisado que não faziam muitas exigências com a tripulação, a não ser que carregássemos mercadorias proibidas pela alfândega. Os fiscais da Imigração foram, de fato, muito cordiais com todos nós, deixando-nos muito à vontade, como se estivessem certos de que éramos gente cumpridora da lei e acima de qualquer suspeita. Desejaram boa viagem e, em tom de brincadeira, perguntaram o que eu estava levando naquele pacote.

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— Dinheiro contrabandeado — sugeriu o fiscal, jocosamente, enquanto conferia o passaporte onde aparecia a minha fotografia. Era de conhecimento geral que não podíamos desviar grandes quantias de libras esterlinas do país. Na realidade, com todos os gastos que tive comprando roupas, acessórios e tudo o mais que dependia do meu salário, tinha a declarar somente uns míseros cinqüenta pounds.

— Bem que eu gostaria que fosse dinheiro! Saberia muito bem como usá-lo.

Parece que eu disse isso com muita graça, pois todos se puseram a rir.— Mas creio que são apenas sanduíches. — Aproximei o pacote do nariz.

— E, pelo cheiro, acho que são de queijo!Os fiscais sorriram e apenas comentaram que não sabiam que a

companhia era tão avarenta com a alimentação dos tripulantes de um navio do porte do Pallas Athene e, bem-humorados, devolveram-me o passaporte.

— Faça uma boa viagem, Srta. Cummings. Nós nos veremos ao seu retorno.

Subitamente, senti-me bem disposta, feliz e repleta de bons presságios. Mas quando me aproximei dos balcões de madeira da alfândega, tive a nítida sensação de que estava sendo observada. A impressão foi tão grande que parei para olhar em torno. Foi então que os vi, perto da saída. A condessa estava virada para o lado do cais e Paul Vansini olhava fixamente em minha direção.

Era difícil determinar qual era a expressão de seu rosto, naquele momento. A conclusão mais aproximada era que ele estava me analisando intensa e minuciosamente. Já não era mais aquela figura risonha e despreocupada do boa-vida, mas demonstrava ser uma pessoa em estado de alerta, meticulosa, inteligente e cautelosa, enfim, uma pessoa virtualmente diferente. Tive quase a certeza de que, apesar de ele estar muito distante para conseguir ouvir o som de minha voz, sabia, por qualquer razão misteriosa, cada palavra que eu trocara com o pessoal da Imigração.

Não esperou que eu chegasse até eles. Num movimento, aparentemente casual, precipitou-se para o cais, olhando com interesse para o alto, como se estivesse apreciando o tamanho dos navios atracados.

Quando finalmente os alcancei, seu rosto tinha a aparência usual, sorridente, insinuante, paquerador e, agora, talvez, com um ar de admiração um pouco mais acentuado.

Perguntei à condessa como é que ela estava se sentindo.— Um pouco melhor — disse ela. — Não muito, só um pouquinho.— Preciso subir a bordo o mais cedo possível — informei, segurando-a

por um braço, enquanto o sobrinho a sustinha pelo outro braço.— É melhor que se deite um pouco, logo que chegue à cabine e tente

dormir. Peça para a camareira levar seu almoço na cabine, quando for mais tarde. Se precisar de minha ajuda é só chamar a telefonista para localizar-me.

Olhei para Paul de relance, esperando que ele se manifestasse, desdobrando-se, como de costume, em atenções para com a tia. Mas, aparentemente, ele só estava concentrado na minha pessoa.

— Parece que você tem um ótimo relacionamento com os fiscais — disse, com um sorriso que me pareceu forçado.

Olhou-me de maneira tão penetrante, que, por um segundo, cheguei a pensar: Santo Deus! Ele está com ciúmes! Mas, em seguida, modifiquei minha opinião. Acho que ele está querendo me convencer de que está com ciúmes.

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— Pensei ter ouvido você dizer que esta era a sua primeira viagem.— E é mesmo.— Pois pareceu-me que eles já a conheciam de longa data. Foram tão

liberais!— Oh, geralmente são assim com o pessoal da tripulação. Mas eles

também o trataram bem, não trataram? Espero que o tenham liberado logo, em consideração ao estado de saúde de sua tia. Só são severos quando alguém tenta enganá-los. Eles têm um instinto fora do comum para detectar trapaceiros e contrabandistas.

Ele fingiu assustar-se. Depois deu uma risada.— Mas que eles são mais salientes com moças bonitas, isso eles são. E

não é para admirar!Deu-me a impressão de que ele esperava tão ansiosamente por uma

resposta, que, dessa vez, tive quase certeza de que estava enciumado de fato.— Bem, na verdade, estavam fazendo piadas sobre o seu embrulho. — E

passei-lhe o volume por detrás da condessa.— Então vou atirar o pacote aos tubarões. Na verdade, tinha até

esquecido que estava com você. Que falta a minha! Deixá-la com esse fardo!Com um sorriso, fez um gesto, como se fosse jogar o pacote dentro da

água. Mas não jogou. Pelo contrário, acomodou-o bem apertado, debaixo do braço.

Fomos andando em direção ao Pallas Athene e não pensei mais em Paul, nem em seu embrulho.

Era natural que, sendo uma moça, pudesse ter ficado um pouco lisonjeada com seu comportamento, mas, na verdade, achei mais fascinante a visão que me esperava.

Naquele momento, o sol rasgava a neblina e aparecia esplêndido, pelos buracos abertos naquela imensa teia. Seus raios pareciam refletores projetando-se sobre as manchas de óleo que flutuavam na água das docas, de Londres e transformavam os vidros das vigias do navio em enormes diamantes. O casco do Pallas Athene parecia iluminado e brilhava como neve.

Tive que virar a cabeça para trás, quase torcendo o pescoço, para alcançar com a vista o topo do navio, com sua imponente chaminé. Senti-me tão insignificante quanto um mosquito, menor do que uma migalha de pão que se atira às aves marinhas. Fiquei orgulhosa e eufórica. Ergui-me na ponta dos pés, à beira da amurada, de tanto entusiasmo. Para completar o quadro de felicidade, tinha a meu lado um jovem terrivelmente charmoso e atraente.

Repentinamente, a neblina encobriu o sol. No céu, restou apenas um disco alaranjado que logo desapareceu. Fiapos de nevoeiro tocaram nossos rostos como teias de aranha que se desfazem. Tornei a admirar o Pallas Athene.

Ainda era branca como a neve, mas já não parecia tão brilhante, nem tão alegre. Agora, tinha o aspecto de um imenso iceberg surgido dentro da névoa. Lembrei-me, não sei por que, de uma lição de geografia aprendida na escola e já meio esquecida. Só uma pequena parte de um iceberg aparece na tona.

A parte mais perigosa é aquela que está submersa.Esta constatação pareceu-me importante, naquele momento, e, de

repente, sem qualquer razão aparente, senti um estranho medo.

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Capítulo II

— Acredito que vamos tornar a vê-la, não e mesmo, garanti que, naturalmente, iria encontrá-la de novo durante a viagem e despedi-me.

Ela e o sobrinho estavam recebendo um tratamento especial e foram quase carregados nos braços para a boléia, por um comissário de bordo de duas estrelas. Dois camareiros apareceram não se sabe de onde, e carregaram toda aquela parafernália, que era a bagagem da condessa.

— Ora vejam só! — exclamou Bess, ironicamente, olhando aquele estranho cortejo. — Pelo que posso ver você já andou voando alto. Como consegue farejar gente cheia de dinheiro?

O vestíbulo estava cheio de passageiros recém-chegados que se despediam dos amigos e parentes. A atmosfera era pesada, com um forte odor das flores tropicais que decoravam o ambiente e uma cara fragrância, onde se misturavam os perfumes de Dior, Worth, Schiaparelli. As pequenas luzes distribuídas discretamente pelo teto refletiam-se naquela profusão de broches de ouro, anéis de brilhantes, e colares de pérolas das turistas.

— Não é à toa que o cofre do navio já está quase lotado! Está até parecendo à caverna do Ali-Babá. A companhia contratou um detetive para a segurança. Ninguém sabe quem é o homem. Foi o chefe quem disse.

Quando pronunciou a palavra mágica chefe, a fisionomia de minha amiga transformou-se. Até os contornos do rosto pareceram mudar. Aquela carinha rechonchuda, de nariz arrebitado e olhos castanhos, que minha mãe classificaria como o tipo da moça comum, iluminou-se toda. Os olhos abriram-se, com um brilho novo, os lábios ficaram trêmulos e ela pareceu-me ostentar uma beleza frágil e comovedora. Com toda a certeza, ela estaria disposta a trocar todos os tesouros acumulados por Ali-Babá pelas palavras mágicas de Abre-te Sézarno! Dirigida ao coração do chefe dos comissários.

Sempre que se falava com Bess, mais cedo ou mais tarde, a conversa girava em torno dele, do mesmo modo que uma agulha magnética é atraída pela direção norte. Mesmo que se falasse de uma expedição ao Pólo Sul, do preço do amendoim no Havaí, da situação do Afeganistão, era certo que o chefe seria mencionado.

— Como é que ele vai indo? — perguntei, enquanto nos movimentávamos pelo vestíbulo, pisando na macia forração de borracha, com nossas figuras refletidas nas colunas de ladrilhos decorados e nos espelhos das paredes.

— Ele vai muito bem, como sempre. Uma saúde de ferro, mas um pouco desligado da cabeça. Imagine que nem sabe que eu existo! — disse Bess.

— Não posso acreditar nisso — duvidei, enquanto desviava de um grupo de passageiros que estava parado, admirando os preciosos painéis de madeira entalhada, os nichos que expunham valiosas estatuetas e um sofisticado relógio de parede que mostrava as horas, os dias e a temperatura.

— Você deve estar exagerando. Vocês dois já fizeram algumas viagens juntos. Ele deve estar cansado de saber quem você é.

— Tudo o que ele sabe é que existe uma babá neste navio. E paramos por aí.

Bess fez uma breve pausa para apertar o cinto do uniforme azul e branco, que era o traje oficial das pajens de bordo.

— Bem, ele também sabe que tenho vinte e quatro anos, que meu 8

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uniforme é manequim 44, que calço 36 e que vivo com meus pais em Bournemouth. É sua função conhecer esses dados vitais sobre todos os seus subordinados. Possivelmente, ele também saiba a quantidade de comida que eu como e qual o meu peso, para informar a seção de fretes da companhia. Tenho também certeza de que ele está sabendo que não sou das piores para organizar festinhas de crianças e que deverei voltar para a terra firme dentro de quatro meses. Mas o que tem dentro deste uniforme, quem é a moça cujo lar é em Bournemouth, ou qual é minha aparência, desde a touca de babá, até a sola do sapato, isso, ele não sabe. Nesse ponto, minha filha, é ignorante de pai e mãe. O escritório do chefe é no deck C. Logo, logo, você vai se orientar melhor.

Atravessamos o vestíbulo do deck C, onde estavam expostos noticiários de bordo já em desuso, horários das refeições, resultados dos jogos de futebol, boletins de notícias da BBC de Londres, cotações de cambio e algumas lousas escolares, onde se lia no cabeçalho: Eventos do Dia (esta seria minha futura atividade).

Nos fundos, havia uma porta com uma indicação Chefe dos Comissários. Por baixo, lia-se o nome: /. Maclntyre.

Em resposta a uma tímida pancadinha que Bess deu na porta, ouviu-se uma voz, bastante agradável, com um ligeiro sotaque escocês, dizer para que entrássemos. Bess deu-me uma olhada tão compungida, como se estivesse prestes a se atirar num precipício.

Viramos a maçaneta da porta e entramos. Eu estava preparada para encontrar um oficial muito competente em assuntos marítimos e muito dedicado ao seu trabalho, de acordo com a descrição prévia de Bess. Mas não estava absolutamente preparada, baseada naquelas mesmas entusiásticas descrições, para deparar-me com um homem tão feio e sem atrativos. Era alto demais, exageradamente alto para combinar com Bess. Tinha as costas encurvadas, por certo de tanto abaixar-se para passar por baixo de escadas, pontes, portas e tombadilhos do navio. Estava de pé, e, pelo que tudo indicava, na sua postura favorita: as mãos cruzadas atrás das costas, os ombros arqueados e o queixo, com maxilares de buldogue, projetado para a frente. Tinha um cabelo castanho revolto, parecendo um matagal, e usava óculos de lentes grossas. Quando sorriu para nós, mostrou uma fileira de dentes brancos e brilhantes e seu rosto pareceu suavizar-se, chegando a ser atraente até para meu gosto exigente.

— Bom dia — cumprimentou, olhando para uma e para a outra, com expressão de surpresa e expectativa. Quase que pude ouvir, de antemão, o restante da frase: Em que posso ser útil?

Não consegui compreender por que Bess dizia que ele nem a notava. Da maneira como ela se comportou na sua frente, nunca poderia passar despercebida. Ficou ali, parada, balançando nervosamente a bolsa, sem dizer uma palavra, mas emitindo um ruído estranho que partia de dentro de sua garganta, como se estivesse tentando abri-la à chave, para deixar sair a voz.

Mas o chefe nem tomou conhecimento daquela estranha atitude. Parecia que achava que aquilo era a coisa mais normal do mundo. Começou remexer alguns papéis que estavam sobre a mesa de trabalho, até que ela disse, um tanto estridentemente:

— Senhor, muito bom dia. Trouxe aqui minha amiga Cristabel Cummings para lhe ser apresentada.

Quando Bess percebeu que ele enrugou a testa, como se ser 9

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apresentado a uma amiga de alguém da tripulação fosse a última coisa que desejava no momento, ela apressou-se em acrescentar:

— É a nova recepcionista social. Está se apresentando em cumprimento de seu dever.

Ele ficou mais animado quando Bess pronunciou a última palavra. Era óbvio que dever era, aos seus ouvidos, uma das palavras mais doces da língua materna. De fato, saiu detrás da escrivaninha e veio apertar-me a mão, com uma força esmagadora.

— Então, veio apresentar-se para inteirar-se de seus deveres? — Dessa vez, ele usou a palavra no plural.

— Justamente — respondi. — E creio que vou gostar muito do meu trabalho.

— Você não está com receio dessa responsabilidade toda? Afinal de contas, é sua primeira viagem num cruzeiro marítimo. E esse é um cruzeiro muito especial.

— Nem um pouco — afirmei, esquecendo-me de minhas apreensões matutinas. — Tivemos um bom treinamento na sede da companhia.

Ele olhou-a com uma incrível serenidade.— Você tem bastante energia?Talvez minha aparência fosse um pouco duvidosa nesse ponto.— Eventos sociais podem tornar-se bastante cansativos. Você se cansa

facilmente? — Não, eu sou bastante resistente.— E você tem suficientes idéias para jogos e diversões escondidas dentro

da manga de seu paletó, para puxar para fora no momento oportuno?A seriedade com que ele disse isso quase fez com que eu me pusesse a

rir. Entretanto, controlei-me, e respondi, também com seriedade, que sim, que tinha.

— Ótimo! Naturalmente, agora você gostaria de acomodar suas coisas na cabine. Procure familiarizar-se com o navio. Há uns dois itens importantes que seria bom você estudar melhor.

Com um cuidado exagerado, passou-me dois folhetos, num dos quais havia uma relação de possíveis entretenimentos, composta por ele mesmo, e no outro, uma cópia de todos os regulamentos de bordo.

Desejou-me uma viagem agradável e pôs-se à disposição para qualquer consulta sobre coisas das quais eu tivesse dúvidas. Recomendou-me também que o procurasse se algum passageiro se mostrasse atrevido ou inconveniente e, por fim, agradeceu-me por tê-lo procurado em seu gabinete. Brindou-me com um último sorriso, como se fosse um presente de despedida.

Quando eu já estava com a mão na maçaneta da porta é que ele se deu conta de que eu não estava sozinha.

— E muito obrigado por ter trazido sua amiga, senhorita... Se-nhorita...No terceiro senhorita, eu fechei a porta.Bess não disse uma só palavra, até que chegássemos às acomodações

que me eram destinadas. Era uma cabine de solteiro. Fiquei encantada em ver que tinha uma vigia, dando para o mar.

— Sinto muito, mas não consegui a cabine pegada à minha. É que já tinha sido reservada pela enfermeira-chefe, Trudy Regan. Ela gosta da vista de lá. — Bess deu um sorriso de mofa, muito pouco caridoso, e acrescentou: — E todas as coisas que agradam à sua vista, ela consegue.

Comecei a circular pela cabine, mexendo em tudo, com um certo sentido 10

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de orgulho: a pequena escrivaninha, a penteadeira, a colcha macia da cama.— E quais são as outras vistas de que ela mais gosta? — perguntei, rindo.— O novo médico de bordo. Ele é o tipo de vista que ela gostaria de ter

sempre pela frente.— Melhor para ela! — comentei compreensivamente. — Isso vai tornar

seu trabalho mais estimulante, caso ele seja um bom sujeito.— Oh, ela o acha ótimo! — Bess descambou a ironizar. — Mas ela não

pára por aí.Esse comentário não era próprio da personalidade de Bess, de forma que

parei de examinar a cabine e sentei-me ao seu lado, segurando-lhe a mão.— Qual é o problema?— Ela não se contenta com o médico — disse Bess, desconsoladamente.— Por acaso, está também de olho no chefe? — perguntei com interesse.— Isso mesmo. Mas não quer dizer que ela tenha sido bem sucedida em

seus avanços.— Posso imaginar que não — disse eu, com convicção. — Eu até diria que

deve ter fracassado completamente.— De fato.— Então, por que toda essa preocupação?— Espere até conhecê-la. Só aí é que você vai entender.Não precisei esperar muito para conhecer a enfermeira-chefe. Estava

terminando de colocar minhas coisas nos devidos lugares e contemplava dois de meus vestidos longos que precisariam ser passados a ferro. Caso o fato de ter vestidos longos pareça que estou nadando em dinheiro e quero demonstrar opulência, preciso esclarecer que a companhia de navegação recomenda que as recepcionistas usem trajes de gala e vestidos habillés para o jantar e os bailes. Na medida do possível, a companhia aprecia que nos apresentemos bem arrumadas, parecendo passageiras, mas, como observou Bess, não gosta que nos comportemos como se fôssemos passageiras.

Tinha acabado de pendurar meu vestido listrado rosa e branco no cabide, quando o telefone tocou.

— Alô!Pensei que Bess estivesse do outro lado da linha, perguntando se eu já

estava pronta para descer para o almoço. Em vez disso, ouvi uma voz de barítono, com uma entonação familiar:

— É a Srta. Cummings?— É ela mesma.— Cristie, aqui é Paul. Acho que você já se esqueceu de mim.

Naturalmente, eu não tinha esquecido. Mas tenho que confessar que sua figura já não aparecia tão nítida em minha mente, empanada pela novidade de estar conhecendo um navio, por dentro, pela primeira vez.

— É claro que não esqueci. Já está acomodado? A sua suíte é confortável?

— É fora de série! Muito bonita mesmo!Aquilo foi dito rapidamente, de uma forma que me pareceu leviana.— Na verdade — disse ele, e deu à voz um tom de urgência —, telefonei

por causa de minha tia. Já liguei para o consultório médico, mas, pelo que entendi, o doutor vai demorar um pouco, antes de poder vê-la.

— Será que eu posso fazer alguma coisa? Talvez fosse bom eu dar uma chegada até aí, para ficar um pouco ao lado dela.

— É muita bondade sua. Ela ficará muito contente em tornar a vê-la. O 11

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camareiro é muito eficiente, mas não é positivamente o tipo de pessoa em quem ela confiaria. Ela precisa ter uma mulher ao seu lado. Você entende, não?

O corredor de nossa ala desembocava no corredor principal. Vários metros adiante abria-se para um saguão onde estavam localizados os elevadores. Um ascensorista de uniforme azul, enfeitado de galões dourados, levou-me até o deck A e uma seta indicou-me a direção das suítes de Um a Cinco.

No Pallas Athene, à medida que se subia de andar, a decoração tornava-se mais luxuosa. Deve ter sido por essa razão que escolheram o deck D, o mais baixo de todos, para que as pessoas passassem paulatinamente da sujeira daquela parte velha do cais de Londres, para a beleza e conforto do luxuoso navio, sem grandes choques.

Os salões do deck A ostentavam candelabros de fazer inveja ao Palácio deVersailles e carpetes que pareciam feitos de pele de vison. Até os corredores eram acarpetados, em vez de recobertos com passadeiras de borracha. As suítes, pois aquilo não poderia ser considerado uma simples cabine, ostentava longas cortinas de damasco e tinham as portas pintadas de branco, com números de metal dourado e uma campainha que, quando premida, emitia uma nota musical.

Paul Vansini atendeu pessoalmente à porta e deu-me um breve sorriso, sem desmanchar uma ruga de preocupação que marcava sua testa, como para demonstrar que sua tia estava seriamente enferma.

— Você foi muito gentil em vir tão depressa — disse, enquanto se afastava para permitir que eu entrasse numa pequena antecâmara.

Parecia que eu estava entrando num daqueles apartamentos de cobertura que aparecem nos filmes de Hollywood.

Uma mesinha baixa dourada sustentava um vaso de alabastro cheio de flores e uma porta translúcida de vidro, com detalhes de aço escovado, abria-se para uma magnífica sala de estar. De cada lado da sala havia uma porta que dava para os dormitórios, um para a condessa e o outro para o sobrinho. A sala de estar era pintada em branco e dourado. Todas as cadeiras e poltronas eram forradas de veludo azul e as cortinas, feitas do mesmo material.

Dirigiu-se para a porta do dormitório da tia e bateu discretamente.— Tia Maria, sua amiga, a Srta. Cummings está aqui para ajudá-la a

sentir-se melhor.Entramos. Os quebra-luzes estavam encobertos, de forma que só uma

pálida claridade iluminava o quarto. A condessa estava recostada na cama, usando uma estola toda crespa, que parecia ser feita de pele de carneiro, enfeitada por laçarotes.

Não pude entender se ela ficou contente ou aborrecida em me ver.— Oh, é você que está aí, não é? — disse com arrogância.Mas fez um vago gesto, indicando uma poltroninha cor-de-rosa, próxima

à cama. Depois estendeu-me uma revista.— Acabe de ler esta história para mim. — E apontou a linha do texto que

aparecia na página aberta da revista, com um dedo anelado, onde ressaltava uma unha pintada de vermelho berrante.

— A história não é grande coisa, mas quero saber qual vai ser o final.Apertou um botão na cabeceira da cama e um raio de luz projetou-se

sobre a página da revista, formando um círculo luminoso que mais parecia uma pequena lua.

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Considero-me uma boa leitora, calma e persuasiva. Mas a condessa interrompia-me a todo momento.

— Leia esse trecho de novo! Isso não pode estar certo, concorda? — Ou ainda pior: — Do que é que você está falando, garota? — como se eu tivesse escrito pessoalmente aquela novela.

Fizemos muitos intervalos na leitura. Uma vez para dar-lhe um copo com água gelada, outra vez, para esfregar-lhe a bendita água de colônia na testa e, finalmente, para abrir a porta do quarto e verificar se aquele imbecil do médico já tinha chegado.

Não que eu me importasse de fazer todos aqueles servicinhos idiotas. Nem por um segundo pensei que ela pudesse estar dramatizando. Aquelas exigências eram sintomas nervosos reais e involuntários, consumindo-a como uma grave moléstia. Mas, sem dúvida, aquele nervosismo me atingia, como se fosse tão contagioso quanto sarampo, deixando-me incrivelmente tensa. De tal forma, que comecei a tornar-me desastrada e desajeitada, parecendo que tinha as mãos furadas. Sentia-me como uma menina de escola quando tem que enfrentar a diretora do colégio.

— Depressa, depressa, menina! — ordenou, enquanto pedia um lenço ou o vidro de água de colônia, estendendo as mãos impacientemente e fazendo com que seus braceletes de ouro se chocassem uns contra os outros, fazendo um ruído de algemas.

Na confusão em que me encontrava, esbarrei num frasco contendo uma essência qualquer, que foi ao chão, espatifando-se. Ela soltou um grito tão doloroso, como se eu tivesse quebrado o frasco em sua cabeça. Num gesto teatral, colocou a mão espalmada sobre o coração.

— Traga meu remédio! Meu remédio! Está ali, naquela garrafa prateada — disse, com fúria.

Quando peguei na tal garrafa, ela advertiu:— Não vá quebrar também essa! Ande logo!Nem bem eu havia tirado a tampa, ela já arrancava a garrafa de minhas

mãos e levava o gargalo à boca. Deu uma grande tragada e algumas gotas do líquido escorreram pelo seu queixo e molharam o lençol.

Senti um cheiro forte que não me era totalmente estranho.— Pronto! Agora estou melhor. Passe-me um pouco do perfume daquele

vidrinho. — E devolveu-me a garrafa prateada.Não tive que cumprir mais essa ordem. Para minha felicidade e alívio,

ouvi a salvadora nota musical da campainha, soando no ar.— Ah, acho que o médico está chegando!Ajeitei-lhe o lençol e sentei-me na beirada da poltroninha, perto do leito,

pois não queria parecer muito ansiosa em dar o fora dali.Ouvi abrir-se a porta externa, depois a que dava passagem para a sala

de estar e, em seguida, o som de vozes masculinas. Finalmente, a porta do quarto abriu-se.

— Podemos entrar tia Maria? — perguntou o sobrinho, com voz melíflua. — Aqui está o doutor, para dar uma espiadela na senhora.

Percebi que esta espécie de apresentação não agradou muito o homem que acompanhava o sobrinho da condessa. De fato, o primeiro olhar de desgosto e desdém foi dirigido a Paul e não a mim.

Naquele momento, minhas impressões estavam um tanto confusas. Vi aproximar-se aquela figura ereta, usando o uniforme azul da companhia de navegação, e ostentando as divisas vermelhas, com galões dourados que

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distinguiam o chefe do departamento médico.Tive a ligeira impressão de que aqueles olhos gelados, encimados por

espessas sobrancelhas escuras não estavam dirigidos para a paciente e sim para a minha encolhida pessoa. Por cima de sua cabeça, pude divisar uma flutuante touca branca — a touca da chefe das enfermeiras.

— Bom dia, madame.O médico e a enfermeira; uma esfuziante e esbelta loira, entraram no

quarto.Apesar de ele estar cumprimentando a condessa, o médico continuava a

olhar em minha direção. Seus olhos pareciam dizer: De onde surgiu essa dona?— Creio que já deve conhecer a Srta. Cummings — Paul Vansini

apressou-se em dizer. — A Srta. Cummings insistiu em vir cuidar de minha tia.Teria preferido que ele não tivesse usado a palavra insistiu. Parecia que

eu estivera forçando uma situação.— Por ora, muito obrigado, Srta. Cummings. E isso é tudo. Pode sair —

disse o médico.Nunca em minha vida havia sido dispensada de forma tão brusca. Eu fui

para a saleta ao lado e fiquei esperando o médico. Minutos depois, saiu do quarto e me disse:

— Pelo que pude constatar, a senhorita andou dando bebidas alcoólicas à paciente — disse friamente.

— O que eu fiz? Eu dei o quê?— Você nem sequer sabe disso?— Bem, sim. Quero dizer, não. Ou seja, dei-lhe alguma coisa... mas eu

não sabia direito o que continha aquela garrafa.— Então, devemos dar graças a Deus — disse, com um profundo

sarcasmo — que a paciente não tenha ingerido arsênico!Lembro-me de que o sangue subiu à minha cabeça, como se fosse à

água de um dique prestes a extravasar. Tive a sensação de estar me afogando naquela água. Tentei iniciar uma explicação, mas sentia a língua seca e endurecida.

Minha mente parecia um turbilhão. Tinha a consciência de que o médico continuava fitando-me, com aquele rosto duro, parecendo ter sido esculpido num bloco de gelo, e que os enormes olhos azuis da enfermeira também estavam postos em mim, com uma expressão de compaixão.

O silêncio hostil era quase palpável, e eu podia ouvir um mosquito voando e o tique-taque de meu relógio de pulso.

De sopetão, aquele silêncio insuportável foi quebrado.— Meu caro doutor. Creio que o senhor está sendo um tanto injusto.

Tenho certeza de que a Srta. Cummings deu a minha tia exatamente o que ela pediu. Foi isso, não foi, Cristie?

— Foi. — E fiquei tremendamente envergonhada, sabendo que a enfermeira e o médico tinham percebido que Paul havia me chamado pelo primeiro nome.

— Em certos momentos, minha tia pode tornar-se muito dominadora. Não posso permitir que chamem a atenção da Srta. Cummings por isso. Ela tem se incomodado muito conosco e demonstrado uma grande consideração e dedicação, desde que nos conhecemos, esta manhã.

O médico tirou um formulário de sua maleta e começou a escrever uma receita. Nesse ínterim, Paul chegou mais perto de mini sabendo que eu me sentia infeliz e embaraçada, estendeu a mão para apertar a minha, não de

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forma romântica, mas para transmitir-me confiança e segurança.Lembro-me de ter olhado para aqueles homens, analisando-os. Um deles,

com sua figura impassível e fria, de cabeça ereta, com as sobrancelhas juntas, em plena concentração. E o outro, sorridente e desinibido, emanando calor humano e lealdade. Involuntariamente, dei mais um passo em direção a Paul. Um pouco trêmula, a princípio, mas depois mais firme e afetuosa, retribuí o sorriso e pressionei meus dedos em sua mão, enquanto meus lábios pronunciavam silenciosamente um muito obrigada.

Naturalmente, meu recente e perspicaz inimigo percebeu tudo e seus olhos nos perfuraram como se fossem uma verruma.

— Bem, acho que é só isso — disse, enquanto colocava a tampa na caneta. — Acredito que não será necessária uma nova consulta. — Voltou-se para mim. — Você já está de saída, não?

Fiquei chocada ao perceber que aquilo não era uma pergunta, mas uma ordem.

Quando já estávamos lá fora, tanto ele, quanto a enfermeira, me ignoraram completamente. Atravessaram o corredor apressadamente, em direção ao saguão dos elevadores. Fiquei desnorteada, como uma criança que acaba de levar uma palmada, e fingi que precisava ir até o salão de festas para preparar os arranjos de flores, para o grande baile de abertura. A última coisa que eu pretendia fazer era ficar ali, bisbilhotando.

Mas qualquer pessoa que já tenha viajado num navio sabe que isso não é fácil. Parece que os corredores, as escadas, as vigias e as paredes dos navios são percorridas por uma brisa indiscreta, que leva os sons nos lugares mais recônditos.

Com muita clareza, ouvi a voz da enfermeira, trazida por essa mesma brisa.

— Ora, isso é mais do que conhecido. Esse tipo de garotas tem só uma finalidade: pescar um marido rico!

Houve uma pequena pausa e uma pergunta apenas murmurada. Então, veio a resposta do médico, devastadora, injusta e ofensiva:

— Sim, eu concordo. Um tipo muito desagradável. O tipo de pessoa que eu detesto!

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Capítulo III

Acordei no dia seguinte, bastante animada.Escolhi um vestido esportivo, de algodão amarelo, achando que era o

mais alegre e descontraído do meu repertório e, com determinação, desci para o salão de refeições.

O salão do Pallas Athene era imenso, mas a distribuição das mesas e a decoração de bom gosto faziam-no parecer aconchegante. Via-se uma profusão de toalhas alvas, copos rebrilhantes, facas, colheres e garfos de prata e, imperando sobre tudo isso, um tentador aroma de café e torradas feitas na hora. O maitre sorriu para mim e informou:

— Sua mesa é a de número cinqüenta e três, senhorita.No dia anterior, cada um dos passageiros sentou-se onde bem lhe

apeteceu. Mas, de agora em diante, tinha sido estabelecida uma disciplina, tanto para os horários das refeições, como para os companheiros de mesa, que seriam sempre os mesmos, até o final da viagem. Atravessei o salão fazendo figa com os dedos e rezando que o pessoal da mesa cinqüenta e três fosse simpático e se entrosasse bem.

A mesa já estava quase totalmente lotada: cinco cadeiras tinham sido ocupadas e sobrava só uma, a minha. Sentei e dei um largo sorriso.

— Bom dia para todos! Está fazendo um belo dia, não acham? — Cinco pares de olhos fitaram-me desconfiados, meditando sobre minhas palavras, para saber se não havia algum sentido oculto nelas.

Um senhor rechonchudo, de meia-idade, acompanhado da mulher, magra e angulosa, e de uma linda jovenzinha, estavam sentados ao meu lado, e do lado oposto, um senhor distinto, de bigode bem aparado, com sua esposa, que parecia muito viva e perspicaz. Poderia jurar que, ao ver-me, ela já calculara que meu vestido amarelo custara exatamente doze pounds e cinqüenta pence.

Todos eles murmuram um bom-dia.— Se me permitem, vou apresentar-me. Meu nome é Cristabel

Cumrnings e sou a recepcionista social do navio.A última explicação foi recebida com uma certa apreensão, como se eles

fossem alunos, obrigados a sentar à mesa da professora. Somente a mocinha bonita deu-me atenção, demonstrando contentamento e pareceu-me que ia dizer alguma coisa, mas o pai cortou-lhe o ensejo, falando primeiro.

— Chamo-me Campbell-Brown. Esta é minha mulher e esta, minha filha Diana.

O cavalheiro distinto, do lado oposto da mesa, a quem eu tinha classificado, pela aparência, como sendo um famoso diplomata, enviou-me, inesperadamente, o mais charmoso e caloroso dos sorrisos, e sua mulher logo aderiu.

— Nós somos os Faversham — esclareceu ele.Começamos a estudar atentamente o enorme cardápio. Uma das

recepcionistas mais antigas tinha me dito que, apesar de pomposo, era sempre o mesmo, em todas as viagens.

Aquele era o primeiro dia de navegação. Todo mundo formando pequenos grupos, quase glaciais, espalhados pelo navio, e nós, pobres recepcionistas, tentando desesperadamente juntar esses grupos da maneira mais cordial possível, esforçando-nos para que pudessem, pelo menos, falar

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uns com os outros. O salão estava imenso numa quietude pouco natural. Só se ouviam os carrinhos de chá rolando pelo assoalho, os passos dos garçons e o tilintar das louças, talheres e cristais. Olhei em torno para ver quais eram os outros comensais. O chefe dos comissários tinha uma mesa cativa, por sinal, a mais alegre e bem localizada. Ele sentou-se silenciosamente, com a mesma postura de quando se sentava à mesa de trabalho. Mais além, perto da porta giratória5, vi o odioso médico, sendo castigado pela companhia de duas obesas senhoras. Comentei comigo mesma: Bem feito!

Quando olhei ao redor, vi uma loira muito contente e lampeira, equilibrada em saltos incrivelmente altos, com uma saia branca esvoaçante, como se fosse uma brisa refrescante entrando pela sala abafada. A enfermeira-chefe não precisava preocupar-se com encargos sociais e, muito à vontade, sentou-se à mesa dos oficiais juniores.

Doze homens ficaram de pé quando ela se aproximou. Sem titubear, ela sentou-se à cabeceira da mesa, e todos começaram a conversar e a rir. Era óbvio que o treze não era o seu número de azar.

O garçom trouxe o suco de laranja que eu havia pedido. A Sra. Campbell-Brown estava lendo o cardápio em voz alta:

— Rins grelhados... Aspargos com ovos... Omeletes aux fines herbes... Peixe em escabeche... Waffles com geléia... Bifes de fígado com bacon... O que você vai querer, John?

— Ovos com presunto.— Mas você come isso em casa, todos os dias!— E é também o que eu vou comer aqui. — Por que você não pede um Cote de porc à Ia Languedoc?— O que é isso?— Não sei, mas podemos perguntar ao garçom. E que tal um Cane ton

aux petit-pois?— Acho que isso é pato com ervilhas — socorreu a filha.— E você, o que vai comer Diana? — perguntou a mãe.— O peixe-espada a Ia Perche, com molho de manteiga e limão.— Até que está soando bem. Acho que também vou querer.— E você, papai?— Espero que seu pai peça o mesmo que nós, querida... Não é John?O marido meneou a cabeça e disse ao garçom que esperava

pacientemente ao seu lado:— Dois peixes-espada a Ia não sei que lá... E para mim ovos com

presunto.À medida que o pessoal ia comendo, a conversação tornava-se mais

animada e desinibida. Quando chegamos ao estágio da sobremesa, eu já estava sabendo que o famoso diplomata era, na verdade, o gerente de uma grande empresa de aço e que o homem sentado ao meu lado, era comerciante de comida congelada.

Agora a mocinha solicitava minha atenção.Quais seriam as diversões a bordo? Haveria bailes todas as noites?

Quantos filmes iriam exibir? Expliquei-lhe qual seria o programa. Todos os dias ia ter algo diferente. Organizar os eventos de um cruzeiro como aquele, dava um bocado de trabalho e dores de cabeça. Por isso, uma semana antes da partida do Pallas Athene, freqüentei os escritórios da companhia diariamente, para instruir-me sobre todos os tipos de jogos, brincadeiras, competições, concursos e atividades diversas.

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Haveria um baile todas as noites e também uma sessão de cinema diária. Banhos de piscina? Bem, isso seria possível, dependendo do tempo... Amanhã provavelmente.

— E quando atravessarmos a linha do Equador? Não vão comemorar? — perguntou a jovem, muito curiosa.

Confirmei que haveria uma festa espetacular, com a presença de Netuno, o deus do mar, que subiria a bordo, junto com sua escolta marítima, para fazer justiça, com um tridente de borracha, navalhas de papelão e outros apetrechos para o martírio.

— Para aqueles que nunca cruzaram o Equador?— E isso mesmo.— Você já deve ter cruzado a linha do Equador várias vezes!Tive que admitir que nunca o havia feito.— Então, você será uma das vítimas?Não via razão para submeter-me a essa palhaçada, como parte de meus

deveres profissionais. Sacudi a cabeça e disse:— Não. Na verdade, essa brincadeira é só para os passageiros.— Oh! Espero ser uma das vítimas!— Eu também acho que vou ser — disse o pai, e todos riram.No final das contas, a refeição terminou, com todo mundo rindo e

tagarelando animadamente, como se fossem conhecidos de longa data. É engraçado observar o comportamento das pessoas. Uma vez transposta à primeira barreira, tudo se torna mais fácil.

Pelo menos, isso acontece com algumas pessoas. O médico, como eu já tinha notado antes, fazia questão de manter-se impenetrável e gelado. Talvez essa atitude fizesse parte de sua profissão. Sem dúvida, ele tinha receio de morrer afogado por uma maré de amigos: os pacientes que ele ajudava a curar.

Procurei em volta por Paul Vansini e a tia. Nem sinal deles. Com certeza, estariam comendo na suíte.

Terminada a refeição, caminhei pelo deck, falando com uns e com outros e com pequenos grupos de passageiros que tinham se acomodado nas espreguiçadeiras, apreciando as ondas do maré a espuma provocada pelo girar das hélices, através da grade de proteção. Já se podia sentir no ar uma certa atmosfera de camaradagem. As pessoas estavam começando a sorrir. Quando me aproximei de um grupo, para apresentar-me, todos quiseram que eu conversasse com eles, coisa que aliás detesto, mas que sou forçada a fazer, pois faz parte de meu trabalho.

Levei um punhado de crianças para o suntuoso play-ground onde Bess reinava sobre seus domínios: um cercado com areia, um escorregador, uma miniatura da ponte de comando do navio, uma piscina rasa e uma sala de pintura, onde as crianças de mais de dez anos entre tinham-se, criando obras-primas de arte moderna.

Quando chegou a hora do cafezinho, eu já tinha respondido a inumeráveis perguntas e até tinha dado informações sobre várias partes do navio, imaginem só! Tenho boa memória para fisionomias e nomes e precisei fotografar mentalmente pelo menos umas quarenta pessoas, arquivando seus nomes na cabeça, de forma que consegui apresentar uns aos outros. Na verdade, só me atrapalhei uma vez, e isso aconteceu quando uma mulher de penteado espalhafatoso perguntou-me se aquela divisa de dois galões vermelhos e três dourados significava chefe do departamento médico. Eu

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confirmei.— Ele parece ser bastante jovem. Como se chama?Por um instante, tive a tentação de inventar um nome qualquer que

fosse adequado à personalidade daquele médico intratável, assim como: Dr. Leão, Dr. Bravo ou Dr. Neves, pois parecia-me vergonhoso que uma recepcionista social não soubesse o nome do médico de bordo.

— Ele se chama...Devo confessar que estava deveras perdida. Quem salvou a situação foi

um homem, vestindo uma camisa pólo, que veio convidá-la para jogar pingue-pongue. Em menos de um segundo, a mulher tinha desaparecido.

Subi para a minha cabine e procurei na penteadeira minhas duas cadernetas de nomes uma vermelha, com os nomes dos passageiros, e outra azul, da tripulação. Abri a caderneta azul. Lá estava o nome: Dr. Lindsay, M.D.—D.P.H.

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Capítulo IV

— Pode dar-me o prazer desta dança?O homem que estava na minha frente, fazendo aquele convite formal,

acompanhado de uma vênia exagerada, vestia o uniforme de gala da companhia e ostentava quatro galões dourados no alto da manga do paletó. Devia andar pela casa dos sessenta anos. Era alto, de pele curtida pelo sol, cabelos grisalhos e sobrancelhas espessas.

Corei e meus pés encolheram-se dentro dos sapatos. Ali estava, em pessoa, o capitão Doubleday, comandante-em-chefe do Pallas Athene e aquele era o sinal tradicional para que o grande baile de abertura tivesse início.

Em toda a volta do salão, profusamente enfeitado, viam-se os homens perfilados, prontos para enlaçar as cinturas de suas damas. No palco, com a pose de uma ave pernalta, via-se o maestro da orquestra, de batuta erguida, pronta para entrar em ação. Os iluminadores, postados por trás dos refletores, já estavam com os dedos colocados em cima dos botões de controle, esperando a hora de projetarem luzes, de todas as cores do arco-íris, sobre o salão. O fotógrafo de bordo acertou a câmara para as fotos que documentariam aquele momento memorável. Todos esperavam que eu sorrisse como uma inebriada e lânguida princesa que finalmente encontrou seu príncipe encantado e que eu desse os primeiros passos na pista reluzente, envolvida pelos braços do capitão Doubleday.

Não consigo lembrar-me nem do sorriso, nem dos primeiros passos que dei. A única coisa que posso recordar foi que todo o salão pareceu ganhar vida. Houve uma explosão de luzes, cores e movimento e eu me senti flutuando por entre as corbeilles de flores, ao som da valsa Danúbio Azul.

Rodamos e rodamos, ao som da valsa, até que a música acabou.O capitão inclinou-se respeitosamente e agradeceu-me. Depois escoltou-

me até a minha cadeira e fez nova mesura.Deixei-me ficar sentada por um certo tempo, abanando-me com o folheto

da programação de eventos. Lá fora o tempo estava esplêndido. O mar da baía de Biscay parecia um espelho.

A música seguinte era alegre e com bastante ritmo. Dancei com um senhor de meia-idade que disse pertencer ao Ministério das Relações Exteriores. Daquela vez, ele estava viajando por conta própria. Quando terminamos de dançar, apressei-me em apresentá-lo ao casal Faversham.

— Sr. Popplewell? — eu fui falar, pouco depois, com o maestro. — Vamos dar um pouco mais de animação ao baile? Há um punhado de cavalheiros soltos por aí, mas nenhum está dançando. E o bar também, está cheio de homens sozinhos. Que tal fazermos aquela brincadeira As Senhoras Convidam?

— Senhoras e senhores — anunciou o maestro —, vamos agora reviver ó tempo do twist. Com um detalhe. Desta vez, são as damas que vão convidar os cavalheiros para dançar. As damas é que vão escolher seus pares.

A orquestra começou a tocar e ninguém se mexeu.— Vamos, minha gente! — gritaram os músicos em coro. O Sr. Popplewell

abriu os amplos braços e começou a música, mas a pista continuou vazia.Comecei a ficar nervosa. Esse é o tipo de coisa que pode virar uma bola

de neve e transformar um baile num fracasso completo. O pessoal começaria a ficar farto de tudo aquilo, depois não teria mais coragem de tomar a iniciativa de sair dançando, mesmo que tivesse vontade. Por fim, desistiria e começaria a ir embora. E isso repercutiria no sucesso de todo o cruzeiro. Uma atmosfera

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de tédio incontrolável ficaria pairando no ar. Seria um verdadeiro vexame. E como já nos tinha alertado uma vez nossa instrutora, os passageiros começariam a reclamar por qualquer ninharia.

Evidente que só havia uma solução para o problema. Eu deveria ser a primeira a convidar meu par. Vagarosamente, muito atenta, comecei a focalizar as pessoas à minha volta, como se eu fosse uma câmara de televisão. Olhava, olhava e... Nada. Parecia que todo mundo tinha criado uma antipatia pela dança. Podia cheirar os sintomas no ar. As pessoas estavam encolhidas dentro de suas cascas, como caracóis.

Precisava encontrar urgentemente alguém que não tivesse sido atingido por aquele miasma. Alguém que não soubesse o que é timidez. Imaginem o que aconteceria se eu escolhesse um cavalheiro que recusasse meu convite, ou que não quisesse ser o primeiro a entrar na pista? Todas as mulheres presentes se sentiriam como se elas tivessem levado um fora. E isso seria o fim. As mulheres simplesmente entrariam em pânico. O maestro precisaria admitir que a idéia das damas tomarem a iniciativa tinha ido para o brejo e deveria voltar ao esquema anterior: os homens convidando as mulheres.

Naquela altura dos acontecimentos, quem sabe? Até os cavalheiros poderiam apavorar-se.

Foi nesse ponto que vislumbrei um sorriso masculino, um doce e amigo sorriso que, por si só, já era um convite: Paul!

Claro! Fiquei tão alvoroçada, que quase gritei seu nome. Quem melhor do que ele? Não o tinha visto chegar, mas ele já estava lá, muito elegante e impecável, em seu traje a rigor, sentado ao lado da tia, do outro lado do salão. A condessa rebrilhava sob a luz do lustre de cristal, como se fizesse parte de minha decoração.

Sabendo que Paul não recusaria meu convite, atravessei o salão, intrepidamente. E sabendo que eu seria um exemplo para todas as damas acanhadas, a orquestra acompanhou meu trajeto, marcando o ritmo de meus passos, e os iluminadores focalizaram os refletores sobre minha figura, usando uma luz prateada. Quando parei em frente a Paul, os tambores rufaram.

— Você me dá a honra de... — comecei. Mas ele já estava perfilado e fez uma vênia ainda mais imponente que a do capitão.

— A honra é minha, Cristie — sussurrou suavemente, enquanto me conduzia para a pista de dança. — Você fez com que esta noite se tornasse inesquecível para mim!

Ele era um dançarino excepcional. Quando demos a primeira volta, alguns passageiros começaram a bater palmas, como se estivéssemos dando um show. De relance, pude ver que uma das mocinhas encaminhava-se em direção a um dos rapazinhos. Em seguida, a outra tomou coragem, e depois a outra, mais a outra. Em poucos instantes, todos aqueles jovens estavam aos pares, invadindo a pista. Outras moças, e até algumas senhoras mais velhas estavam levantando de suas cadeiras e, um pouco titubeantes, encaminhavam-se para os homens de sua escolha.

Eu estava tão entretida em contar quantas duplas já tinham aderido ao baile, alegrando-me e congratulando-me a cada novo par que chegava, que nem me importei por Paul estar me apertando um pouco mais do que seria o decente. Em alguns momentos, ele afastava-se um pouco, para tomar fôlego, mas logo tornava a estreitar-me em seus braços.

Vi o médico de bordo dançando com a enfermeira-chefe. Eles passaram perto de mim e pude sentir o perfume exótico e sensual que ela usava. Seu

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vestido azul vaporoso, de saia fartamente rodada, a cada volta, mostrava um par de pernas que me deixou até com complexo.

— Sabe — disse Paul —, apesar de ter passado só um dia, desde que nos conhecemos, tenho a impressão de que faz um século que não nos vemos.

— Eu sei... Mas desde então, muitas coisas aconteceram.— Pois eu penso que não aconteceram coisas suficientes. — Quando Paul

percebeu que eu franzia a testa, emendou:— Não faça caso, minha cara Cristie. É só uma brincadeira. Faz parte de

meu senso de humor italiano, se você preferir. — E passou os dedos pela alça de meu vestido.

— Você está muito bonita esta noite. O branco lhe assenta bem. Você deveria sempre vestir-se de branco. É uma cor tão pura, tão refrescante e, digamos assim, tão... Intocável!

Um barulho surdo, de máquinas e turbinas em funcionamento fazia-se ouvir, lembrando-nos que estávamos navegando sobre um oceano e não hospedados num hotel de luxo, em terra firme.

— Mais tarde — disse Paul —, se você não estiver muito ocupada, poderia permitir que a levasse até o tombadilho. O céu está muito bonito lá fora. O tempo está gostoso, suave e ameno, como na Itália. Poderíamos ficar lá na balaustrada, olhando as ondas.

Não consegui ter uma folga. O baile estava no auge. A dança seguinte foi um samba. E lá fui eu para a pista. Não a meu convite. O Sr. Campbell-Brown, que estava sentado à minha mesa, sugeriu que experimentássemos aquele ritmo. A filha tinha estado ensinando ao pai aquela dança, lá na cabine. Mas ele ficou com receio de tirá-la, pois a garota mostrara ser uma mestra muito rabugenta e exigente.

— Parece mentira — disse ele —, mas ela conseguiu acabar com meus nervos.

Daquele ponto em diante, não houve mais problemas. Nem bem a orquestra atacava uma nova música, já a pista ficava coalhada de casais.

Depois da meia-noite, a orquestra deu um acorde final e o salão ficou novamente claro como o dia. Qual um gênio saltando de sua garrafa encantada, apareceu à nossa frente o fotógrafo da excursão, um rapaz com o cabelo cortado à escovinha.

— Não se mexam — disse ele a mim e a Paul, quando paramos de dançar.

— Fiquem assim, como estão!Como se fosse impelido por um furacão, Paul soltou-me e pulou de lado.— Não! — falou ele, dando um passo em direção ao fotógrafo. — Não

quero que tire fotos! Não quero! Não!Era absurdo, mas naquele instante, duas coisas passaram pela minha

cabeça. A primeira é que o sotaque de Paul ficara muito mais acentuado. E a segunda, é que, como recepcionista social, eu estava cometendo um dos sete pecados capitais de um cruzeiro marítimo. Estava me envolvendo numa cena escandalosa. Devo ter falado algo assim:

— Não tire a foto, se ele não quer.Mas o fotógrafo não se deu por vencido, levantou o queixo e teimou:— Vamos lá! Eu faço questão!Durante todo o tempo, pude perceber que o fotógrafo estava pronto a

estourar numa gargalhada e controlava-se, apertando os maxilares. Comecei a sentir a estranha sensação de quem está testemunhando algo importante, que

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não aparece na superfície, mas que existe.Paul estava branco como um lençol.— Estou dando uma ordem: não quero! — disse ele, quase gritando.

Foram palavras fatais. Vi que o flash espocava como se fosse uma bomba e ouvi o clique do disparador da máquina fotográfica. O rapaz fez-se de bobo e pareceu levar a coisa na brincadeira.

— Viu? Não doeu nada, doeu?De início, Paul ficou parado e tenso, como um animal selvagem, pronto

para dar o bote. Depois, com um ímpeto que me surpreendeu, deu um pulo à frente e arrancou a câmara das mãos do fotógrafo. Antes que alguém pudesse interferir, jogou a máquina no chão e pisoteou-a com fúria.

Fez-se um silêncio constrangedor que o ruído sufocado das turbinas do navio mais sublinhava do que disfarçava. Uma senhora de uma mesa próxima soltou um soluço inoportuno. Alguém suspirou. Todos tinham uma expressão de assombro, como se estivessem vendo as ruínas de Pompéia.

Foi então que o maestro Popplewell resolveu salvar a situação. Levantou a batuta. Fez um bis da valsa de despedida, desta vez em ritmo mais acelerado, parecendo até que estavam tocando um charleston.

Obedientemente, os pares se juntaram de novo e saíram rodando, até que todos começaram a rir e o triste episódio foi esquecido.

Eu não sabia o que dizer ou fazer: deixei-me levar ao som daquela valsa sacudida, com a cabeça zonza, sentindo vertigens, e esperando que Paul desse alguma explicação.

Não são todos os que gostam de ser fotografados e aquele rapaz cabeçudo não tinha o direito de insistir. Mas o restante não tinha explicação.

Não me surpreendi quando Paul foi me levando, ainda valsando, para a porta de vidro que dava para o deck.

— Sinto muito — disse logo que chegou. — Sinto muito, muitíssimo mesmo. Estou tão encabulado como nunca me senti em toda a minha vida.

— Você me perdoa Cristie? — Colocou sua mão sobre a minha. — Os membros da minha família são identificados, não pelo sobrenome, mas pelo gênio esquentado;

Naturalmente, não sou do tipo de pessoa que resista a um pedido de desculpas. Se alguém diz que sente muito, é porque sente muito.

— Claro que perdôo. Não foi nada comigo. E não se preocupe, a companhia vai substituir a máquina do fotógrafo. Não aconteceu nada de tão importante.

Por certo, aquela não foi a maneira adequada de falar com Paul. Mesmo na penumbra, pude ver que seu rosto se crispava.

— Como não tem importância, Cristie! — Desta vez ele colocou a mão no meu ombro. — Você não entende? O que aconteceu é de suma importância! Pensei que você soubesse. Nunca ouviu falar nos costumes de minha terra? É de muito mau gosto fotografar um jovem de minha classe social ao lado de, bem, de uma moça. É muito comprometedor para ela. E ainda mais irritante, quando esse jovem está... Bem... Está profundamente...

Virou a cabeça para o lado. A última palavra ficou perdida entre o zumbido do vento e o barulho das ondas, batendo de encontro ao casco.

Ou talvez ele nem sequer a tivesse pronunciado. Apenas teve a intenção de que eu a adivinhasse...

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Capítulo V

O solário era o lugar dos turistas. Ficava situado na popa e era uma imensa área quadrada, exposta diretamente ao sol e cercada de grades forradas de lona cinza. Deitados em colchões de borracha inflados, os passageiros, na manhã seguinte, tomavam seu banho de sol, protegidos por óculos escuros.

Por trás do solário, havia um pórtico que dava para uma passagem, provida de um longo banco. Como o local ficava na sombra, ninguém o ocupava. Sentei-me, para refrescar-me um pouco. Cruzei os braços atrás da nuca e fiquei apreciando os mastros da popa, o céu muito azul e a esteira de espuma branca que seguia o navio. Meus olhos começaram a fechar-se, sonolentos, quando, inesperadamente, ouvi uma voz:

— Até que enfim, encontrei alguém neste navio que não está se torrando ao sol!

Erguendo a cabeça, vi a condessa sentada no banco, perto de mim.Até que aquele cruzeiro estava produzindo os seus efeitos. Os olhos da

condessa pareciam mais brilhantes. Usava uma blusa informal, de mangas curtas e, em vez de sapatos, calçava um par de tênis. Quando perguntei como ela ia passando de saúde, declarou que nunca se sentira melhor, que agora realmente estava se divertindo muito.

— Graças ao meu sobrinho Paul — disse ela. — Se não fosse por ele, a esta hora, estaria sentada em minha casa, em Londres vendo televisão! — Sua fisionomia adquiriu uma expressão enternecida. — Este rapaz conseguiu mudar-me em tão pouco tempo!

Não sei por que, mas tinha a idéia formada de que Paul e a tia viviam juntos em Londres, há muitos anos, mas a condessa assegurou-me que não era bem assim.

— Ele é filho de meu irmão Giuseppe, e Giuseppe deixou a Itália e foi para a América do Norte, há muitos anos. Sabe como é... Brigas de família. Mesmo depois que me mudei para a Inglaterra, não nos comunicamos mais. Até que Paul veio bater à minha porta, há três semanas, e contou-me quem ele era. Foi o primeiro contato que tive com a família de meu irmão, depois de tanto tempo.

— A senhora nunca tinha visto Paul, antes disso?— Uma só vez, quando ele era ainda criança. Não foi uma pena? Um

sobrinho tão encantador... E só fui conhecê-lo já adulto! Quantos anos perdidos! Nesse ínterim, eu estava ficando velha cada vez mais velha! E foi aí que chegou Paul, e tudo se transformou.

— Foi Paul quem a convenceu a participar deste cruzeiro?— Sim, foi ele mesmo. Nunca eu teria me aventurado numa coisa dessas,

sozinha. Você entende, durante quase quarenta anos eu tive uma aversão pelo mar. Sentia-me mal, enjoada, e não sei mais o quê. Mas o meu querido Paul incentivou-me e afastou todas as minhas dúvidas. — Já está na hora de a senhora divertir-se um pouco, tia Maria — disse ele. — A senhora precisa aproveitar os prazeres da vida. Posso garantir-lhe que vai gostar!

— E a senhora gostou?— É claro que estou gostando! Estou gostando muito agora. Depois da

crise do primeiro dia, foi sensacional. Comecei a sentir-me diferente, mais leve, mais animada. E tudo isso, graças a Paul.

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Eu sorri. Senti certa solidariedade com a condessa. Em tão pouco tempo, ela se sentira atraída pelos encantos de Paul. Tal qual eu me sentira. Realmente, ele tinha um charme todo especial, que cativara a ambas. E ambas nos sentíamos felizes e confortadas com sua presença.

Um senhor de meia-idade, de short branco e viseira, andava ao redor daqueles corpos prostrados ao sol, em busca de um parceiro para um jogo de boliche.

— Com todo o prazer — disse a condessa, levantando-se animadamente. — Nunca joguei isso antes... Mas quem sabe dá sorte, e eu ainda acabo ganhando!

— Vamos, Cristie, jogue logo! Está com medo de quê?Paul e eu estávamos ali de pé, encostados na amurada do deck A e à

nossa frente, aparecia a Ilha da Madeira.Agora que o Pallas Athene estava parado, sentíamos falta daquele ruído

das máquinas em movimento. Estávamos ancorados a uns duzentos metros da cidade de Funchal. Podia-se ver ao longe a cúpula cinzenta de uma igreja, as plantações de uva e bananas e as casas, que pareciam brinquedos, com seus telhados vermelhos, precariamente equilibrados nas faldas dos morros.

Alguns moleques portugueses, de dentro de canoas que balouçavam em torno do navio, mergulhavam na água, para apanhar moedas atiradas pelos passageiros. Paul tinha me dado cinqüenta pence para que eu também entrasse na brincadeira.

— Vamos lá, Cristie!Fiquei hesitante. A água parecia-me muito profunda. Então, decidi-me e

joguei a moeda. Duas pernas morenas pularam para dentro da água, parecendo um casal de golfinhos. Nem tive tempo de preocupar-me se o menino iria ou não encontrá-la. Ele logo apareceu à superfície, com a moeda reluzindo entre os dentes muito brancos.

— Bravo! — gritou Paul, batendo palmas. — E agora, se pretendemos ficar aqui, vendo este espetáculo, preciso providenciar para que você não apanhe uma insolação. — Fez um sinal para outra canoa, repleta de chapéus de palha, esteiras e cestas de ráfia.

Apesar de meus protestos, comprou dois chapéus, enfeitados de flores, mandando o dinheiro por meio de uma cestinha amarrada ao parapeito do deck por uma corda. Pelo mesmo método, içou a mercadoria. Insistiu em colocar um dos chapéus na minha cabeça e levou o outro para a tia que estava no deck D, esperando pela lancha que nos transportaria até a praia.

Como sempre, Paul tinha organizado tudo. Quando saltamos no embarcadouro, admirando dois outros navios que também estavam fazendo um cruzeiro, um francês e outro americano, achando que o Pallas Athene ainda era o mais majestoso de todos, Paul nos contou o que tinha planejado.

— Começaremos pelas lojas, naturalmente... Depois, vamos até o mercado. Talvez possamos dar um passeio num carro de bois... Faremos uma visita a um vinhedo e iremos até o alto do morro para almoçar logo após.

Mas a condessa parecia ter outro programa em mente.— Não, Paul. Você e a Srta. Cummings é que vão fazer tudo isso. Eu

prefiro sentar-me num lugar tranqüilo, à sombra, em terra plana e firme.E para comprovar o que dizia, foi logo se acomodando nas pedras de um

quebra-mar. Paul riu compreensivamente e disse-me que não ia adiantar discutir com ela. A melhor coisa a fazer era passar antes pelo Hotel Reid.

O primeiro passo em terra firme veio impregnado de um forte perfume 25

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de flores: mimosas, junquilhos, lilases e gerânios. Fechei os olhos, tentando distinguir as várias fragrâncias. Uma ilha tem sempre algo de romântico. Mas uma ilha coberta de flores, com árvores vestidas de brilhantes folhas verdes, num perfeito contraste com aqueles galhos ressequidos e esqueléticos que tínhamos deixado na Inglaterra, o sol imperando sobre toda essa beleza, deu-nos a impressão de que tínhamos desembarcado no Paraíso Terrestre.

Ali não existiam formalidades. Nada de irritantes fiscais de alfândega, conferindo bagagens, nem policiais checando passaportes.

Simplesmente nos apoderamos daquela pequena cidade, como se fôssemos os donos, andando despreocupadamente pelas ruas. Paul alugou um táxi, e, depois de deixarmos a condessa sentada à sombra dos coqueiros do belo jardim do Hotel Reid, voltamos para o centro, pela avenida Arriaga. Todo o caminho era ladeado por imensos jacarandás em plena florescência e aquelas flores violetas ressaltavam sobre o fundo branco ofuscante das vivendas e prédios de apartamentos.

Para mim, cujas viagens não tinham ultrapassado os limites do Dieppe e de Schveningen, onde passei um fim de semana, aquilo tudo me fazia sustar a respiração.

Passamos pelo mercado de flores, onde mulheres, com lindos xales vermelhos, ricamente bordados, vendiam orquídeas e botões de rosa, embalados em cilindros de celofane, enfeitados com laços de fita. Viam-se também expostas, caixas de pimentões vermelhos, limões verdes, laranjas de um amarelo brilhante, maçãs, bananas e abacaxis. Ao longo das ruas, levantavam-se treliças de madeira. De vez em quando, cruzávamos com carretas puxadas por parelhas de bois, quase sempre repletas de passageiros do Pallas Athene, para os quais acenávamos alegremente.

— Bem, Cristie. Agora vamos às compras! — exclamou Paul, enquanto pagava a corrida de táxi.

Estávamos na praça principal.Em geral, adoro percorrer as lojas, nem que seja só para ver as vitrinas.

Mas aquelas pequenas butiques que se espalhavam à toda volta da praça, eram de enlouquecer. Expunham lindas rendas feitas à mão, sacolas bordadas, toalhas de mesa de damasco, pequenos gorros de feltro, enfeitados com florzinhas, bonecas com o tradicional traje vermelho e branco da ilha. Um pouco de cada coisa, tudo muito colorido e tentador.

A maioria dos homens não gosta de andar pelas lojas fazendo compras. Mas Paul era diferente. Nunca tinha pressa, nem se mostrava ansioso ou enfastiado. Vinha sempre com um monte de palpites e sugestões.

Ajudou-me a escolher um jogo de mesa bordado para minha mãe e gastou um tempo enorme dando opiniões sobre presentinhos menores para os meus amigos: lencinhos bordados, chaveiros e outras miudezas.

Paul estava por dentro das coisas. Parecia saber exatamente o que comprar e quanto pagar.

Consultando o relógio, anunciou:— É hora do almoço, Cristie. Você toparia ir até o alto do morro para

almoçar?Fiz que sim com a cabeça.— Por mim, também está ótimo. Vamos ter que conseguir um meio de

transporte só para nós. Chegando lá em cima, como prêmio, vamos saborear um Ragout à Ia Portugaise e apreciar a mais bela vista da Ilha da Madeira. Tudo ao mesmo tempo.

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— Que tal? — Levantou a mão, acenando para um táxi.Se Funchal já era bonita, agora estávamos penetrando numa paisagem

de contos de fadas. Logo que o táxi deixou a cidade, pegamos uma estrada, ladeada de videiras, jasmineiros, e touceiras de bananas, que levava ao alto do morro. Cada vez subíamos mais e mais. Era notável a diferença de temperatura. Quando passamos pela Vila Monte, a atmosfera começou a ficar fresca, quase fria, e um perfume, que não me era estranho, pairava no ar.

— São mimosas — disse Paul, como se estivesse lendo meus pensamentos.

Na curva seguinte, as casas sumiram e nos encontramos no meio de um bosque, com árvores de folhas de um verde muito vivo, ornadas com os pompons amarelos das mimosas. Finalmente, chegamos a uma clareira no cume da montanha. Enquanto dispensava o motorista, Paul avisou:

— Vamos descer por outro caminho!Ele pronunciou aquelas palavras de forma tão enigmática que eu fingi

não saber que enfrentaríamos uma desabalada carreira, desde o topo até o vale, de forma pouco comum, para chegarmos ao nosso destino. O Sr. Favershman, o informante-mor da mesa cinqüenta e três, já tinha comentado qualquer coisa a respeito.

Paul levou-me pelo caminho de paralelepípedos que conduzia até o hotel. Fiquei assombrada com o panorama deslumbrante que se divisava de cima da íngreme escarpa da montanha. Nossa vista podia abranger Funchal e o Pallas Athene — uma longínqua silhueta destacando-se no mar azul.

Paul fez questão de que experimentássemos deliciosos pratos típicos portugueses. Estávamos tomando o cafezinho, enquanto apreciávamos um grupo de dançarinos, executando um bailado folclórico da Ilha da Madeira, ao som de flautas e pandeiros, quando Paul mencionou, como que casualmente, que voltaríamos de carro.

— É uma espécie de tobogã, Cristie. É uma das atrações turísticas da Ilha. Antes havia uma estrada de ferro que chegava até aqui em cima, mas entrou em desuso. Então, alguém teve a brilhante idéia de aproveitar os dormentes e os trilhos por onde passavam os trens, para construir um tobogã que desce diretamente para Funchal... Oitocentos metros de percurso! — Sorriu para mim. — Acabou de tomar seu café? Ótimo! Então, vamos lá! Posso assegurar-lhe que St. Moritz é fichinha perto disto.

Aquilo, mais parecia um enorme escorregador sobre o qual deslizava uma espécie de trenó, movido a cilindros de aço. O tal “carro” era feito de madeira, com dois precários assentos de vime. O condutor era um português de largo sorriso, vestido de branco e com um chapéu de palha amarelo enterrado na cabeça.

O trenó começou a correr, antes moderadamente, por um terreno plano, na horizontal. Depois pegou impulso e precipitou-se obliquamente pelas faldas da montanha, indo em direção ao bosque de mimosas, como se fosse uma cobra voadora.

— Minha Nossa Senhora! — Paul curvou-se sobre mim e segurou-me firmemente pela mão. — Não é aquele conforto que eu pretendia oferecer-lhe — disse, enquanto era impelido, pela força da gravidade, para o meu lado. — A grande vantagem desse meio de locomoção é que dá oportunidades de abraçar a garota que está ao nosso lado.

Senti que seu braço envolvia meus ombros, apertando-me cada vez com mais força, à medida que a descida se tornava mais vertiginosa.

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Tendo notado a atitude de Paul e sentindo, naturalmente, que a velocidade estava ultrapassando os limites, nossos condutores ficaram por trás de nós, usando uma corda como breque.

Estávamos quase voando. Abetos apareciam confusamente no labirinto da floresta, acarpetada de margaridas e outras florzinhas campestres. Os galhos das árvores de mimosas pareciam zumbir à nossa passagem. Quando chegamos a uma curva fechada, nosso “carro” rangeu. Do lado direito, havia um precipício que começava na altura da floresta e terminava lá embaixo, no vale.

— Mais depressa! — Paul pediu ao condutor.Entramos na curva seguinte, derrapando. Atravessamos um pequeno

vilarejo branco, encravado na encosta de montanha, a todo o vapor. Tive a visão confusa de rostos nos olhando por cima de muros. Apareceram mais garotos com buquês de mimosas.

— Mais depressa!Os cilindros de aço provocavam faíscas quando passavam por sobre as

pedras. Entramos em outra curva, em tamanha velocidade, que quase pulamos para fora da rampa e, graças a uma touceira de capim, o choque foi amortecido. Mas ninguém parecia abalado. O português até estava gostando daquela loucura e agarrou-se firme ao espaldar de nossas cadeiras, assobiando através dos dentes, como que acompanhando o silvar da ventania e o ranger do aço de encontro aos pedregulhos.

— Mais rápido!A rampa estava quase na vertical e nos sentíamos sacudidos para cima e

para baixo. Foi aí que tudo aconteceu.Estávamos começando a entrar numa nova curva, quando a rampa

pareceu sumir. O trenó deu um salto. A cinqüenta metros à frente, havia uma inclinação mais acentuada. Num segundo, pude pressentir o que ia acontecer. Acho que Paul também teve o mesmo pensamento, pois gritou:

— Agora está indo rápido demais. Muito depressa para entrar numa curva dessas!

Ouvi o ranger do couro das botas do condutor quando pisou com força nos pedais que controlavam os cilindros. Senti um forte solavanco quando a corda que servia de breque foi esticada ao máximo. Pouco antes da curva, diminuímos a velocidade. Mas, naquele instante, ouvi o ruído de algo que se rompe. Vi nos aproximarmos perigosamente da borda do precipício. Vi também aquele declive assustador, tendo, logo abaixo, o bosque de mimosas. A corda tinha se rompido e agora, nada mais nos segurava. O “carro” começou a acelerar cada vez mais. Depois, senti que pulou para fora dos trilhos, guinchando e precipitando-se por entre os troncos das árvores.

Não sei por quantos metros corremos assim, desgovernados, porque fechei os olhos. Íamos aos solavancos. Meu cotovelo deu uma forte pancada de encontro ao braço da cadeira de vime. No momento seguinte, tive a sensação de que já tinha morrido e que estava flutuando no espaço, como uma alma penada. O trenó finalmente capotou e eu fui arremessada para longe. Alguma coisa prendeu-me o braço. Senti uma dor aguda na perna.

Daí por diante, tudo se transformou numa bruma, através da qual pude reconhecer o rosto de Paul. Ouvi uma voz que parecia vir do além:

— Cristie! Cristie! Você está bem?Quase não consigo lembrar-me do que aconteceu durante a volta dessa

malfadada excursão. Só me recordo de uma dor aguda, de vozes 28

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embaralhadas falando português à minha volta e do aroma persistente das mimosas. Só que agora esse perfume dava-me náuseas. Levaram-nos, não sei como, por não sei onde, até o vale. Tomamos um táxi ou coisa parecida e sei que Paul estava ao meu lado. As más condições da estrada que percorremos, aos solavancos, obrigou o motorista a ir devagar e este fato, naquele momento, pareceu-me bom. Assim, eu poderia conscientizar-me do que se passava à minha volta. Meu tornozelo já não doía tanto e, cautelosamente, tentei apoiar meu peso sobre ele. A dor era suportável. Nem me preocupei em examinar meu braço. Tinha um feio corte bem abaixo do cotovelo esquerdo. O sangue começara a coagular e eu achei que aquilo era um bom sinal. Mas em torno do ferimento via-se uma mancha azul escura. Placas de musgo, grudadas no braço, tinham feito estancar o sangue. Resolvi examinar minha roupa. As meias estavam em tiras e minha saia, toda suja de lama e lágrimas.

— Está se sentindo melhor, Cristie? — Dei um sorrisinho.— Bem melhor. E você, Paul?— Não estou tão mal assim como você. Tive sorte. Aterrissei numa pista

de musgo. Só estou um pouco chocado com o susto. Mas você, Cristie, parece que acabou de chegar da guerra!

Assegurei-lhe que estava melhorando a cada momento. Talvez, assim como ele, estivesse apenas sob o efeito do choque.

— Que bela maneira de encerrar nosso grande tour à Ilha da Madeira! Sinto muito, Cristie, e peço-lhe desculpas — disse Paul, com ar contrito.

— Não foi culpa sua. Foi a corda que se partiu.— Foi, mas assim mesmo...Reconheci o mercado, com suas árvores de jacarandá e, por fim, a

esplanada. Dali, já se podia ver o Pallas Athene, rebrilhando ao sol, enorme e acolhedor, com sua bandeira vermelha e branca, flutuando preguiçosamente no mastro. Paul ajudou-me a descer do táxi e também a descer os degraus da escada que levavam ao embarcadouro. Subimos na lancha.

Quando chegamos ao navio, Paul desdobrou-se em atenções, auxiliando-me a subir no portado. Por sorte não havia muita gente por ali, mas assim mesmo, me senti embaraçada. Quando pisamos a bordo, ele determinou:

— Vamos diretamente para o hospital do navio. Faço questão! Era estranho que, até aquele momento, não me tivesse passado pela

cabeça de que eu iria precisar ser medicada. E se, por um instante, eu tivesse pensado nisso, teria insistido para ser tratada na própria Ilha. Por isso, reuni todas as energias que me restavam, e finquei o pé.

— Não, absolutamente não! Estou ótima! É só passar um pouco de água oxigenada e mercurocromo e você vai ver como estarei logo em forma.

Mas Paul não era assim tão fácil de convencer.— Pelo amor de Deus, Cristie! Pense se esse corte horrível infeccionar.

Nunca me perdoaria por isso.Como eu ainda hesitasse, Paul passou a mão pela minha cintura, embora

eu preferisse que não o tivesse feito, e foi me amparando, enquanto sussurrava:

— Eu me sentirei mais tranqüilo se eles derem uma olhada nisso. O problema é que eu sabia quem seriam esses “eles”. Ou a enfermeira-

chefe, ou aquele médico hostil e antipático.Paul nem se deu ao trabalho de bater à porta branca onde se via pintada

uma cruz vermelha. Fomos entrando numa sala gelada, cheirando a éter. Sentado à mesa de trabalho, estava o Dr. Lindsay, olhando para aquele rapaz

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que enlaçava uma moça pela cintura.— Doutor, tenho uma cliente para o senhor — disse Paul.E começou a fazer uma descrição minuciosa do acidente. A corrida no

tobogã... A corda que se rompeu... ‘— Se me ajudar a deitá-la na mesa de exames, vou poder examiná-la

melhor — disse o médico, secamente.Tendo sido interrompido, Paul obedeceu as suas ordens.— O braço é que está mais ferido. Acho que ficou imprensado entre as

ferragens.— Acho que ela mesma poderá contar melhor o que aconteceu.— Mas é que — Paul persistiu — parece que está muito inchado.— Estou vendo.— Os outros cortes não são tão profundos. São só arranhões. Sabe, em

volta tinha muito musgo, que ajudou a amortecer a queda. Acho que também o tornozelo não ficou muito machucado.

— Obrigado pela informação.— Eu também sofri algumas escoriações. Mas de leve.— Fico feliz em saber disso.— Penso que não aconteceu nada de grave com ela.O Dr. Lindsay estava debruçado sobre meu braço, examinando o corte.

Virou-se bruscamente para Paul.— Acho que estou apto para fazer meu próprio diagnóstico. Tenho

certeza, Sr. Vansini, que o senhor deve ter muitas outras coisas importantes a fazer.

Finalmente, Paul entendeu a indireta e foi andando em direção à porta de saída.

— Já vou indo, Cristie. Sei que você vai ficar em boas mãos. Depois que ficamos sozinhos, o Dr. Lindsay relaxou os nervos.Enquanto desinfetava a ferida e manejava o esterelizador, disse, em tom

compungido, que iria precisar imobilizar o braço e que, em vista daquele quadro clínico, seria necessário aplicar-me uma injeção antitetânica.

Esfregou meu braço com um pedaço de algodão embebido em álcool e espetou a agulha, com tanto jeito, que nem senti a picada. O curativo também não doeu, pelo menos, não doeu muito. Ele tinha passado antes algum anestésico e, quando terminou, disse-me:

— Parabéns, Cristie! Você é uma boa menina! — Olhou-me um tanto encabulado, como se acabasse de ter cometido um erro imperdoável.

Por quase mais meia hora ele se ocupou de mim, muito atarefado, andando à minha volta. Pregou esparadrapos nos lugares que ele chamou, rindo, de cortes de segunda categoria. Girou meu tornozelo em todas as direções. Até tomou minha temperatura.

— Bem, parece-me que está tudo normal. Acho que o tornozelo não tem fratura. Mas seria melhor tirar uma chapa de Raios X, só por uma questão de segurança.

Enquanto lavava as mãos, esfregando as unhas com uma escovinha, perguntou-me que tal eu achava ser uma recepcionista social. Disse-lhe que aquela profissão era novidade para mim e que, na verdade, eu não morria de amores por ela.

— Pois eu andei dando umas espiadas nas suas aulas de dança e achei que você tem jeito para a coisa. Você aceita gente da tripulação como aluno?

— Oh, sim. Quem se interessar.30

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— Então creio que vou tentar. Sabe, não sou grande coisa em matéria de dança de salão. Nunca seria um bom parceiro para quem é especialista no assunto.

— Na verdade, não me considero uma especialista. Mas o Sr. Vansini, esse sim...

— Ah, o Sr. Vansini, é claro. — Seus lábios apertaram-se. Todo aquele clima de camaradagem criado, sem dúvida, com finalidades terapêuticas, desvaneceu-se instantaneamente.

— Ele deve ser um velho amigo seu, não é?— Não exatamente.— Com certeza, você já o conhecia antes da viagem, não é mesmo? — O

Dr. Lindsay afastou-se da pia e, enquanto enxugava as mãos vigorosamente numa toalha, encarou-me.

— Não. Foi no começo da viagem que nos conhecemos. Nós nos encontramos no trem que nos levou até o cais.

— Compreendo... E agora, faça o favor de passar para a outra sala. É lá que está o aparelho de Raios X. Pode dar-me o braço, se achar melhor.

Pegou meu braço tão cerimoniosamente, que eu me retraí.— Estou em perfeitas condições para ir andando sozinha. Não há nada de

errado comigo.Apesar da mudança de humor do Dr. Lindsay e da atmosfera estar um

tanto carregada, não pude evitar de ficar impressionada com o equipamento hospitalar do Pallas Athene. A outra sala estava provida de todos os aparelhos cirúrgicos mais modernos. Era como entrar num anfiteatro em miniatura, desses onde a mesa de operações fica no centro, para que os estudantes possam acompanhar as demonstrações de talento do mestre. Era de fato, uma completa sala de operações, onde o vidro, o cromo polido e o aço reluziam.

— Agora apóie seu pé ali. Assim mesmo.Foi para trás de um anteparo metálico e ouviu-se um clique.— Vire o pé para o lado oposto. É bom tirar duas chapas, já que estamos

aqui.Ouviu-se outro clique.— Pronto! Isso é tudo. — E ajudou-me a voltar para a outra sala. Fez-me

sentar numa cadeira de rodas e saiu para revelar as chapas.O sol invadia o recinto pela vigia, como se fosse um farol. Olhei em torno,

com curiosidade. Havia uma estante cheia de livros sobre medicina e, entre eles, descobri alguns romances. Um tinteiro de prata sobre a escrivaninha. Alguns envelopes e papéis, e nada mais. Não se viam cinzeiros, nem fotografias.

Meu braço parará de arder. Todas as minhas dores tinham desaparecido. Estava começando a me sentir com uma incrível disposição, quando escutei abrir-se a porta externa da sala contínua, onde o Dr. Lindsay revelava as chapas. Ouvi umas pancadinhas de saltos altos, batendo no assoalho. Era justamente quem eu estava imaginando. Tentei não escutar a conversa, mas as paredes do navio, positivamente, não foram feitas à prova de som.

Era notório que o Dr. Lindsay se comunicava com ela em termos mais do que amigáveis. Ou então, ele era do tipo que não dava bola para formalidades quando tratava com seus subordinados.

Ouvi Trudy Regan perguntar quem estava ali e o Dr. Lindsay explicar o que tinha acontecido e qual o tratamento a que me submetera.

— Tal como pensei. Nenhum osso quebrado. Olhe aqui, você mesma.31

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Mas, pelo que parece, a Srta. Regan não estava nem um pouco interessada nos meus ossos. E então, desandou a falar:

— Oh, andei fazendo umas compras tão cansativas. Juro, David, que eu teria estado com você. Trouxe meu vestido de noiva!

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Um sonho de viagem (Doctor On Board) Betty BeatyBianca nº 52

Capítulo VI

Na manhã de segunda-feira, fui acordada pelo mais abominável “som” que se possa ouvir num navio: o silêncio.

As máquinas e turbinas estavam paradas como um coração que tivesse deixado de palpitar. Não mais se ouvia o vaivém das ondas batendo contra o casco; como se um pulmão tivesse deixado de respirar. Todos aqueles sons tão constantes que embalam nosso sono como se fosse nosso próprio ressonar, tinham emudecido.

Sentei, meio sonada, ainda sob o efeito das pílulas que o médico havia me receitado para tomar antes de dormir. A cabine estava submersa numa estranha semi-escuridão. Nenhum reflexo de luz bailava no teto. A vigia só projetava sombras, algumas angulares, que encobriam as paredes até mais da metade de sua altura. Então, percebi um par de pernas acima da minha nas sombras. Depois, mais pernas e mais pernas. Agora eram as rodas de uma carroça e as ancas de um jumento. Meu cérebro sonolento acordou repentinamente.

Estávamos ancorados no porto de Tenerife. Durante a madrugada, tínhamos deslizado suavemente até a ponte de atracação, vindos do molhe de pedras que protege a entrada de Santa Cruz.

Fascinada, vi aquela anca transformar-se num jumento inteiro e as pernas dos homens saírem de meu campo de visão, voltando, em seguida, em direção às barracas de feira armadas no morro em frente ao cais. Era o mesmo que estar vendo televisão, que por um defeito do controle vertical, só deixava ver a metade da imagem. Talvez eu não estivesse tão interessada naquela tela de tevê quanto pretendia.

De um certo modo, estava ciente de que queria enganar a mim mesma. De que existiam uma porção de pensamentos sobre uma porção de coisas, que eu, simplesmente, queria evitar. De fato, só a idéia de ter que trazer à tona todas aquelas emoções conflitantes, que estavam tão bem escondidas nos recônditos do meu ser, trazia-me um sofrimento tão doloroso quanto manejar uma picareta com meu braço ferido ou dançar uma rumba com meu tornozelo deslocado.

Preferi estender-me na cama, tomando, em pequenos goles, o chá que o camareiro havia colocado na mesinha de cabeceira e procurando descobrir o que aqueles espanhóis desmiolados iriam vender nas barracas. Por certo, romãs, cestas de ráfia, bonecas em trajes típicos ou, talvez prataria de Toledo.

Estava ainda deitada, entretida com esses devaneios, quando Bess bateu à porta, com seu toque costumeiro.

— Ora, ora, ora! Pensei que você já tivesse subido para o deck. — E olhou-me com ar de censura.

— Como você pode ver, não subi. — Tentei esboçar um sorriso pacificador, mas não consegui. Estava sofrendo de uma curiosa dor interna que não tinha nada a ver com minhas contusões, mas que ardia de forma estranha. Estava achando difícil descobrir quais as causas ou os motivos dessa dor.

— Você precisa ver. Lá fora, a vista é maravilhosa — disse entusiasmada. — Os minúsculos vilarejos nas vertentes das montanhas... Os altos picos... Um deles ainda está coberto de neve.

— Deve ser muito bonita. — Senti que minha voz soou tão opaca como aquela água parada, junto ao porto.

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Vi que os olhos castanhos de Bess ficaram mais escuros. Se bem a conheço, ela estava preocupada.

— Vamos! Levante daí! — Sua voz adquiriu aquele tom de reprimenda amorosa que ela usava quando lidava com as crianças difíceis. — Se quisermos ir para a cidade em tempo, é melhor você começar a esticar esses ossos.

Bess e eu tínhamos combinado fazer compras juntas em Santa Cruz, pelo menos durante uma parte do dia. Mas tarde, ela estaria ocupada com o concurso de máscaras originais da criançada e eu, com os preparativos do grande baile da passagem do Equador. Esse seria o último porto que poderíamos visitar, antes dos grandes afazeres que nos aguardavam. Queríamos aproveitar para comprar alguns objetos de decoração incomuns e alguns prêmios e brindes para a festa.

— Meus ossos estão esticando muito bem — disse eu, esticando as pernas para fora da cama e calçando os chinelos. Tinha intenção de examinar minha perna e ver se os outros cortes tinham começado a cicatrizar, porque sabia que Bess, mais cedo ou mais tarde, iria fazer perguntas a respeito.

Bess fez a pergunta quando voltei do banheiro e eu estava começando a enfiar, pela cabeça, meu vestido azul de algodão.

— Cristie, o que há de errado com você?Segurei o vestido azul por muito tempo sobre a cabeça, tapando o rosto,

como se fosse uma máscara.— De errado? — Dei uma risada de mofa. — Comigo? Por que fez essa

pergunta boba?Ela esperou pacientemente que eu pusesse a cabeça para fora, para

poder respirar. Então disse:— Fiz essa pergunta boba, porque quero uma resposta inteligente. Quero

saber a verdade.— Mas não há verdade alguma para saber. — Escovei meu cabelo

energicamente, aos safanões. Procurei meu batom na gavetinha da penteadeira.

— Você nunca conseguiu ser uma boa mentirosa, Cristie. Há alguma coisa que esses seus olhos azuis revelam. Eles são muito transparentes, muito honestos.

— Querida Bess. Pois eu acho que há alguma coisa de errado nessa sua imaginação. E transparece muito que você usa e abusa dela.

Quando vi seu olhar refletido no espelho, analisando-me, tentei disfarçar, com um débil sorriso, e meneei a cabeça, como se ela estivesse dizendo algum disparate.

Mas Bess é mais do que persistente.— É, alguma coisa que mudou sua maneira de ser, Cristie. Foi nesses

últimos dias. Você anda tão aérea, tão vaga. Não é mais aquela, pelo menos conosco.

— Absurdo! — Encharquei-me de água de colônia, enquanto ela falava.— Ontem, no jogo de buraco com a condessa, você deixou de baixar uma

canastra completa que tinha na mão. Não se esqueça disso.— Fiz isso? — Fingi que estava rindo.— E você disse que Bordeaux ficava na Grã-Bretanha, naquela

brincadeira de perguntas e respostas.Dei um profundo suspiro e afirmei que a Geografia nunca tinha sido meu

forte na escola.— Além disso, outras pessoas já notaram. O Sr. Campbell-Brown

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comentou comigo que você está diferente desde que desembarcou na Ilha da Madeira.

— Pode ser — disse, com voz de mártir. — Lembre-se de que foi lá que sofri um acidente.

Mas Bess sabia melhor do que eu que essas escoriações leves nada tinham a ver com o caso.

Em parte para ver Bess pelas costas, e em parte, tenho que admitir, por um certo sentimento de vingança por sua intromissão, falei-lhe friamente:

— Vai ver que também o chefe andou notando algo.— E notou mesmo — Bess retrucou, com seriedade, olhando,

constrangida, para suas mãos enluvadas.— Foi ontem à noite, quando estávamos julgando qual a cesta mais

bonita, tecida pelas crianças, é que ele comentou: — A nossa nova recepcionista social... Parece que foi flechada por Cupido.

De repente, deu-me uma vontade louca de rir.— É só isso?— Sim, e então?Bess molhou os lábios com a língua, encabulada.— Você não percebe Cristie, que aquela pergunta foi dirigida também a

mim?— A você?!— Se eu tinha sido flechada... — Sua voz abaixou de volume,

transformando-se quase num murmúrio. Ficou violentamente corada. Não conseguia encarar-me. — Na penúltima viagem que fizemos juntos, bem, ele convidou-me para dançar. Só uma vez. Fiquei tão contente e emocionada, que eu... Bem... Você sabe o que sinto por ele... Que acho que me comportei de uma maneira um tanto estranha. Foi então que ele me perguntou se eu estava sentindo alguma coisa. Se não tinha sido flechada por Cupido!

— Está certo. Está certo! Você ganhou um ponto. Mas está completamente equivocada.

— Não estou — disse Bess, com segurança. — Conheço muito bem os sintomas. Sei perfeitamente como a gente se sente e se comporta.

Aprumou-se repentinamente e falou, entre dentes, que já estava na hora de descer para verificar se todos os seus tutelados já tinham ido tomar o café da manhã. Com a mão girando a maçaneta da porta, completou:

— Você está no mesmo buraco que eu, Cristie. Você está apaixonada. Posso garantir-lhe.

Mesmo estando errada sob outros pontos de vista, Bess estava certa numa coisa. A visão de Tenerife era realmente maravilhosa. Depois de ficar tantos dias em alto-mar, sentia-se um verdadeiro impacto ao ver aquela ilha pedregosa, emergindo imponentemente das águas. O impacto era tão grande, que até tirava o fôlego. Todos aqueles altos picos das montanhas acinzentadas, de origem vulcânica, alguns cobertos de neve, outros aureolados por nuvens brancas; aqueles vales azulados e os vilarejos incrustados nas vertentes, como presépios; aquela ferrovia precária, que parecia uma fita enrolada na montanha; aquela brecha insondável do rochedo; e, no centro de tudo isso, o porto de Santa Cruz, com suas palmeiras imperiais e as praças de arquitetura espanhola... Era algo de entontecer.

Depois do café da manhã, estava esperando por Bess no deck A, enquanto o Sr. Faversham apontava para a amurada de um forte que beirava o mar, onde estava o famoso canhão que atirara contra a armada do almirante

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Nelson.Logo abaixo de nós, ao longo do molhe, via-se uma sinfonia de cores

vermelhas, azuis, verdes, como se tivessem desabrochado ao toque de uma varinha de condão. Ali, havia de tudo: imitações de tapetes persas, toalhas rendadas, capachos de ráfia, pilhas de frutas tropicais, objetos de cobre e de prata, e umas bonecas do tamanho de uma criança de cinco anos, vestidas com trajes típicos.

Alguns homens de pele bem morena, gesticulavam freneticamente para os passageiros, tentando barganhar com os que já tinham desembarcado, ou com os que saíam naquele momento, pelo porto.

Junto ao navio, viam-se dois policiais espanhóis, parecendo uma dupla de soldadinhos de chumbo, em seus uniformes verdes, chapéus de couro, do mesmo formato do tradicional chapéu de Napoleão, e botas reluzentes. Apesar de deixarem passar, sem questionar, todos os que estavam desembarcando, eles paravam as pessoas que se dirigiam para o navio. Entretanto, depois que Bess finalmente apareceu e pudemos vê-los mais de perto, postados ao lado do porto de Pallas Mhene, constatamos que se distinguiam pela amabilidade. Só seus uniformes causavam um certo receio, com aquelas botas de cano alto e revólver presos à cinta. Mas quando chegamos perto, estenderam as mãos para ajudar Bess e eu a descermos o último lance do porto , olharam com solicitude para meu braço enfaixado e nos brindaram com um alegre Buenos Dias!

Sussurraram alguma coisa, depois que passamos, e Bess, que era quase poliglota, ficou vermelha como um pimentão.

— É porque sou um tanto rechonchuda. Os espanhóis gostam de mulheres desse tipo — explicou ela.

Surpreendentemente, não fez qualquer comentário sobre nossa conversa matutina. Em vez disso, deu mostras de que tinha pela frente um desagradável dever a cumprir. E quanto menos se falasse sobre isso, melhor seria.

De minha parte, fiz o possível para transformar aquelas compras obrigatórias num divertimento. Concentrei minha atenção em tudo o que via, pois naqueles últimos dias tinha aprendido que se a gente olha para fora, em vez de olhar para dentro, não dá muito tempo para pensar em coisas que não se quer pensar.

O Pallas Athene estava ancorado ao lado de outros navios; uni transatlântico alemão, um cargueiro espanhol e uma barcaça dinamarquesa, para transporte de bananas. Andando ao longo do molhe, balançando nossas sacolas de ráfia, comecei a prestar atenção no sol ardente que queimava nossos ombros descobertos; a especular qual seria a tonelagem dos navios aportados; e a imaginar o que aquele cozinheiro, cujo rosto gorducho aparecia pela vigia de um barco pesqueiro, iria cozinhar para o almoço da tripulação.

A meio do caminho subimos pelos degraus que levavam ao para-peito do mira douro e assim pudemos apreciar melhor o extraordinário panorama que se descortinava dali, abrangendo a terra firme e o mar aberto. Observei as enormes rochas vulcânicas e as plataformas dos vinhedos, iluminadas pelo sol.

Seguimos para o centro da cidade, com suas amplas avenidas e alamedas fartamente arborizadas e floridas, as famosas ramblas. Bess olhou em torno e deu um sorriso de aprovação. Entramos e saímos de pequenas lojas, subimos uma escadaria de pedra que dava para uma galeria de souvenirs, onde se podia comprar quase de tudo: cerâmica da região, objetos de ferro batido, louças, decoradas, talhas de madeira, tapeçarias feitas à mão,

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lãs, sedas, couros e brinquedos” que Bess olhou com tanto desejo e cobiça que até parecia que, naquela hora, a palavra mágica chefe tinha sido pronunciada. Todos os artigos estavam muito bem expostos num grande salão com piso de cerâmica multicolorida, como se fosse um enorme mosaico.

— Olhe para aquele burrico atrelado à carroça! Não seria excelente para o primeiro prêmio do concurso das crianças? — perguntei a Bess, firmemente determinada a participar de todos os acontecimentos à minha volta e de ser a alma daquela sessão de compras.

— E que tal esses pandeiros, como prêmio de consolação? — Peguei num deles e olhei por baixo — São pintados à mão. Custam vinte pesetas.

Durante todo o percurso, tive a consciência de que aquela, dor íntima tinha só feito um breve intervalo. Mas continuava ali, no seu canto, espreitando e esperando a hora de terminar todo aquele corre-corre, para manifestar-se novamente. Ficamos ainda nos decidindo se aquela tigela esmaltada seria apropriada para o brinde das senhoras ou se aquele lindo isqueiro seria apreciado pelos cavalheiros. Quem sabe se seria melhor aquele castiçal rústico ou aquele vaso de terracota? Revirávamos os objetos, perguntando os preços, pechinchávamos e comprávamos. Até que o maço de notas espanholas que o chefe dos comissários nos tinha entregue para as compras ficou fininho e já não tínhamos mais braços e mãos para carregar tantos pacotes.

— Acho bom pararmos por aqui. Vamos achar um táxi e zarpar de volta para o navio — sentenciou Bess.

Saímos à luz do sol e enveredamos por uma alameda, abrindo , caminho por entre aquela multidão de transeuntes que lotavam as ramblas, e desviando-nos dos carros que corriam em todas as direções, fazendo um barulho infernal. Finalmente, chegamos a uma grande praça. Apreciei os graciosos edifícios, os canteiros de flores bem cuidados, as barracas com toldos coloridos, tão altos, que quase tocavam os ramos das árvores.

— Olhe aquele homem equilibrando a cesta na cabeça — comentei. — O perfume das flores não está ativo demais?

Mas foi com tristeza que observamos aquele bando de crianças descalças, esmolando por toda a parte. Então comecei a sentir que aquela dor vinha à tona e que me apertava à garganta como se fosse uma corda nodosa. O porquê disso, não sei. Antes que Bess notasse minha mudança de humor, olhei em torno para descobrir alguma coisa que pudesse distrair-lhe a atenção.

— Parece que você disse que os espanhóis gostavam de mulheres cheinhas de corpo — disse eu, enquanto apontava para alguns homens que admiravam, embevecidos, uma jovem muito esbelta, de cabelos fartos e brilhantes, que estava de costas para nós.

Tão logo acabei de dizer essas palavras, desejei que elas fossem soterradas nas profundezas do oceano Atlântico. Dei-me conta de que havia algo de muito familiar naquela cintura de vespa, acentuada por um vestido azul muito colante. Também o penteado, emoldurando aquela cabeça delicada, não me era estranho. Antes que ela se virasse de frente, já a tinha reconhecido. O nariz fino e perfeito, o queixo arredondado e firme, os olhos azuis de porcelana chinesa, todos aqueles detalhes me eram penosamente conhecidos.

— Alô — ela cumprimentou com uma afabilidade exagerada, acenando com um amplo chapéu de palha branca que trazia, displicentemente, na mão. — Vocês devem ter feito uma boa caminhada! Parecem estar esgotadas, suadas e aborrecidas. — Enviou-nos um sorriso angelical. — Por que não param

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um pouco? Gostaria que me aconselhassem. David, você não acha... — Olhou em torno. — Onde você se meteu, David? Oh, aqui está ele!

Nosso médico-chefe apareceu por debaixo de um toldo de lona de uma das barracas, com vários colares pendurados no braço, como se fosse um camelô.

— Oh, alô!Pela primeira vez o vi ligeiramente confuso e encabulado.— Bom dia, doutor! Está montando alguma joalheria? — Eu disse aquilo

de uma forma mordaz, bem mais cáustica do que teria desejado, impelida pelo reavivamento daquela dor interna. Mas ele não ouviu ou fingiu não ouvir minha observação.

— David prometeu-me dar de presente um desses colares, mas não conseguimos decidir até agora qual deles me fica melhor — disse ela, apoiando uma mão, com unhas pintadas de rosa - choque, sobre o braço do médico.

— Uma corrente não seria mais apropriada? — perguntou Bess, com uma malícia que não era peculiar nela. — Ou talvez algo mais pesado?

Vi que o Dr. Lindsay lançava-lhe um olhar que minha avó teria classificado como tipo cinema mudo. Mas Bess se fez de tonta. Pegou alguns colares e colocou-os no pescoço, tentando, ao mesmo tempo, consultar atabalhoadamente seu relógio de pulso.

— Acho que vocês vão ter que decidir sozinhos — disse ela, segurando no meu braço, enquanto devolvia as peças. — Estamos com muita pressa, não é mesmo? — Deu-me um sorriso ambíguo. — Além disso, não creio que possamos ajudar. Escolher uma jóia é uma coisa muito pessoal. Depende do gosto de cada um.

— Realmente, é muito pessoal. — Trudy Regan carregou aquelas palavras de intenções secretas. Simultaneamente, inclinou aquele pescoço de cisne para que o doutor pudesse encaixar o fecho de um colar de ouro, imitando pequenas folhas, entremeadas de pérolas cultivadas.

Lembro-me de ter sido tentada a olhar para trás. Vi aqueles dois perfis muito juntos, quase se tocando. Vi seus olhos se encontrarem. Vi Trudy esticar os lábios para a frente, num convite óbvio para um beijo.

Bess puxou-me por um braço e apressou-me para atravessar a rua. Fez um curioso comentário, dizendo que nunca era aconselhável olhar para trás. Eu sabia o que aconteceu à pessoa que fez isso: virou estátua de sal.

Minha cabeça começou a doer, meu braço começou a doer, enfim, repentinamente, tudo começou a doer. Até a luz do sol fez meus olhos arderem. De fato, comecei a piscar sem parar, abaixando a vista para o chão, sentindo um calor insuportável, tão perturbada que, se não fosse por Bess, eu nem o teria visto.

Ouvi alguém, gritando algo. Pareceu-me que tinham gritado meu nome. No primeiro instante, pensei que fosse o Dr. Lindsay, chamando-me de volta. Foi então que Bess disse:

— Olhe quem se vê!E à nossa frente surgiu Paul, que nos arrastou para a sombra de um café

ao ar livre, protegido por um enorme toldo rosa e branco, onde, confortavelmente instalada numa cadeira de vime, a condessa Albi se abanava com um leque de palha trançada.

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Capítulo VII

— E agora, para que vocês se refresquem, dois cafés vienenses, bem gelados! — anunciou Paul. — Venham por aqui, por favor!

Essas eram as coisas maravilhosas, que Paul sabia fazer tão bem. Tomou logo conta da situação. Parecia ser o dono do local. Dois garçons vieram imediatamente e nos livraram dos pacotes. Foi o próprio gerente que anotou os pedidos. Escoltadas por Paul, aquelas duas pobres e acaloradas criaturas, com seus baratos vestidinhos de algodão, sentiram-se participantes de uma roda aristocrática, reunida em torno da mesa da condessa.

— Tia, encontrei nossa garota travessa. Esta é a amiga dela, a senhorita Shackleton, encarregada das crianças do cruzeiro, a quem Cristie anda levando pelo mau caminho.

Sorri complacente.— Estamos aqui sentados há mais de duas horas, não é, tia? Tomando

copos e copos de limonada, enquanto me divirto, inspecionando todos os transeuntes da Calle dei Castillo. — Olhou-me acusadoramente. — Ontem à noite, você nos disse: Até amanhã, vejo-os logo mais. Naturalmente, achei que aquilo era uma promessa de que nos veríamos hoje e que você nos faria companhia num giro por Tenerife.

Os altos copos de café gelado foram postos à nossa frente, mal tínhamos acabado de sentar.

— Mas, Paul!— Você disse: Vejo-os logo mais — Paul insistiu. — Mas você não nos viu

coisa alguma. Fui eu quem a vi. Se não fosse eu reconhecer esses inconfundíveis olhos azuis, espreitando por cima daquela pilha de pacotes, você teria se esgueirado, e nos deixado aqui a ver navios!

— Paul, vejo-os logo mais é uma expressão idiomática. É a maneira mais comum de despedir-se. Não é uma promessa.

Paul levantou a mão, de forma autoritária.— Não aceito desculpas esfarrapadas. Tomem logo seus refrescos antes

que esquentem. Estou lhe dando um tempo para você pensar numa desculpa razoável. Depois, você apresenta suas explicações.

Aceitamos a sugestão de tomarmos nossos refrescos, gratas pela pausa. À sombra daquele toldo rosa e branco, sentia-se até uma leve brisa refrescante. A condessa sorriu para nós, enquanto sugávamos sofregamente aquele delicioso café gelado, por meio de dois canudinhos, parecendo duas mortas de sede, chegando num oásis.

Paul esperou um pouco e, depois, continuou a falar:— Esperei por você. Procurei-a por todo o navio. Comecei a pensar que

aquela era a maneira inglesa de dar um fora. Tia, eu disse, quando uma jovem inglesa diz: nós nos veremos logo mais pode ser que queira dizer: não nos veremos nunca mais.

— Paul, eu tive que sair para comprar os brindes para o bailei da passagem do Equador.

— Tia, eu disse — Paul começou sua lenga-lenga, ignorando minha explicação —, você se lembra daquela canção infantil, que dizia mais ou menos assim: “Paulo e Paulinha caíram na colina, etc, etc, etc”? E se Paulinha tivesse se machucado naquela queda não acha que ela não iria mais querer sair com Paulo?

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— Aquilo que aconteceu, não foi por sua culpa. Além disso, estou completamente restabelecida.

— Seu braço ainda está enfaixado!— Mas não dói mais!— Ainda bem. Com um tombo daqueles, pensei que você fosse

desmantelar-se. — Fez uma pausa. — Aquele curandeiro parece que sabe onde tem o nariz.

— Curandeiro?— Como se diz? Aquele... Médico. O tal do médico é melhor do que

aparenta ser.— Para dizer a verdade, o Dr. Lindsay foi muito atencioso comigo —

afirmei, fazendo questão de ser justa.— Deve ter sido mesmo! E também simpaticíssimo, como sempre! Sem

dúvida, ele deve ter dito que é pouco recomendável para as recepcionistas saírem por aí com passageiros do sexo masculino... Especialmente se não são ingleses... Pois eles sempre acabam causando algum dano.

— Paul! Ele não disse nada disso — contestei.Foi nesse ponto da conversa que Bess resolveu intrometer-se. Acho que

ela notou, tanto quanto eu, que por baixo daquela expansão brincalhona, Paul escondia uma grande dor-de-cotovelo. E apesar de tantas gentilezas, estava irritado, quase zangado. Não se conformava de não ter me achado a bordo. Estava seguro que eu teria ido com ele para a cidade. Creio que Bess exagerou o motivo do atrito. Sem dúvida, pensou que aquilo era um desentendimento entre namorados — mas, por fim, deu-se conta que seria necessário vir logo em seu socorro, tomando a iniciativa de monopolizar a conversa. Apontou para uma pirâmide de embrulhos que estava sobre a mesa e, em voz alta disse que era evidente que nós não tínhamos sido as únicas a fazer compras, e perguntou à condessa o que ela andara comprando.

— Oh, não são coisas para mim! — A condessa levantou os dedos cobertos de anéis. — Só comprei três coisinhas. Uma bonita peça de renda para uma amiga... Uma bonequinha espanhola para a filha da empregada... E uma dessas bobagens para turistas, para guardar de lembrança. Sabe, para não esquecer que estive neste lugar. Não, a maior parte das compras são de Paul. Como gasta dinheiro, esse meu sobrinho! Ele tem muitos amigos. — Sorriu para ele, afetuosamente. — E sabe como conquistá-los... Se sabe! Mas não é esbanjador, mão aberta extravagante como o pai dele. Fica me alertando o tempo todo: Aqui não, tia... Não vá comprar nas grandes lojas da Plaza. Vão cobrar-lhe um preço exorbitante. Vão roubá-la, entende? E lá... Nas ruas transversais... Nas lojas menores... É lá que a senhora deve comprar!

— E ele gosta de pechinchar? — perguntou Bess.— E como! Veja só, Paul, ela perguntou se você gosta de pechinchar. Vou

dizer-lhes uma coisa. Quando Paul está ao meu lado, é a única hora em que chego a ficar com pena dos comerciantes.

Paul não fez qualquer comentário. E eu fiquei ali sentada, muda. Bess me contou, depois, que eu parecia cabisbaixa. Creio que estava exagerando.

Bess e a condessa continuaram a conversa como se estivessem sozinhas à mesa.

— Sim, é a primeira vez que venho a Tenerife — a condessa informou. — Esse nome, Tenerife, sempre me encantou. E agora estou encantada com o lugar.

— Vai dar um passeio até o alto das montanhas?40

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— Sim. Depois do almoço, desde que possamos ir de automóvel. Faço questão de conhecer toda a ilha. Vamos transpor o desfiladeiro e visitar o Vale de Orotava. Vamos conhecer uma plantação de café e um vinhedo... Talvez visitemos uma fábrica de cestas de vime. Pela manhã, já andamos passeando por Santa Cruz.

— É linda! — Bess apontou para o mar. — Parece feita de ouro, rebrilhando sob a luz do sol.

— Mas lá há mesmo muito ouro de verdade. Era em Santa Cruz que chegavam as caravelas espanholas, carregadas de metais preciosos, vindas da América do Sul.

— Quer dizer que talvez existam algumas dessas galeras antigas, com todos os seus tesouros, submersas naquelas águas?

— Com toda a certeza! Santa Cruz era o paraíso dos piratas! — Os olhos da condessa brilharam com um entusiasmo quase infantil.

— Minha tia é uma romântica incorrigível — disse Paul. — Se lhe dessem uma oportunidade, era bem capaz de fugir com algum pirata.

— E qual é a mulher que não o faria? — disse Bess, com um tom de voz tão cômico, que todo o mundo pôs-se a rir, aliviando a tensão.

À medida que a condessa continuava a conversa, senti que as coisas iam se tornando mais fáceis. Quando Paul sussurrou ao meu ouvido: — O doutor é daquele tipo de gente com quem é preciso tomar cuidado, Cristie — pude compreender o motivo do seu comportamento. Ele estava enciumado, esse era o motivo. Pensando bem, ele havia sido praticamente convidado a retirar-se do ambulatório, naquele dia fatídico. E de uma forma muito polida. Por certo, agora estava pensando que eu pretendia conhecer Tenerife em companhia do jovem médico. Se Paul pudesse ter presenciado, meia hora antes, aquela cena que eu presenciara na praça do mercado, por certo, não teria motivos para se preocupar. Todas as mulheres gostam de demonstrações de ciúme, desde que sejam os homens a fazer essas demonstrações.

Tendo testemunhado aquela cena, achava que era um verdadeiro lenitivo que alguém, muito mais bonito que aquele doutorzinho, estivesse me dando esse tipo de demonstração. O mais carinhosamente possível, também falei baixinho:

— Não se preocupe Paul. Já estou mais do que prevenida contra ele.Essa afirmação pareceu agradá-lo imensamente. Abriu um largo e

aliviado sorriso, piscou para mim e, disfarçadamente, escorregou a mão por baixo da toalha da mesa e procurou a minha, achando que toda essa manobra tinha passado despercebida. Mas eu sabia que os olhos de lince de Bess tinham notado o gesto, apesar de ela continuar conversando despreocupadamente, como se não tivesse percebido nada.

— E agora que a reencontrei você vem? — perguntou Paul.— Vou aonde?— Almoçar conosco. Depois faremos uma excursão pela ilha.— Paul, eu adoraria! Mas, infelizmente, não posso. Tenho que levar todas

essas coisas a bordo.— Eu também tenho que levar as minhas. Podemos pôr tudo no táxi.— Não, Paul. Preciso mesmo voltar para o navio. De qualquer forma, não

poderia deixar Bess voltar sozinha.— Ela também vai conosco.— Não vai ser possível. Hoje à tarde, Bess está de serviço... Tomando

conta das crianças, enquanto os pais vão fazer seus tours.41

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— Então quer dizer que ambas precisam voltar a bordo?— Temo que sim, Paul.— Mas isso é péssimo! Estava crente que vocês nos acompanhariam.

Minha tia e eu vamos ter que ir junto com vocês, de qualquer modo, por causa dessas compras todas.

— Vai ser muito incômodo, Paul. E vai atrasar seu passeio. — Ele sacudiu os ombros.

— Esses motoristas de táxi! Não confio a ponto de deixar os pacotes no carro.

— Podemos levá-los conosco. É a coisa mais sensata a fazer.— Mas vocês já têm pacotes demais, Cristie.— Um pouco mais, um pouco menos, não faz diferença.— Não vão conseguir levar tudo.— Vamos, sim.— Não pense que sou daqueles turistas fanáticos em compras. Essas

coisas, vou contar-lhe confidencialmente, são para o aniversário da minha tia. Uma porção de quinquilharias, para fazer-lhe uma surpresa.

— Mais uma razão para que as carregue para o navio.— Deixe... Vocês já têm coisas demais.— Nós duas juntas podemos nos arrumar muito bem.— Bom... — Ele cocou o queixo, pensativo. — Naturalmente, vou pôr as

duas num táxi que as levará diretamente até o cais.— Paul, não tem problema!— Se eu não for junto, você tem que me prometer uma coisa. Veja bem,

não quero que, por minha causa, leve outro tombo. Você promete que vai com cuidado?

— Claro que sim. Do jeito que você fala, até parece que sou feita de porcelana.

— Para mim, Cristie, você é feita de um material muito mais valioso.Não sei se me deixei influenciar por aquelas palavras tão românticas, ou

se pelo belo cenário que me rodeava, as tulipas dos jardins... O topo branco do pico de Teide... O azul daquele céu... Tudo contribuiu para que me sentisse invadida por uma sensação de paz. Sabia de alguma forma, quais eram os sentimentos de Paul para comigo. Não precisávamos de palavras para nos entender. Estávamos ali sentados, devaneando silenciosamente, ouvindo vagamente a conversa de Bess com a condessa, até que o relógio da torre de uma igreja bateu uma hora.

Bess interrompeu-se e anunciou:— Se eu não for já para bordo, perco minha hora de almoço — Ela não

poderia ter usado palavras mais significativas, pelo menos, para mim. Tinha frisado propositalmente o singular eu. Isso queria dizer: “não se preocupe, você pode ficar com ele, que eu volto solzinha”.

Mas parece que fui a única a perceber a intenção de Bess, pois todos se levantaram e Paul apressou-se em conseguir um táxi. Não só conseguiu como também deu ordens ao motorista para nos levar diretamente ao cais de embarque e pagou a corrida adiantada. Estávamos a duas já acomodadas, com todos os nossos pacotes, despe-dindo-nos da condessa, quando Paul perguntou:

— Vocês têm certeza de que podem também levar esses? — E foi pondo seus embrulhos no escasso espaço que sobrara no meu colo.

— Pela centésima vez, Paul, podemos! — respondi, com falsa 42

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exasperação. Sorrimos um para o outro e logo estávamos a caminho! Virei-me, para acenar um último adeus pelo vidro traseiro.

— Bem, eu estava certa o tempo todo — disse Bess, esticando-se no assento. — Você está diferente. E agora sei por quê!

— Pois está redondamente enganada.— Estou redondamente certa. Na próxima vez que passarmos pela Ilha

da Madeira, o que tenho a fazer é levar o chefe comigo naquele tobogã maluco, despencar lá de cima... Levar um belo tombo... E pronto! O chefe vai cair aos meus pés, apaixonado!

— Bess, você está sendo exagerada, como sempre.— Estou mesmo? Não tão exagerada quanto Paul, quando olhava, para

você. Que olhar! Tudo indica que logo, logo, teremos uma festa de noivado a bordo. E você sabe... — Seus olhos brilharam. — O quanto o chefe adora esses acontecimentos sociais. Champanhe, bolo, baile e um discursinho para desejar-lhes mil felicidades!

— Bess, à medida que nos aproximamos da Linha do Equador, sua imaginação está ficando cada vez mais desenfreada.

— Não é uma questão de imaginação, meu bem. É uma questão de olhos!

O táxi deu a volta pela Plaza de España e tomou a direção do porto onde o Pallas Athene estava atracado.

Quando se passa algum tempo num navio, mesmo que por poucos dias, começa-se a sentir uma certa afeição por ele. Após passarmos por todos aqueles rolos de corda cabos, barris e fardos, e sentir aquele cheiro peculiar de todos os cais do mundo, uma mistura de óleo, cereais e maresia, olhei para o Pallas Athene quase com amor. O táxi parou bem em frente ao porto. Os dois policiais espanhóis ainda estavam ali, perfilados. O motorista ajudou-nos a tirar do carro todos aqueles pacotes.

— Compras turísticas? — perguntou o mais alto dos policiais, com forte acento espanhol.

— E brindes para os concursos — disse eu.Parece que ele não tinha um vocabulário muito extenso da língua

inglesa, pois, com ar de dúvida, começou a apalpar os pacotes, até que Bess pronunciou a palavra mágica — Tripulação! — e, em segundos, já estávamos livres, entrando no deck D.

A meio do caminho, segundo Bess, tive a impressão de que alguém estava me acompanhando com o olhar. Esse tipo de sensação começa com uma intuição e, pouco a pouco, transforma-se numa certeza. À medida que eu ia subindo os degraus, mais certa ficava de que alguém me observava.

Cerca de umas vinte pessoas estavam debruçadas no parapeito do deck A, umas apenas apreciando a paisagem marítima, outras, olhando em direção ao cais. Nenhuma, em nossa direção.

Foi só quando cheguei ao último degrau e alcancei o deck é que alguém falou comigo:

— Não sabia que as recepcionistas eram tão bem pagas!Fora o Dr. Lindsay quem estivera me observando. Vestia novamente o

uniforme de bordo.— Oh, esses pacotes são brindes para os concursos e as festas dos

passageiros. Não são meus.— Parecem muito atraentes, mas, como médico, não posso aprovar que

meus pacientes carreguem tanto peso. Espere, deixe-me ajudá-la. — 43

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Aproximou-se de mim. — E por falar nisso, como vai seu braço?— Já não sinto mais nada. Acho que já sarou, obrigada. E, por favor, não

precisa se incomodar. Posso arranjar-me sozinha.Foi nesse momento que tudo aconteceu.Bess continuava andando à frente. Podia ouvir o ruído de seu saltos

batendo no chão do deck ficar cada vez mais longínquo. O Dr. Lindsay estendeu a mão para segurar alguns dos pacotes. Antes que os tocasse, virei-me bruscamente. Acho que foi porque não queria que me ajudasse. Preferia contar comigo mesma. Bem no alto da pilha, um dos pacotes, embrulhado com papel de seda branco, um dos menores, que pertencia a Paul, desequilibrou-se, balançou e escorregou. Em câmara lenta, começou a cair. Tentei segurá-lo em pleno vôo, mas não consegui. Com um baque, o pacote caiu no chão duro de deck, abrindo-se. Sob meu olhar estarrecido, espalharam-se no chão, seis relógios de ouro, evidentemente de alto preço, verdadeiras jóias que ficaram ali, reluzindo à luz do sol.

Em silêncio, o médico abaixou-se e pegou os relógios, um por um, entregando-os a mim.

— Não fazia idéia de que nos concursos de suas festas os vencedores recebessem prêmios tão valiosos! — disse ele ironicamente.

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Capítulo VIII

Já era noite quando a condessa e o sobrinho voltaram a bordo.Eu estava esperando por Paul, debruçada no parapeito do deck deserto,

admirando o pôr-do-sol, que desaparecia por trás da ilha, como uma chama que se apaga lentamente... Os longínquos vales azulados adquiriram uma tonalidade azulada e os picos escarpados das montanhas delinearam-se no horizonte, como facas pontiagudas. Em seguida, caiu à noite, como uma cortina escura de um palco, fechando-se após o espetáculo. Milhões de estrelas começaram a faiscar por sobre a ilha e, em resposta, acenderam-se as luzes artificiais da cidade e do porto. Os anúncios de gás néon começaram a transmitir suas mensagens publicitárias. Mas, do lado das montanhas, exceto por algum tremeluzir esparso, vindo de alguma casa de fazenda, e escuridão permaneceu imutável e misteriosa.

A iluminação que vinha do salão de estar foi suficiente para que eu pudesse consultar meu relógio de pulso. Eram quase dez horas. Fiquei olhando para a estreita faixa de água que separava o navio do porto, onde as luzes projetadas pelas vigias formavam esferas luminosas. Pude distinguir as fisionomias de alguns de nossos passageiros que se apressavam em subir a bordo, antes que a sirene do Pallas Âthene soasse.

Naturalmente deve haver uma explicação, continuava a repetir essas palavras na minha mente, as mesmas palavras que eu havia dito, seguidamente, ao Dr. Lindsay, horas atrás.

— Há quantas horas?Lembrava-me de sua resposta, ainda na minha memória.— Deve haver? Então, talvez, você mesma possa dar-me essa resposta.Antes que eu pudesse replicar, ele olhou-me de um jeito tal, como nunca

mais quero que alguém me olhe, durante o resto de minha vida. Muito menos ele. Depois, simplesmente girou sobre os calcanhares, e se foi.

Eu não havia comentado nada com Bess sobre o incidente. Não porque não confiasse nela. Só que não queria arriscar-me a ler em seu rosto a confirmação de uma terrível suspeita que eu tivera e que escondia medrosamente, bem no fundo de minha consciência: contrabando! Além do mais, ela era reconhecidamente uma garota estouvada e teria insistido comigo, até a exaustão, para que eu relatasse o acontecimento ao chefe. E essa seria a última coisa no mundo que Paul teria desejado que eu fizesse. Ou que eu teria desejado fazer.

Por isso, tinha pedido ao camareiro para abrir à suíte — todas as cabines permanecem fechadas à chave quando o navio está atracado e os camareiros ficam com a chave-mestra —, e depositei os pacotes na mesa da sala de estar, com um envelope que continha um bilhetinho dirigido a Paul.

“Sinto muito, mas deixei cair este pacote no chão. Embrulhei tudo de novo. Espero que os relógios não tenham quebrado. Estarei esperando por você no deck A, do lado da proa”.

E fiquei simplesmente esperando. Na verdade, não pude ver quando ele subiu a bordo. A noite estava muito escura e os reflexos das luzes do navio dificultavam ainda mais distinguir as fisionomias das pessoas que passavam pelo cais. Já estava fazendo os preparativos para a partida, quando senti sua mão no meu braço e ouvi sua voz dizendo suavemente:

— Minha adorável Cristie... — Francamente, eu esperava que ele 45

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demonstrasse o mesmo arrependimento e preocupação que demonstrara naquele incidente da Ilha da Madeira. Aguardei pela sua veemente explicação, se é que alguma explicação era possível naquele caso, e jurei para mim mesma que não o perdoaria, se não ficasse completamente convencida com seus argumentos.

Bem, a preocupação que eu esperava era evidente e, talvez, até uma certa ternura. Mas nenhum arrependimento ou pedido de desculpas.

— Cristie, meu bem. — Eu estava muito zangada e ansiosa para enternecer-me com aquele tratamento afetuoso. — Estou vendo que você está aflita e, francamente, como você deve saber, não há razão para você ficar assim.

— Fico contente em ouvir que não há razão — disse com sarcasmo.Ele ergueu as sobrancelhas de uma forma exagerada, quase cômica que

dizia, mais do que qualquer palavra, quão frios e insensíveis somos nós, os ingleses.

— Houve certa confusão, minha querida, mas você não deve culpar-se por isso.

— Eu me culpando?! Não estou me culpando por coisa alguma!— É o tipo de transtorno que acontece freqüentemente em Tenerifei.

Esses espanhóis! São ainda mais desastrados que os italianos. E você sabe bem como são desastrados os italianos, não é, Cristie? — Deu um sorriso caçoísta.

Pus a mão na testa, desnorteada.— Sinto muito, mas continuo não entendendo nada!— Mas eu entendo. — Afastou minha mão da testa e beijou-a — Você

está aborrecida porque deixou cair o presente de minha tia e está preocupada porque o pacote continha seis preciosos relógios!

— Que estou preocupada porque continha seis preciosos relógios! Estou mesmo — respondi rudemente.

— Aliás, preocupada, demais. E você vai querer me convencer que não está aborrecida porque derrubou o presente de tia Maria? — Sacudiu a cabeça, em sinal de reprovação. — Oh, Cristie querida você, no fundo, ficou amuada e contrariada com isso.

Quando levantei os ombros, com raiva, achando tudo aquilo um absurdo, ele tornou a falar.

— Será que não entra nesta linda cabecinha que, por mais excêntrica que seja minha tia, ela nunca, mas nunca mesmo, iria quere seis relógios?... E todos, minha simplória Cristie, da mesma marca? Todos juntos, ao mesmo tempo, no mesmo pulso? Todos eles fazendo tique-taque, tique-taque, tique-taque, simultaneamente? — E deslizou a mão pelos meus cabelos, num gesto paternal.

— Nunca me passou pela cabeça que fossem todos para sua tia.— Mas eu lhe contei que aquele pacote era para minha tia, Cristie

querida. E até lhe recomendei que tomasse cuidado com ele. Lembro-me bem de minhas palavras.

— Sinto muito — disse eu, involuntariamente.— Pronto! Eu sabia! E agora que você reconheceu que está sentida, e

voltou ser minha meiga e doce Cristie, vou lhe dizer qual é a verdadeira explicação.

— Ótimo! Estou ansiosa para saber qual é.— É tão simples, que você vai até achar graça.

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— Vá em frente. Mas “estou certa de que não vou achar graça alguma”. Isso eu prometo.

Estava convencida que, depois daquele olhar que o Dr. Lindsay me lançara, não ia mais conseguir achar graça em nada desta vida. Nunca mais.

— Vamos começar pelo começo. Você sabe que comprei um presente especial para o aniversário de tia Maria?

— É claro que sei — disse com cansaço. — Seis relógios de ouro, cravejados de brilhantes!

— Não, minha pequena cabeçuda. Só um pequeno broche de ouro, muito simples e discreto. Ela gosta de coisas boas, simples e discretas, entende? Mas não queria que ela visse o presente. Um presente de aniversário tem que ser sempre uma surpresa, não concorda? Então, pedi ao gerente da loja que é um grande amigo de minha família, para embrulhá-lo separadamente e mandá-lo entregar disfarçadamente, por um dos mensageiros da loja, depois que eu já estivesse na rua. Esses garotos! Como são idiotas esses garotos! O que será dessa nova geração? Não é que ele entregou o pacote errado? Veja, agora estou com o pacote certo. É igualzinho ao outro. — Mostrou-me um embrulho do mesmo tamanho e formato, embalado com papel do mesmo tipo e cor. — Veja bem. Quando o abri, lá estava o broche de ouro de minha tia, são e salvo!

Eu ainda não estava plenamente convencida.— Mas quem descobriu a troca? O gerente da loja?— Ora, Cristie! Foi o outro freguês. O que levou meu embrulho. Não foi à

toa que fez aquele escândalo todo! Receber um brochezinho desses, em vez de seis relógios de ouro! Os relógios tinham sido comprados para a butique de um navio alemão que está aqui no porto. — Paul levantou os braços para o céu. — Ele simplesmente disparou de volta para a loja, como um raio. Que cena, menina! Os alemães são muito prepotentes. Ele acusou a loja de desonesta! Chamou todos de vigaristas e até eu entrei na dança. Oh, Cristie, não fique aí suspirando. Você mesma chegou a pensar isso de mim!

Eu estava começando a sorrir, de puro alívio. Mas quando ele disse isso, meu sorriso apagou-se.

— Não pensei que você fosse um vigarista, Paul. Não dessa forma.— Você pensou que eu era contrabandista, querida Cristie. Você não

consegue mentir e sabe muito bem disso.— Não estou tentando mentir. Meu coração me dizia que não havia nada

de errado, apesar das aparências.— Seu coração lhe disse que estava tudo certo? — perguntou, beijando-

me a fronte com ternura.— Sim, disse.— E agora, você tem certeza?— Absoluta.— Então, este pequeno equívoco, até que teve suas vantagens.— E como você vai fazer para devolver os relógios ao alemão?— Isso já foi feito. O gerente mandou aquele garoto idiota vir nos esperar

no cais. Fui até a suíte, achei o pacote e abri, para verificar. Então entreguei os relógios ao garoto, com uma mensagem para o gerente. Mandei dizer que, naturalmente, iria repor o relógio quebrado.

— Quebrado?— Oh, meu bem. Eu não queria contar-lhe, para não aborrecê-la, mas fui

levado pela empolgação da narrativa.— Algum relógio se quebrou?

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— Bem, só de leve. Nada demais, que mereça você ficar preocupada. Sabem, esses relógios finos são muito delicados. Qualquer pancadinha... E pronto! São uns brinquedinhos frágeis, feitos para gente que tem mais dinheiro do que bom senso.

— Eles devem custar os olhos da cara!— Os olhos da cara, Cristie? Uns meros relógios? Como os ingleses são

exagerados em questões de dinheiro!— Seja sincero. Não custa mesmo uma fortuna? De ouro e brilhantes!— Não, minha querida. Vamos dizer que não custam um preço tão

absurdo, que eu não possa pagar.— Mas isso é terrível!— Cristie, não tem nada de terrível. É até maravilhoso. Eu pagaria dez

vezes o valor desses relógios para ver você assim, tão deliciosamente aflita por mim.

Não sabia o que dizer. Fiquei ali parada, em silêncio, vendo a escada de embarque ser levantada e as cordas serem desamarradas do cabrestante. Sentia-me tremendamente envergonhada. Se existe uma qualidade que aprecio nos amigos é a lealdade. Não estou tentando desculpar-me de minhas suspeitas, mas não creio que pudesse ter chegado àquelas desagradáveis conclusões se eu tivesse derrubado o pacote dentro de minha cabine. Em outras palavras, se o Dr. Lindsay não tivesse me olhado daquele jeito, querendo transmitir-me o que ele pensava.

Senti um ligeiro remorso, que me deixou de mau humor. Debrucei-me sobre o parapeito, olhando para o reflexo de minha cabeça na água, como se estivesse me olhando num espelho.

— Paul — comecei a falar com uma voz sufocada, sem olhar para ele.— Sinto muitíssimo! Sinto por ter quebrado o relógio. Sinto por ter sido tão descuidada. E sinto ainda mais por ter pensado mal de você.

Por um longo momento, Paul ficou calado. Depois, colocou a mão sobre meu ombro e obrigou-me a encará-lo. Não estava mais sorrindo. Parecia mais velho, mais acabado. Os cantos de sua boca, usualmente levantados, estavam descaídos, dando-lhe uma expressão de homem desiludido.

— Esqueça os estragos do relógio. Já lhe disse que não teve a menor importância. Importante foi sua última frase. Foi o que você disse que pensou a meu respeito. — Seu tom de voz endureceu. — Quer dizer que você pensou mesmo mal de mim? Diga a verdade, o que você pensou?

Escorreguei um dedo pela madeira polida do parapeito. Hesitei muito antes de falar, vagarosamente, como que me penitenciando.

— Não estou muito certa, Paul. Mas eu acho que você pensou que eu o julguei um contrabandista com a intenção de trazer os relógios a bordo, sem que a polícia percebesse.

— Oh!... — Nunca antes tinha ouvido pronunciar essa simples sílaba em tom tão ofendido. Não me virei para ver a expressão de seu rosto. Passou muito tempo antes que ele dissesse:

— E agora, você quer saber o que eu penso de você?— Se quiser pode dizer.— Eu penso que você é a garota mais tola e romântica que já conheci.

Penso que anda lendo romances demais sobre contrabandistas e piratas, e outros personagens do gênero. Penso que você è uma péssima avaliadora do caráter das pessoas. E também penso que você é a mais linda, meiga e encantadora garota que jamais encontrei e que amo você loucamente.

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Às vezes, fica-se em dúvida se certas palavras foram realmente ditas. Nessas horas, gostaríamos que as palavras fossem objetos palpáveis, que pudessem ser guardados para sempre num cofre, como prova de que existiram. Era isso que eu estava pensando agora. Senti-me fraca e desorientada. Muito feliz e terrivelmente infeliz. Não estava bem certa, pois meus olhos se encheram de lágrimas.

Vir-me-ei de frente para Paul e ele, que sabe avaliar bem melhor do que eu o caráter das pessoas, considerou que aquelas lágrimas eram lágrimas de alegria. Abriu os braços e eu, levada por uma onda de emoções conflitantes, alegria e tristeza, alívio e remorso, joguei-me dentro deles.

Ele beijou-me com muito carinho e ternura, acariciando meus cabelos e murmurando palavras suaves e amorosas, em italiano. Sempre achei o italiano um lindo idioma. Agora, então, soava aos meus ouvidos como se fosse uma música vinda do céu.

Depois, ele falou em inglês:— Cristie, Cristie, meu amor... Minha querida e doce menina, você quer

casar-se comigo?Novamente quis guardar aquelas palavras dentro do cofre das

recordações, como se fossem preciosidades. Tive a impressão de que não fora ele quem as dissera. Que haviam sido sopradas pelo vento ou por aquelas aves marinhas que revoavam em torno do navio.

— Não precisa responder agora, meu amor. Pense sobre isso, com calma.Nem que eu quisesse, poderia responder naquele momento. Deixei-me

ficar ali parada, com o rosto reclinado em seu ombro, olhando, ao longe, aquela ilha encantadora.

Bem acima de nossas cabeças, soou majestosamente a sirene do Pallas Athene. As ondas sonoras se diluíram na superfície da água, mas ecoaram muito além, nos contrafortes escuros das montanhas. Debaixo de nossos pés, sentimos o trepidar das máquinas que começavam a funcionar.

A estreita faixa de água turva, que separava o navio do cais, começou a alargar-se cada vez mais, transformando-se num grande espelho quadrangular. Nossas cabeças juntas ficaram ali refletidas e, pouco a pouco, se fundiram numa só imagem, que foi diminuindo de tamanho, até parecer uma pequena bolha boiando na superfície do mar.

Há algo de muito perturbador no movimento de um navio afastando-se do porto. Algo, digamos assim, romântico e significativo. Era natural que, sentindo-me envolvida pelos braços de Paul, eu me emocionasse e considerasse que aquela partida tinha um significado muito especial para mim.

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Capítulo IX

Não me foi permitido devanear por muito tempo sobre o significado daquela cena. Nem deixou que meu semblante revelasse por muito tempo o quanto me sentia romântica e sonhadora. Tudo foi disperso, como se minha nuvem cor-de-rosa tivesse sido impelida para longe pela força de um vendaval. E esse vendaval chamava-se Dr. Lindsay. Quando voltei à minha cabine, encontrei um bilhete dele. Era um bilhete simples, quase comercial. Dizia apenas que me apresentasse no departamento médico na manhã seguinte, para receber alta dos ferimentos do acidente. Aquilo fazia parte da rotina e não havia razão para que meu coração disparasse, nem para que minhas mãos ficassem molhadas de suor.

Lembro-me de ter revirado o bilhete nas mãos, examinando-o minuciosamente, como se achasse que o Dr. Lindsay devesse ter acrescentado nele alguma nota extra, de caráter mais pessoal.

Vesti a camisola de dormir e estendi-me sobre a cama, muito quieta, ouvindo o ruído surdo das turbinas e o vaivém das ondas do mar. É surpreendente quantos pequenos ruídos podem ser detectados num navio, durante a noite.

O arrastar de correntes de ferro, o silvar longínquo de um apito, o barulho abafado de passos anônimos, e o ressonar do próprio navio, como se ele fosse um gigante adormecido sobre um lençol de água. Passado algum tempo, meus olhos acostumaram-se com a escuridão e pude distinguir o disco luminoso da vigia e o cintilar das estrelas naquela nesga de céu. Olhando para elas, cismadora, procurei analisar meu estado de alma, depois dos acontecimentos daquela noite. Mas tudo o que eu sentira tinha escapado de dentro de mim, como se aqueles sentimentos tivessem sido afugentados pela chegada de um monstro ameaçador.

Não que o Dr. Lindsay pudesse ser considerado um monstro. Mas era, sem dúvida, um inimigo em potencial. Meu inimigo e também de Paul. Desde o primeiro momento em que nos conhecemos, eu sempre ficara numa atitude de defesa contra ele. Algumas pessoas fazem com que você se sinta uma pessoa melhor do que você é. Paul era um exemplo disso. Mas com outras, você se sente infinitamente pior.

Tinha certeza que o Dr. Lindsay, sendo do jeito que era, iria insistir para que eu desse alguma explicação sobre o caso dos relógios.

Em parte por pura obstinação, em parte por um senso de lealdade para com Paul, eu estava disposta a não dar explicações maiores ao Dr. Lindsay.

Mesmo depois de tomada essa decisão, não conseguia tirar de meu pensamento nem o médico, nem Paul, nem os malditos relógios. Com todas essas preocupações na cabeça, caí num sono agitado e tive um pesadelo. Lembro-me de alguns fragmentos. Paul tinha o rosto coberto por uma máscara medonha e me perseguia por quilômetros e quilômetros de corredores escuros. Por qualquer razão desconhecida, o Dr. Lindsay corria atrás dele. Eu queria fugir, mas minhas pernas pesavam terrivelmente e sentia-me grudada ao chão. À medida que eu avançava penosamente, era obrigada a abrir portas e mais portas, que eu trancava em seguida. Despertei, num sobressalto, quando Paul alcançou-me, com aquela terrível máscara.

Acordei gritando:— Dr. Lindsay!... David!...

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— São seis e quarenta e cinco, em ponto, senhorita.O camareiro estava colocando meu chá na mesinha de cabeceira,

olhando-me impassivelmente, como se fosse à coisa mais normal do mundo que toda recepcionista de bordo acordasse pela manhã, gritando pelo nome do médico-chefe.

— O tempo lá fora está ótimo! Parece feito sob medida para a prova de natação.

Tentei concentrar minha atenção para os importantes eventos daquela tarde, recapitulando todo o esquema: separação dos grupos competidores por idade, seleção dos prêmios a serem distribuídos, marcação de tempo das provas... Mas aquele pesadelo estava impresso, de forma indelével, em minha mente.

Em vez de ir tomar o café da manhã, fiquei perambulando pelo deck, na esperança de encontrar Paul para me ressegurar de que o que acontecera na noite anterior era real e verdadeiro. Mas só encontrei dois cavalheiros obesos que, por certo, contribuíam para que a quilha do navio afundasse ainda mais na água, e uma velha senhora que tricotava indolentemente. Até o mar estava monótono. Não se viam golfinhos ou peixes voadores fazendo seus malabarismos. Uma leve neblina matutina ainda pairava no ar, dando-me a impressão de estar mergulhada num gigantesco banho a vapor. O sol, que, pouco a pouco, diluía a névoa, tinha um brilho metálico e estático. Também a sala de espera do hospital de bordo estava vazia. Sentei-me na beira de uma cadeira, muito ereta, disposta a esperar. Olhei para os quadros pendurados nas paredes. Folheei uma revista, procurando encontrar alguma coisa de interessante para ler. Por fim, desisti de tentar distrair-me e fiquei simplesmente segurando meu lenço, torcendo-o, amarrotando-o e dobrando-o, seguidamente. Se tivesse que esperar mais tempo, seguramente iria começar a roer as unhas recém-esmaltadas.

— O Dr. Lindsay vai atendê-la agora, Srta. Cummings. O rosto de Trudy Regan apareceu no vão da porta, com um sorriso forçado e formal. Sua figura esbelta, de porte altivo e seguro — por certo ela não usava lenços amarrotados, nem roia as unhas — acompanhou-me até a porta onde se lia Cirurgia. Bateu e virou a maçaneta.

— A Srta. Cummings, doutor!A fisionomia do Dr. Lindsay estava impassível, meramente profissional.

Recebeu-me como receberia qualquer outro paciente. Neutro e anti-séptico. Mas sem aquele sorriso estereotipado que, certamente, ele usaria com outras pessoas.

— Bom dia, Srta. Cummings. Queira ter a bondade de sentar-se. — E dirigindo-se para Trudy Regan — Não é necessário que permaneça aqui, enfermeira. Não vamos demorar muito. Pode ir preparando os instrumentos para o curativo da sra. Bentine.

— Como queira, senhor.Lançou-lhe um ligeiro sorriso de cumplicidade e retirou-se. Apesar de

sentir uma prevenção contra ela, como todos os outros membros da tripulação feminina, naquele momento, tive vontade de gritar:

— Pare! Por favor, fique aqui!Pressenti que a presença de terceiros, nem que esse terceiro fosse a

enfermeira-chefe, seria preferível, a ter que enfrentar sozinha o Dr. Lindsay.Mas ele começou a falar de forma ponderada e imparcial, atendo-se à

parte profissional.51

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— Como vai seu braço?— Bem, muito bem.— Vamos só dar uma olhada?Arrastou uma cadeira para perto de mim e, com muito cuidado e

atenção, começou a retirar as ataduras. Não podia ver seu rosto, pois ele estava perto demais e precisaria afastar-me para trás para poder fitá-lo. Conformei-me em ficar olhando para as suas mãos.

Minha avó dizia que era mais fácil analisar o caráter das pessoas pelas mãos do que pelo rosto. Suponho que ela teria gostado das mãos do Dr. Lindsay. Eram grandes e morenas, de unhas curtas, bem aparadas e limpas. E muito macias e suaves. Minha avó teria dito que ele tinha mãos bondosas. O que demonstra como a teoria de minha avó está completamente errada.

Quando as ataduras foram retiradas e enroladas, olhei de relance para seu rosto, para tentar descobrir, pela sua expressão, o que ele estava achando do ferimento. Realmente, eu tivera tantas outras coisas com que me preocupar que quase esquecera que estava ferida no braço.

Vendo-o assim, face a face, notei que tinha pestanas longas e olhos quase da cor dos meus. Por um breve momento, fiquei analisando-o. Mas quando ele levantou a vista do que estava fazendo, apressei-me em desviar o olhar.

— Bem, parece que tudo está na mais perfeita ordem. Cicatrizou muito bem. Só vou colocar uma pequena gaze e daqui a dois dias, pode tirá-la.

— Obrigada.Fiquei observando, enquanto cortava um pedaço de gaze e a prendia ao

braço, por meio de duas tiras finas de esparadrapo.— E o tornozelo, não dói mais?— Sarou, completamente, obrigada. — Movimentei o pé em círculo, para

demonstrar que não tinha mais problemas com o tornozelo.— Dá até para dançar!Foi até a escrivaninha e pegou um fichário. Tirou a tampa da caneta-

tinteiro e escreveu algo na última linha.— Tudo bem, então. Só tem mais uma coisinha.Sorrindo, aliviada, fiquei ali sentada, ponderando que outro ferimento

seria esse que eu ainda tinha e do qual me esquecera. Não me lembrava de nada mais, a não ser daquela minha dor interna, que era meu segredo particular e que, na noite passada, parecia que também ia receber alta.

O Dr. Lindsay deu-me um sorriso um tanto constrangido.— Naturalmente, você já esqueceu?— Acho que sim. — E muito idiotamente retribuí o sorriso. — É uma pena que eu não tenha esquecido. — Sua voz era seca e

cortante. — Há ainda uma coisinha por esclarecer... Sobre aqueles relógios, Srta. Cummings. Não pretendo deixar que se vá, antes de dar-me alguma explicação.

Reuni todas as minhas forças para dar aquela resposta, temerosa da reação do Dr. Lindsay, conhecendo, como conhecia sua intransigência.

— Sinto muito, Dr. Lindsay, mas não vejo em que o senhor possa ter alguma coisa a ver com isso.

— Tenho muito a ver com isso. Sente-se, Srta. Cummings.Sentei-me.Ele olhou-me atentamente, querendo analisar minha fisionomia, antes de

continuar.52

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— Todo e qualquer oficial, de qualquer navio, é responsável pela obediência aos regulamentos desse navio e às leis do lugar onde ele aporta. Eu tenho dever de entrar em contato direto com o capitão, quando essas leis e regulamentos venham a ser transgredidos. Em vez disso, de forma muito idiota, estou lhe proporcionando o benefício de ter minhas dúvidas.

— Dúvidas! — exclamei raivosa. — O senhor tem dúvidas! Para falar a verdade, há uma explicação muito razoável para o que aconteceu.

— Nesse caso, gostaria de saber qual é.— Não posso.— A senhorita quer dizer que não quer.— Eu quis dizer que não posso.— Por que envolve outras pessoas?— Não! — disse eu, com exagerada veemência.— Por acaso, pediram-lhe para não falar?— Não.— Então é porque, no fundo, não acredita nessas explicações? É isso?— Mas eu acredito! É claro que acredito. Não tenho a menor sombra de

dúvida!— Isso quer dizer que o fato envolve outras pessoas. Quer me dizer

quem?— Não.— Não é tão difícil adivinhar... É o Sr. Paul Vansini, não é?— Não.— Não está falando a verdade. — O Dr. Lindsay saiu detrás da

escrivaninha e plantou-se na minha frente. Deixou passar bastante tempo e depois continuou:

— Srta. Cummings. Eu apreciaria muito se pudesse dar um recado ao seu amigo, Sr. Vansini. Diga-lhe que, ou ele entrega os relógios ao comissariado até a hora de almoço, ou serei obrigado a falar com o capitão Doubleday.

— Ele não vai poder fazer isso — disse eu, em desespero. — Ele não está mais com os relógios. Como pode entregá-los? Já os devolveu. Oh, já falei tanto, que é melhor que saiba de tudo, antes de cometer novos enganos. Foi um simples mal-entendido.

— Sempre há um mal-entendido nesse tipo de coisas.— Pois bem. Os relógios foram restituídos aos seus legítimos donos. E

agora, Dr. Lindsay, o episódio está encerrado.— Está mesmo? Não acredito.Por um tempo que me pareceu infindável, ele ficou olhando para mim.

Fitou-me tão intensamente e tão longamente, que eu pensei que seus traços ficariam impressos na minha mente para todo o sempre.

Pelo resto de minha vida, eu recordaria essas sobrancelhas bem delineadas, esses olhos azulados tão profundos e expressivos, que me olhavam tão intensamente. Se não o conhecesse bem, diria que, naquele momento, aqueles olhos demonstravam uma certa piedade.

Finalmente, com calma e suavidade, ele perguntou:— Por que confia tanto nele? O que fez ele para ter tanto poder e

ascendência sobre você?Imediatamente, aquela antiga dor íntima manifestou-se. Cerrei os

punhos. À luz dos olhos do Dr. Lindsay, tudo o que acontecera entre mim e Paul, ficava ridículo e distorcido, como se eu estivesse olhando naqueles espelhos convexos dos parques de diversões. Queria dizer a esse duro e

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intransigente inglês que estava ali parado diante de mim, quão gentil, bondoso e amoroso era Paul. Queria, a todo o custo, que o Dr. Lindsay acreditasse nele. Assim como eu acreditava. Queria defendê-lo. Queria mostrar ao Dr. Lindsay que eu estava do lado de Paul. Em resumo, acho que queria penitenciar-me de minha deslealdade quando pensei mal dele.

E, instigada por todas essas emoções, veio-me uma inspiração. Ou, pelo menos, o que me pareceu ser uma inspiração. Levantei-me resolutamente.

— Não quero mais discutir sobre o Sr. Paul Vansini. Pois bem. Ele tem, de fato, uma grande ascendência sobre mim. A melhor possível. E eu estou muito feliz com isso. O Sr. Vansini pediu-me em casamento.

Foi somente quando transpus a porta do consultório que me dei conta de duas coisas. Que o Dr. Lindsay não teve nem a delicadeza de dar-me os parabéns. E que, apesar de ter afirmado sentir-me tão feliz, eu estava chorando.

— Estamos entrando agora na perigosa área dos Doldrums. Uma área sinistra e imprevisível, assolada por violentas tempestades e assustadoras calmarias, trovões e raios de sol — anunciou o Sr. Faversham, na hora do almoço.

Fez uma pausa para tirar, com uma colher, o caroço de um abacate que estava saboreando, e todos esperamos, respeitosamente, que ele terminasse sua tarefa gastronômica. Desde que tinha ganho o primeiro prêmio da grande prova de conhecimentos gerais, o Sr. Faversham era considerado o Oráculo de Delfos pelo pessoal da mesa cinqüenta e três. E não só por nós. Mesmo os mais experimentados viajantes, com várias voltas ao mundo registradas em seus passaportes, respeitavam seus conselhos e opiniões. A consideração era tanta, que tinha até sido convidado para participar como juiz do concurso de fantasias. E até o Dr. Lindsay, que eu saiba, por experiência própria, não ser pródigo em efusões de amizade, várias vezes tinha parado à nossa mesa para cumprimentá-lo com amigáveis palmadinhas nas costas.

Por iniciativa própria, o Sr. Faversham tinha tomado conta da conversação na hora das refeições, senão por completo, mas pelo menos em noventa por cento, iniciativa essa que eu agradecera no fundo do coração. Até nosso garçom ficou prestando atenção quando o Sr. Faversham continuou sua explanação.

— A atmosfera começa a ficar oprimente cheia de eletricidade. O céu brilha intensamente, com fulgores metálicos. Nuvens pesadas levantam-se na linha do horizonte. As pessoas começam a sentir-se estranhamente ameaçadas.

Ao redor da mesa, todos cochicharam, concordando. Eu, talvez mais do que todos os outros, concordava plenamente. Balancei a cabeça, para a frente e para trás, por cima de minha taça de sorvete de nozes, como um velho mandarim, quando a sra. Campbell-Brown descreveu como ela se sentia particularmente: um hora, flutuando no ar e outra hora, como se tivesse sido jogada nas profundezas de um abismo. Refleti que ali estava à explicação de tudo o que eu estava sentindo ultimamente. Devia ter pensado nisso, antes de preocupar-me tanto. Era evidente! Os Doldrums! Era por isso que até no interior da Inglaterra usava-se a expressão “estou passando pelos Doldrums”, para descrever aquela sensação que tinha me assaltado nos últimos três dias: uma sensação que a Sra. Campbell-Brown tinha tão bem descrito, ou seja, “estou aqui, mas não estou”.

Sabia exatamente o que ela queria dizer com isso. Eu estivera me 54

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sentindo um palmo acima do piso de deck, um palmo longe dos lábios de Paul, quando me beijava, um palmo afastado do aperto de mão das pessoas.

— Não é de se admirar que, por estas plagas, os velhos marinheiros costumavam ser assombrados por navios fantasmas, ouviam o canto das sereias e viam monstros marinhos surgirem das águas — comentou o Sr. Faversham, enquanto partia um pão ao meio.

— Não era mesmo de se admirar! — disse eu, com exagerado fervor.Mas todos estavam mais interessados em contar ao Sr. Faversham suas

próprias experiências do que em prestar atenção às minhas inoportunas manifestações.

Alguém disse que vira naquela área um peixe com duas caudas. Outro jurava que um golfinho tinha sorrido para ele com expressão humana. Outro mais, observara estranhas bolhas luminosas flutuando, à noite, sobre as águas.

O Sr. Faversham desdobrava-se para dar uma explicação científica para cada um.

Só não podia dar uma explicação científica para o monstro que vivia me assombrando. Não tinha duas caudas, nem ò sorriso humano de um golfinho. Meu monstro particular tinha os dois pés muito bem plantados no chão, e um rosto pouco sorridente, quase desumano. E a única luminosidade que ele possuía estava no aparelho que usava para examinar a garganta de Jonathan Archdale e diagnosticar que aquelas placas vermelhas provinham de uma infecção nas amídalas e não significavam que o garoto estivesse com escarlatina.

Naturalmente, meu monstro era o Dr. Lindsay, em pessoa.Li em algum romance que, quando se está apaixonado, pensa-se ver o

objeto de seu amor por toda a parte. Alguém que está atravessando uma rua, ou subindo num ônibus, ou entrando por um portão. Quando esse alguém mostra o rosto ou chega mais perto, descobre-se que não é o ser amado, e sim, um estranho qualquer, e sente-se uma tremenda desilusão. Tive provas de que este fenômeno funciona nos dois sentidos: tanto para o amor, quanto para o ódio. Só que as sensações são invertidas. Eu continuava a sentir que o Dr. Lindsay era alguém que cruzava o deck, que estava descendo as escadas, que entrava no escritório do comissariado. Mas quando percebia que não era ele, respirava aliviada, sentindo-me quase eufórica.

Logicamente, eu tinha inteligência suficiente para analisar que não era uma simples antipatia que eu sentia pelo Dr. Lindsay. Existiam outros motivos ocultos por trás disso. Creio que lhe tinha também medo. Não o receio de que ele fosse denunciar o acontecimento dos relógios ao capitão. Era estranho, mas quanto a isso, tinha confiança absoluta de que nunca ele tomaria a iniciativa. Sabia-se que, tendo-lhe contado sobre o pedido de casamento de Paul, eu o havia desarmado.

Era como se nós dois tivéssemos entrado na mesma onda de vibração cerebral. Estava segura de que tudo o que lhe dissera naquela tola explosão temperamental, ele guardara para si. Talvez por uma questão de integridade, assim como se estivesse de posse de um segredo profissional de algum paciente.

O que assustava realmente era o Dr. Lindsay conseguir abalar minha fé e confiança em Paul. Até pelo fato de Paul mostrar-se extremamente gentil e compreensivo por eu não ter dado ainda uma resposta definitiva ao seu pedido de casamento, eu continuava a duvidar dele. Era como se ele se mostrasse bondoso e tolerante por razões de sua conveniência pessoal e não porque me

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amasse.— Você ainda não está muito segura de si, não é, querida? — dissera

Paul, há duas noites, exatamente oito horas após minha briga com o Dr. Lindsay.

— Segura de quê? — perguntei, apesar de saber perfeitamente do que se tratava.

— Sobre nós dois. Sobre mim. — Acariciou-me os cabelos e levou-me até o parapeito do deck, apontando para a constelação do Cruzeiro do Sul, que já se fazia visível, por trás do mastro principal.

Quando, mesmo instada por ele, deixei de responder àquela pergunta, Paul começou a sussurrar algumas palavras em italiano, que não compreendi, mas que me pareceram significar algo de muito doce, triste e romântico.

— Não é isso — desculpei-me, desajeitadamente. — É que eu gostaria de ter mais tempo para pensar. Foi tudo tão repentino. Acho que me sinto um pouco desorientada.

— É claro que você vai ter tempo. O tempo que quiser — disse ele, apressadamente. Talvez um pouco apressadamente demais. — Para dizer a verdade, já tenho um plano. Não vamos contar sobre nós a ninguém, hein, querida? Para ninguém mesmo. Nem para tia Maria. Nem para sua grande amiga Bess. Esse será o nosso segredo. Até o fim da viagem. Só então você vai me dar uma resposta que, até lá, tenho certeza, será um sim. Então, participaremos nossa decisão. Faremos uma cerimônia linda de noivado, durante o baile de despedida. Vai ser assim, não vai?

Puxou-me para perto de si e deu-me pequenos e saltitantes beijinhos na boca.

— É o nosso maravilhoso segredo, hein, Cristie? Prometa-me! Você não vai contar a ninguém?

— Não contarei a ninguém. Na verdade, nem teria o que contar. Estava tão confusa, tentando livrar-me daquelas horríveis dúvidas com que o Dr. Lindsay tinha alvoroçado meu coração, que até esqueci que já tinha contado o “segredo” a alguém... Ao próprio Dr. Lindsay! E ali estava nosso simpático Sr. Faversham, explicando todas aquelas sensações anormais, aqueles altos e baixos, aquelas estranhas aparições, da forma mais racional e ponderada possível, ou seja, tipicamente britânica. Tudo se devia ao clima. O clima peculiar dos Doldrums.

— Nenhum de vocês vai se sentir o mesmo até logo mais, à tarde, quando o Pai Netuno subir a bordo, para punir todos os que se atreveram a invadir seus domínios — disse o Sr. Faversham, depositando o guardanapo sobre a mesa, e assim, encerrando aquele assunto.

Netuno, o deus do Mar, era esperado a bordo às catorze horas e, na sua infabilidade, foi pontualíssimo.

Tínhamos acabado de almoçar, quando o barulho das turbinas foi diminuindo aos poucos. O Sr. Faversham olhou através de uma das vigias e anunciou categoricamente:

— O navio parou!No momento seguinte, ouviu-se uma voz vinda do alto-falante do salão

de refeições.— Senhores e senhoras! Aqui fala o oficial de guarda. Acabamos de ser

abordados por uma estranha criatura do mar que nos saudou respeitosamente e nos perguntou qual era nossa missão nessas águas. Respondemos que somos o S.S. Pallas Athene, fazendo um pacífico e agradável cruzeiro marítimo.

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Ele nos deu uma ordem: “Baixar âncoras!” Então, obedecemos.Diana Campbell-Brown estava excitadíssima e não parava quieta na

cadeira.— É Netuno! Ele já chegou! Vamos, minha gente, senão perderemos o

espetáculo de sua subida a bordo!No tombadilho tinha sido armada uma piscina de lona que agora estava

cheia de água verde do mar. À direita, viam-se três tronos, forrados de veludo verde. Por toda a mastreação do Pallas Athene, da proa à popa, tinham pendurado bandeirolas de todas as cores e formatos.

Centenas de cadeiras haviam sido distribuídas pelo tombadilho, para acomodar as testemunhas do julgamento.

Diana Campbell-Brown trocara de roupa e vestira um exíguo biquíni amarelo. Sentara-se na primeira fileira de cadeiras, esperando que seu nome estivesse na lista dos réus.

Bess e eu nos acomodamos em cadeiras laterais, meio escondidas. Não acreditava que, para aquela brincadeira, fossem chamar gente da tripulação, mas, por via das dúvidas, preferi ficar num local discreto, difícil de localizar. Logo o tombadilho ficou repleto de gente, mas não consegui divisar a figura de Paul entre a assistência. Possivelmente, esse não era o tipo de brincadeira que o divertia. Quando comentei isso com ele, dera-me um sorriso tolerante, dizendo:

— As brincadeiras que os ingleses fazem mostram o quanto gostam de viver no mundo do faz-de-conta!

O apito do navio soou estridentemente três vezes sobre nossas cabeças. Durante o silêncio que se seguiu, o oficial de guarda enviou uma mensagem da ponte do comando.

— Acabamos de receber uma mensagem. É prioritária e urgente. Diz assim: “Pelas informações recebidas de nossos espiões, sei que o navio Pallas Athene está entrando nas águas encantadas que antecedem o Equador”.

Mesmo sendo uma pantomima, uma simples fábula, aquelas palavras soaram-me como um aviso. Antes de entrar no reino feliz de Netuno, precisaríamos penetrar no trecho das águas encantadas, enfrentando todos os seus demônios e seres mitológicos.

— “Antes de cruzar a linha de meus domínios secretos, soube, pela mesma fonte de informações, que estão a bordo várias pessoas que nunca conheci antes e que ainda não cruzaram a Linha do Equador, algumas das quais, não são merecedoras desta honra, por serem culpadas de vários crimes. Portanto, pretendo ir a bordo, para fazer justiça com tais indivíduos, levando comigo toda a minha corte e meus assessores diretos.” — A mensagem está assinada: NETUNO.

Quando acabou a leitura, ouviu-se uma gritaria do lado da popa e uma dúzia de membros da tripulação, fantasiados de policiais, com narizes postiços, pintados de vermelho, empunhando forquilhas de borracha, subiram pelo parapeito. Invadiram o tombadilho, fazendo grotescas mímicas, como se estivessem à caça de criminosos.

Em seguida, subiu o amanuense da corte, depois o arauto, vestindo um manto vermelho e um chapéu pontiagudo, de bruxa; o barbeiro imperial, segurando uma enorme navalha de madeira; três homens-rãs, com seus trajes de borracha preta e máscaras de oxigênio; as esposas de Netuno — dois truculentos marinheiros, de perucas loiras, blusas decotadas e calções de seda. Por fim, apareceu a figura pomposa e inconfundível de Netuno, com longas

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barbas, sujas de areia e algas marinhas, uma enorme coroa de papelão na cabeça, de onde pendia uma grossa trança, feita com uma réstia de cebola e o indefectível tridente na mão.

— Levantem-se todos! — ordenou o oficial de guarda.Todos nos levantamos, para que o deus dos mares nos passasse em

revista. Em seguida, recebemos ordens para nos sentarmos novamente.Netuno acomodou-se no trono central, ladeado pelas duas esposas.

Pigarreou e começou a ler um discurso de boas-vindas, com voz exageradamente impostada.

— Você o está reconhecendo? — disse Bess, dando-me uma cotovelada.— Quem?— Netuno.Olhei mais atentamente. Havia algo de familiar naquela cabeça, naquele

queixo e naqueles maxilares proeminentes.— É o chefe! — esclareceu ela. — Não é um estouro? — Seus olhos

brilharam de admiração. — Ele não é um grande ator?O discurso terminou. Em voz tonitruante, Netuno ordenou:— Tragam a primeira vítima!Não sei quem se incumbiu de selecionar as tais vítimas. Pode ter sido até

mera coincidência, mas, para júbilo de Bess, a primeira vítima foi Jonathan Archdale.

Ouviu-se o patinar de pés descalços e o bater de pesadas botas. Apareceu um pequeno vulto, com um maio de malha vermelha, perseguido por três policiais, brandindo suas forquilhas de brinquedo. Foi agarrado, levantado e carregado até o tanque da penitência, enquanto se debatia. Não consegui ouvir de que infração tinha sido acusado, por causa do barulho das risadas e dos aplausos. O barbeiro imperial cobriu o menino de uma espuma multicolorida e preparou a navalha para tosá-lo.

— Essa espuma é feita com clara de ovo batida com açúcar — explicou Bess. — Dissolve logo, quando a pessoa entra na água. Você vai ver!

Jonathan, o Terrível, foi mergulhado três vezes na piscina e depois resgatado pelos homens-rãs, que o trouxeram à tona, enquanto ele se mantinha imperturbável, parecendo até divertir-se muito com o castigo. Saiu do tanque da penitência, sob uma onda de aplausos e os cliques das câmaras fotográficas.

— Você percebe o que me deixa furiosa nesse garoto? — Bess suspirou. — Ele sempre acaba levando a melhor!

Seguiram-se as outras “vítimas” um homem de camisa esporte e bermudas de linho; duas garotas em trajes de banho, e eu comecei a achar que Diana Campbell-Brown não ia ser apanhada e que ficaria muito desapontada se isso acontecesse.

Mas, no momento seguinte, um dos policiais focalizou-a. Ela tentou fugir e esconder-se dentro de um bote salva-vidas. Finalmente, acabou caindo nos braços de um dos policiais mais musculosos e foi carregada através do tombadilho, esperneando e berrando. Levou uma espetada com a forquilha de borracha e parou em frente do amanuense.

— Você é Diana Campbell-Brown? — Sorrindo, contrafeita, ela afirmou que era.

— Você está sendo acusada de ter ido ao baile ontem à noite, em vez de escrever cartões postais para seus parentes e amigos. Considera-se culpada ou inocente?

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— Culpada.— Deplorável! Deplorável! — disse Netuno, cofiando a longa barba. — Ela

precisa ser punida severamente. Será mergulhada, na medida de seu crime. Ordeno que seja tosada e imersa na água quatro vezes!

— Não é o bastante! — gritaram os assessores de Netuno.— Cinco vezes!— É pouco! É pouco!— Seis vezes, na piscina mágica. Barbeiro! Cumpra seu dever! Diana foi

estirada no chão e passaram-lhe espuma colorida pelorosto e pelos cabelos. Depois de ser “barbeada”, foi atirada dentro da

piscina, onde os homens-rãs a jogaram para o ar por seis vezes, deixando-a cair, de um só golpe. Depois a retiraram da água e a colocaram sentada na beira da piscina, onde ficou sorrindo para Brian Pulford, o fotógrafo de bordo, que tirou várias fotos, documentando a cerimônia para a posteridade.

Logo Diana foi deixada em paz e os policiais narigudos levantaram suas forquilhas e foram em busca de uma nova vítima. De nossas má localizadas cadeiras, ouvimos gritos, apupos e protestos.

— Quem será que eles pegaram agora? — Bess ergueu-se na ponta dos pés, protegendo os olhos do sol, com a mão espalmada sobre a testa. — Só espero que não seja o velho coronel Cophorne!

Saindo de uma coxia, ladeado por dois policiais de sorriso arreganhado, apareceu Paul, com a cara mais fechada e sombria que um trovão equatoriano, vestindo um short ainda molhado pelo banho refrescante que tomara na piscina social do navio.

— Isso tudo é muito idiota e infantil! — Ouvimos ele gritar, quando passou perto de nós.

Bess não comentou nada, mas ficou olhando para ele.— É uma simples brincadeira — disse eu —, mas Paul não gosta muito

desse tipo de brincadeiras. Creio que acha ridículo. Muitos ingleses também não gostam. Depende do senso de humor de cada um.

— Justo — resumiu Bess.— Nem sempre achamos engraçados alguns costumes italianos. — Bess

fez um sinal para que eu me calasse e ela pudesse ouvir o resto. Aos trancos e barrancos, tinham conseguido levar Paul até a beira do tanque da penitência. O amanuense estava desenrolando um extenso rolo de papel.

— Pode ler a acusação! — ordenou Netuno.— Sua majestade! Esse senhor é acusado de andar cortejando e

reverenciando, por várias vezes, uma linda jovem de cabelos loiros e olhos azuis, em vez de prestar essas homenagens a quem de direito, ou seja, à sua alteza imperial, Netuno!

— É tão fácil adivinhar quem é ela, que nem vão dar um prêmio para o acertador — disse Bess, dando-me nova cotovelada, acompanhada de uma piscadela.

Os dois truculentos marinheiros, fantasiados de esposa de Netuno, caíram na gargalhada. A Sra. Campbell-Brown, que estava sentada na fila atrás de nós, comentou:

— Esses rapazes não deixam passar nada! — O deus Netuno também se manifestou:

— Um crime muito grave de lesa-majestade. Um caso difícil. Minha sentença é que ele seja barbeado e tosado e que seja também mergulhado no tanque, pelo menos cinco vezes.

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— Não basta!— Seis vezes!— Ainda não basta!A sentença final chegou a oito imersões.Com apreensão crescente, observei Paul ser colocado no escaninho do

barbeiro e ser “ensaboado” no rosto e no peito. Algo me dizia que alguma coisa de desagradável ia acontecer.

No entanto, tudo foi muito simples, sem maiores surpresas.Realmente, nada de extraordinário aconteceu com Paul. Aconteceu foi

comigo. Ele ficou ali, com um olhar ameaçador. Percebi que cochichava algo para o policial que estava ao seu lado, que o olhou com uma expressão de surpresa inocente, como se tivesse ouvido algum disparate incompreensível. Quando o barbeiro pôs as mãos à obra, Brian Pulford tirou a foto usual. E isso foi tudo.

Repentinamente, tive a sensação de que estava vendo Paul pelas lentes impessoais de uma máquina fotográfica.

Meu cérebro, e não meu coração, pareceu deflagrar uma foto instantânea dele, ali, sentado, com uma expressão que eu denominaria de malévola.

A cerimônia de purificação do deus Netuno estava surtindo seus efeitos e eu saí da área das águas encantadas e abri meus olhos para realidade.

Parecia-me estar vendo Paul pela primeira vez na vida.

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Capítulo X

Tudo me levou a crer que também Paul sentiu os efeitos da passagem pela Linha do Equador.

Certamente, alguma coisa aconteceu durante os três dias seguintes, que fez com que ele mudasse sua atitude para comigo. Pelo menos, foi o que pensei, naquela ocasião.

Minha avó costumava dizer que não são os acontecimentos importantes e sim as coisas insignificantes, que podem mudar o curso de uma vida. Pequenas coisas, que as pessoas não chegam nem a levar em consideração. Assim como decidir atravessar um parque, em vez de pegar uma transversal, para encurtar o caminho; ou então, resolver almoçar num restaurante, em vez de comer um cachorro quente na lanchonete.

O que aconteceu entre nós dois, parece que teve por motivo eu ter ficado retida a bordo por causa de deveres profissionais, quando chegamos a Casablanca.

Bess explicou-me que, num cruzeiro marítimo, aquele fenômeno quase sempre acontecia.

Os passageiros têm uma tendência de diminuir gradativamente suas descidas em terra. No primeiro porto do roteiro, pelo menos noventa e nove por cento dos passageiros ficam reunidos no parapeito do deck, ansiosos por visitarem um lugar novo. Na segunda parada, só oitenta por cento dos turistas se dispõem a baixar em terra. E na terceira, menos de setenta por cento estão interessados em deixar o navio. Naturalmente, isso é motivado, em parte, porque a sensação de novidade vai decrescendo de intensidade, e em parte, porque o navio começa a exercer um mágico efeito sobre as pessoas. Desembarcar significa abandonar o lar.

Portanto, quando chegamos a Casablanca, uns quarenta turistas, a maior parte deles pessoas de idade, avisaram que iriam permanecer a bordo. Fui então incumbida de inventar algumas diversões extras para mantê-los entretidos e satisfeitos.

— Está escrito no boletim de bordo — disse Bess — e está assinado pelo chefe.

Não fiz qualquer comentário desfavorável aquelas instruções, o que deixou Bess muito surpreendida e feliz. Mas Paul fez.

— Você tem que ir falar diretamente com esse tal que vocês chamam de chefe e dizer a ele que ponham alguém para tomar conta dessa turma de decrépitos. Sua excelente amiga Bess, por exemplo, poderia muito bem substituí-la. Você dirá que vai desembarcar comigo e que não vai trabalhar na segunda-feira.

Fiquei surpreendida por ele estar tão zangado. Tentei amenizar o clima de tensão, dizendo jocosamente:

— Você superestima minha influência e meu prestígio, Paul.— Acha mesmo? — Ele me olhou longamente, como que me avaliando e

lembro-me de ter pensado naquela hora que aquele olhar era estranhamente frio e analista.

— Acho que, se eu fizesse isso, iria ser posta a ferros, no porão do navio.Quando ele franziu o cenho, como alguém que não tivesse entendido,

expliquei:— É um velho e eficiente costume britânico, quando acontecem motins a

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bordo.— Você está querendo brincar comigo.— Não exatamente. A bordo, a disciplina é levada muito a sério. É muito

severa. Não é a mesma que num emprego comum.— Então, você vai me trocar pelos seus deveres?— Não é que eu queira. Simplesmente, não posso fazer o que você está

me pedindo.— Olhe, Cristie. Eu estava particularmente interessado em mostrar-lhe

Casablanca.Não respondi. Realmente, eu não me sentia muito propensa a visitar

Casablanca na companhia de Paul. As coisas tinham mudado muito nesses últimos três dias.

Era evidente, de qualquer forma, que qualquer que fosse minha disposição, Paul não só queria que eu o acompanhasse, ele insistiu para que eu fosse com ele.

— Tinha feito tantos planos — disse ele, e agora eu havia posto tudo a perder. Ele pretendia dar-me um presente muito especial, uma bonita jóia.

— Sinto muito, Paul, mas é que...— É claro que você vem. Não seja tão crente, Cristie! Quero preveni-la de

uma coisa. Se não me acompanhar, vou ficar muito aborrecido com você.Suas faces estavam ficando vermelhas, e seus lábios, apertados.De repente, tornou-se óbvio que ele queria minha companhia por alguma

razão de sua própria conveniência. Qual seria essa razão, eu francamente não sabia, mas tinha certeza de que havia algo misterioso por baixo daquela insistência toda.

Fiquei só ouvindo. Quando ele se capacitou de que eu estava irredutível e que não iria, de forma alguma, acompanhá-lo para visitar Casablanca, simplesmente girou sobre os calcanhares e deixou-me ali, como uma pateta.

Eu não havia estado muito com Paul no dia-a-dia do cruzeiro. Quando foi transposta novamente a Linha do Equador, e o navio tomou o rumo norte, o ritmo da programação social aumentou consideravelmente, e eu entrei numa roda-viva.

Nunca Paul tinha se oposto tão frontalmente contra mim. Lembro-me de ter tido a sensação de que cada um de nós estava caminhando em direções opostas, distanciando-nos cada vez mais. Como se eu tivesse minhas justas razões e ele, suas próprias, talvez não tão justas, mas inabaláveis.

Talvez essa conclusão fosse produto de minha imaginação. Mas não creio. Como estava tão atarefada com meus afazeres, não tive tempo para analisar meus sentimentos em relação a Paul, nem os dele em relação a mim.

Nessa etapa da viagem, os passageiros já se conheciam uns aos outros. Estavam bem entrosados e qualquer desculpa era motivo para festejos e comemorações. Aniversários de nascimento e de casamento, o recebimento do prêmio da loteria de bordo, tudo era razão para confraternizações. Até um casal de meia-idade, que recebera um telegrama anunciando que já eram avós, quis comemorar o acontecimento. Gente que pertencia a algum grupo religioso, ou social, ou comercial, descobria correligionários viajando naquele cruzeiro e ficavam amigos.

Naturalmente, eu era solicitada para organizar todos esses festejos e, até num navio do porte do Pallas Athene, tornava-se difícil encontrar salas e salões disponíveis para todas essas reuniões particulares que aconteciam ao mesmo tempo. Freqüentemente, os passageiros me convidavam, ou ao chefe, ou a

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Bess, para essas festinhas. E, com isso, tinha pouco tempo para analisar a situação racionalmente.

Mas essa corre-corre não impedia que eu sentisse emoções. E eu ficava preocupada com aquelas emoções tão contraditórias e inexplicáveis, que de vez em quando subiam à tona de minha consciência. Às vezes, sentia-me tão desamparada e instável como uma dessas leves jangadas da Ilha da Madeira, tentando navegar pelos mares tempestuosos do oceano Atlântico. Meu amor tinha entrado numa verdadeira tormenta. Não havia mais dúvida sobre isso. Era um verdadeiro furacão que caía sobre mim, em círculos concêntricos. E os meus sentimentos transformavam-se num barco, sem bússola e sem rumo.

Há um milhão de anos, muito antes de ter pisado a bordo do Pallas Athene, eu imaginava que o amor devia ser uma experiência maravilhosa, com muitas flores, pequenas delicadezas e beijos ao luar. Assim como tinha sido com Paul, logo no início de nosso relacionamento. Eu não tinha a mínima idéia dos complexos meandros do amor.

Lá bem no fundo de minha mente, e na parte mais escondida de todo meu ser, eu procurava um sinal salvador, assim como o marinheiro procura, em meio à tempestade, a luz guia de um farol. Mas, assim como a maioria dos sinais e dos faróis, eles só aparecem quando menos se espera, e só depois de algum tempo em que você se debate na incerteza, é que mostram sua luz verdadeira e salvadora.

Em meio a toda aquela atividade profissional, eu pudera considerar quão contraditório era o fato de alguém apresentar todos os sintomas de quem está amando, e, ao mesmo tempo, em algumas ocasiões, não gostar da pessoa a quem se pensa amar.

Tentei transmitir minhas dúvidas a Bess, quando conseguimos ficar alguns minutos juntas, no dia seguinte ao desentendimento que eu tivera com Paul. Faltavam algumas horas para o início da festa do concurso de fantasias originais. Estávamos ambas sentadas, de pernas cruzadas, no salão de baile vazio, preparando enfeites de papel crepom colorido. Tínhamos descalçado os sapatos, pois estávamos com os pés em petição de miséria. Já tínhamos ido a três festas de aniversário, eu havia dançado na matinê da discoteca, liderado um teste de Cooper com passageiros de meia-idade e servido de juiz para um concurso de calouros.

— Diga-me uma coisa — dei à voz uma entonação casual — você gosta do chefe?

— Quando as pessoas fazem perguntas cretinas, recebem respostas cretinas — respondeu ela, com o mesmo tom que usava para falar com Jonathan Archdale.

— Mas você gosta?— Todos gostam dele. Por que, logo eu, deveria ser uma exceção?— Oh, não sei bem. É que eu acho que nem sempre a gente gosta da

pessoa por quem se está apaixonada. Você não concorda? Gostar e amar são duas coisas diferentes, não são? Ou seja, você pode estar amando alguém e, ao mesmo tempo, não gostar de certas coisas que esse alguém faz.

— Não estou bem certa sobre isso. — Fez uma pausa. — Eu não poderia saber. — Deu-me uma olhada penetrante. — Veja bem, tudo depende da pessoa por quem você está apaixonada.

Seu parecer se resumiu nisso. Mas Bess era especialista em enviar mensagens pela entonação de voz. Acredito que era assim pela prática em lidar com crianças. Ela consegue transmitir o texto completo de uma

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enciclopédia, só pelo tom com que diz uma simples frase.E aquele comentário tão sem importância adquiriu, para mim, uma

enorme importância. Ficou encravado na minha mente, enquanto eu me dedicava a executar coisas aparentemente importantes, mas que, no fundo, não tinham importância alguma. Assim como dar os últimos retoques na decoração do salão de baile... Certificar-me de que havia suficientes brindes, enfeites e máscaras para serem distribuídas entre os presentes... E combinar com o Sr. Popplewell quais seriam as músicas que acompanhariam o desfile de fantasias.

Mas, como sempre, aquela impressão não ficou encravada na minha mente por muito tempo. Só que, a uma daquelas luzinhas que de vez em quando se acendiam, iluminando minhas confusas emoções, juntou-se outra luz mais forte. Não uma luz de advertência tão forte, tão vermelha e tão segura quanto a de um farol.

Acendeu-se logo depois do jantar.A refeição tinha sido servida mais cedo do que o costume, por causa do

baile à fantasia. Jantei às carreiras, praticamente engolindo a comida inteira, pois precisava falar com o chefe da cozinha para combinar qual seria o bufê frio a ser servido à meia-noite. Alguns passageiros já tinham vestido suas fantasias. O Sr. Faversham colocara uma enorme máscara branca que o fazia parecer o carrasco da corte.

— Queria usá-la de qualquer jeito — ele explicou. — Trouxe-a comigo especialmente para o baile à fantasia. Mas como ambos vamos ser jurados no concurso, Srta. Cummings, precisamos começar a nos divertir desde já.

Muitas outras pessoas tinham também resolvido começar a se divertir desde já. Depois de ter ido até a cozinha resolver o assunto do bufê, comecei a subir por uma escadinha de ferro, em caracol, que era usada pelo pessoal de bordo, quando vi um casal no piso logo acima de minha cabeça. Não tinha a mínima intenção de espioná-los e de ficar ali, ouvindo a conversa às escondidas. Ao mesmo tempo, se continuasse a subir pela escadinha, seria obrigada a surpreendê-los e, talvez, deixá-los embaraçados.

Reconheci logo a moça. Era uma de nossas comissárias juniores, uma linda jovem de cabelos ruivos, vestindo o uniforme de seda branca, com um cinto apertado, que lhe evidenciava ainda mais a delgada cintura. O homem não vestia uma fantasia completa. Usava apenas uma máscara negra e um chapéu de papelão.

Já estava começando a pisar o primeiro degrau, de volta à copa, para depois subir pela outra escada, usada normalmente pelos passageiros, quando vi, de relance, que ambos se abraçavam e se beijavam. Lembro-me que sorri, compreensivamente, achando que estava presenciando uma cena bonita e desejando sinceramente que aquele amor que pareciam ter um pelo outro, não provocasse nela aquela tempestade de emoções contraditórias que eu experimentava.

Foi nesse momento que o homem falou. Com a voz amplificada, como o som do badalo de um sino, repercutindo no ferro da escada, pude ouvir.

— Mas, querida... É claro que você vai comigo visitar Casablanca. Não quis ouvir mais. Nem me importei se eles ouviram ou não o barulho de meus saltos altos, pisando no metal, enquanto descia precipitadamente a escada. Corri de volta para a copa. Também não me, importei quando todos aqueles cozinheiros de altos gorros brancos, que estavam ocupados em rechear leitões e temperar perus, pararam o trabalho para olhar-me, curiosos. Disparei pela

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escada dos passageiros e não tomei fôlego enquanto não cheguei ao salão de baile.

Lembro-me de ter ficado ali parada, no meio do salão vazio, sob as lanternas chinesas que enfeitavam o teto. Lembro-me de ter cerrado os punhos e que meus lábios começaram a tremer.

Até aquele momento, antes mesmo que o pior acontecesse, eu sabia que o pior mesmo não era descobrir que Paul era um reles conquistador, ou que ele não estivesse apaixonado por mim ou por quem quer que seja. O pior de tudo é que eu não estava ligando para isso! O baile à fantasia começou às nove horas da noite. Um pouco tarde, para dar tempo de levar as crianças para a cama e para permitir aos adultos dar uma revisada em suas aparências, que na hora do almoço tinham sido consideradas um tanto ridículas.

Isso significava que Bess estaria presente, incumbida da árdua tarefa de pajear os concorrentes, no desfile de fantasias.

O Sr. Faversham era o presidente do corpo de jurados, tendo direito ao voto de Minerva, caso nós não chegássemos a uma conclusão satisfatória. Os outros jurados eram o chefe e lady Partington, uma velha dama que tinha sido, em tempos idos, a vedete do jet-set e, conforme tinham dito ao chefe, a líder da alta roda nos tempos da mocidade da rainha Vitória.

De acordo com as instruções, nós, os jurados, deveríamos receber, em nossa frisa especial, informações sobre a ordem de entrada, o número de cada um dos concorrentes e outros detalhes que nos seriam fornecidos por uma comissária júnior.

Pude observar que havia uma verdadeira aglomeração para participar do concurso de fantasias. É um fato conhecido que o sucesso de um cruzeiro marítimo dependa do número de inscrições para o concurso. Por um breve instante, cheguei a esquecer meus problemas, tão empolgada estava com aquele desfile.

Começou tarde. Reclamações, gritos e piadas eram ouvidas no local onde se juntavam os concorrentes, e onde Bess estava lutando para manter a ordem.

— Honestamente, isso é que é uma parada dura! Podem me dar quantas crianças quiserem de qualquer idade, que eu até me sinto à vontade. Posso ficar tão à vontade a ponto de dar minha opinião aos pais sobre seus filhos. Posso dizer ao Sr. Archdale que o filho dele é uma peste, quando tiver oportunidade. Mas isto aqui!...

O que Bess não estava gostando, na verdade, é que eu estava sentada ao lado do chefe, imprensada entre ele e lady Partington.

Cada concorrente era anunciado pelo número de inscrição. Isso dava à assistência alguns segundos para adivinhar quem seria o mascarado e qual seria a fantasia.

Começamos por um surpreendente desfile de piratas, arlequins e colombinas, com seus trajes tradicionais. — Número doze!

Uma gargalhada acompanhou a chegada do concorrente. Sob as palmeiras artificiais e a luz colorida das lanternas chinesas, ouvi a platéia fazer conjecturas sobre aquela estranha fantasia.

Seria o monstro de Lock Ness? Uma serpente marinha? O dragão de São Jorge? Mas onde estava São Jorge? Se fosse cortado ao meio, será que as duas partes sobreviveriam?

O que apareceu foi uma enorme centopéia de, aproximadamente, quatro metros e meio de comprimento, feita, seguramente, com as colchas de seda

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das camas do Pallas Athene, costuradas umas às outras, debaixo das quais umas nove pessoas se movimentavam. Quem puxava a fila, tinha colocado na testa uma lanterna de papel, com uma lâmpada vermelha, à guisa de cabeça. O “monstro” ondulante ocupou quase toda a pista de dança. — É um bicho-da-seda!

O bicho-da-seda desfilou, como um cego, em meio aos aplausos gerais e nós, os jurados, confabulamos uns com os outros.

Sucederam-se feiticeiras, fadas, e os inevitáveis homens de peruca, fantasiados de mulher ou de bebês. Uma moça coberta por metros e metros de gaze preta, com uma máscara da mesma cor, intitulou sua criação de “Magia Negra”.

— Número vinte e dois! “Sonho Doméstico”. Apareceu o Sr. Campbell-Brown, com uma touca branca na cabeça, de saia e um avental imundo, carregando vassoura, espanador, esfregão e um balde de água. A platéia quase veio abaixo de tantos aplausos e assobios.

Seguiu-se um autêntico e verossímil “Corcunda de Notre Dame”, que interpretou seu papel à perfeição.

— Número quarenta e um! “Supermercado de Casablanca.”Era um xeique acompanhado de quatro graciosas adolescentes, presas

umas às outras por correntes e vestidas de odaliscas. Entre elas, estava Diana Campbell-Brown.

A próxima era a “Champanhe Rose”, uma verdadeira cascata de confetes de cetim cor-de-rosa, que foi seguida por alguém que se meteu entre dois filmes negativos de Raios X e deu à fantasia o nome tétrico de “Os Mortos Não Contam Histórias”.

Apesar de estar olhando, de tempos em tempos, para aquela multidão de espectadores, não consegui ver nenhuma vez a comissária ruiva, nem Paul, com ou sem fantasia.

— E agora, o último concorrente da noite! Número noventa e nove! “Pallas Athene”.

Apareceu a deusa grega da Sabedoria — Pallas — uma loira escultural, de túnica transparente, que foi aclamada com muitas palmas, atribuídas, em parte, a uma homenagem que os presentes faziam ao navio.

A orquestra iniciou o baile e os casais começaram a dançar, enquanto nós, os quatro jurados davam tratos à bola para conferir uma premiação justa.

Estávamos discutindo se a “Champanhe Rose” mereceria ou não um prêmio, quando notei no salão alguém com uma fantasia lindíssima, que não participara do desfile. Naturalmente, pertencendo à tripulação, a dona da fantasia não pudera inscrever-se. Mas, de qualquer forma, era muito bonita e tenho certeza de que todos os homens presentes lhe teriam conferido um prêmio. Estava vestida com uma saia de bailarina, que deixava à mostra longas pernas perfeitas e um corpete tão justo que lhe fazia saltar os seios. Calçava botinhas prateadas de saltos altos e em seus ombros nus estavam presas duas asas diáfanas, também prateadas. Na cabeça, um casquete brilhante, de onde saía uma haste encimada por uma estrela iluminada por uma pequena lâmpada. Um cartão pregado na saia anunciava que ela era 86 a “Fada Estrela do Topo da Árvore de Natal”. De forma metafórica, estava encostada a um dos pilares cobertos de veludo verde, imitando uma árvore, e balançava sua varinha de condão em direção ao Dr. Lindsay.

— Olhe que linda fantasia! Muito mais bonita que a “Champanhe Rose”! — lady Partington também tinha localizado Trudy Regan. Levou aos olhos seu

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lorgnon, cravejado de pedras preciosas, e focalizou a enfermeira-chefe, como se também ela tivesse sido atingida pelo encantamento da varinha de condão.

— E que linda moça! Dê uma olhada, senhor comissário.Obedientemente, todos nos voltamos para admirar Trudy Regan. O Sr.

Faversham notou a estrela luminosa. Não era mesmo original? Ele apostou que ninguém iria adivinhar do que era feita. Era um aparelho cirúrgico para examinar a garganta dos pacientes. Era usado no hospital de bordo, não era? Pois da próxima vez que encontrasse o doutor, iria passar-lhe uma bronca. E o que estava fazendo a enfermeira-chefe vestida daquele jeito, se todos sabíamos que isso não era permitido à tripulação? O que tinha a dizer o senhor chefe dos comissário sobre essa indisciplina?

Apesar do chefe conhecer bem a disciplina de bordo, manteve-se mudo. Foi lady Partington quem nos esclareceu:

— Ora essa, Sr. Faversham! — disse ela, contemporizadora, dando uma pancadinha com o lorgnon no seu braço. — Recuso-me a acreditar que existe alguma coisa no mundo que o senhor não saiba! É voz corrente entre os passageiros... Desculpe-me a gíria... mas o senhor está por fora, desta vez. Não sabe que esta bela jovem está nos deixando? Ela acaba de anunciar seu noivado. Haverá um casamento a bordo, antes do final da viagem. Não estou certa, senhor comissário?

Quando o chefe confirmou, ela bateu palmas de pura alegria.— Estou tão contente! Um romance pode ser a atração máxima de um

cruzeiro marítimo! — Levantou o lorgtwry. — Não é que eles formam um casal encantador?

Subitamente, aquela luzinha que Bess tinha acendido ontem na minha cabeça começou a ficar cada vez maior e mais intensa. Tão ofuscante que estava quase me cegando e eu tive que fechar os olhos com força, para não deixar que as lágrimas transbordassem.

Quase não ouvi mais nada do que foi dito depois. Não consegui fazer comentários sobre as fantasias. Não me importei mais se a “Champanhe Rose” ia ou não ganhar um prêmio. Não pude nem ler as notas que eu havia escrito num papel. Para ser franca, nem sei quem ganhou o primeiro prêmio do concurso, e não estava me importando com isso nem um pouco.

A única coisa que me importava é que agora eu sabia por quem estava apaixonada!

Sabia também que tinha feito esta descoberta tarde demais. . .

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Capítulo XI

Creio que Bess atribuiu meu silêncio ao fato de eu estar aborrecida por não poder visitar Casablanca.

— Ânimo, menina! — disse ela. — Posso comprar para você qualquer coisa que você quiser. Se você fosse, ia ser uma canseira. Além do mais, Casablanca é uma cidade perigosa! Só Deus sabe o que pode acontecer a uma moça numa cidade dessas!

Disse-lhe que talvez o chefe, na sua imensa sabedoria, tinha me obrigado a ficar a bordo para poupar-me dissabores. E que, de qualquer forma, não estava me importando muito, porque, logo mais, iria ter um bom descanso para desfrutar.

— Não vá me dizer que está doente? — Bess colocou a mão sobre minha testa. — Jonathan Archdale, outro dia, sentiu uma pontada no estômago e pensou que tinha sido envenenado.

Subi ao deck A e fiquei olhando o desembarque dos passageiros, com suas roupas de algodão, chapéus de palha, shorts, bermudas e minissaias.

Casablanca não era bem o que eu esperara.As docas eram cheias de armazéns e, por trás deles, avistavam-se

arranha-céus brancos e amarelados. Parecia a miniatura de Nova York, exceção feita aos árabes de vermelho na cabeça, que esperavam fregueses ao lado de seus táxis.

Viam-se caminhões e carroças carregados de provisões para o Pallas Athene e as inevitáveis barracas de souvenirs. Embaixo do porto, dois policiais franceses recolhiam os cartões de desembarque.

Apesar de terem preferido ficar a bordo, meus tutelados anciões deram uma descidinha no porto para tomar a fresca. Eu me senti tão isolada como quando tive que ficar de quarentena na escola, durante as férias de verão, porque estava com sarampo.

Acenei para Bess antes que ela desaparecesse por trás de uma fila de táxis que esperava ao longo do cais pelos passageiros que pretendiam ir até o centro. Vi o ônibus da excursão que levaria os turistas até Rabat ligar o motor e partir, levantando uma nuvem de poeira. Então, vi Paul.

Estava sozinho. Pelo visto, não conseguira convencer a comissária ruiva a ir com ele. Vestia-se elegantemente, com um terno de linho branco, chapéu panamá e óculos escuros. Com seu charme habitual, tinha puxado conversa com a família Campbell-Brown. Sem notar que eu estava debruçada no parapeito do deck, ajudou Diana a carregar uma enorme sacola onde ela costumava levar maios, toalhas, bronzeadores e máscara de mergulhador. Bem-humorado, rindo e brincando, deu à Diana um pacote embrulhado com papel pardo para carregar. Pude imaginar que naquele momento ele estaria dizendo a ela aquelas mesmas palavras bajuladoras que me dissera em outra ocasião: “Nunca permitiria que uma moça como você carregasse muito peso”.

Somente depois de passadas algumas horas é que tive um “estalo”: aquele parecia ser o mesmo pacote. O pacote que ele tinha pedido para que eu levasse a bordo, quando nos conhecemos! Tinha a mesma aparência e o mesmo tamanho! Mesmo assim, não dei importância àquela constatação. Tinha outras coisas em que pensar. Estava na hora do crepúsculo.

Nessa hora, um navio quase deserto dá uma sensação incrível de perda e desamparo. As cabines e corredores, que deveriam estar cheios de gente,

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produziam o eco dos passos das pessoas que andavam por ali, eventualmente. Os decks estavam ainda mornos do calor do dia pareciam transmitir um presságio de tempestade iminente.

Em compensação, um navio vazio é um ótimo lugar para a meditação. A mente e o coração ficam tão claros e desimpedidos como o próprio ambiente que nos cerca, e pode-se ver o fundo do próprio ser tão claramente quanto se vê o fundo da piscina vazia do deck A. Por uma razão que desconheço, sempre esvaziam a piscina quando o navio está atracado em algum porto. Fui andando para lá, a esmo. A “pesca milagrosa” já terminara. Os brindes já haviam sido distribuídos. Depois disso, já havia jogado uma partida de “rouba-montinho” com o coronel Cophorne e ajudado uma velha dama que fazia crochê a desembaraçar o novelo de lã. Até que não chegasse a hora de participar de uma festinha informal programada para depois do jantar, não tinha nada a fazer, senão pensar na vida. E a beirada de uma piscina vazia é um bom lugar para isso.

Andei para baixo e para cima, passando pelas mesas esmaltadas de branco, com seus amplos guarda-sóis, e pelo tablado onde os banhistas iam secar ao sol. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos da saia de linho e o queixo enfiado no pescoço. Tirei as sandálias e continuei andando descalça, como uma criança pensativa.

De vez em quando, ouvia alguns passos que pareciam ser eco dos meus próprios pés pisando no chão de madeira. Estava tão desligada e absorta em meus pensamentos, que nem percebi que alguém se aproximava. Foi só quando levantei os, olhos que vi as calças brancas de verão, a camisa branca de mangas curtas, as divisas vermelhas e douradas, e por fim, o rosto do Dr. Lindsay...

Ele era a personificação de meus pensamentos secretos e sua aparição me pegou de surpresa. Lembro-me de ter ficado completamente atrapalhada. Lembro-me também de ter pensado que ele era a última pessoa no mundo que eu desejava ver naquele momento.

Não sei se este pensamento ou alguma outra coisa estavam estampados no meu rosto. Só sei que, quando olhou para mim, sua fisionomia alterou-se bruscamente. Tentei assumir uma atitude impessoal.

— Ora, Dr. Lindsay — falei vagamente —, não esperava vê-lo por aqui. Pensei que tivesse ido para Casablanca comprar... — Quase cheguei a dizer “jóias”, assaltada pela lembrança daquele dia em Tenerife, quando ele comprou o colar para Trudy Regan. — Quero dizer, fazer compras na cidade — corrigi em tempo.

— Não desta vez. Já encerrei minhas compras.— Também está de serviço?— Estou e não estou. Mas não vá querer jogar-se na piscina vazia para

me arrumar serviço!Deu-me um sorrisinho meio reprovador, meio brincalhão. Senti que, de

uma forma inexorável, ele estava querendo continuar nossa última conversa, fazendo-me compreender que eu não tinha escapatória, mas prometendo-me que levaria adiante a coisa da maneira menos dolorosa possível. Só eu sabia que qualquer coisa que se relacionasse com ele nunca poderia ser indolor.

— Não vou fazer isso, pode ficar tranqüilo. — Tentei sorrir, como se estivéssemos apenas fazendo uma brincadeira. — Já o ocupei o bastante para o resto da viagem.

— Ainda bem. — Levantou uma sobrancelha. — Mas, assim mesmo, 69

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ainda acho que você está com uma aparência abatida, de quem não está muito bem.

— Abatida, eu?— Para uma garota que disse ter ficado noiva recentemente, você está

muito abatida.Essas palavras me deixaram muda. Respirei fundo. Por um momento, fui

tentada a contar-lhe tudo o que acontecera com Paul. Talvez para poder aconchegar-me naquele peito viril e sentir seu abraço confortador.

Mas não pude. Era a última coisa que eu faria. Ele estava noivo de outra pessoa. E as confidencias são como uma correnteza. Se a gente se deixa levar por elas, acabam se transformando numa torrente perigosa que carrega junto consigo outras coisas inconfessáveis. Se eu contasse aquilo, acabaria contando todo o restante. Portanto, sacudi os ombros e disse, indiferente:

— Pois não me sinto abatida. Por que deveria sentir-me?— Não sei. — Segurou-me pelo braço para ajudar-me a passar sobre uma

prancha escorregadia e, depois que a transpusemos, não retirou a mão.Tinha a consciência vivida de seu toque, como se aquela mão tivesse

acabado de ser forjada num ferro em brasa.— Mas posso adivinhar. Não seria melhor você mesma me contar?— Temo que não, porque não há nada para contar.— Tem certeza?Ele me observou cuidadosamente, dando-me um tempo para pensar.

Seus olhos eram sagazes, avaliadores e descrentes.— Plena certeza.— Não está preocupada com alguma coisa?— Não.— Será que pode entender que está arrumando uma porção de

aborrecimentos e desgostos? — ele falava devagar, sem pressa, muito compenetrado, como se tivesse disponível todo o tempo do mundo para falar, e sua interlocutora, todo o tempo do mundo para ouvir. — Pode entender que, apesar de ser muito jovem, e por isso não poder possuir conhecimento da vida, você deveria simplesmente...

Mas eu interrompi.— Receio não saber do que o senhor está falando. Acho que me

confundiu com outra pessoa.Tentei encará-lo, olhando-o diretamente dentro dos olhos, mas foi muito

difícil, porque encontrei neles uma estranha expressão que não poderia, de forma alguma, estar ali. Para neutralizá-la e para fazer com que meu raciocínio rejeitasse o que meu coração ainda esperava, comecei a pensar em Trudy Regan e sobre o noivado dos dois. E as palavras que eu disse, a seguir, eram, num certo sentido, verdadeiras. Deus me perdoe, mas sei que as usei com intenção de enganá-lo.

— Se realmente quer saber, Dr. Lindsay, não creio que poderei um dia ser mais feliz do que estou sendo neste momento.

Sob aquela penumbra mortiça do ocaso, o rosto do Dr. Lindsay pareceu-me estranhamente tenso.

Lembro-me de que ele segurou-me delicadamente pelos ombros e obrigou-me a abaixar até que me sentasse na pequena amurada que cercava a borda da piscina. Acomodou-se perto de mim.

Sobre nossas cabeças, junto à majestosa chaminé do Pallas Athene, tremulava a bandeira vermelha e branca que era a insígnia do navio. As luzes

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vindas de pequenos barcos aportados, refletiam-se nas manchas de óleo que boiavam sobre a água.

— Você está querendo dizer, penso eu, que, no fim, tudo vai dar certo porque você imagina que está amando — disse ele friamente.

Meu mecanismo de autodefesa lançou dentro de mim um jato de rancor. Mas era o mesmo que tentar manter uma chama acesa sobre um solo demasiado úmido e refratário.

— Não, não é verdade. Não estou só imaginando que estou apaixonada. Estou amando de fato. Sei disso muito bem.

Aquela situação, absurdamente irônica, de estar assegurando justo a ele, que eu estava apaixonada, foi demais para mim. Minha voz entrecortou-se, meus lábios começaram a tremer, e eu cobri o rosto com as mãos para que ele não visse minhas lágrimas e eu não visse a expressão de seu rosto.

Ele afastou-me as mãos. Com muito cuidado, mas firmemente, com aquela mesma preocupação que tinha de evitar a dor, quando fazia um curativo, baixou minhas mãos e reteve-as nas suas. Depois pegou um lenço e enxugou minhas lágrimas.

— Agora ouça Cristie. Você é jovem e, quando se é jovem...— O senhor já disse isso antes — interrompi, com um soluço na garganta.— Numa hora, pode sentir-se no topo do mundo e, noutra hora, quando

acontece alguma coisa de errado, pode sentir-se no fundo de um poço.— Não sei por que — disse eu, olhando para o chão — o senhor supõe

que alguma coisa de errado está acontecendo.— Eu não suponho, Cristie. — Pude ouvir que o tom de sua voz se

alterara, como se ele estivesse sorrindo, enquanto falava. — Assim como você, eu também sei que existe. E quero que me faça uma promessa. Quando tiver certeza de que há alguma coisa de errado e precisar de ajuda, quero que me procure.

— Por quê? — perguntei, levantando o rosto do chão e olhando para ele, surpreendida.

Naquele momento, não me importei que meus olhos estivessem vermelhos de chorar, que minhas faces estivessem molhadas pelas lágrimas e que meu cabelo estivesse despenteado. Nada disso importou-me. Quando vi seu rosto, uma esperança louca e sem lógica explodiu como um rojão na noite escura e, tal como um rojão, durou pouco, deixando-me ainda mais abatida e desolada.

— Você não sabe?Minha avó dizia que, em toda a tristeza, em toda a dor, em toda a

desgraça, existe uma gota extra de amargura. Aquela era minha gota extra. Era só tomar essa gota a mais e o pior teria passado. Era preciso encarar aquela dura realidade. Ele amava outra pessoa. E isso deveria ser dito.

— Porque — falei num sussurro — o senhor também está amando e sabe o que quer dizer estar apaixonado.

Nem olhei para ele. Virei o rosto e fiquei vendo um carro distante que percorria a avenida costeira. Vi os faróis piscarem quando passou por baixo de um viaduto. Vi quando se afastou, diminuindo de tamanho, até desaparecer, ao longe.

Quando o Dr. Lindsay falou, sua voz era terna e amável, com uma pitada de divertida admiração. Como se ele tivesse ficado surpreendido pela rara inteligência e percepção de uma criança precoce.

— É mais ou menos isso. Como pôde adivinhar Cristie?71

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— Eu não adivinhei, contaram-me. Todos sabem disso. Está na boca do mundo.

Repentinamente, percebi que sua mão ainda segurava a minha e que, pelo tato, ele poderia sentir minha tremedeira traiçoeira. Ele estava sorrindo e olhando para mim tão amorosamente como se eu fosse a própria Trudy Regan.

Tive um estranho e ilógico desapontamento ao me lembrar de Trudy. Meu desgosto foi substituído por um sentimento de orgulho. Todas essas sensações combinadas produziram em mim um verdadeiro turbilhão de antagonismo contra o Dr. Lindsay e a força desse turbilhão surpreendeu-me e amedrontou-me. Arranquei minhas mãos das suas e levantei-me impetuosamente.

— Sinto muito! — falei ofegante, pois minha revolta tinha a fúria de uma ventania que me oprimia os pulmões. — Mas o que eu possa sentir ou pensar não é da sua conta. Como também não é da minha conta o que o senhor possa sentir ou pensar. Não se esqueça nunca disso! — Bati com o pé no chão. — E principalmente sobre esse assunto tão particular e delicado... — As palavras me faltaram. — Sobre esse assunto tão particular, repito, o senhor não tem o direito de falar-me, principalmente porque... — Titubeei, sentindo-me a mais desgraçada das mulheres. — Porque, no final das contas, existe um noivado no meio disso tudo!

Estava tão ferida, que me pareceu ter partido ao meio. Uma de minhas partes quebradas observou que o rosto do Dr. Lindsay ficou branco, tenso e sombrio. Mas minha outra metade sentiu-se triunfante, como se a sua dor pudesse aliviar a minha.

— E mesmo que tenha que me dirigir a palavra durante o restante da viagem, nunca, mas nunca mesmo, torne a falar disso comigo — terminei, triunfalmente.

Depois desse episódio, eu havia aprendido tudo o que se poderia; aprender sobre a falsidade masculina. Mas eu só tinha arranhado a superfície. Bem no fundo, todos os homens são iguais. A única diferença é o grau de cinismo de cada um.

Tive uma estranha sensação dolorosa quando notei a ausência do Dr. Lindsay na festinha dos idosos que preferiram ficar a bordo. Ele só apareceu para o jantar e não pude perceber se ainda estava abalado. Só pude constatar que ainda estava muito pálido.

Na hora do cafezinho, os excursionistas começaram a subir a bordo. Fiquei observando do deck a chegada dos ônibus e dos táxis, que despejavam as pessoas carregadas de pufes de couro, tapeçarias, sacolas, cestas de frutas, bandejas de latão e cobre, gravadas à mão, e outras especialidades marroquinas.

Vi Bess no cais e comecei a acenar para ela. De repente, parei. Parei e me afastei para a sombra. Senti que não tinha vontade de falar com ninguém e menos ainda com Bess, que era tão perspicaz. Minha vontade era ficar bem quieta, no meu canto, sem falar, secando meus ferimentos.

Mas não consegui, acho que ninguém consegue. O tempo prossegue em sua corrida, os relógios batem as horas, a noite vem, o navio tem que zarpar.

O deck estava morno, mesmo sendo meia-noite. Eu ficara ali até aquela hora, vendo os preparativos finais para a partida do Pallas Athene. Chegou a última carrocinha repleta de alfaces frescas, que entrou pela rampa de serviço que levava à cozinha. Ouvi o último chamado da sirene e observei alguns marinheiros que faziam as últimas pechinchas com um árabe, na beira do cais.

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Então, ouviu-se o tão familiar alto-falante anunciando: — “Todos os visitantes queiram deixar o navio! Ultimo aviso. A escada do deck vai ser levantada dentro de cinco minutos! O Pallas Athene vai deixar o porto!”

Comecei a ouvir as máquinas acelerando e o barulho das turbinas aumentando. Vi quando retiraram o porto, quando retiraram as cordas dos cabrestantes. A faixa de água, onde boiavam latas de óleo vazias e cascas de banana, alargou-se. As pessoas acenavam com as mãos e com os lenços. O rebocador apitou. Um milhão de olhos luminosos dos arranha-céus de Casablanca, ficaram olhando nossa partida, sem piscar.

Repentinamente, tive a sensação de que outros olhos estavam me olhando. É um fato incontestável que o olhar humano produz vibrações hipnóticas, uma espécie de eletricidade que nos atinge como se fosse algo palpável. Eu podia sentir aqueles olhos, mesmo que não os estivesse vendo.

A faixa de água alargava-se cada vez mais. Debrucei-me sobre o parapeito. Procurava ainda por figuras humanas ao longo do cais... Motoristas de táxi... Algum árabe de fez vermelha... Trabalhadores braçais, carregando um caminhão... Quando divisei um vulto branco, mexendo-se na escuridão de um armazém de cereais.

Reconheci aquele terno de linho e o chapéu panamá.O vulto deu um passo à frente e foi iluminado por um arco voltaico das

docas. Foi então que reconheci a pessoa.Era Paul!Mas o que estava fazendo ele ali, parado? Por que não se esforçava para

pegar o navio em tempo? Era óbvio que ele se mantivera ali escondido, esperando que a escada fosse finalmente erguida.

A faixa de água era agora tão extensa que já abrangia metade da baía das docas. Pude ver a fosforescência da espuma branca que se formava atrás de nós. Para ele, nós éramos uma pequena cidade iluminada, afastando-se para longe.

Mas, para mim, aquele vulto branco, esgueirando-se na escuridão do cais, provocou uma pergunta repetitiva, que ficou girando no meu cérebro, como se fosse um carrossel: Por quê? Por quê? Por quê?

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Capítulo XII

Apesar de tudo, ela me parecia ter um olhar bem mais vivo, mais saudável e enérgico, como eu jamais vira antes. Dava a impressão de que o choque a tinha levantado de sua cômoda indolência e que o velho sangue italiano dos D’Albi estava correndo em seu socorro.

Inevitavelmente, o incidente com Paul havia atingido a ambas. Relatei tudo o que tinha visto ao chefe dos comissários e fui incumbida de levar a notícia à condessa, na manhã seguinte. Mas foi ela quem primeiro me deu a notícia de que seu cofre porta-jóias tinha desaparecido. Fiquei estarrecida. Paul era um ladrão? Não podia ser! Cheguei a sentir ânsia.

— Naturalmente, o cofre estava trancado — esclareceu a condessa. — Seria praticamente impossível abri-lo sem a chave. Mas tenho certeza de que ele será bem-sucedido.

— Então é por isso que ele ficou esperando que fôssemos embora. Queria estar seguro de que o sinal de alarme não soaria e que a polícia não seria chamada.

— Acho que foi isso mesmo, minha querida — disse a condessa, amargamente. — Mas ele não vai ter que se preocupar com isso. Não tenho intenções de chamar a polícia.

— Mas, condessa...— Para ser franca, eu não gostava daquele porta-jóias. Era feio, pesado e

desajeitado.— Mas o que continha era muito valioso!— Até que não. — A condessa deu um sorriso gozador. — O excelente

departamento de segurança do navio deu um jeito nisso.— Que jeito?— Esse jovem fotógrafo de bordo... Desde Tenerife não me deixou um só

instante em paz. Insistiu o tempo todo que eu deveria depositar minhas jóias na caixa-forte do comissário. Disse-me que estavam com suspeitas de que havia um ladrão a bordo. Foi tão misterioso e reticente que, depois de três dias, concordei com a idéia. É claro que, se eu soubesse que o meu Paul era o suspeito, teria dado uma boa risada na cara dele. Pensei que se referia a qualquer outra pessoa de bordo, até ao próprio capitão Doubleday, menos a Paul. Mas você sabe, nós mulheres somos especialistas em escolher os homens errados.

— Somos mesmo — disse eu, com tristeza.— E os homens nem sempre são o que aparentam ser.— Quase nunca — aprovei amargamente. — Não somente esse cretino do Paul, também esse jovem Sr. Pulford,

com aquele sorriso gaiato e aquele “olhe para a câmara, por favor”, é um falso. Não vai querer me convencer de que um simples fotógrafo tenha tanto empenho em salvaguardar os valores dos passageiros. Isso mais me parece função do detetive do navio.

Lembro-me de uma observação de Bess, logo que cheguei a bordo. Ela tinha dito que havia um detetive contratado, mas que ninguém sabia quem ele era, exceto o chefe.

— Agora nós também sabemos quem ele é — afirmou a condessa, quando falei sobre isso.

— Não era à toa que Paul não gostava de ser fotografado.74

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— Está explicado! Ele deve ser um marginal conhecido, principalmente pela polícia.

Naquela noite, estranhamente vazia, sem a presença de Paul, conseguimos juntar uma a uma, todas as peças daquele intrincado quebra-cabeças.

A condessa lembrava-se de algum detalhe, eu lembrava-me de outro. A razão por que ele insistia tanto que o acompanhasse a Casablanca agora tornava-se óbvia. Ele precisava de alguém que servisse de portador e levasse suas encomendas do contrabando a bordo, como tinha acontecido com os relógios, em Tenerife. Qualquer coisa que contivesse aquele outro pacote pardo, por certo, seria mercadoria ilegal.

Ela recordou-se de outros fatos. Por exemplo, de que ele pouco falava sobre os pais.

— Ele nunca contestava quando eu fazia meus comentários sobre aquelas pequenas traquinagens de infância, como qualquer homem adulto faz. Estava sempre de acordo. “Sim, tia Maria. Lembro-me bem daquela vez que caí no lago”. Ou então: “É verdade, posso lembrar-me quando quis fazer um show de circo com um dos cavalos de mamãe”. Ou mais: “quando roubei a geléia de ameixas e pus sapos vivos no chapéu de meu primo”. Em geral, quando relembramos esse tipo de fato com gente jovem, eles costumam retrucar: não, não foi bem assim, foi diferente, foi desse outro jeito... Além do mais, ele nunca falava do lar. Parecia que não tinha o mínimo amor pela sua terra. Mas eu fechava os olhos. Quando uma mulher quer amar, pode tornar-se completamente cega.

— Então, a senhora acha que ele não é seu sobrinho?— Srta. Cummings, depois do que ele fez, tenho absoluta certeza de que

não é do meu sangue.Apesar de aparentar exteriormente uma grande coragem, ela chorou

comigo as suas mágoas. A luz da manhã era muito cruel para seu rosto devastado.

— Desconfio que hoje todo o pessoal do navio estará rindo às nossas costas!

— Não. É difícil que alguém saiba o que aconteceu. Existe uma regra tácita que determina que fatos como esse sejam abafados. Veja, na última viagem que meus amigos fizeram, havia dois clandestinos a bordo, e nenhum dos passageiros veio a saber disso. Além do mais não houve grandes prejuízos. Prejuízos materiais, digo eu — emendei depressa, vendo sua expressão de censura.

— Só o coração foi prejudicado... Essa é a verdade.— Poucas pessoas sabem que Paul não voltou para o navio. Mas isso

acontece freqüentemente. Às vezes, os turistas decidem ficar mais tempo num lugar que lhes agradou e se desligam da excursão para voltar mais tarde, de avião. Mas os passageiros de sua mesa vão saber que ele não voltou.

— Naturalmente, eu vou contar-lhes. Vou dizer que Paul decidiu ficar em Casablanca para fazer um grande negócio que lhe interessava muito. Um negócio de âmbito internacional.

— Não deixará de ser uma verdade.— Fico contente de não ter que mentir para eles. Não sei dizer mentiras e

detesto pessoas que mentem para mim. Não posso perdoá-lo por isso. Posso desculpá-lo por ter sido um impostor e até o fato de ter tentado roubar minhas jóias. Mas existem duas coisas que não consigo perdoar: ter conquistado minha

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afeição e ter me feito passar por boba.— Comigo passa-se o mesmo. Eu ainda acho que as pessoas mais

admiráveis são aquelas que às vezes são um tanto bobas. Talvez seja sempre uma grande bobagem amar demais. — Acho que disse isso com demasiada convicção, pois a condessa olhou-me pensativamente. — Na verdade — completei —, dizem que nunca devemos deixar que o coração governe nossa cabeça.

— É uma grande verdade, Srta. Cummings.A condessa passou o lenço pelo rosto e levantou-se, com intenção de

dispensar-me.— Apesar disso, existe uma bobagem ainda maior do que essa e vocês,

britânicos, são particularmente propensos a cometer. E essa bobagem, Srta. Cummings, é deixar que a cabeça governe nosso coração.

O eco dessas últimas palavras alcançou-me quando entrei no escritório do comissariado. O chefe tinha confirmado que Brian Pulford era realmente o detetive do navio.

— Isso que estou lhe dizendo agora é só para os seus ouvidos ouvirem, Srta. Cummings.

Tinham sido levantadas suspeitas contra Paul logo no início. Mas só suspeitas. Era necessária uma foto para confirmação, e essa foto estava agora nas mãos da polícia de Casablanca.

Possivelmente, o pacote que ele me entregara no dia em que o Pallas Athene deixou o Tâmisa, continha libras esterlinas, em muito maior quantidade do que o permitido pelo Governo, para que ele pudesse pagar as mercadorias de contrabando.

— Logicamente, a senhorita não podia saber disso, naquela ocasião. Mas depois, as autoridades de bordo começaram a se preocupar com o seu relacionamento com Paul Vansini. Entretanto, estávamos confiando no seu bom senso. — Seus olhos sorriram para mim, por cima dos óculos. — Tínhamos certeza de que, no final, sua cabeça

governaria seu coração!— Oh, sim! — disse Bess, no dia seguinte. — Não há dúvida que a cabeça

dele governa o coração dele! De fato, seu coração nunca tem uma chance. Ontem à noite, ele dançou comigo duas vezes. A primeira foi um rock e ele, para ser franca, não se saiu lá muito bem. Mas a segunda, acredite ou não, Cristie, foi a última valsa, a Valsa da Despedida. Ele me levou tão bem, tão apertadinha em seus braços, que eu me senti flutuando no ar! Então ele me disse que estava cansado e perguntou-me que tal eu achava da idéia de andar um pouco pelo deck, para refrescar-nos. Eu não disse nada, mas fui dando um jeito de acompanhá-lo para fora do salão. Estava uma noite linda de luar, com um céu cheinho de estrelas e um mar pontilhado de reflexos de luz. Eu sabia que ele tinha algo para me dizer na ponta da língua. Aí, eu esperei, esperei e esperei. Então, ele disse: — “Quero que você saiba de uma coisa. Tive que mudar o horário do concurso de robustez infantil de amanhã. Em vez de às quatro horas, será às seis e meia”. Bess ficou com uma cara tão comicamente desenxabida, que não pude deixar de rir.

Olhando para o play-ground apinhado de crianças, os menores sentados no chão, os adolescentes nas cadeiras e os papais e mamães, em pé, encostados na amurada, senti pena de Bess.

O chefe tinha dito algo mais para ela, na noite passada. Comunicara-lhe que havia sido transferido para um outro navio da linha Gold Star, mais novo e

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moderno, e que aquela seria sua última viagem no Pallas Athene, que deixava com muito pesar, pois tinha muitos negócios ainda inacabados.

Bess estava sentada a uma mesa, coberta de atraentes e coloridos pacotinhos. Com a cabeça coberta pela touca de pajem, parecia estar evitando olhar para a alta figura do chefe, que estava voltado em sua direção, enquanto pronunciava um pequeno discurso.

— Na exposição de artesanato, pude ver lindos desenhos, bordados e outros trabalhos manuais, que nem eu seria capaz de fazer melhor. Portanto, vocês todos devem ser garotos muito inteligentes.

A receptividade que sua presença estava tendo, era, de certa forma, ambivalente. Assim como Bess, as crianças não pareciam muito seguras em suas reações. Ali estava o homem que as expulsava dos bailes quando chegava determinada hora, que não permitia que elas corressem pelos decks e que já dera uma bronca em duas ou três crianças, inclusive em Jonathan Archdale.

— E agora, o que é mesmo que está escrito aqui? — ajustou os óculos. — Ah, um ovo e uma colher. É alguma coisa que vocês vão ter que comer no café da manhã?

— É a corrida do ovo e da colher — gritaram as crianças, em coro.— E que foi ganha por... Natália... não, essa deve ser a do cruzeiro das

festas de Natal!— Natália Masters — berraram as crianças.Bess passou um dos pacotinhos ao chefe que, solenemente, o entregou a

uma garotinha de trancas, recebendo, de volta, uma reverência e um sorriso afetado.

— E agora... Naturalmente, hoje em dia não se roubam mais crianças em sacos, ou roubam? Então, que história é essa de “sacos”?

— A corrida dos sacos!— Que foi ganha... Ah, por um velho conhecido nosso... Jonathan

Archdale.Jonathan apareceu, pegou uma grande caixa retangular, e desapareceu.— Três pernas? Será que isso está certo?— A corrida de três pernas! — A criançada estava realmente se

divertindo com aquelas confusões.— Peter Jones e... Natália Masters, de novo. Natália vamos precisar de

você nas próximas Olimpíadas!Um por um, os prêmios foram distribuídos. Não só os vencedores

ganharam. Todos os outros também levaram algum brinde. O clima era de hilaridade geral.

— Bem. Aqui temos uma outra lista. O que diz ela? Grapefruit... Peixe... Batatinhas... Ora bolas, desculpem! Esse é o cardápio do almoço. Deixem-me ver... Hein, aqui está! Naturalmente, ninguém aqui foi tão inteligente que conseguiu aprender a nadar durante a viagem.

— Sim! Nós fomos!— Bem, vocês, os sábios, vão receber um diploma especial... A Ordem da

Sardinha Enlatada, porque aprenderam a nadar na piscina de bordo.Quatro garotos e duas meninas levantaram-se para receber um pomposo

pergaminho. Depois, foi à vez dos aniversariantes.— Alguém fez anos durante a viagem?— Sim!— E o que é que a gente ganha no aniversário? Uma árvore de Natal?

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— Não!— Um ovo de chocolate?— Não!O chefe começou a menear a cabeça, como se estivesse desconsolado.— Então, eu não sei.— Um bolo!— É verdade! Um bolo. Mandamos fazer um enorme bolo, especialmente

para os cinco aniversariantes. Os que não fizeram aniversário vão compartilhar e comer também um pedaço e faremos, todos juntos, uma bela comemoração! Antes que vocês se dispersem, ouçam aqui. — Ele levantou os braços, pedindo silêncio, pois todos tinham começado a bater palmas. — Tenho certeza que vocês vão querer agradecer, pelos momentos divertidos que passaram a bordo, àquela que considero a melhor babá dos Sete Mares. — Virou-se para Bess, que ainda estava sentada à mesa, agora vazia. — Senhorita... Senhorita... Senhorita...

Deus do céu! pensei comigo mesma. Ele não pode fazer isso. Não pode fazer outra vez. Não aqui, na frente de todo o mundo.

Foi nesse instante que um leve sorriso levantou os cantos da boca do chefe, que conseguira captar o que as crianças sopraram para ele.

— Shackleton! Pode ser que seja senhorita Shackleton para vocês. — Seu sorriso tornou-se repentinamente muito envergonhado. — Mas, para mim, ela é... Minha querida Bess!

Não sei se alguém mais se deu conta, com exceção de Bess e de mim, do significado que ele quis dar àquelas palavras, porque chegou o tão anunciado bolo, lindamente confeitado e coberto de velinhas acesas, e a festinha virou um pandemônio.

Mas a intenção do chefe tinha sido justamente aquela: declarar seus sentimentos perante todas as crianças. Como todo homem tímido, aquilo que não conseguira fazer na privacidade, fez praticamente em público, com uma ousadia inesperada.

Olhei para Bess e vi que ela estava radiante.Parecia alheia a toda aquela algazarra, alheia às crianças que a

rodeavam. O chefe estava sentado num dos cantos da mesa, com a cabeça inclinada para ela. Não sei do que estavam falando, porque o barulho ao redor da mesa era ensurdecedor.

Umas das crianças foi para perto deles e colocou um pedaço de bolo melado em suas mãos. Ambos riram e começaram a comer o bolo. Alguém começou a cantar o “Parabéns pra Você”. Todos bateram palmas, acompanhando a música, e dançaram em roda.

O inevitável aconteceu.Uma garotinha escorregou de seu cadeirão, um menino atirou uma maçã

que atravessou a sala como uma granada, uma bola de futebol foi chutada de um dos cantos da sala.

Mas Bess e o chefe ficaram impassíveis, perdidos um no outro, distantes quilômetros de todos nós.

Ninguém os incomodou. Pouco a pouco, a gritaria foi arrefecendo. Crianças e pais foram se retirando, em grupinhos. Até que escureceu quase totalmente lá fora. Só ficaram três pessoas entre as cadeiras reviradas, os restos de bolo e os brinquedos espalhados pelo chão.

— Cristie! — Finalmente Bess pareceu acordar de um sonho. — Onde está todo o mundo?

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— Com exceção de vocês dois, parece que a festa já acabou faz tempo.Bess olhou-me, entre admirada e sonhadora. Ainda permanecia ausente

da realidade, sem se decidir a abandonar seu mundo de felicidade. O chefe parecia ainda mais enlevado do que ela. Normalmente, tão calmo e eficiente, sabendo exatamente o que fazer no próximo minuto, agora ele se mantinha sentado na beira da mesa, com aquele mesmo sorriso bestificado pairando em seu rosto. Nem sequer a menção do nome Jonathan Archdale, pronunciado por Bess, conseguiu sacudi-lo de seu devaneio.

— O que é que há com Jonathan Archdale? — perguntei.— Prometi aos pais que tomaria conta dele e que o levaria para a cama

às nove horas. Eles vão ter que ir hoje a um jantar de confraternização com amigos, lá no grill-room.

Relutantemente, ela levantou-se e procurou em torno com o olhar.— E agora, que vou fazer?Estava apelando para o chefe. Mas tudo o que ele fez foi olhar para ela,

embevecido. Era notório que o problema Archdale não lhe interessava nem um pouco. Parecia que não reconhecia aquele nome e que não estava disposto a encontrar qualquer solução lúcida para o problema. A única coisa evidente é que ele pretendia ficar ao lado dela.

— Eu me arrumo com nosso amigo Jonathan. Para vocês esta é uma noite muito... Muito especial!

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Capítulo XIII

Quando saí da sala, tive a impressão de que aquela noite seria memorável para todos nós.

Para começar, senti que ia ser um problema encontrar Jonathan Archdale. Mas, nesse ponto, errei. Quando passei pelo deck A, o vi, ali sozinho, brincando com uma bolinha de pingue-pongue. Estava sabendo o que os pais tinham pedido a Bess. Não fez qualquer comentário sobre isso. Cordialmente, desafiou-me para uma partida de pingue-pongue.

— Gostaria muito — disse eu.Dei-lhe uma surra de vinte e dois pontos contra dezesseis. Jonathan não

gostou muito. Então, tivemos que jogar mais duas partidas de revanche, que ele ganhou com facilidade. Tornou-se logo expansivo comigo.

— Você vai melhorar. Se praticar bastante, vai chegar a jogar muito bem — disse ele, rindo de contentamento.

O gongo soou, chamando para o jantar. E lá fomos nós dois.Havia sido colocado um talher extra na mesa cinqüenta e três. Antes de

sentar-me, apresentei Jonathan e o Sr. Faversham perguntou-lhe se ele sabia a origem de seu nome.

— “Enviado de Deus” — respondeu Jonathan. — É um nome hebraico.Naturalmente, o Sr. Faversham ficou encantado. Enquanto Jonathan

comia praticamente todos os pratos do cardápio, o Sr. Faversham começou a inquiri-lo sobre conhecimentos gerais. Saiu-se tão bem nas respostas que a Sra. Campbell-Brown disse à filha que ela não seria capaz de responder nem a metade das perguntas. O Sr. Campbell-Brown declarou que Jonathan iria longe e seria capaz de tudo na vida.

Eu falei pouco. Estava muito ocupada em vigiar o garoto. Apesar de ele estar conseguindo jogar areia nos olhos dos comensais da mesa cinqüenta e três, a mim, ele não enganava. Nem teria sido necessária a recomendação de Bess de não deixá-lo escapar de minha vista. Se eu tivesse um par de algemas e uma corrente, por certo teria feito uso delas para amarrá-lo junto a mim. De qualquer forma, eu iria ficar grudada nele como uma sarna.

Depois do jantar, quando o Sr. Faversham sugeriu que fôssemos todos tomar café no salão de estar, Jonathan declarou:

— Não estou com vontade de tomar café.— Mas você pode vir conosco, fazer-nos companhia — disse eu, com

firmeza.Portanto, fomos todos juntos para o elevador.O navio estava começando a balançar. Enquanto andava, sentia me

jogada de um lado para outro. Jonathan disse que iríamos enfrentar uma tormenta e que, logo, logo, todos iam começar a passar mal do estômago.

Quando acabamos de tomar café, ainda faltavam quarenta e cinco minutos para as nove horas. Depois de sugerir que eu fosse procurar minha turma... Que ele ficaria muito bem sozinho... Que eu não devia preocupar-me com ele... Resolveu resignar-se com seu destino. Jogamos uma partida de dominó, fomos ouvir um pouco de música e tomamos limonada. Foi ele quem me alertou que já eram nove horas, hora de ir para a cama.

— Você está cansado?— Estou.Fomos para a suíte dos Archdale no deck A. Enquanto eu esperava na

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sala de estar, Jonathan entrou em seu quarto e não voltou a aparecer, como era de se esperar, vestindo pijama, com o rosto lavado e os dentes escovados, pronto para ir dormir. Assim mesmo, não estranhei muito, pois, quando se deitou, eu até o ajudei a cobrir-se com os lençóis.

— Boa noite, Jonathan.— Boa noite, Srta. Cummings. E obrigado por ter tomado conta de mim.Saindo para o corredor, disse ao camareiro de serviço que o Archdale

Júnior tinha ido dormir, mas que ficasse de olho nele. Comecei a subir as escadas para ir sentar-me num lugar quieto e tranqüilo. O tempo estava ficando cada vez pior. Podia ouvir o navio rangendo. Quando estava para virar o segundo lance da escada, perdi o equilíbrio e quase caí. Mas o salão de estar era confortável, aconchegante e silencioso. Passei os olhos pelo noticiário de bordo e depois comecei a pensar em Bess e no chefe e senti-me feliz por eles. Acho que me deixei embalar por uma espécie de entorpecimento, pois, quando dei por mim, já eram dez e meia da noite. Fui verificar se estava tudo bem no salão de baile e, muito admirada, achei que o balanço do navio tinha dado ainda maior animação aos dançarinos. Pensei em dar uma última olhadela em Jonathan e, depois, ir dormir. Foi desse ponto em diante que minha noite tornou-se realmente memorável.

Não encontrei nem sinal de Jonathan em toda a suíte. Nem as roupas que ele tinha deixado sobre a cadeira estavam lá.

Quando perguntei pelo menino ao camareiro de serviço, respondeu-me que não podia ficar de plantão no corredor, o tempo todo. Previa-se uma tormenta e ele estivera ocupado em fechar portas e vidros de vigia dos camarotes.

Com o espírito alerta, pensei comigo mesma que ele não poderia ter ido muito longe. Procurei-o pelos salões, na biblioteca, fui novamente espiar o salão de baile. Não vi sinal dele em nenhum lugar. No deck, o vento assobiava furiosamente por entre cabos e vigas. O rugido do mar era impressionante. Ninguém estava por ali.

Resolvi dar uma espiada no grill-room e vi que a festa de confraternização continuava, muito animada. A última coisa que desejava fazer era interromper aquela reunião, para dar a notícia do desaparecimento de Jonathan.

Concordava plenamente com a opinião do Sr. Campbell-Brown: esse menino iria longe e era capaz de tudo na vida.

Durante mais de meia hora, vasculhei todo o navio. Mas em nenhuma parte encontrei qualquer vestígio do menino. Minha mente começou a imaginar toda a espécie de acidentes. Principalmente pela visão desse mar encapelado, cada vez mais borrascoso e enraivecido. Mas não queria, de forma alguma, perturbar aquela noite especial de Bess. Não queria ir procurá-la e, muito menos, ao chefe. Também não desejava entrar em contato com o Sr. e a Sra. Archdale.

No tombadilho, onde ficavam os botes salva-vidas, a ventania levantou minha saia e eu senti os respingos de água salgada, molhando minhas pernas. Era a primeira vez que eu via uma tormenta no mar. Essa tempestade tinha chegado de surpresa, pois durante a tarde, o mar estivera tranqüilo e o céu límpido.

O estádio de esportes estava vazio. Os colchões de borracha inflável tinha sido esvaziados e enrolados; a cobertura de lona das grades do solário, fustigada pelo vento, debatia-se furiosamente. Bem no alto, a chaminé

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iluminada do Pallas Athene movia-se de encontro ao céu plúmbeo.Quando me certifiquei de que já tinha percorrido todo o navio e

procurado por todos os vãos possíveis, capacitei-me de que havia uma só coisa a fazer: entrar em contato com o oficial de guarda. Pelo menos, eu saberia onde encontrá-lo, lá na ponte de comando.

Quando cheguei à escadinha de ferro que levava à ponte, parei.O regulamento era bem claro e estava escrito naquela placa: “É proibido

subir até a ponte de comando, sem ordem expressa do capitão”.Apesar de ter lido o aviso, supunha que, numa emergência, aquela

advertência não era aplicada a mim. Mas a ponte de comando sempre significara um lugar sagrado, uma espécie de território santificado, assim como uma mesquita, onde, por certo, era proibida a presença de mulheres. Quando comecei a subir pela escadinha, fiquei nervosa, como se esperasse que, a qualquer momento, alguém iria segurar-me pelo braço, perguntar-me o que eu estava fazendo ali, ordenando-me que me retirasse imediatamente.

Fiquei ainda mais nervosa quando empurrei a porta de vidro e encontrei a ponte de comando repleta de gente.

Somente uma vez tinha tido permissão de ir até lá. Foi durante o coquetel oferecido pelo capitão, um dia após nossa partida.

Em vez de encontrar o local fartamente iluminado, cheio de senhoras de vestido longo e senhores de smoking, conversando animadamente, rindo e examinando o radar, os cronômetros, as cartas geográficas e o sonar, como daquela vez, dei de cara com um grupo de oficiais e marinheiros, reunidos na penumbra, em torno do capitão Doubleday. Ninguém disse nada. O marinheiro que estava manobrando a roda do leme continuou absorto, olhando o horizonte, e eu pude observar, à sua frente, a enorme bússola, com o ponteiro indicando a direção norte.

— Então, doutor?Só então notei que o Dr. Lindsay estava entre eles. Tentava decifrar uma

mensagem que o radiotelegrafista estava passando para ele.— Não há muito o que fazer, capitão.— Estou sabendo.— O que quer que signifique, não é compreensível.— Foi nesses termos que recebi o S.O.S. — disse o radiotelegrafista.— Concus... — o Dr. Lindsay manifestou-se. — Acredito que eles queiram

dizer “concussão”.— Pode ser que sim, pode ser que não — disse o capitão.— O que é evidente é que ninguém do S.S. Alceste sabe falar inglês

corretamente — observou o radiotelegrafista.— Sob que bandeira está registrado o navio?— Grega, capitão. E é um navio de pequena tonelagem.— O sujeito que está operando o rádio deve ser bem ruinzinho, capitão —

comentou um dos oficiais. — Afinal, essa é uma mensagem de S.O.S.Secamente, o capitão Doubleday retrucou:— Estou perfeitamente ciente disso, Sr. Baines.Fiquei ali, muito quieta, longe deles, escondida pela escuridão, tentando

entender, pelos comentários, o que estava acontecendo. Era óbvio que o navio que mandara a mensagem estava em apuros. Alguém estava seriamente ferido e pediam por socorro.

O grupo que cercava o capitão caiu num silêncio profundo.Foi nesse momento que divisei Jonathan.

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Estava do lado oposto da ponte de comando, encostado à outra porta de acesso, exatamente na mesma atitude que eu. Também ele escava escondido nas sombras e mesmo na semi-obscuridade, deu para notar que seu rosto estava pálido e tenso. Creio que ele me viu ao mesmo tempo que eu o vi, pois me fez um gesto... Uma espécie de súplica, que parecia querer dizer: não nos denuncie ainda, enquanto não soubermos a outra metade da história.

Creio que estava tão ansiosa quanto Jonathan para descobrir mais coisas. Fiz com ele um pacto de silêncio, já que estava aliviada por tê-lo encontrado finalmente, são e salvo.

Ambos sabíamos que estávamos no limiar de uma catástrofe marítima.A chuva começara a fustigar os vidros da casa do leme. A voz do capitão

soou grave, quando disse:— Senhores, precisamos tomar uma decisão imediata. Se vamos ou não

alterar nossa rota para ir em socorro do Alceste.— O tempo está cada vez pior, senhor. E eles estão totalmente fora de

nossa rota.— Conheço ambas as circunstâncias, Sr. Baines — cortou o capitão. Fez

uma pausa, antes de acrescentar veementemente: — Por que logo nós? Por que estão nos chamando? Há um grande navio francês, bem mais próximo deles. E nós estamos fazendo um cruzeiro turístico.

— Talvez seja um voto de confiança à marinha britânica, senhor — disse o Dr. Lindsay.

— Ou um voto de confiança à medicina britânica — retrucou o capitão Doubleday, dando as costas para os outros e indo postar-se em frente à ponte, com a cabeça enterrada nos ombros, as mãos afundadas nos bolsos do blazer, olhando para a profundidade daquela noite tempestuosa.

— Seja o que for, poderíamos fazê-lo em outras condições atmosféricas. Vamos ter que entrar em cheio na área da tormenta. Gostaria de saber como poderemos ajudar esse pobre homem, quando chegarmos lá. Talvez tenha sido o nome do nosso navio — Pallas Athene — que tenha motivado o pedido... Um nome grego... E deusa da Sabedoria. Com toda a certeza, dessa vez, vamos precisar da ajuda dessa divindade!

Meditou por um momento.— Leia novamente a mensagem, Sr. Wright.Dessa vez pude entender melhor o que o radiotelegrafista dizia, pois ele

falou pausadamente:— A mensagem diz assim: “SOS Alceste chamando Pallas Athene PT

marinheiro com cabeça quebrada PT caiu porão vazio PT passando mal com concus... PT sem médico PT muito agradecidos pelo favor ajuda PT”.

— Bem, parece que estão muito seguros de que nós vamos ao encontro deles — disse o capitão. — O que acha doutor? É realmente necessário? Ou poderemos enviar instruções médicas pelo rádio?

— Posso enviar uma mensagem de volta, senhor? Gostaria de saber mais detalhes sobre as condições físicas do paciente.

— Sim, faça isso.O Dr. Lindsay escreveu uma mensagem. Passaram-se mais alguns

minutos. Ninguém falou enquanto o rádio não enviou a resposta.— Não entendemos pulso — leu o capitão. — É isso, doutor. É o que dá

ser técnico demais.Transmitiram as explicações necessárias. Outras mensagens foram

trocadas pelos dois navios.83

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— Ainda estão com problemas de tradução do inglês — disse o radiotelegrafista. A última mensagem que recebemos era tão confusa, que não entendemos nada.

— Tente novo contato — foi tudo o que disse o capitão. Depois disso, acrescentou algo que foi engolido pela goela lufante do

vento. O navio deu um repentino pinote, que quase me derrubou. O barulho da tempestade lá fora parecia sublinhar o silêncio do recinto interno.

Enquanto esperávamos, a tensão aumentava. Aos trancos e barrancos, foram recebidas mais informações sobre o homem ferido.

— Pulso... Quarenta.— Inconsciente. Respiração difícil.— Profundo talho na testa, sangrando.O capitão Doubleday mantinha-se ainda silencioso, observando o tempo.

Finalmente, o Dr. Lindsay disse:— Agora tenho informações suficientes para arriscar um diagnóstico.

Tudo indica que o marinheiro fraturou o crânio.— Entendo. — O capitão deu uma volta e caminhou ao encontro de seus

subordinados. — E que conseqüências tem isso?Ele estava novamente se dirigindo ao Dr. Lindsay. Percebi que uma

confiança mútua unia os dois homens. Um acreditava no outro, sem restrições.— Sem assistência médica, num navio lento, nesses mares tumultuosos...

Não há chance de salvação.Os últimos segundos pareceram durar uma eternidade. Todos os olhos

estavam fixos no silencioso capitão. Então, ele disse:— É tudo o que eu queria saber.O que veio depois me deixou quase alucinada. Se até aquele momento, o

capitão Doubleday tinha falado pausadamente, em voz baixa, agora ele emitia ordens energicamente, quase aos gritos.

— Piloto! Gire o timão para a extrema esquerda! Dê toda a força às máquinas! Velocidade máxima!

Ouvi o pipocar do telégrafo. Sob meus pés, a vibração das turbinas aumentava. O Pallas Athene deslizou vagarosamente, rumo às montanhas de ondas, tomou a direção oeste e navegou à toda a brisa, como um corcel solto na campina verde do mar.

Na hora do café da manhã, foram colocados anteparos de madeira em volta das mesas, para evitar que as louças escorregassem e se espatifassem no chão. Mesmo assim, de vez em quando um prato pulava fora e partia-se em cacos, uma faca escorregava e um copo vinha rolando pelo carpete.

O Pallas Athene parecia um potro bravo, corcoveando sobre as ondas, chicoteado pela espuma das águas que se batiam de encontro às vigias.

Esperava encontrar caras emburradas e preocupadas. Esperava que as pessoas dissessem que estavam loucas para voltar para casa. Esperava mil queixas e lamentações, e afirmações de que eles eram passageiros, que tinham pago muito dinheiro para desfrutar um agradável cruzeiro sob a luz do sol. Em vez disso, em toda a sala de refeições, só se percebia uma certa expectativa ansiosa. Todos tinham lido o boletim extra enviado pelo capitão, que comunicava que ó navio ia sair da rota, para socorrer um marinheiro acidentado do S.S. Alceste, latitude trinta e dois-norte, longitude vinte e nove - oeste e todos pareciam ter esquecido de si mesmos, pela excitação da operação resgate.

— Alcançaremos a Alceste uma hora após o crepúsculo — confidenciou o 84

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Sr. Faversham. — Espero ardentemente e tenho certeza de que o capitão Doubleday também espera que, até àquela hora, a tempestade já tenha amainado um pouco.

Um garçom equilibrava, a duras custas, uma bandeja cheia de copos e pratos, e foi atirado ao chão por um balanço mais forte do navio. Apesar disso, o Sr. Campbell-Brown ainda conseguiu levar um pedaço de salsicha à boca e, muito grato, murmurou:

— Graças a Deus, consegui!Durante o restante do dia, o Pallas Athene continuou a corcovear. Não

era permitido a ninguém subir aos decks superiores e ao tombadilho. Mas do aeck C, pude ficar observando o mar alçando-se à altura de uma colina que parecia coberta de grama branca e ouvir o sibilar contínuo do vento. Ainda estávamos navegando à velocidade máxima. Era uma temeridade andar ao longo dos corredores. Podia-se perceber nitidamente os guinchos das ferragens e o baque do casco que se erguia e caía sobre a água, a pequenos intervalos.

— Foi o pior temporal que já pegamos pela frente.Ouvi este comentário do chefe dos camareiros que, há mais de vinte

anos, trabalhava na marinha. Em vez de voltar, rumo ao cais do Tâmisa, o Pallas Athene estava virado para o lado oposto, de frente para a tormenta, navegando em direção ao seu epicentro.

Apesar do mar grosso, surpreendentemente, os passageiros só sofriam de leves enjôos. As pessoas continuavam a movimentar-se serenamente, perguntando, de vez em quando, como estávamos nos saindo nessa empreitada. Ninguém falava de outra coisa, a não ser do salvamento. A condessa parecia até ter esquecido de Paul, tão concentrada estava pelo suspense desse novo drama.

— Agora conte-me sobre esse pobre marinheiro. Por que não estamos fazendo mais por ele?

— Mas, condessa, tudo o que é possível fazer, está sendo feito.— Se eu fosse o capitão — disse ela, inconseqüentemente —, nós já

teríamos chegado lá. Diga-me uma coisa, moça. Onde é que se encontra esse... Qual é mesmo o nome?... Esse tal de Alceste?

Ela pressionou-me para que lhe mostrasse no mapa a posição do navio grego, que estava marcada por um círculo preto, e indicasse nosso próprio roteiro, que estava assinalado por uma linha vermelha, com pequenas marcas que indicavam nosso progresso a cada hora que passava, fornecidas pelo oficial de guarda.

— O que significa isso? — a condessa perguntou, abordando-o. — Vinte nós! Quanto é isso, calculado em quilômetros por hora?

— Aproximadamente trinta e sete quilômetros por hora.— Mas é ridículo! Vamos muito devagar! Eu poderia ir mais depressa,

pedalando minha bicicleta. Vá logo e diga ao capitão que ele precisa aumentar a velocidade.

— Temo que, com esse tempo, não é possível desenvolver mais, madame.

— O tempo! Ora! Os ingleses têm a mania de pôr sempre à culpa no tempo. Qual é o problema com o tempo?

O barulho ensurdecedor de um trovão ecoou por todo o navio e a explicação do oficial de guarda foi perdida, e a pergunta ficou sem resposta.

Foi Jonathan Archdale, que estava perambulando por ali, quem deu uma explicação, com uma inflexão de voz de puro desprezo.

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— O tempo não tem nada a ver... Atrás disso, tem uma longa história.Vi a condessa escancarar os olhos, muito curiosa e interessada, enquanto

ele colocava as mãos espalmadas sobre os joelhos, pronto para qualquer desafio.

— Estou certa, mocinho... Como é mesmo seu nome? — E quando ele disse o nome em voz alta, cochichou: — Senhor Archdale, estou certa de que tem plena razão.

— Eu sei que tenho razão. Venha, vou mostrar-lhe o por que. E lá foram eles juntos, de mãos dadas, tomar o elevador. Ambos desapareceram, antes que eu pudesse descobrir o que ele pretendia aprontar desta vez.

Soube da história toda, uma hora depois, por intermédio de Bess.Ela estava passando por um aperto, com todas as crianças confinadas na

varanda envidraçada, uma vez que o playground não podia ser usado. O chefe do pessoal de bordo, contou-me ela, tinha descoberto a condessa e Jonathan na parte superior do deck dos botes de salvamento, área que agora estava interditada, encharcados até os ossos, pendurados no parapeito, enchendo os pulmões de ventania. Ambos foram instados a não saírem mais da cabine pelo próprio chefe do pessoal, que estava quase apoplético de tanta raiva.

E agora estavam os dois sentados na luxuosa sala de estar da suíte número três, muito contentes da vida, contando histórias, enquanto um camareiro mantinha-se postado à porta da suíte, com ordens estritas de não permitir que saíssem dali.

— Você sabe, a condessa tem umas coisas engraçadas — disse Bess. — Acho que ela caiu no laço desse menino. Contou-me que passou os melhores momentos de sua vida ao lado daquela peste. Você deve saber Cristie, que existe algumas semelhanças entre Paul e Jonathan. Ambos são... Como diria... — Ela olhou cabisbaixa para o meu lado, como se eu, apesar de ter dito muita coisa sobre Paul, não tivesse revelado tudo. — Ambos são dois patifes, se é que você entende o que quero dizer. Você acha que, para algumas mulheres, os patifes são tipos irresistíveis?

Respondi que achava.— No entanto, sou justamente o oposto — disse Bess, com certa

precaução. Mas vendo que eu estava sorrindo, sem me ofender, continuou: — Pobre condessa! Não estou dizendo isso porque ela goste do tipo. Aliás, sou-lhe grata por uma coisa. Talvez, sem ela, eu não conseguiria ter dominado Jonathan. — Indicou o chão com a mão, onde cadeiras, brinquedos e crianças estavam misturados como uma

salada de frutas.Uma mesa de vime chegou deslizando pelo assoalho e bateu às suas

costas, mas ela nem tomou conhecimento.— Diga-me, Cristie. Você já foi ver qual é nossa posição atual? A que

distância do navio ainda estamos?Na hora do almoço, a linha vermelha do mapa já tinha marcas bem •

mais próximas do círculo preto. A tempestade parecia ainda mais violenta. Ninguém teve disposição para comer muito. Comi uma fatia de tender com salada de alface e o Sr. Faversham pediu torradinhas para todos, afirmando ser uma receita infalível para manter o estômago em forma. E continuou a falar, até que disse algo que me atingiu em cheio, como um soco na boca daquele estômago que eu deveria manter em forma.

— Vão ter muitas dificuldades para abordar o navio. Mas essas dificuldades são mínimas, comparadas com as que o doutor vai enfrentar para

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chegar até onde está o marinheiro ferido.— O que quer dizer com isso? — perguntei.— Com o mar do jeito que está, vai ser impossível usar um cabo de

ligação. O doutor vai ter que passar para o outro navio num barco a motor.A luz que vinha da vigia próxima, repentinamente, transformou-se numa

mancha verde escura, quando uma onda a atingiu.— Mas...— Exatamente, minha cara senhorita! — O Sr. Faversham tinha notado

que eu estava olhando para aquela onda violenta. — É exatamente isso que eu quero dizer.

Até aquele momento eu não havia conjecturado o que realmente iríamos fazer quando alcançássemos a Alceste. Sabia tão pouco de náutica que pensara simplesmente que nós nos emparelharíamos e que o Dr. Lindsay iria pular de um deck para o outro, transportando o paciente de volta, pelo mesmo método. Não tinha ainda me compenetrado de que ele se exporia a um perigo. Jamais tinha visualizado a travessia de um pequeno bote por aquele mar encapelado, agora quase totalmente branco, com a espuma subindo a grandes alturas, como se fosse uma fumaça líquida. Não seria possível. Nenhum barquinho conseguiria essa façanha. De certo, emborcaria, seria sugado para o fundo, pereceria.

— Compreendo — disse eu — Mas eles não vão arriscar-se numa borrasca como essa, não é verdade?

— Vão sim. Eles vão. Tão logo cheguem lá, vão fazer isso. Espere para ver!

Eu não queria esperar, nem ver. Estava envergonhada do meu egoísmo, mas agora não desejava mais que alcançássemos o navio. Minha preocupação não era mais motivada pelo marinheiro ferido, mas pela vida do Dr. Lindsay. Aquilo era uma ironia do destino. Quem diria que, há dez dias passados, quando navegávamos por aquela mesma latitude, rumo ao lar, eu iria ficar tão abalada e aflita pelo que pudesse acontecer a ele?

Cheia de esperanças, passei o resto da tarde, perscrutando aquele mar cinza-chumbo e aqueles céus ainda mais escuros, procurando indícios de que a tormenta passasse. Tudo o que consegui ver foram às enormes ondas elevando-se cada vez mais e a marcha inexorável daquelas nuvens sinistras que acompanhavam nossa rota. E tudo o que consegui ouvir foi o ulular do vento e uns boatos esparsos, sussurrados pelos passageiros... Se não fôssemos nós, ninguém mais poderia resgatar o Alceste.

De uma forma bem própria ao sexo feminino, procurei encontrar conforto, lembrando-me do passado antagonismo que sentira por ele. David Lindsay era bem o tipo de homem teimoso e determinado, que tentaria o impossível para alcançar sua meta. Era o tipo de homem que iria até o fim, não se importando que tempestades, furacões ou bom senso lhe impusessem obstáculos. Aquilo fazia parte de seu caráter atrevido e impávido.

Ê curioso, mas desde o momento em que se tenha algo a fazer, as coisas parecem melhorar. E é admirável como proporciona conforto saber que existe alguém que precisa ser confortado.

Passando pela enfermaria, onde as pessoas estavam tomando pílulas contra enjôo, censurei-me por não ter pensado antes em oferecer-me para prestar ajuda no hospital. E principalmente para oferecer a Trudy Regan um ombro amigo para chorar. Naturalmente, eu estava sabendo que Trudy Regan era um peixe de outro cardume.

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— Entre — disse ela, resumidamente, quando bati à porta. Ao me ver, disse: — Alô. É você? Espero que não haja nada de errado desta vez.

Sacudi a cabeça, negativamente.— Pensei que talvez você precisasse de ajuda. Pensei que pudesse dar-

lhe uma mãozinha para preparar tudo o que vai ser necessário. Mas se estou atrapalhando...

— Não, absolutamente. Sente-se aí! — Trudy Regan mostrava-se surpreendentemente afável. Estava lustrando as unhas com uma camurça. — É bom ter alguém em volta. Não há coisa pior do que ficar à toa, sem ter o que fazer.

— Ê verdade — disse eu, sentando-me na beira de uma cadeira. — Deve ser horrível esta espera.

— Oh, deixa a gente frenética!— Especialmente no seu caso...— É mesmo o fim! — ela bafejou as unhas para dar-lhes mais brilho. —

Depois que se deixou tudo pronto, o remédio é sentar-se e esperar pelo próximo lance.

— Posso ajudar em algo? Aprontar a cama, coisas assim...— Sossegue que já fiz tudo. Preparei a sala, a mesa de operações,

esterilizei os instrumentos cirúrgicos. Tudo mesmo.Creio que foi essa tremenda eficiência que deve ter atraído o Dr. Lindsay,

sem considerar o fato de ela ser realmente bonita. Enquanto o restante do pessoal, passageiros e tripulação, estavam aflito com o vento que soprava e o mar que rugia, ela estava ali, imperturbável, muito tranqüila, com o mesmo semblante diáfano de fada que encarnara no baile à fantasia.

— Apesar de já ter providenciado tudo e já ter trabalhado bastante, agora, ficar aqui nessa pasmaceira, dá até vontade de chorar.

— Olhou-me de través e, de repente, iluminou-se toda. — Estou sabendo de tudo. Você pode abrir-se comigo e contar-me todas as vigarices daquele charmoso italiano. Diga-me, que truque ele usou para tapear vocês?

Relatei-lhe o que já era conhecido por todos, oficialmente, e Trudy Regan deleitou-se com a narrativa, dizendo que sempre achara aquele fotógrafo muito xereta. Disse também que eu não fora a única felizarda a sucumbir perante os encantos do italiano. Ela teria gostado de conhecê-lo melhor. Namorador como era, teria se divertido com mais um flerte. E terminou com um estranho comentário.

— Não é à toa que meu patrão andava arrancando os cabelos.— Acho que ele teria arrancado os cabelos de verdade se você tivesse

entrado nessa — respondi, em tom de desaprovação.— Que nada! Nem teria se preocupado. O italianinho é quem teria que se

cuidar.— Como? Você está dizendo que o Dr. Lindsay não iria se importar?— Acho que não. De qualquer forma, não seria papel dele importar-se

com isso.Guardou a camurça no bolso e retirou dele um alicate para cortar as

cutículas. Ficou concentrada nisso por um bom tempo, depois continuou:— Na verdade, não interferindo no meu trabalho, ele não tem nada com

que se importar. Uso meu tempo livre como bem me apetece. — Olhou-me com curiosidade. — Desculpe eu dizer, mas nesses últimos dois dias, parece que ele foi mordido por uma cobra.

— Deu-me um sorriso que eu classificaria como “apimentado”. — Será 88

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que ajudaria eu querer adivinhar o porquê ?Sacudi a cabeça, impacientemente. Lembro-me de ter ficado muito triste

por David Lindsay, pelo casal, pelo que estava acontecendo. Será que eles pensavam honestamente que aquilo era amor? Impelida por esse pensamento, atrevi-me a perguntar:

— Mas você não o ama?— Ama a quem?— Ao Dr. Lindsay.— Claro que não! Oh, bem, gosto muito dele, é lógico. Mas é só isso. É

bem melhor assim.Encarei-a, profundamente chocada.— Mas você está noiva!Trudy cortou um fiapo de cutícula e, meticulosamente, sacudiu-o na

cesta de lixo.— É por isso mesmo que é melhor assim. É por essa razão que não posso

andar por aí, apaixonando-me por todo o sujeito que aparece na minha frente. É triste, mas é verdade. Precisamente às dezoito horas do dia dez deste mês, do presente ano, estarei amarrada para sempre.

Até perdi a fala. Umedeci os lábios e engoli em seco. Como se estivesse hipnotizada, vi Trudy guardar calmamente o estojinho de manicure e verificar as horas. Ouvi que murmurava:

— A qualquer minuto, estaremos chegando... Olhou-me novamente.— Foi assim. Ele me pediu em casamento por telex. Não é romântico?

Não pôde esperar pela minha volta para fazer a proposta pessoalmente, veja só!

— Quem não pôde esperar?— Ora essa! George, meu noivo. Nunca confiou em mim durante essas

viagens que faço. Ele sabe que sou uma moça festeira. Aliás, nós nos conhecemos numa festa. Ele pediu ao patrão para ficar de olho em mim. Mesmo assim, George não se sentiria realmente seguro enquanto não enfiasse uma aliança no meu dedo.

— Não o condeno por isso — falei roucamente.Senti que estava toda arrepiada, apesar da temperatura amena do

hospital.— Pensei que você estivesse noiva do Dr. Lindsay. — Dizer aquilo foi

como andar descalça em cima de carvões em brasa, tão dolorosa foi a sensação.

Trudy deu um sorrisinho de satisfação.— Oh, não me venha dizer que esses mexeriqueiros turistas continuam a

insistir nisso! Você pode não acreditar, mas eles já disseram que eu era noiva do primeiro oficial, do chefe do pessoal, daquele miserável do chefe dos comissários, de todos os passageiros solteiros que andei paquerando, sem contar com...

Não continuei a ouvir Trudy enumerar todos os seus escandalosos romances. Levantei-me, balbuciei um rápido até logo e corri para fora do hospital.

Precisava urgentemente encontrar o Dr. Lindsay, onde ele estivesse, antes que emparelhássemos com a Alceste. Antes que ele iniciasse aquela ousada travessia, havia algo que eu precisava dizer-lhe.

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Capítulo XIV

Mas já era tarde demais.Estava a meio caminho do corredor do deck C quando ouvi as últimas

notícias, fornecidas pelo comissariado.A Alceste havia sido alcançada.Lembro-me de ter subido, como uma alucinada, as escadas que levavam

ao único deek onde se podia transitar. Precisei de toda a minha força para abrir a porta de vidro que dava para fora. O vento soprava com tanta violência, que colava meu vestido ao corpo e quase impedia que eu expelisse o ar dos pulmões. A natureza tentava sustar meus passos. Segurei-me ao corrimão e procurei proteger os olhos dos respingos de água, para sondar através daquela espessa bruma.

Vi pequenas luzes brilhando ao lado do costado de nosso navio. Pude perceber os contornos de um petroleiro, empanados por um verdadeiro cortinado de chuva. Parecia ser muito pequeno e frágil e era sacudido, como um joguete, ao sabor das ondas raivosas. Por um instante, todas aquelas luzinhas pareceram apagar-se sob uma avalanche de água verde-escura. Uma onda gigantesca o tinha encoberto totalmente. Até a chaminé desaparecera completamente, como se o Alceste tivesse sido definitivamente tragado pelo mar.

— Olhe para isso — disse um senhor que estava ao meu lado. — Se acontece com um petroleiro, o que acontecerá com um pequeno bote salva-vidas?

— Talvez, com um tempo desses, eles desistam — disse sua esposa. Foi então que a voz calma e resoluta do capitão Doubleday fez-se ouvir através do alto-falante.

— Como podem ver, acabamos de emparelhar com a Alceste, pelo lado do costado de atracação. Estamos manobrando o Pallas Athene de forma a colocá-lo em posição contrária ao vento, para que sirva de anteparo e proteção ao petroleiro. Vamos baixar o bote salva-vidas número um, que levará nosso médico até o petroleiro e, se for possível, trará o ferido de volta a bordo.

Depois ouvi o primeiro oficial, que ia ser o timoneiro, pedir voluntários para ajudar na operação resgate. Todos os marinheiros solteiros se ofereceram, de forma que foram escolhidos por sorteio.

Do lugar onde eu estava, pude ver o barco sendo baixado, por meio de roldanas, com dez homens a bordo, protegidos por jaquetas de oleado amarelo.

Foi só de relance que consegui vê-lo. Estava sentado numa das extremidades do barco, junto ao primeiro oficial, o rosto fustigado pela chuva. Fiquei murmurando, vezes e mais vezes, aquelas palavras que eu quisera ter-lhe dito, como se fosse uma prece que pudesse protegê-lo do perigo.

Em pouco tempo, o bote alcançou a superfície da água. Ouvi um leve ronco de motor, abafado pelo rugido das águas. Em seguida, soltaram as cordas. Um turbilhão empurrou o bote para longe do navio.

Ninguém falava. O mais terrível silêncio caiu sobre aquelas trezentas pessoas que lotavam o deck, em angustiante expectativa. Só se ouvia o ulular do vento e o rugido do mar. Era aquela espécie de silêncio que caía sobre os expectadores de um show de equilibrismo, quando o artista começa sua trajetória pela corda bamba.

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Neste caso, o suspense era ainda maior. O bote era focalizado por um único holofote da ponte de comando, cujo facho de luz tentava 5 acompanhar suas evoluções. Naqueles quatrocentos ou quinhentos metros que nos separavam do petroleiro, por várias vezes, o bote foi s perdido de vista, quando uma onda maior o jogou para longe, como se fosse uma casca de noz.

Ouvi o Sr. Faversham comentar que o capitão Doubleday merecia uma medalha de ouro pela perícia com que conseguia manter o Pallas Athene contra o vento, numa posição constante, façanha quase impossível naquele mar bravio. Um só movimento em falso, e o costado branco do Pallas Athene se embateria de encontro ao negro costado do Alceste. Seria uma catástrofe.

Mas toda a minha atenção estava concentrada naquele bote, o seu lento e penoso avanço em direção ao petroleiro e naquele vulto sentado na popa. Minha única preocupação era com a segurança daquele barco, o menor dos três. Nada mais me importava.

Num certo momento, ele pareceu ter sido completamente tragado por uma onda mais impetuosa. Todos nós ficamos com a respiração suspensa, até que reapareceu no topo de outra onda e deslizou de lá I de cima, como se fosse uma prancha de surf. A luz do holofote procurou-o em meio àquela nuvem de espuma.

Pouco a pouco, aproximavam-se mais do petroleiro. Houve um instante em que o bote desapareceu completamente. O holofote o tinha perdido de vista e só focalizava corcovas de água, encimadas por feixes de espuma, como se fossem crinas de cavalos selvagens. Os que estavam assistindo à cena soltaram um gemido de angústia, em uníssono.

Poucos segundos depois, ele reapareceu no meio de uma cascata de água que o despejou bem próximo ao petroleiro.

Não sei quanto aquilo durou. Acho que ninguém soube. Mas, finalmente, alcançaram o costado do Alceste. Um dos marinheiros jogou uma escada de corda da amurada. Com o coração que parecia saltar da boca, vi aquela figura coberta de oleado amarelo, galgar à frágil e bamboleante escadinha e desaparecer dentro do navio.

Ainda ninguém se atrevia a falar. Alguns dos passageiros enxugaram o rosto, molhados pela espuma e pela chuva. Mas o fizeram sem desgrudar os olhos do petroleiro, enquanto o Pallas Athene, muito vagarosamente, quase insensivelmente, avançou e deu novamente ré, tentando equilibrar-se em sua posição.

Todas as pessoas estavam pensando na dificuldade de retirar o marinheiro ferido, trazê-lo até o bote e reiniciar a perigosa trajetória de volta. Ninguém fez um único movimento ou falou uma única palavra quando foi avistada uma padiola que foi baixada lentamente por meio de cordas, até o bote, e amparada pelas mãos solícitas dos tripulantes. Nem quando aquela figura solitária reapareceu e começou a descer pela escada de cordas e o bote salva-vidas afastou-se, iniciando seu retorno.

Não consegui ver o que aconteceu durante a viagem de volta. Meus olhos estavam quase cegos, embaçados pelas gotas de chuva e pela torrente de lágrimas que me escorria pelas faces.

Ao som daquela macabra sinfonia do vento, repetia por mais e mais vezes, aquelas palavras que desejaria ter lhe dito.

Lenta e penosamente, castigado pela fúria das águas, o bote veio chegando cada vez mais perto. Sustive tanto a respiração, que minha cabeça começou a zumbir. Não sei por que razão comecei a contar freneticamente.

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Creio que já estava no número mil, quando ouvi uma aclamação. Limpei os olhos com o lenço e olhei em volta.

O bote já estava sendo içado a bordo pelas roldanas, desta vez, com onze homens dentro dele. À minha volta, a barulheira era infernal. Trezentas gargantas gritavam, exclamavam, soltavam vivas, a ponto de abafar os rugidos da tempestade. Todos começaram a aplaudir e a pular de alegria.

Eu continuei ali parada, olhando para aquele mar tempestuoso, como se o perigo ainda persistisse, sentindo-me demasiadamente angustiada e entorpecida para participar daquela ovação.

— Um desempenho impecável! — o Sr. Faversham gritou ao meu ouvido. — Um espetáculo magnífico! Espero que esteja ciente, senhorita, de que tivemos o privilégio de ser testemunhas de uma incrível demonstração de coragem... de... de... — as palavras não saíam — de solidariedade entre os homens do mar!

Sorri, concordando.Na excitação daquelas últimas horas, a maioria das pessoas esqueceu-se

de que o salvamento ainda não havia se completado. Vi aquela avalanche de gente descer as escadas, rumo ao salão de refeições. Tinham preparado um bufê frio e ninguém reclamou pela mudança de cardápio. Uma atmosfera de alívio e hilaridade dominava a todos.

Não consegui comer. Fiquei sentada no salão de estar, completamente vazio. Tentei ler um livro. Ouvi um pouco de rádio. Andei pelo deck deserto.

O navio já tinha mudado de rota e estava se afastando do epicentro da tormenta. O vento esmorecia. As ondas começavam a diminuir sua impetuosidade. As horas passavam.

Comecei a imaginar o que estaria acontecendo no departamento médico. Fiquei de ouvido atento no alto-falante, aguardando alguma mensagem. Quando não consegui mais suportar tanto suspense, precipitei-me escadas abaixo, em direção ao hospital. Sentia-me compelida a ficar perto dele e então, fui sentar-me, sozinha, na sala de espera. Ali estava quente e as poltronas pareceram-me macias e convidativas... Acho que peguei no sono, pois tive um sobressalto quando alguém abriu a porta.

— Deus do céu! — ouvi o Dr. Lindsay dizer. E, pouco depois, com uma certa impaciência: — Você não sabe que já é mais de meia-noite? O que está fazendo aqui? — Pôs a mão no meu ombro e começou a empurrar-me para fora. — Já estava fechando o consultório.

Olhei para ele, tentando analisar-lhe a fisionomia. Vi que era fria, austera e quase hostil.

Fiquei pensando como pude ter imaginado que ele teria gostado de ouvir aquelas palavras que eu pretendera dizer-lhe.

— Sinto muito. Só queria saber como estava passando. O marinheiro ferido, naturalmente.

— Oh, ele está bem. Já o transferimos para cima. Vai sobreviver. — Como eu ficava ainda ali, perguntou-me friamente:

— É só isso?— Sim. É só isso.— Nesse caso, muito boa-noite — deu a volta na chave da porta, para

encerrar o assunto. — Acho que já é tempo de todos sossegarem e irem dormir um pouco.

Mas ninguém sossegou. Os passageiros estavam mais excitados do que nunca. Parecia que tinham retido o fôlego por tanto tempo, durante a

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expectativa da operação resgate, que agora todo mundo queria desabafar.Também a satisfação de ter praticamente arrancado aquele marinheiro

das garras da morte era motivo de júbilo. Especialmente agora que tinham lido o boletim médico, pendurado entre o noticiário da B.B.C. e a cotação da Bolsa de Londres, que informava o estado de saúde do paciente, considerando-o fora de perigo.

Naquele dia, o ferido foi agraciado com numerosos presentinhos comprados por passageiros bem intencionados, na butique do navio. O chefe de cozinha preparou-lhe uma dieta especial para doentes e a condessa declarou que, tão logo o doutor permitisse visitas, iria conversar com o enfermo, graças ao seu conhecimento do idioma grego.

Durante todo o dia seguinte, à hora das refeições, o restaurante ecoava de risos e conversas amigáveis. As pessoas não só falavam o tempo todo com seus companheiros de mesa, mas estendiam a conversa às mesas vizinhas, numa total confraternização. Foram consumidos mais canapés e aperitivos nesse dia, do que durante todo o resto da viagem, pelo menos foi o que o maitre segredou para mim, com ar de reprovação e desgosto.

Apesar dessa atmosfera de cordialidade, apesar de todos terem tirado da mente o desagradável episódio de Paul, parecia que uma certa tristeza pairava no ar. Especialmente quando chegou o ocaso do último dia de viagem. E mais ainda quando o camareiro nos trouxe o chá matutino com o último jornalzinho de bordo, onde havia a mensagem de despedida do capitão Doubleday e as instruções para o desembarque...

No deck, vimos às últimas nuvens escuras desfazerem-se e as águas tomarem uma coloração cinza, peculiar aos mares do norte.

O Sr. Faversham disse que já podia até sentir o cheiro da Inglaterra e perguntou se todos se capacitavam de que, em menos de vinte e quatro horas, nos separaríamos e cada um de nós tomaria rumos opostos.

Rumos opostos! Como essas palavras soavam mal! Especialmente para os meus ouvidos.

Naturalmente, ainda haveria pela frente o jantar e o baile de despedida. Depois que a festa tivesse tomado impulso, que os prêmios fossem lembrança, haveria uma pequena comemoração íntima na cabine do chefe. Como disse Bess, seria uma despedida do chefe aos seus subordinados e, aproveitando o ensejo, uma comunicação oficial do noivado.

— Veja lá! Você tem que parar de chamá-lo de chefe, depois que casar — disse eu, rindo.

Mas Bess negou com a cabeça e caçoou, fazendo uma pose solene.— Você está completamente enganada. Ele faz questão que eu continue

a chamá-lo de chefe. Disse que será ainda melhor que nos velhos tempos, quando as mulheres casadas chamavam seus maridos de senhor. Disse que isso é bom para que a esposa se mantenha em seu devido lugar.

Aquilo era uma piada e, de fato, durante a comemoração, o chefe mostrou-se um tanto gozador, parecendo mais estar revivendo seu papel de Netuno do que comportando-se como um comissário, cônscio de seus deveres. Libertado de sua timidez, dava asas a seu bom humor.

No grande salão, o baile de despedida já tinha iniciado. O capitão Doubleday fez um discurso, agradecendo e desejando felicidades a todos e foi muito ovacionado. Chegou a vez da tripulação despedir-se entre si.

Sempre odiei despedidas. Sempre odiei a sensação de ver o tempo escoar-se como areia por entre os dedos. Nessa noite, odiei tudo isso, mais do

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que nunca.A reunião na cabine do chefe começara. Como na maioria dos navios de

passageiros, era uma cabine esplêndida e espaçosa, pois a usavam, esporadicamente, para festinhas informais dos turistas. Presumi que seria lógico que, tão logo eu chegasse lá, encontrasse o Dr. Lindsay entre os grupinhos de tripulantes.

Mas não o encontrei.— Pode ser que tenha ficado retido no departamento médico — disse

Bess, com muita ênfase, como se estivesse lendo meus pensamentos. — É possível que não queira deixar o grego nas mãos dos subordinados. Além disso, Trudy Regan está a fim de dar suas últimas paqueradas pelo navio.

É... Poderia ser isso mesmo.O chefe estava junto à comprida mesa do bufê, enchendo copos de

ponche, que ele chamou de “taças do amor”.Naturalmente, o primeiro brinde foi feito em homenagem a ele e a Bess.Fiquei tão feliz por eles, que meus olhos se encheram de lágrimas e

precisei ficar olhando para o chão, para não constrangê-los. Acho que também chorei, sentindo a ausência do Dr. Lindsay.

— Boa sorte em seu novo cargo! Uma longa vida e muitas felicidades! Todos levantaram as taças.— Queremos um discurso!O chefe, tão habituado a falar em público, perante adultos e crianças,

sempre tão desembaraçado nessas ocasiões, parecia que tinha perdido a língua. Ficou muito vermelho, tirou os óculos e começou a limpá-los. Pigarreou.

Então, a lembrança de sua interpretação do deus Netuno veio em seu socorro.

— Bem... — começou, com aquela voz tonitruante. — Agora vou ensinar a esta jovem Bess qual é a punição para quem se atreve a entrar nas águas encantadas do reino de Netuno. Minha sentença é que ela tenha muito trabalho comigo, pelo resto de sua vida!

Todos aplaudiram. O chefe deu início à punição, beijando a noiva.Todos começaram a tagarelar, formando pequenos grupos. Foi então que

o vi, junto a um dos grupinhos, falando com Brian Pulford e a comissária ruiva. Se ele também me viu, não deu mostras disso, e eu me senti fulminada por um pensamento pessimista: as oportunidades estavam definitivamente esgotadas.

— E falando em invasão de águas encantadas e outros crimes similares — senti a mão do chefe pousar no meu ombro — há ainda umas contas a acertar com você, minha cara senhorita. — Com intenção óbvia e muito dolorosa para mim, foi me levando em direção ao Dr. Lindsay. — Há um crime a ser resgatado. O de carregar dinheiro ilegal para bordo!

— Mas eu não estava sabendo! — protestei.— Não importa. Disciplina é disciplina! E é preciso fazer justiça, não acha,

doutor?Tínhamos chegado junto ao Dr. Lindsay. Movidos por um senso de

discrição, ou talvez pela expressão misteriosa que se estampava no rosto do chefe, a comissária e o fotógrafo foram juntar-se a outro grupo.

— É um crime terrível e merece também uma punição terrível.— Concordo — disse o Dr. Lindsay, muito gravemente.— Condeno-a a dar três voltas pelo deck e convoco este oficial para

acompanhá-la e obrigá-la a cumprir a pena. Carrasco! Cumpra o seu dever!Bess praticamente nos empurrou pela porta afora. Encontrei-me no

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corredor deserto, ao lado do Dr. Lindsay.Fiquei tão encabulada como se a professora me tivesse posto de castigo,

para fora da sala de aulas.É esquisito, mas quando a oportunidade, pela qual tanto se esperou, é

colocada debaixo do nosso nariz, não se sabe o que fazer com ela.Talvez essa fosse a última vez em que eu poderia falar a sós com ele. E

eu precisava dizer-lhe... O que era mesmo que precisava dizer-lhe? Já não sabia mais. Meu cérebro recusava-se a funcionar. Deu-me um

branco total. Minha língua estava dura e emperrada, minha bocai ressecada. Mesmo que eu me lembrasse das coisas certas a dizer, não conseguiria formar as frases ou encontrar um fio de voz que se fizesse audível.

Além disso, começava a ter a impressão de que eu tinha feito uma tempestade num copo de água. Talvez influenciada pela supertensão e superexcitação da operação resgate. Raciocinando melhor, agora me dava conta de que, naquela ocasião, na mureta da piscina vazia, ele tinha falado em termos muito genéricos. Realmente dissera que estava apaixonado, mas nunca que estava apaixonado por mim. Será que eu não estivera errada em minhas conclusões?

Naquele momento, pareceu-me que o mundo tinha virado do avesso, mostrando-me sua face mais escura e desolada.

Tomei coragem e olhei para ele e soube, imediatamente, que de fato, eu não errara. E o mundo tornou a virar para o lado certo, mostrando-me sua face mais alegre e feliz.

— Pois bem. Três voltas pelo deck, não é assim? — Com um sorriso muito doce, segurou-me pelo braço e abriu a porta de vidro, mantendo-a aberta para que eu passasse.

— Talvez eu lhe conceda uma redução de pena, por bom comportamento.

Naquela noite, soprava um vento sudeste. Podíamos ver o cordame e as lonas serem sacudidos pelo vento e ouvir o embate constante das ondas de encontro ao casco. Mas o Pallas Athene navegava tão estável e imperturbável como se estivesse deslizando por uma estrada asfaltada.

Só quando passamos em frente às vidraças do salão de baile, é que sentimos o pavimento vibrar, sacudido pelo movimento dos pés dos entusiasmados dançarinos.

Como era a última noite a bordo, tinha sido permitido às crianças ficarem acordadas até mais tarde. E elas corriam para baixo e para cima, invadindo o salão de baile, e enfiando chapéus de papel na cabeça dos adultos. Mas ninguém parecia aborrecer-se com aquilo. Todos estavam participando daquela brincadeira infantil. Todos, com exceção da condessa. Ela estava sentada a um canto do salão, concentrada numa partida de xadrez que disputava com Jonathan Archdale.

Seguimos andando, afastando-nos da luminosidade do salão de festas e penetrando, pouco a pouco, na penumbra, ainda seguidos pelo som distante da música.

Por alguns momentos, nenhum de nós falou.Ficamos encostados ao parapeito do deck, olhando para as ondas e para

o céu, cujas nuvens deixavam entrever, de vez em quando, uma estrela cintilante.

Senti suas mãos segurar a minha. Era quente e confortante. Senti que seu braço rodeava meus ombros. Apontou para a imensa chaminé que furava o

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céu, levando sua própria luz para junto das estrelas. Logo abaixo, viam-se as antenas do rádio e o disco amarelo do radar, que se movimentava numa eterna busca.

— E com toda essa aparelhagem, nossas mensagens andaram se extraviando por aí — sussurrou.

— Elas não se extraviaram. Foram enviadas para o endereço errado.— Ou pensávamos que o endereço estava errado. O que dá na mesma.— De qualquer forma, você nunca me disse qual era o texto da

mensagem.Segurou-me pelos ombros e fez com que o fitasse bem dentro dosolhos. Com um dedo, levantou-me o queixo.— Você não sabe? Não consegue ler?A expressão de seu rosto dizia melhor do que qualquer palavra qual era

essa mensagem. Mas, assim mesmo, eu queria que ele a dissesse para mim.— Está muito escuro aqui. Não dá para ler direito.Deu um profundo suspiro. Sendo um homem tão destemido e

determinado, pareceu-me estranhamente tímido naquele momento. Mais ainda do que o próprio chefe. Então, falou roucamente:

— Eu amo você, Cristie.Minha parte foi mais fácil. Só tive que fazer eco às suas palavras.— David... Eu também amo você, David! — Só para esconder sua

emoção, ele pretendeu não acreditar no que eu dissera. Afirmou que tinha certeza de que eu amara aquele desnudado vilão: Paul. Que essa espécie de patife sempre consegue conquistar as mulheres e mantê-las sob o seu domínio. É um dos truques da profissão de vigarista.

— Pobre Paul — falei com convicção. — Fico imaginando o que terá acontecido com ele. Nunca o amei, e você sabe muito bem disso.

Afagou meus cabelos.— Sei disso agora.— Mas você sabia, desde o começo, que havia alguma coisa de errado

com ele, não sabia?— Não tinha certeza. Apenas presumi. Lembre-se de que estou na

marinha há tempos. Em geral, esses tipos ficam bajulando o pessoal da tripulação para usá-lo como intermediário em suas transações ilegais. E se podem comprometer um de seus membros, não titubeiam em fazê-lo. Agem sempre assim. Vocês não foram prevenidos durante o curso que freqüentaram?

— Fomos. Mas não parecia o tipo de coisa que pudesse acontecer logo conosco. Aquilo mais parecia um enredo cinematográfico do que uma realidade.

David deu-me um ligeiro beijo e disse que quando eu chegasse à sua decrépita idade, saberia que a realidade, às vezes, é muito mais imaginativa do que os roteiristas de filmes a cores.

— E muito mais bonita e justa — disse eu, aconchegando-me a ele e sentindo-me incrivelmente segura. — Não é à toa que ele foi eliminado do filme, antes do final.

— Uma coisa ele demonstrou: que não tinha intenção de transformá-la em cúmplice. Foi pela maneira como ele conseguiu que você trouxesse a bordo aquele contrabando, em Tenerife.

— Ele agiu com muita inteligência. Praticamente esperou que eu me oferecesse como voluntária para carregar todos aqueles pacotes. Assim, eu nunca saberia o que continham.

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— Nunca pensou que você fosse derrubar aqueles relógios. Deve ter ficado muito assustado. Desconfiou que Brian Pulford quisesse tirar uma foto sua para compará-la com a dos arquivos da polícia italiana. Ele sabia que estavam no seu encalço. Então pensou que seria melhor aplicar um golpe rendoso, enquanto ainda tinha tempo. Foi então que resolveu roubar as jóias da condessa.

— Coitada da condessa! Já notou como ela se agarrou a Jonathan Archdale?

— Algumas mulheres nunca aprendem.— Alguns homens também não aprendem. Não aprendem que, se eles

dançam, flertam e compram jóias para a enfermeira-chefe, as pessoas podem interpretá-lo mal.

Mas ele não pareceu abalar-se. Tapou minha boca com um dedo.— Ahnn! Então é isso? Trudy contou-me uma porção de bobagens esta

manhã. Então comecei a somar dois mais dois, e deu... Cinco!— Se fosse assim, você também deveria ter confiado na minha palavra e

não ter feito tantos raciocínios e perguntas.— Deveria e não deveria. Pensando bem, o que tinha demais comprar

um presente de despedida para Trudy?— Se você quiser, agora poderá comprar Tenerife inteira para ela.— Ela é uma ótima enfermeira, apesar de ser um pouco desmiolada

demais para a profissão. E saiba que George, seu noivo, é um velho amigo meu.

— Eu adoro esse George. Adorei-o desde o primeiro momento em que ouvi falar nele.

— É, favor não me interromper. George fez um curso de treinamento comigo. Conheceu Trudy numa festa do hospital. Foi por isso que pediu-me para que olhasse por ela.

— E você conseguiu?— Sempre consegui olhar por alguém. Mas vou ter mais êxito quando

estivermos casados.Senti todo o meu ser convulsionado pela felicidade.— Repita isso! — pedi. — Quero ter certeza de que fui prevenida em

tempo.— Eu sempre desejei tomar conta de você, Cristie.— Mesmo quando pensou que eu estava envolvida com Paul?— Naquela ocasião, mais do que nunca.— Mesmo naquele primeiro dia em que você foi tão rude comigo e

declarou a Trudy que não gostava do meu tipo?— Bobagem! Eu disse que não gostava do tipo de gente como Paul. E

continuo não gostando. Agora menos ainda. E se eu fui rude... Bem... Você conhece aquele ditado... O ódio está a um passo do amor?

Respondi que sabia muito bem disso.— E só há uma maneira de provar que o ditado está certo. Estreitou-me

em seus braços e beijou-me longamente. Senti a aspereza de sua barba roçando-me o rosto e o gosto de seus lábios. Senti que estivera toda a minha vida à espera desse momento, como se tivesse passado por uma perigosa travessia e, por fim, chegasse a um porto seguro.

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Próximos livros – Resumos

BIANCA 53

NO SILÊNCIO DA NOITESheila Douglas

Que doce sensação, sentir o corpo dele apertando o seu, sentir o gosto de sua boca quente e úmida machucando seus lábios sedentos de amor! Polly pensava que iria enlouquecer de desejo nos braços de Geoffrey, mas de

repente ele a repeliu! “Você esteve à espera disto durante todos estes dias, não é, Polly1? Você é dessas garotas que não podem passar sem um homem!”

Por que Geoffrey havia lhe dito estas horríveis e inesperadas palavras? Por que, em lugar de amor, havia desprezo nos olhos dele? Só podia ser intriga,

intriga de outra mulher!

BIANCA 54

O ÚLTIMO CARINHOJudith Worthy

Fugir para bem longe, para um lugar do outro lado do mundo, e procurar esquecer o homem que a havia trocado por outra mulher, o homem que a

havia deixado chorando, às vésperas do casamento. Tonia precisava se livrar de tanto sofrimento e, desesperada, fugiu para a Austrália, indo viver ao lado de gente estranha, gente que não a fazia lembrar do noivo que a desprezara,

gente como Grant Thompson, o jovem e fascinante médico da pequena cidade de Moolbarra. Mas, esquecer um amor que chegou quase a destruir uma vida

não é tão fácil assim, descobriu Tonia...

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