BEZERRA, V A. Maxwell, a teoria do campo e a desmecanização da física.pdf

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    Valter Alnis Bezerra

    resumoEste artigo examina o desenvolvimento conceitual da teoria clssica do campo principalmente a ele-trodinmica de Maxwell, tal como apresentada nos artigos fundadores de 1856, 1861/1862 e 1864 e noTreatise on electricity and magnetism com vistas a compreender o seu papel na crise da imagem mecanicistade natureza. A posio de Maxwell como um personagem de transio entre a viso mecanicista e a ps-mecanicista emerge com clareza ao se analisar a tenso que se estabelece, em seus textos sobre eletrodi-nmica, entre a sua metodologia cientfica, por um lado, e a sua ontologia e axiologia cognitiva, por ou-tro. Essa tenso reflete a prpria tenso que existe entre mecanicismo e desmecanizao. Ateno es-pecial dada anlise do papel desempenhado pelo conceito de campo, os modelos mecnicos, as ana-logias, o formalismo lagrangiano e o sempre mutante conceito de ter. Para efetuar essa anlise, desen-volvemos uma taxonomia dos diferentes tipos de mecanicismo, valendo-nos ainda de conceitos prove-nientes do modelo reticulacional de racionalidade cientfica de Larry Laudan. Alm da eletrodinmicade Maxwell, so discutidos alguns elementos do perodo anterior a ele em particular o debate acerca daao a distncia e as concepes de Faraday sobre fora e campo o que permite contextualizar melhor oseu programa de pesquisa em eletrodinmica. Tambm se discutem alguns desenvolvimentos posterio-res a Maxwell em teoria do campo, visando obter uma noo mais clara de como o processo dedesmecanizao prosseguiu a partir da, at finalmente se completar no sculo xx, com o advento dasteorias da relatividade restrita e geral, a emancipao plena do conceito de campo e a derrocada da visode mundo mecanicista.

    Palavras-chave Ao a distncia. Analogias mecnicas. Campo eletromagntico. Desmecanizao.Einstein. Eletromagnetismo. ter. Faraday. Maxwell. Mecanicismo.

    Introduo

    Neste artigo pretendo discutir alguns aspectos do processo pelo qual o surgimento dateoria clssica (no sentido de no-quntica) do campo contribuiu para a derrocada daimagem mecanicista de natureza e de cincia a partir da metade do sculo xix. Consi-dero a teoria clssica do campo eletromagntico, ou eletrodinmica clssica, de Faraday,Maxwell e seus sucessores, como um elemento fundamental (ainda que no o nico)no processo de desmecanizao da fsica.

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    Uma descrio do pano de fundo em relao ao qual se deram os principais de-senvolvimentos inclui: as diferentes acepes assumidas pelo mecanicismo entreos sculos xvii e xix; a polmica sobre a existncia ou no de ao a distncia; e a proli-ferao das teorias de fluidos sutis. A isso sero dedicadas as sees 1 e 2. Desejo notarque realizo um breve recuo at os sculos xvii e xviii apenas com o intuito de delinear opano de fundo para o drama que ter lugar no sculo xix, e que constitui, esse sim, meufoco de interesse principal.

    A James Clerk Maxwell, visto aqui como um personagem central dentro do pro-cesso de transio entre uma fsica mecanicista e uma fsica desmecanizada, serodedicadas as sees 3 a 5. minha convico que o caso de Maxwell permite apreciar demaneira particularmente vvida as vicissitudes desse processo. Afinal, pode-se dizerque Maxwell viveu tal transio em sua obra. No processo de transio entre os doisenfoques, merecem destaque os seguintes aspectos: a renovao na ontologia das teo-rias fsicas, com a incluso do conceito de campo; a ampla aplicabilidade do formalismolagrangiano; e o insucesso na busca de mecanismos subjacentes para explicar as inte-raes. Na seo 4, apresento resumidamente as principais inovaes da teoria eletro-magntica de Maxwell, tal como exposta sucessivamente nos artigos de 1856, 1861/1862,1864 e no Treatise on electricity and magnetism, publicado pela primeira vez em 1873.

    Na seo 5, procuro mostrar que subsiste uma tenso entre a metodologia deMaxwell, por um lado, e a sua axiologia e ontologia, por outro. Nessa tenso podemosencontrar a prpria tenso que se estabelece entre mecanicismo e desmecanizao. Omodelo reticulado de racionalidade de Larry Laudan chamado a desempenhar umpapel relevante na anlise dessa tenso metodologia/axiologia.

    Maxwell ainda atribui uma funo ao ter em sua teoria eletromagntica. O de-bate do sculo xix sobre a dispensabilidade ou no do ter ser abordado na seo 6.Tambm cabe destacar o carter relativisticamente invariante da teoria eletromag-ntica, que seria reconhecido bem depois de Maxwell. Embora a eletrodinmica cls-sica tenha desempenhado um papel crucial, o processo de desmecanizao da fsicasomente iria se completar no incio do sculo xx, com a teoria do campo gravitacional(relatividade geral) de Einstein. A era relativstica ser considerada na seo 7, princi-palmente no que se refere a sua herana eletromagntica e emancipao do con-ceito de campo.

    Este texto insere-se em uma pesquisa que estou desenvolvendo atualmente, emuma investigao sobre a aplicao de modelos de racionalidade cientfica em par-ticular o modelo reticulacional, reformulado em termos de justificao coerencial eequilbrio reflexivo ao entendimento das transformaes metodolgicas e axiolgicasna fsica dos sculos xix e xx. Este texto descreve uma das etapas desse projeto.1

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    1 Prlogo: o(s) mecanicismo(s)

    Uma vez que se trata de estudar o processo de desmecanizao da fsica, comeo poranalisar o conceito de mecanicismo. Trata-se, claramente, de um termo multifacetadoe polissmico, que assumiu diferentes conotaes ao longo do tempo. Ser til, para anossa anlise subsqente, tentar identificar alguns dos significados que o termo podeassumir.2 A seguir apresentamos o esboo de uma taxonomia dos diferentes tiposde mecanicismo.

    (1) Mencionaremos em primeiro lugar o mecanicismo clssico, por as-sim dizer, que consiste no ideal de reduzir todos os fenmenos fsicos aum quadro conceitual cuja ontologia (este termo empregado aqui com acondio de que no se pense em ontologia no sentido contemporneo)inclui basicamente, como qualidades primrias, a matria e o movimen-to.3 Este seria um sentido ontolgico de mecanicismo, aquilo que se deno-mina tradicionalmente de uma concepo mecanicista de natureza.Costuma-se sublinhar, falando em termos negativos, que o mecanicismoclssico implica a rejeio de vrias teses: (i) a rejeio de quaisquer pro-priedades ativas da matria (isto , a matria essencialmente passiva);(ii) a rejeio das diferentes naturezas ou essncias especficas: o mundofsico teria, em vez disso, uma s natureza homognea; (iii) a rejeio daao a distncia: toda ao se d por contato; (iv) a rejeio das causas fi-nais, com a reduo de toda causalidade s causas eficientes; (v) a rejeiode agentes incorpreos capazes de mover os corpos materiais (esta tese,como se sabe, gera problemas se se desejar incluir a mente ou o esprito eexplicar as suas interaes com um corpo). Vale lembrar que a primeiraacepo de mecanicismo pode assumir uma forma plenista (rejeitando ovazio) ou uma forma atomista (admitindo o vazio).

    1 Apenas para referncia do leitor, as etapas anteriores do projeto versavam sobre a renormalizao na teoria qunticado campo (Bezerra, 2003a; 2004a) e sobre a antiga teoria atmica de Bohr, Sommerfeld, Kramers e Slater (Bezerra,2003b; 2004b).2 Para algumas dessas acepes, cf. Abrantes, 1998, p. 82-3 e 222-3, bem como os Cap. 2 e 3; Chalmers, 2001,p. 425-7; Rossi, 2001, p. 242-7; Turner, 1940; Westfall, 1977.3 Houve diferentes variantes dessa ontologia. Para Descartes, a qualidade primria por excelncia era a extenso, aopasso que para Galileu as qualidades primrias eram a grandeza, a figura e o movimento; para Boyle, a extenso, aforma, a impenetrabilidade e o movimento; e para Newton a extenso, a dureza, a impenetrabilidade, a mobilidadee a inrcia (cf. Abrantes, 1998, p. 60). Vale lembrar que o mecanicismo clssico, ao distinguir as qualidades prim-rias das secundrias e limitar rigorosamente a lista das qualidades primrias, favoreceu o projeto de matematizaoda cincia.

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    (2) Temos tambm o mecanicismo no sentido de um projeto de formu-lar explicaes mecnicas para os fenmenos fsicos, isto , especificandocausas eficientes e mecanismos internos pelos quais as aes so efetuadas.Podemos dizer que se trata aqui de um mecanicismo num sentido maismetodolgico.(3) Temos ainda o mecanicismo no sentido de atribuir ao ramo da fsicaconhecido como mecnica (a cincia do movimento) uma posio espe-cial. Essa singularidade da mecnica pode ocorrer sob, pelo menos, duasformas. (3a) Por um lado, ela pode significar a busca de teorias que persi-gam o exemplar (no sentido kuhniano) da mecnica clssica, ou seja,procurar formular teorias dentro de base conceitual e/ou uma estruturamatemtica que lembra ou segue o modelo da mecnica clssica. Este ummecanicismo que poderamos chamar de terico ou estrutural.(3b) Por outro lado, pode se tratar de atribuir mecnica um estatutologicamente mais fundamental dentro do edifcio do conhecimento cien-tfico: a mecnica seria uma teoria mais fundamental do que as outras teo-rias fsicas. Desse modo, as outras teorias deveriam ser compatveis com amecnica (ou, nas verses mais radicais, redutveis a ela). Novamente te-mos aqui um mecanicismo de tipo metodolgico.(4) Finalmente, temos ainda o mecanicismo no sentido de uma imagemdo universo como mquina ou, de maneira mais restrita, um determi-nado sistema como sendo semelhante a uma mquina. Este um mecani-cismo metafsico extremamente abrangente.

    Note-se que, ao propor este ensaio de taxonomia dos mecanicismos, no te-nho a preocupao de apresent-los em ordem cronolgica, nem de mapear a gnesede cada um, ainda que historicamente eles possam ter surgido em uma certa seqnciae at ter dado origem uns aos outros.4 Para os propsitos deste artigo, eles esto iden-tificados numericamente apenas para facilidade de referncia posterior. Tampoucotenho a pretenso de investigar a questo das relaes entre essas formas de mecani-cismo, em particular a existncia ou no de relaes de incluso isto , se algumadelas constitui um caso particular de alguma outra embora possa ser verdade quealgumas so mais amplas e outras mais restritivas. Finalmente, no tenho aqui a preo-

    4 Em particular, possvel que o mecanicismo de tipo (4) tenha sido um dos mais antigos dentro da histria dacincia, com a metfora da mquina substituindo gradativamente a metfora do organismo e proporcionando assimum novo pano de fundo metafsico.

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    cupao de atribuir os diferentes tipos de mecanicismo a autores especficos, a escolasfilosficas ou a perodos histricos particulares. Todos estes tpicos podem ser inte-ressantes em si mesmos, porm seu estudo nos afastaria demasiado do nosso foco e,ademais, certamente demandaria um outro texto.

    As acepes de mecanicismo acima certamente no so equivalentes (aindaque possam estar relacionadas entre si das maneiras complexas acima apresentadas,como alertamos). Para ilustrar esse fato, podemos imaginar o caso de um filsofo na-tural que tem uma concepo geral de corpo humano (ou, mais geralmente, de qual-quer ser vivo) como uma mquina (mecanicismo de tipo 4) sem, no entanto, defenderuma ontologia composta exclusivamente por matria-e-movimento (mecanicismo detipo 1), nem utilizar unicamente teorias formalizadas maneira da mecnica clssica(mecanicismo de tipo 3a). Outro exemplo: um cientista pode formular teorias que vi-sam especificar mecanismos para as aes fsicas (tipo 2), porm empregando umaontologia que inclui o conceito de fora (ou mesmo o conceito de energia), que, emboraescape da ontologia mecanicista restrita (tipo 1), ainda seria compatvel com os tipos(3a) e (3b). H outras assimetrias interessantes: por exemplo, uma teoria que adote oformalismo lagrangiano estar acompanhando a mecnica analtica (clssica) da faseposterior a Lagrange, aderindo, portanto, ao mecanicismo no sentido (3a); porm, umavez que o formalismo lagrangiano remove do primeiro plano as referncias aos meca-nismos internos dos sistemas, essa mesma teoria estar ao mesmo tempo se afastandodo mecanicismo no sentido (2). (Este exemplo ser importante quando discutirmos ocaso da eletrodinmica de Maxwell.)

    primeira vista, pareceria que o mecanicismo um tipo de materialismo. Po-rm, luz da distino entre os tipos de mecanicismo, que fiz acima, h certas nuanasque precisariam ser consideradas. Por exemplo, uma teoria fsica do sculo xix pode-ria ser mecanicista nas acepes 3 e 4 que mencionei acima (as mais amplas), masincluir o conceito de energia, e assim poder-se-ia dizer que escapa ao materialismo.Tambm cumpre distinguir mecanicismo de determinismo. Ainda que, historicamen-te, muitos mecanicistas clssicos (de tipo 1) tenham sido deterministas, a partir domomento em que consideramos as outras acepes do termo, vemos que o mecanicis-mo e o materialismo, por um lado, e o determinismo, por outro, podem se desligar.Exemplificando: a teoria cintica dos gases, interpretada em termos de mecnica esta-tstica, pode at empregar uma ontologia materialista e mecanicista (isto , partculasem coliso), porm pode ser intepretada de forma determinista ou indeterminista.Vale lembrar que, numa perspectiva mais contempornea, o mecanicismo e o determi-nismo, por sua vez, no devem ser associados com a propriedade da previsibilidade, comobem mostra o exemplo do caos determinstico: uma teoria como a mecnica clssica aparentemente das mais bem comportadas pode, sob certas condies, descrever

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    sistemas que apresentam um comportamento catico e totalmente imprevisvel (cf. Paty,2004b, seo 3). Finalmente, cumpre separar mecanicismo de reducionismo. Como mos-tra Andrew Pyle (1995, apndice 5), h concepes explicitamente reducionistas quenada tm de mecanicistas.

    Uma comparao assim seca dos diferentes tipos de mecanicismo no pode dar adimenso do que representou o mecanicismo para a cincia moderna. Nem seria pos-svel, num texto curto como este, transmitir a grandiosidade do programa mecanicis-ta, a riqueza dos resultados que ele produziu e a profundidade dos debates que origi-nou. O ideal mecanicista constituiu uma das mais poderosas tradies intelectuais dacincia ocidental, proporcionando o pano de fundo para grande parte da cincia damodernidade. Trata-se, talvez, da imagem de cincia e de natureza no sentido propos-to por Abrantes (1998) historicamente mais importante da fsica moderna. No exagero dizer que a maior parte da fsica dos sculos xvii a xix girou em torno da con-cepo mecanicista, seja por adeso, seja por oposio. Por isso mesmo, a sua derroca-da representou uma mudana conceitual com implicaes de enorme alcance. Devoobservar que, embora a influncia do mecanicismo tenha se estendido a reas to di-versas como a mecnica, a ptica, a astronomia, a cosmologia, a qumica, a fisiologia, ateoria da percepo, a gerao dos organismos vivos etc. (e at a poltica), aqui irei mereferir apenas ao mecanicismo na fsica.

    2 O campo, a ao a distncia e os fluidos sutis

    Pode-se dizer, sem grande margem de erro, que os conceitos de fora e de campo cons-tituram elementos de complicada assimilao dentro da ordem mecanicista. A dis-cusso sobre a incluso do conceito de fora na fsica, e sobre o estatuto desse conceitodentro da teoria fsica, principalmente em Descartes e Newton, uma questo extre-mamente complexa de exegese, objeto de uma discusso j bastante extensa na litera-tura filosfica, e que deixo para os especialistas nesses autores. No presente texto ire-mos concentrar nossa ateno no conceito de campo e nesta seo iremos esboaralguns elementos do contexto em que surge esse conceito.

    Cabe aqui um esclarecimento: o que se quer dizer ao empregar o termo cam-po? Faremos um parntese para uma breve reconstruo do significado do conceito.A reconstruo apresentada nos pargrafos seguintes feita segundo a ordem das ra-zes, que no corresponde estritamente ordem cronolgica. Assim, o leitor ir per-ceber que, por enquanto, escamoteamos certas etapas do desenvolvimento histrico,sendo os episdios histricos mencionados mais a ttulo de exemplo ilustrativo. A nar-rativa histrica ser retomada mais adiante, quando ento o conceito de campo ir

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    emergir mais claramente como uma construo temporalmente estendida. Para umrelato histrico amplo, consultar o artigo de Ernan McMullin (2002).

    No contexto da fsica, o termo campo denota a capacidade das foras de agirematravs do espao, sem se restringir ao por contato, mas tambm sem se confundircom a ao a distncia. A caracterizao mais informal e geral do conceito de campotem a ver com a noo de zona de influncia de um corpo. As concepes de Keplersobre a gravitao e o magnetismo podem exemplificar essa noo (cf. McMullin, 2002,p. 16-20). Um aspecto que pode ser relacionado a ela a condio disposicional: dizerque existe um campo numa dada regio do espao significa que, se um corpo fosse co-locado na posio X dentro dessa regio, ento ele sofreria a ao de uma fora com taise tais caractersticas mesmo que o corpo de prova no tenha sido efetivamente colo-cado ali.5 Essa condio, segundo alguns intrpretes como Howard Stein, seria o quecaracteriza a noo de campo em Newton (Stein, 1970, p. 265-9; cf. tambm McMullin,2002, p. 20-4). Em particular, a condio disposicional claramente satisfeita porconstrutos matemticos como, por exemplo, os potenciais, cuja teoria foi formuladapor Laplace e Poisson.6

    A condio disposicional necessria, porm insuficiente, para caracterizar ocampo, na medida em que ela poderia ser satisfeita tambm por uma ao a distncia(como observa Mary Hesse, em sua interveno na discusso do artigo de Stein, 1970,p. 298-9; cf. McMullin, 2002, p. 22; e ainda Hesse em seu livro Forces and fields, apudMcMullin, 2002, p. 28-9). Pode-se ento acrescentar viso disposicional certas con-dies mais fortes, como a idia de que a propagao da ao por meio do campo levaum tempo finito (isto , no instantnea), e/ou a idia de que a ao se d por conti-gidade, entre elementos infinitesimais adjacentes que, juntos, constituem uma quan-tidade finita. Esta ltima condio expressa, com efeito, a noo de causalidade fsica(cf. Paty, 2004a) e, para ser expressa com rigor, requer o emprego do instrumentalformal da anlise.

    A questo que se coloca a seguir de como dotar esse campo, cujas propriedadesmatemticas esto dadas, de um estatuto ontolgico. Isso pode ser conseguido acrescen-tando uma condio de existncia fsica, o que pode ser feito de diferentes maneiras,

    5 Note que a descrio disposicional atribui disposies a pontos do espao. Ela no deve ser confundida com a con-cepo que atribui propenses de atrao e repulso prpria matria, como sendo constitutivas dela trata-se dedois enfoques diferentes. (Este ltimo pode ser encontrado tanto em certas pocas e domnios da cincia modernacomo na cincia pr-moderna; tambm subsiste nas fronteiras entre cincia e pseudocincia.)6 Segundo Bork (1967), que discute a relao entre os conceitos de campo e potencial na obra de Maxwell, existe umcerto preconceito, surgido no eletromagnetismo da passagem do sculo xix para o xx, no sentido de que, ao passoque o campo uma entidade real, o potencial seria apenas uma fico matemtica introduzida com o objetivo deresolver problemas. Ele procura mostrar que na obra de Maxwell no se encontram evidncias de tal preconceito.

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    7 J numa linguagem plenamente contempornea (isto , aquela da fsica moderna, segundo a terminologia dosfsicos), o campo , minimamente, uma atribuio de uma quantidade a um ponto do espao (ou do espao-tempo).Essa quantidade pode ser:(a) um escalar, como por exemplo uma distribuio de temperatura ou de densidade num slido;(b) um vetor, como por exemplo o campo eltrico ou o campo gravitacional clssicos, ou a distribuio de velocida-des vetoriais num fluido, ou ainda o gradiente de um campo escalar. Um exemplo de gradiente o quo espremidasesto as curvas de nvel de um mapa topogrfico, em cada ponto, ou ento as isbaras de um mapa meteorolgico: emambos os casos, o estreitamento expressa o quo rpido, e em que direo, aumenta uma certa quantidade escalar,como a altitude ou a presso atmosfrica;(c) um tensor, como o campo gravitacional de Einstein, ou o campo eletromagntico na forma covariante.A esta altura, o que se tem ainda uma descrio do campo basicamente como um construto matemtico essencial-mente uma aplicao de um domnio (espacial ou espao-temporal) em um determinado contradomnio. Quando oconceito adquire estatuto ontolgico? No contexto no-quntico, isso acontece quando o campo identificado comum espao-tempo que se afasta do estado plano (no sentido mtrico), curvado pela presena de uma densidade, sejade matria, seja de energia. No contexto quntico, o campo recebe estatuto ontolgico quando definido como umainterao que se d entre tipos especficos de partculas e, principalmente, que mediada por quanta dotados depropriedades especficas (por exemplo, propriedades de simetria). (Note-se que, na descrio proposta pela teoriaquntica de campos, os campos no so mais descritos por funes, mas sim por operadores.)

    postulando, por exemplo: (a) a existncia de um meio sutil interveniente; (b) a exis-tncia de linhas de fora (postulada, como veremos, por Faraday embora ele hesi-tasse em fazer hipteses definidas acerca da natureza dessas linhas de fora e preferissemanter-se no terreno das analogias fsicas, como o feixe de elsticos ou as figuras for-madas pela limalha de ferro); (c) ou ainda a capacidade de conter energia (como afir-ma Maxwell, como veremos adiante).

    Esse estatuto ontolgico se completa quando se afirma a autonomia ontolgica,com o campo sendo uma entidade distinta da matria e irredutvel a ela. As trs per-guntas de Faraday sobre as aes fsicas expressam critrios para avaliar em que me-dida uma interao requer a postulao de um entidade fsica mediando as aes (veradiante, nesta mesma seo). Notemos que a postulao de um meio sutil ou, mais tar-de, de um ter equivale a uma nova ampliao no quadro ontolgico (que passa a sercomposto por matria, campo e meio sutil). Notemos tambm que, quando se postulaum ter mecnico, de certa forma faz-se regredir essa autonomia ontolgica conquis-tada pelo campo, na medida em que o que referido como campo acaba se reduzin-do, na realidade, s propriedades do ter. Com isso, terminamos o nosso parntesesobre o significado do conceito de campo.7

    A contribuio da teoria do campo para a desmecanizao da fsica pode ser ana-lisada sob vrios ngulos. Um dos mais importantes diz respeito ao modo ou processode transmisso das aes fsicas e ontologia que mobilizada para formular esse modoou processo. Nesse sentido, podemos tomar como ponto de partida a noo mecanicistamais estrita de ao (mecanicismo de tipo 2 acima), que era a ao por contato (impac-to). Essa ao por contato poderia ser formulada supondo-se um pleno (Descartes) ou

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    supondo-se tomos no vazio (Boyle, Gassendi). A ao por contato opunha-se ao adistncia, sem mediao, noo que sempre parecia rondar quando se tratava dos fe-nmenos da atrao gravitacional, da eletricidade e do magnetismo, mas que era con-siderada pouco aceitvel por muitos filsofos, uma vez que se aceitava que a matriano pode atuar onde no est.

    A teoria do campo ir gradualmente ocupar um espao conceitual intermedirioentre a ao a distncia e ao por contato a saber, a ao contnua. Porm, a teoriapura do campo no o nico tipo de teoria que pode se encaixar nesse espao: alitambm podem alojar-se as teorias dos meios sutis e do ter, bem como teorias hbri-das de campo-com-ter.

    verdade que j com respeito teoria da gravitao de Isaac Newton colocam-sequestes como: se Newton admitia ou no uma ao instantnea a distncia; se ele acei-tava ou no a existncia de um ter gravitacional (uma vez que, ao que parece, o terluminfero era aceito por ele); se a noo de campo ainda meramente disposicionalou se o campo possui uma existncia autnoma; e finalmente, dependendo das res-postas s questes anteriores, a questo de se ele j tem ou no uma teoria do campopropriamente dita. Estas so questes controversas; e a sua discusso uma tarefa quedeixamos para os especialistas em Newton. Alguns autores que se debruaram sobre otema so Howard Stein (1970); Mary Hesse, nos comentrios a Stein (1970); e ErnanMcMullin (2002). (Em particular, a discusso feita por esses autores revela que, paraestudar o ponto de vista newtoniano acerca desses assuntos, preciso examinar outrostextos newtonianos alm do Principia.)

    No perodo que se seguiu publicao do Principia de Newton, durante aproxi-madamente a primeira metade do sculo xviii, o mtodo indutivo adquiriu proemi-nncia, e o mtodo de formular hipteses sobre entidades ou processos no direta-mente observveis havia cado em desfavor entre os filsofos naturais.8 Porm, apsesse perodo anti-hipottico, por assim dizer, o mtodo das hipteses voltou gradual-mente a estar em voga em meados do sculo xviii. Em particular, para a explicao dosfenmenos da eletricidade, magnetismo, calor e gravitao, os filsofos passaram ainvocar uma grande variedade de fluidos sutis ou meios sutis que poderiam, entreoutras funes, mediar as vrias aes fsicas. (Vale lembrar que os conceitos de ma-tria sutil e fluido sutil remontam pelo menos aos sculos xvi e xvii isso para nofalar em noes muito mais antigas como a quintessncia.)

    8 Determinar se Newton respeitou os seus prprios pronunciamentos metodolgicos (isto , se a sua metodologiaimplcita estava de acordo com a sua metodologia explcita) e se ele implementou em sua prpria cincia a famosamxima contra as hipteses acerca de inobservveis (hypothesis non fingo), bem como avaliar se sequer possvelimplementar tais teses, um outro conjunto de questes de exegese newtoniana de que no trataremos aqui.

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    Mapear todo o verdadeiro labirinto de tipos de fluidos sutis dos sculos xviii exix onde despontam nomes como George LeSage, David Hartley, Benjamin Franklin seria uma tarefa quase impossvel. Mesmo mapear uma parte dele seria invivel numtexto como este. Vamos nos limitar a dizer que os meios sutis da fsica foram se tornandocada vez mais complexos e menos compatveis com as teses mecanicistas, na medidaem que se tratava de um tipo de matria diferente da ordinria e sujeita a interaesdiferentes, s vezes com as suas partculas sendo dotadas at de poderes ativos. (Asmarchas e contramarchas do mtodo das hipteses, bem como o debate sobre os fluidossutis, so mapeados e analisados por Laudan em Science and hypothesis, 1981.)

    Mais tarde, no incio do sculo xix, um evento particularmente importante foio ressurgimento da teoria ondulatria da luz de Young, Fresnel e outros. A teoria on-dulatria (que tem suas razes em Huygens) acabou por revelar um poder explicativoe uma consilincia superiores aos da teoria corpuscular (que tem Newton como pio-neiro) e parecia apontar claramente para a necessidade de um meio para a transmissodas vibraes luminosas. A fsica britnica do sculo xix se notabilizaria pelo desenvol-vimento de teorias altamente sofisticadas sobre o ter. A propsito, deve-se notar queo xito das teorias que empregavam hipteses sobre entidades inobservveis conferiuum novo flego ao mtodo hipottico-dedutivo. Laudan (1981) analisa esse processode interao no-hierrquica entre teorias e metodologias, onde no s as metodologiaspodem guiar a construo e a avaliao das teorias, mas tambm o desempenho dasteorias pode levar a uma reavaliao e at a uma reviso de metodologias. No deixoude haver polmica, claro, quanto ao importe metodolgico da adoo de hipteses(como as do ter): o exemplo mais clebre foi o confronto entre o indutivista J. S. Mille o hipottico-dedutivista William Whewell.

    Nesse contexto surgem os fundadores do eletromagnetismo moderno: Faraday eMaxwell, alm de William Thomson (Lord Kelvin) e outros. A pesquisa dos eletricis-tas britnicos era centrada explicitamente no imperativo de construir uma teoria emque a ao eletromagntica no se desse a distncia, como era defendido pelos fsicoseuropeus do continente (como Ampre, F. Neumann e W. Weber), mas, ao contrrio,se propagasse de maneira mediata. Ao longo de uma longa, laboriosa e cuidadosa in-vestigao, que se estendeu por muitos anos, Faraday foi levado a concluir que seusresultados experimentais acerca da induo eletromagntica poderiam ser melhor ex-plicados por meio da hiptese das linhas de fora que de algum modo preenchem oespao entre os corpos em interao. J se trata aqui de um tipo de ao diferente daao por contato e da ao a distncia, a saber, uma ao contnua. (O desenvolvimentoda teoria matemtica do campo eletromagntico por Maxwell tambm pode ser vistocomo um [grande e decisivo] momento da defesa da ao contnua.)9

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    Faraday inclusive formulou um conjunto de critrios para determinar quandouma ao se d a distncia (como ento se acreditava ser o caso da gravitao) e quandoela contnua, em particular atravs de linhas fsicas de fora (ver McMullin, 2002, p.36; Hesse, 1955, p. 345-7; Hesse, comentrio a Stein, 1970, p. 298-9; Doran, 1975, p.178). Os trs principais critrios so os seguintes:

    (i) A transmisso da ao afetada por modificaes materiais que ocor-ram no espao entre os corpos (resultando, por exemplo, em curvatura daslinhas ou efeitos de polarizao)? Uma resposta negativa constitui evidn-cia no sentido de que a transmisso da ao se d a distncia. Uma respostaafirmativa aponta para uma ao por linhas de fora.(ii) A transmisso da ao leva tempo? Uma resposta negativa constituiforte evidncia em favor de uma ao a distncia. Uma resposta afirmativaaponta no sentido de que algum processo de propagao est ocorrendono espao interveniente.(iii) A transmisso depende da condio do corpo que recebe a ao? Umaresposta afirmativa consistente com a ao a distncia.

    Faraday tambm considera um quarto critrio para as linhas de fora [no men-cionado por Hesse, e que McMullin considera ser no inteiramente claro]: apresen-tar uma capacidade limitada de ao. No o discutiremos aqui.

    Faraday considera cinco exemplos de aplicao desses critrios, a saber, aos casosda gravitao, radiao luminosa, induo eltrica, conduo eltrica e magnetismo. Nocaso da gravitao, as respostas que Faraday encontra so: negativa para (i) (a influncia

    9 Andr-Marie Ampre (1775-1836) e Michael Faraday (1791-1867) foram contemporneos e conheciam o trabalhoum do outro. Ampre, a quem se deve o termo eletrodinmica, e que foi chamado por Maxwell o Newton daeletricidade (cf. Maxwell, 1954 [1891], v. 2, p. 175), era um fsico matemtico; tomou como ponto de partida osexperimentos de rsted e foi influenciado pelas noes e tcnicas da fsica newtoniana. Privilegiava o raciocniomatemtico e encarava os experimentos mais como teoremas reificados do que como campo de provas ou comoexplorao de um territrio novo. Alis, quando realizava experimentos, Ampre estava mais interessado em sali-entar aspectos qualitativos do que em obter medidas quantitativas.

    Faraday, por outro lado, era um experimentador brilhante, sistemtico e laborioso, que no dominava a mate-mtica (como ele prprio reconheceu) e no tinha uma base terica muito substancial. Diferentemente de Ampre,que simplesmente encomendava a construo dos instrumentos de que necessitasse, Faraday construa seus pr-prios equipamentos, com criatividade e rapidez. Ele estava mais precupado em estabelecer correlaes entre os seusmuitos experimentos do que em construir um edifcio terico bem fundamentado. Embora Faraday fosse, com suaslinhas de fora, o inaugurador de um caminho que acabaria desembocando na noo de campo, faltavam-lhe aindaos instrumentos da anlise, que permitiriam formular uma noo de campo como algo que se propaga do prximo aoprximo, por assim dizer. (Sobre Ampre, cf. Darrigol, 2000, Cap.1, sees 1.2 e 1.4. Sobre Faraday, cf. as sees 1.3e 1.5. Para uma comparao entre os estilos de ambos, ver as sees 1.3.3 e 1.6.)

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    se d em linha reta, independentemente da presena de outros corpos), aparentementenegativa para (ii), e positiva para (iii) (depende da massa do corpo), constituindo umaforte indicao no sentido de que a ao gravitacional se d a distncia. No caso dosraios luminosos, as repostas so: afirmativa para (i) (direo de propagao e polariza-o que dependem das propriedades do meio), afirmativa para (ii), e negativa para (iii),indicando que os raios tm existncia fsica prpria. No caso da induo eltrica, asrespostas so, respectivamente: afirmativa (as linhas de induo so afetadas, poden-do ser curvadas), aparentemente negativa, e afirmativa (depende de um corpo de rea-o), sugerindo que o processo de propagao tem existncia prpria ainda que de-penda das duas extremidades das linhas de fora. No caso da corrente eltrica, asrespostas so: enfaticamente afirmativa (a corrente depende essencialmente da exis-tncia de um meio condutor), afirmativa e afirmativa (depende das duas extremidades),indicando claramente uma ao contnua. Finalmente, no caso do magnetismo, Faradayresponde de forma aparentemente negativa a (i) (exceto no caso do ferro), aparente-mente negativa a (ii) e afirmativa a (iii) (depende dos plos), o que poderia fazer suporuma ao a distncia (como de fato aconteceu historicamente). Porm, aqui Faradayfaz notar uma propriedade peculiar: as linhas de ao magntica se mostram curvadas,o que para ele muito difcil de reconciliar com a ao a distncia, e algo difcil deconceber exceto supondo-se algo isto , linhas fsicas de fora magntica com existnciaautnoma no espao interveniente. Essas concluses de Faraday a respeito das diferentesinteraes, em vista dos diferentes critrios, esto sintetizadas no Quadro 1.

    Quadro 1. Os critrios de Faraday para a determinao do tipo de ao.

    Critrio Gravitao Luz Induo Corrente Magnetismoeltrica eltrico

    Influncia do meio N S S S N

    Tempo para propagao N N N S N

    Dependncia da extremidade final S N S S S

    Concluso ao a raios (linhas linhas de conduo linhas de foradistncia de propagao fora (contnua) em vista da

    contnua) pelo meio curvatura

    Podemos dizer, fazendo uma analogia com a prpria ptica, que o meio postula-do pelas embrionrias teorias do campo (aqui o termo ainda vai entre aspas) e o meioluminfero da teoria ondulatria constituem duas linhas de teorizao que seriam le-vadas a interferir construtivamente com Maxwell.

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    3 Maxwell

    James Clerk Maxwell (1831-1879), em sua investigao terica, fortemente inspiradana pesquisa de cunho mais experimental de Faraday, refletiu longa e profundamentesobre como se poderia entender as linhas de fora de Faraday. O desenvolvimento daeletrodinmica de Maxwell est representado por uma srie de trabalhos que se iniciaem 1856, com o artigo On Faradays lines of force, prossegue com On physical linesof force, de 1861/1862, chega a A dynamical theory of the electromagnetic field, de1864, e culmina no monumental A treatise on electricity and magnetism, de 1873 (queteve tambm edies em 1881 e 1891). A teoria de Maxwell, ele mesmo um virtuose dafsica matemtica, celebrada, muito justamente, pela faanha de unificar os domni-os da eletricidade, do magnetismo e da ptica. Em certo sentido, ela j uma teoria docampo; em outro sentido, como veremos, ainda no.

    As famosas equaes diferenciais parciais que Maxwell formulou para o campoeletromagntico (hoje escritas como quatro equaes) continuam sendo aceitas at hoje(exceo feita, a rigor, ao domnio dos fenmenos eletrodinmicos na escala quntica).Em notao moderna, as equaes de Maxwell so:

    rot E = B/t (lei da induo de Faraday)rot H = D/t + J (lei de Ampre com corrente de deslocamento)div D = (lei de Coulomb generalizada)div B= 0 (inexistncia de monopolos magnticos),

    (sendo que D = E e H = (1/)B nos meios isotrpicos). No vcuo (isto , fora dos meiosmateriais), elas se tornam:

    rot E = B/trot B = (1/c)E/t + 0Jdiv E = /0div B= 0,

    (sendo que D = 0E, H = (1/0)B e 00 = 1/c). E, no vcuo e na ausncia de fontes (car-gas e correntes), tornam-se:

    rot E = B/trot B = (1/c)E/tdiv E = 0div B= 0.

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    na Parte iii do artigo A dynamical theory of the electromagnetic field(Maxwell, 2003c [1864]) que, pela primeira vez, Maxwell formula por extenso todas assuas equaes do eletromagnetismo, as quais sero reapresentadas nos Caps. viii e ixda Parte iv, Vol. 2 do Treatise (Maxwell, 1954 [1891]). Em A dynamical theory..., Maxwellno utiliza a notao vetorial costumeira hoje em dia, mas escreve todas as equaesem termos de componentes. O potencial vetor no utilizado meramente como umexpediente matemtico conveniente, como chegaram a pensar alguns maxwellianosposteriores, mas desempenha um papel fundamental na formulao da teoria. J noTreatise, Maxwell utiliza a notao de componentes, mas tambm utiliza ocasionalmentea notao vetorial e a notao de quaternions. Na notao de Maxwell, (p, q, r) so ascomponentes do vetor (densidade de) corrente de conduo, modernamente designa-do por J, enquanto que (, , ) so as componentes do vetor campo magntico H, e (f,g, h) so as componentes do vetor deslocamento eltrico D. Alm disso, (P, Q, R) so ascomponentes do vetor campo eltrico E (que ele chama de electromotive force no arti-go e de electromotive intensity no Treatise) e (F, G, H) so as componentes do potencialvetor A (que ele chama de electromagnetic momentum no artigo e de electromagneticmomentum, vector potential e de electrokinetic momentum no Treatise). Todas essasnotaes esto sintetizadas no Quadro 2.

    Quadro 2. A notao de Maxwell emA dynamical theory of the electromagnetic field (1864) e no Treatise (1891).

    Componentes Representam Notao vetorial moderna(p, q, r) (densidade de) corrente de conduo J

    (, , ) campo magntico H(magnetic intensity em 1864, magnetic force no Treatise)

    (a, b, c) induo magntica ou (densidade de) fluxo magntico B(magnetic induction no Treatise) (= rot A)

    (f, g, h) deslocamento eltrico D

    (P, Q, R) campo eltrico (electromotive force em 1864, Eelectromotive intensity no Treatise) (= A/t)

    (F, G, H) potencial vetor (electromagnetic momentum em 1864; Avector potential, electromagnetic momentum

    e electrokinetic momentum no Treatise)

    Assim como as equaes do campo eletromagntico, tambm a descrio deMaxwell das ondas eletromagnticas continua vlida ainda hoje. Como se sabe, a deriva-o de uma equao diferencial parcial descrevendo uma onda transversal que se pro-paga com a velocidade da luz depende da simetria entre os campos eltrico e magntico

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    nas equaes de Maxwell. Olhando retrospectivamente, vemos que a introduo dotermo da corrente de deslocamento D/t que permite instaurar essa simetria. (Comrespeito questo da interpretao da corrente de deslocamento, pode-se consultarRoche, 1998.) Outros argumentos de simetria estaro envolvidos na assimilao doeletromagnetismo pela relatividade restrita, como veremos na seo 7.

    Tambm importante o fato de o campo eletromagntico de Maxwell (bem comoa onda eletromagntica) possuir energia, como viria a se demonstrar. O prprio Maxwellj dizia: Ao falar sobre a Energia do campo... desejo ser entendido literalmente (2003c[1864], p. 564), muito embora ele ainda afirmasse que essa energia uma energia me-cnica. Desse modo, o campo j no mais apenas uma propriedade disposicional (isto, se uma partcula fosse colocada em tal ponto do espao, ento ela sentiria tal fora),mas sim uma entidade fsica com existncia real. Assim, aponta-se claramente parauma transformao na ontologia bsica da fsica. Porm, a rigor, a teoria de Maxwellainda no plenamente, e exclusivamente, uma teoria do campo eletromagntico. tambm uma teoria do ter eletromagntico (que ele acabaria concluindo ser o mesmoque o ter luminfero).

    4 Os trs grandes artigos e o Treatise

    Nesta seo, irei destacar algumas caractersticas fundamentais dos quatro principaistextos de Maxwell os artigos On Faradays lines of force, On physical lines of forcee A dynamical theory of the electromagnetic field, e o Treatise on electricity and magnetism.

    (I) Em On Faradays lines of force (Maxwell, 2003a [1856]), por exemplo, Maxwelladota uma abordagem analgica e desenvolve um modelo em termos da dinmica dosfluidos em tubos para entender as linhas de fora de Faraday. (Cabe lembrar que a di-nmica de fluidos de Euler, DAlembert e outros constitui o primeiro tratamento sis-temtico das aes fsicas nos meios contnuos. O prprio programa de matematizaoda fsica atravs da anlise comea ali, mostrando desde ento o poder da anlise paralidar com a noo de proximidade e, por extenso, com os conceitos [como o de campo]que utilizam essa noo.) Maxwell inicia o seu artigo salientando que, em sua opinio,o estado atual da cincia eltrica parece peculiarmente desfavorvel especulao,devido situao ento reinante de, por um lado, insuficincia de dados experimen-tais em determinadas reas, e, por outro, escassa integrao entre as diferentes partesdo edifcio terico (Maxwell, 2003a [1856], p. 155). Nessas condies, uma teoria daeletricidade no poderia ser proposta, escreve ele, a menos que exibisse a conexono apenas entre a eletricidade em repouso e a eletricidade em correntes, mas tambm

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    entre as atraes e efeitos indutivos da eletricidade em ambos os estados. A formamatemtica das leis empricas ento disponveis leis com as quais as equaes de talteoria deveriam ser compatveis era conhecida, lembra Maxwell, constituindo umcorpo considervel de matemtica intrincada, cuja prpria complexidade poderiaconstituir um obstculo ao progresso naquele campo. Desse modo, impunha-se a ta-refa de simplificao e reduo dos resultados das investigaes precedentes a umaforma em que a mente pudesse apreend-los (Maxwell, 2003a [1856], p. 155). Ora, osresultados desse processo podem, segundo Maxwell, tomar a forma de uma frmulapuramente matemtica ou de uma hiptese fsica. E ele continua:

    No primeiro caso, perdemos completamente de vista os fenmenos a seremexplicados; e embora possamos rastrear as conseqncias de dadas leis, noconseguimos nunca obter vises mais amplas das conexes daquele tema. Se, poroutro lado, adotarmos uma hiptese fsica, enxergaremos os fenmenos somen-te atravs de um meio, e ficaremos sujeitos quela cegueira aos fatos e precipi-tao nos pressupostos que uma explicao parcial encoraja. Devemos, portanto,descobrir algum mtodo de investigao que permita mente, a cada passo, dis-por de uma concepo fsica clara, sem se comprometer com qualquer teoriafundada na cincia fsica da qual aquela concepo tomada de emprstimo, demodo que ela no seja nem afastada do assunto na busca de sutilezas analticas,nem levada para alm da verdade por uma hiptese preferida (Maxwell, 2003a[1856], p. 155-6).

    O mtodo procurado, prope Maxwell, o mtodo das analogias fsicas, ondepor analogia fsica entende-se aquela semelhana parcial entre as leis de uma cinciae as de uma outra, que faz com que cada uma delas ilumine a outra (Maxwell, 2003a[1856], p. 156). A idia considerar duas teorias que se aplicam a domnios de fen-menos completamente diferentes, por exemplo, a teoria do potencial eletrosttico e ateoria da conduo de calor. Embora as foras entre partculas carregadas e os proces-sos de transferncia de calor num meio contnuo no possuam, estritamente falando,caractersticas fsicas em comum, pode-se aproveitar o fato de que as leis matemticasde ambas as teorias apresentam semelhanas formais. Assim, partindo de um problemade atrao eletrosttica, a analogia permite passar ao domnio dos problemas de con-duo de calor, cuja soluo pode ser mais fcil ou melhor conhecida, e depois retornarao domnio do problema original (cf. Klein, 1972, p. 68). (O percurso no sentido in-verso tambm possvel, quando se trocam os papis da teoria de origem e da teoriaalternativa.) Em On Faradays lines of force, Maxwell se vale, como dissemos, de umaanalogia entre as linhas de fora de Faraday e o fluxo de um fluido incompressvel.

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    Quanto ao estatuto pretendido pelo seu modelo, Maxwell explica, aps fazer re-ferncia s analogias feitas por Thomson entre a electricidade e a conduo de calor,que:

    pelo emprego de analogias desse tipo que procurei colocar diante da mente, deuma forma conveniente e tratvel, as idias matemticas que so necessrias aoestudo dos fenmenos da eletricidade. [...] Atravs do mtodo que adoto, esperodeixar evidente que no estou tentando estabelecer nenhuma teoria fsica numacincia acerca da qual eu no fiz um experimento sequer, e que o termo do meuprojeto mostrar de que maneira, por uma aplicao estrita das idias e mtodosde Faraday, pode-se colocar claramente diante da mente matemtica a conexoentre as diferentes ordens de fenmenos que ele descobriu (Maxwell, 2003a[1856], p. 157-8).

    E tambm:

    Ao referir tudo idia puramente geomtrica de movimento de um fluido imagi-nrio, espero alcanar generalidade e preciso, bem como evitar os perigos quesurgem de uma teoria prematura que alega explicar as causas dos fenmenos. Seos resultados de mera especulao que compilei se revelarem de algum valor paraos filsofos experimentais, na organizao e interpretao dos seus resultados,eles [os resultados] tero servido ao seu propsito; e uma teoria madura, na qualos fatos fsicos sejam fisicamente explicados, ser formulada por aqueles que,interrogando a natureza, podem obter a nica soluo verdadeira dos problemasque a teoria matemtica sugere (Maxwell, 2003a [1856], p. 159).

    Com respeito a essa teoria madura que Maxwell esperava fosse formulada umdia, na qual os fatos fsicos fossem explicados fisicamente, o historiador Martin J.Klein esclarece que:

    Em 1855, o assunto no estava pronto para uma teoria desse tipo. Maxwell estavaargumentando contra um compromisso prematuro com a hiptese fsica de umafora agindo a distncia entre cargas em movimento, como a fora proposta porWeber. Ele [Maxwell] desejava deixar aberta a possibilidade de uma teoria basea-da na ao local de um campo de fora, de Faraday, mesmo que no pudesse aindaconstruir tal teoria (Klein, 1972, p. 68).

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    J com relao ao teor do seu modelo propriamente dito, Maxwell alerta, comrelao ao fluido considerado no modelo, que:

    No se deve supor que a substncia de que se trata aqui possua nenhuma das pro-priedades dos fluidos ordinrios, exceto as de liberdade de movimento e resis-tncia compresso. No nem mesmo um fluido hipottico que introduzidopara explicar os fenmenos reais. Trata-se meramente de uma coleo de pro-priedades imaginrias, que pode ser utilizada a fim de estabelecer certos teoremasna matemtica pura, de uma maneira mais inteligvel a muitas mentes, e maisaplicvel aos problemas fsicos do que aquela em que se utilizam apenas os sm-bolos algbricos (Maxwell, 2003a [1856], p. 160).

    Mais adiante, ao falar sobre o estado eletrotnico de Faraday, Maxwell faz aseguinte observao:

    Neste esboo das teorias eltricas de Faraday, tal como elas se apresentam de umponto de vista matemtico, no posso fazer mais do que simplesmente enunciaros mtodos matemticos pelos quais creio que os fenmenos eltricos podemser melhor compreendidos e reduzidos a clculos; e meu objetivo foi apresentar mente as idias matemticas sob uma forma reificada [embodied], como siste-mas de linhas ou superfcies, e no como meros smbolos, que nem transmitemas mesmas idias, nem se adaptam facilmente aos fenmenos a serem explicados.A idia do estado eletrotnico, porm, ainda no se apresentou minha mente deforma tal que sua natureza e suas propriedades possam ser explicadas claramentesem referncia aos meros smbolos; e portanto proponho, na investigao a seguir[isto , na parte ii do artigo], empregar smbolos livremente, e tomar por assen-tes as operaes matemticas ordinrias (Maxwell, 2003a [1856], p. 187-8).

    Ou seja, o emprego de modelos por parte de Maxwell corresponderia a uma es-pcie de matemtica concretizada ou reificada (embodied mathematics).

    (II) Em On physical lines of force (Maxwell, 2003b [1861/1862]), Maxwell prosseguecom o mtodo das analogias e prope o famoso modelo de clulas tubulares vorticais(nanotubos, como nos sentiramos tentados a cham-los hoje em dia), com partculasde rolamento (idle wheels) interpostas entre elas, sem deslizamento. (Ver a Figura 1.)

    As linhas de campo magntico corresponderiam aos eixos das clulas tubulares.Nos condutores, as partculas de rolamento poderiam se deslocar, formando uma cor-rente de conduo, colocando as clulas contguas em movimento. Nos isolantes, elas

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    no poderiam se desgrudar da superfcie das clulas, de modo que qualquer movimen-to provocaria uma distoro elstica nas clulas. Essa distoro corresponde ao campoeltrico. Dentro de corpos isolantes e condutores no ocorre acmulo de partculas,uma vez que o nmero de partculas que entra em uma unidade de volume ser o mes-mo que sai pelo outro lado. Na fronteira entre um isolante e um condutor, porm, huma descompensao, visto que no primeiro as clulas etreas so distorcidas e nosegundo no. O excesso de partculas na superfcie de um isolante limitado por umcondutor constitui a carga eltrica. Explicaes desse tipo tambm poderiam ser ela-boradas para os outros fenmenos eltricos. Para Maxwell, cargas, correntes e camposdeveriam ser entendidos como estados mecnicos do ter (cf. Chalmers, 1973; 2001).Assim, na teoria de Maxwell, a carga e o campo so conceitos derivados, e no concei-tos primrios da teoria, como ocorre nas axiomatizaes modernas da eletrodinmica.

    Figura 1. Diagrama original de Maxwell ilustrando o seu modelo mecnico de 1861/1862.

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    Em On physical lines of force, j aparece a suposio de que as correntes dedeslocamento produzem efeitos eletromagnticos idnticos s correntes de conduo(ver On physical lines of force, eq. (112), p. 496, juntamente com a eq. (105), p. 495,sobre a proporcionalidade entre o vetor campo eltrico e o vetor deslocamento eltri-co). Nesse artigo, Maxwell ainda no afirma que a luz uma onda eletromagntica, po-rm (i) mostra que a velocidade de propagao dos distrbios eletromagnticos mui-to prxima da velocidade da luz determinada experimentalmente:

    A velocidade das ondulaes transversais em nosso meio hipottico, calculada apartir dos experimentos eletromagnticos dos Srs. Kohlrausch e Weber, concor-da de maneira to exata com a velocidade da luz calculada a partir dos experimen-tos pticos do Sr. Fizeau, que difcil evitar a concluso de que a luz consiste emondulaes transversais do mesmo meio que a causa dos fenmenos eltricos e mag-nticos (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 500; grifo no original).

    e (ii) conclui que, provavelmente, o meio eletromagntico e o ter luminfero (da teo-ria ondulatria da luz) so o mesmo meio:

    No procurei explicar essa ao tangencial [isto , das partculas de rolamentosobre as clulas], porm, para dar conta da transmisso de rotao das partesexteriores para as partes interiores de cada clula, necessrio supor que a subs-tncia nas clulas possui elasticidade de forma, de um tipo semelhante, emboraem grau diferente, daquela observada nos corpos slidos. A teoria ondulatria daluz pede que, para dar conta das vibraes transversais, admitamos esse tipo deelasticidade no meio luminfero. No precisamos nos surpreender, ento, se omeio magneto-eltrico possuir a mesma propriedade (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 489).

    De modo semelhante ao que fizera em On Faradays lines of force, Maxwellsublinha que o modelo de vrtices e rolamentos utilizado em On physical lines of for-ce apenas uma analogia:

    A noo de uma partcula que tem seu movimento conectado com o de um vrticepor contato perfeito via rolamento pode parecer um tanto canhestra. Eu no aproponho como um modo de conexo que exista na natureza, nem mesmo comoaquilo com que eu concordaria prontamente enquanto hiptese eltrica. Trata-se, porm, de um modo de conexo que mecanicamente concebvel e facilmen-te investigado e serve para revelar as conexes mecnicas reais entre os fenme-

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    nos eletromagnticos conhecidos; de sorte que me arrisco a dizer que qualquerum que compreenda o carter provisrio e temporrio dessa hiptese ir se verauxiliado por ela, em vez de por ela obstado, em sua busca pela interpretao ver-dadeira dos fenmenos (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 486).

    Maxwell faz as seguintes consideraes a respeito do seu projeto geral em Onphysical lines of force:

    Meu objetivo neste artigo aplainar o caminho para a especulao nesta direo,investigando os resultados mecnicos de certos estados de tenso e movimentoem um meio e comparando-os com os fenmenos observados do magnetismo eda eletricidade. Ao indicar as conseqncias mecnicas de tais hipteses, esperoser til queles que consideram os fenmenos como devidos ao de um meio,mas tm dvidas quanto relao dessa hiptese com as leis experimentais jestabelecidas, as quais em geral tm sido expressas na linguagem de outras hip-teses (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 452).

    A seguinte comparao estabelecida por Maxwell entre o importe metodolgicoe ontolgico de On physical lines of force e aquele de On Faradays lines of force de interesse para ns. Primeiro, ele escreve:

    Em um artigo anterior [isto , Maxwell, 2003a [1856]], procurei colocar dianteda mente do gemetra uma concepo clara acerca da relao entre as linhas defora e o espao em que elas so traadas. Empregando a noo de correntes numfluido, mostrei como desenhar linhas de fora, as quais deveriam indicar, pormeio do seu nmero, a quantidade de fora, de modo que cada linha possa serchamada de linha unitria de fora (ver as Researches de Faraday, 3122); e investi-guei a trajetria das linhas ali onde elas passam de um meio para outro.No mesmo artigo, encontrei o significado geomtrico do Estado eletrotnico,e mostrei como deduzir as relaes matemticas entre o estado eletrotnico, omagnetismo, as correntes eltricas e a fora eletromotiva, empregando ilustra-es mecnicas para auxiliar a imaginao, porm no para explicar [account for]os fenmenos (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 452).

    Por contraste, em On physical lines of force, diz ele,

    Proponho agora examinar os fenmenos magnticos de um ponto de vista mec-nico e determinar quais tenses de um meio, ou movimentos nesse meio, so

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    capazes de produzir os fenmenos mecnicos observados. Se, pela mesma hip-tese, pudermos conectar os fenmenos da atrao magntica com os fenmenoseletromagnticos e com aqueles das correntes induzidas, teremos encontrado umateoria que, se no for verdadeira, somente poder ser provada errada por experi-mentos que ho de aumentar grandemente o nosso conhecimento desta parte dafsica (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 452).

    (III) Em A dynamical theory of the electromagnetic field (Maxwell, 2003c [1864]),Maxwell expe uma teoria do campo eletromagntico que tambm uma teoria eletro-magntica da luz. Na Parte i do artigo (que possui ao todo sete partes), ele destaca suaoposio s teorias de ao a distncia. Na Parte iii, ele formula as equaes do campoeletromagntico. Aqui aparece, claro, a importante suposio de Maxwell sobre o papeldesempenhado pela corrente de deslocamento (ver A dynamical theory..., eqs. (A),p. 554, juntamente com as eqs. (C), p. 557). Na Parte vi, Maxwell formula a teoria ele-tromagntica da luz, afirmando que a luz uma onda eletromagntica. Ele obtm a equa-o de onda eletromagntica diretamente das equaes do campo e passa a mostrarque a luz e os distrbios eletromagnticos possuem as mesmas propriedades (como atransversalidade), o que refora a suposio de que a luz uma onda eletromagntica.

    Ao contrrio do que fizera no artigo de 1861/1862, Maxwell alega aqui desenvol-ver sua teoria sem hipteses mecnicas. A abordagem analgica (pelo menos em ter-mos de analogias fsicas) abandonada.10 A articulao da teoria j se encaminha paraa adoo do formalismo lagrangiano, o que permite dispensar as hipteses sobre a cons-tituio do sistema. Por exemplo, no final da Parte iii do artigo, Maxwell escreve:

    (73) Em uma ocasio anterior [isto , Maxwell, 2003b [1861/1862]], procurei des-crever um tipo especfico de movimento e um tipo especfico de deformao[strain], dispostos de tal modo a dar conta dos fenmenos. No presente artigo,evito qualquer hiptese desse tipo; e, quando emprego palavras como momentoeltrico [electric momentum] e elasticidade eltrica [electric elasticity] com refe-rncia aos fenmenos conhecidos da induo de correntes e da polarizao dedieltricos, desejo meramente direcionar a mente do leitor para fenmenos me-cnicos que iro auxili-lo na compreenso dos fenmenos eltricos. Todas asfrases desse tipo, no presente artigo, devem ser consideradas como ilustrativas,e no como explicativas (Maxwell, 2003c [1864], p. 563-4).

    10 A possibilidade de fazer analogias formais (isto , matemticas) na fsica continua existindo e, de fato, esse cami-nho ser adotado por vrios fsicos posteriores a Maxwell. Mas trata-se de um aspecto que no podemos desenvolvermais no mbito do presente artigo.

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    A propsito, fazendo um parntese nessa citao, vale ressaltar que, em carta damesma poca, Maxwell escreve:

    Eu obtive, agora, dados para calcular a velocidade de transmisso de um distrbiomagntico, atravs do ar, baseado em evidncia experimental, sem qualquer hip-tese sobre a estrutura do meio ou qualquer explicao mecnica da eletricidade edo magnetismo (Maxwell, carta a Stokes de 1864, apud Abrantes, 1998, p. 197).

    Voltando Parte iii do artigo, na continuao do texto Maxwell j defende a no-o de que o campo eletromagntico possui uma realidade autnoma:

    (74) Ao falar sobre a Energia do campo, no entanto, desejo ser entendido literal-mente. [...] A nica pergunta : onde ela reside? Segundo as teorias antigas, elareside nos corpos eletrizados, circuitos condutores e ms, sob a forma de umaqualidade desconhecida chamada energia potencial, ou poder de produzir certosefeitos a distncia. De acordo com a nossa teoria, ela reside no campo eletromag-ntico, no espao ao redor dos corpos eletrizados e magnetizados, bem como nosprprios corpos [...] (Maxwell, 2003c [1864], p. 564).

    (Notemos que todo este trecho dos pargrafos (73) e (74) ser retomado como objetode discusso na prxima seo do presente texto. Em particular, veremos como preci-samente as passagens por ora omitidas aqui colocam certos problemas.)

    (IV) Na sua grande summa eletromagntica, o Treatise on electricity and magnetism(Maxwell, 1954 [1891]), Maxwell sintetiza a sua teoria matemtica do eletromagnetis-mo. As equaes do campo eletromagntico so reapresentadas nos Caps. viii e ix daParte iv (Vol. 2), agora utilizando tambm a notao vetorial e a notao de quaternions.O postulado relativo corrente de deslocamento reapresentado no Artigo 610(Maxwell, 1954 [1891], Vol. 2, p. 253). No incio do Cap. ii da Parte iv (Vol. 2), Maxwellcontrasta as abordagens da ao a distncia (de Ampre) e da ao contnua (de Faraday)ao eletromagnetismo, e reitera sua adeso decidida segunda:

    As idias que guiaram Ampre pertencem ao sistema que admite a ao direta adistncia, e iremos constatar que Gauss, Weber, F. E. Neumann, Riemann, Betti,C. Neumann, Lorenz e outros conduziram uma notvel linha de especulao einvestigao baseada nessas idias, com resultados bastante notveis tanto nadescoberta de novos fatos quanto na formao de uma teoria da eletricidade. Veros Arts. 846-866.

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    As idias que procurei desenvolver so aquelas da ao atravs de um meio, deuma poro poro contgua. Essas idias foram muito utilizadas por Faraday, eo seu desenvolvimento sob uma forma matemtica, bem como a comparao dosresultados com os fatos conhecidos, foi o meu objetivo em vrios artigos publi-cados. A comparao, sob um ponto de vista filosfico, entre os resultados dedois mtodos to completamente opostos, no que tange aos seus primeiros prin-cpios, deve conduzir a dados valiosos para o estudo das condies da especula-o cientfica (Maxwell, 1954 [1891], v. 2, p. 158).

    Tanto em A dynamical theory of the electromagnetic field como no Treatise,Maxwell adota o formalismo lagrangiano j consagrado em mecnica. Maxwell expres-sa da seguinte forma, no Treatise, as vantagens do mtodo lagrangiano:

    O que eu proponho fazer agora examinar as conseqncias da suposio de queos fenmenos da corrente eltrica so os de um sistema em movimento, com omovimento sendo comunicado de uma parte a outra do sistema por foras, cujanatureza e cujas leis ns nem tentaremos definir por ora, uma vez que podemoseliminar essas foras das equaes de movimento pelo mtodo dado por Lagran-ge para qualquer sistema com vnculos [connected system] (Maxwell, 1954 [1891],v. 2, p. 198).

    E tambm:

    Apliquei esse mtodo de modo a evitar a considerao explcita do movimento dequalquer parte do sistema exceto as coordenadas ou variveis das quais dependeo movimento do todo. sem dvida importante que o estudante seja capaz derastrear a conexo entre o movimento de cada parte do sistema e aquele das vari-veis, porm no necessrio, em absoluto, fazer isso no processo de obtenodas equaes finais, que so independentes da forma particular dessas conexes(Maxwell, 1954 [1891], v. 2, p. 200).

    E ainda:

    Neste esboo dos princpios fundamentais da dinmica de um sistema com vn-culos [connected system], deixamos de lado o mecanismo pelo qual as partes dosistema esto conectadas. Nem sequer escrevemos um sistema de equaes indi-cando como o movimento de qualquer parte do sistema depende da variao dasvariveis. Restringimos a nossa ateno s variveis, suas velocidades e momen-

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    tos, e s foras que atuam sobre as pores [pieces] que representam as variveis.Nossas nicas suposies so: que as conexes do sistema so tais que o tempono aparece explicitamente nas equaes das condies, e que o princpio de con-servao da energia se aplica ao sistema (Maxwell, 1954 [1891], v. 2, p. 209).

    No formalismo lagrangiano, como se sabe, o conceito de energia ocupa um lugarfundamental, em vez do conceito de fora. (Assim, temos um afastamento em relao ontologia mecanicista.) Alm disso, o formalismo lagrangiano dispensa o conhecimen-to detalhado dos vnculos mecnicos internos do sistema e das foras devidas a essesvnculos. preciso lidar apenas com as foras externas aplicadas ao sistema. Final-mente, diferentemente do mtodo tradicional da mecnica, onde necessrio traba-lhar com vrias foras e aceleraes vetoriais, no mtodo lagrangiano preciso traba-lhar apenas com uma nica funo escalar L = T V, onde T a energia potencial e V aenergia cintica.11

    5 A tenso metodolgica e axiolgica em Maxwell

    Um exame do percurso de Maxwell entre On Faradays lines of force e o Treatise nosmostra basicamente trs tendncias gerais: um crescente questionamento dos mode-los mecnicos, uma tendncia a investir a noo de campo de realidade fsica e ummovimento em direo a uma teoria mais matematizada e abstrata, instanciada parti-cularmente no uso do formalismo lagrangiano.

    O trabalho de anlise histrica do surgimento da teoria do campo ficaria facili-tado se o trajeto de Maxwell, ao longo dos quatro textos mencionados, pudesse ser des-crito como um trajeto que se afasta de uma viso mecanicista e avana rumo a uma vi-so desmecanizada segundo uma funo contnua, lisa e monotnica do tempo (paratomar de emprstimo uma expresso dos matemticos). Porm a situao na realida-de um pouco mais complicada. Mesmo manifestando as tendncias bsicas acima re-feridas, a obra de Maxwell coloca certas dificuldades de interpretao. Essas dificul-dades surgem, em primeiro lugar, porque o modo pelo qual ele articula sua teoria deixasem resoluo certas tenses entre o ponto de vista mecanicista e o no-mecanicista;em segundo lugar, o trajeto de Maxwell entre o ponto de vista mecanicista e o no-mecanicista apresenta, por assim dizer, certas idas e vindas, no sendo totalmente li-near no tempo.

    11 No que concerne ao formalismo lagrangiano entendido como um mtodo de carter geral em fsica, cf. Abrantes,1998, Cap. 6; Bunge, 1957; Doughty, 1990; Goldstein, Poole & Safko, 2002; Lanczos, 1986; Penrose, 2004, Cap. 20.

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    Vimos que, entre On Faradays lines of force e A dynamical theory of the elec-tromagnetic field e, posteriormente, no Treatise , pode-se observar, pelo menosnos pronunciamentos de Maxwell, uma crescente inteno de abrir mo dos modelosmecnicos. Esse deslocamento conceitual j indica que Maxwell , de alguma forma,um personagem de transio. Um exame mais detido, porm, mostra que a situao ,na realidade, mais complexa. Superpostas a esse movimento metodolgico mais apa-rente, existem certas tenses e no linearidades ontolgicas e metodolgicas dignasde nota, que iremos analisar.

    preciso entender, em primeiro lugar, como o prprio Maxwell encarava suasprprias posies. Assim como ele desejara, em On Faradays lines of force e Onphysical lines of force, adotar as analogias mecnicas sem se comprometer com a re-alidade fsica dos mecanismos propostos, tambm o seu abandono das analogias me-cnicas e sua adoo de um formalismo que dispensava o conhecimento das conexesentre as partes do sistema no significava que a sua busca por uma explicao mec-nica detalhada tivesse sido abandonada, como lembra Martin J. Klein (1972, p. 69).A adoo de modelos mecnicos, num primeiro momento, e o seu abandono, num se-gundo momento, constituem decises no plano metodolgico. Porm, ao mesmo tem-po, Maxwell continua sustentando um compromisso mecanicista no plano axiolgico,como veremos. Embora a analogia mecnica detalhada [tenha sido] quase completa-mente abandonada, escreve Klein, ele ainda estava construindo uma teoria mecnica(1972, p. 69). Se por um lado Maxwell alerta para o fato de que os modelos analgicosdevem ser considerados como meros auxlios para a mente, e as hipteses correspon-dentes no devem ser entendidas num sentido literal, explicativo e ainda que, numsegundo momento, Maxwell chegue mesmo a abandonar os modelos analgicos , poroutro lado ele repetidamente expressa a convico de que uma explicao completa esatisfatria de um fenmeno fsico somente seria obtida quando se conhecesse o meca-nismo subjacente a ele, e quando o fenmeno fosse reduzido a mudanas na configuraoe movimento de um sistema material. Vejamos evidncias textuais para esta afirmao.

    (I) Primeiramente, interessante notar que, em On Faradays lines of force, ondeMaxwell prope seu modelo fluido-mecnico, embora ele afirme que o uso de modeloscorresponde meramente a uma espcie de embodied mathematics, ele acaba afirman-do que:

    Por meio de um estudo cuidadoso das leis dos slidos elsticos e dos movimentosdos fluidos viscosos, espero descobrir um mtodo para formar uma concepomecnica desse estado eletrotnico, adaptada ao pensamento geral [generalreasoning] (Maxwell, 2003a [1856], p. 188; grifo meu).

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    (Ao final dessa frase, uma nota de rodap remete a um texto de W. Thomson publicadoem 1847, On a mechanical representation of electric, magnetic and galvanic forces.)Essa assertiva relevante na medida em que revela que Maxwell no , como poderiaparecer, um instrumentalista matemtico; ao contrrio, a sua axiologia cognitiva in-clui a crena na busca de uma concepo mecnica dos fenmenos.

    (II) Em On physical lines of force, Maxwell prope o modelo de clulas vorticais epartculas de rolamento; e, na recapitulao feita ao final da Parte ii do artigo (quepossui ao todo quatro partes), ele afirma, claramente, que:

    (1) Os fenmenos magneto-eltricos so devidos existncia de matria sob cer-tas condies de movimento ou de presso em toda parte do campo magntico, e no ao direta a distncia entre os ms ou correntes. A substncia que produz es-ses efeitos pode ser uma certa parte da matria ordinria, ou pode ser um terassociado com a matria. A sua densidade maior no ferro e menor nas substn-cias diamagnticas; porm, em todos os casos, exceto no do ferro, ela deve serextremamente rarefeita [very rare], uma vez que nenhuma outra substncia pos-sui uma razo grande da capacidade magntica com aquilo que denominamos v-cuo (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 485; grifo meu).

    Numa passagem j citada, ao falar sobre a camada de partculas de rolamento, elefaz referncia ao fato de uma hiptese que serve para revelar as conexes mecnicasreais entre os fenmenos eletromagnticos; e comenta que tal hiptese, ainda queprovisria e temporria, ir representar, se bem compreendida, um progresso emdireo interpretao verdadeira dos fenmenos:

    A noo de uma partcula que tem seu movimento conectado com o de um vrticepor contato perfeito via rolamento pode parecer um tanto canhestra. Eu no aproponho como um modo de conexo que exista na natureza, nem mesmo comoaquilo com que eu concordaria prontamente enquanto hiptese eltrica. Trata-se, porm, de um modo de conexo que mecanicamente concebvel e facilmen-te investigado e serve para revelar as conexes mecnicas reais entre os fenmenoseletromagnticos conhecidos; de sorte que me arrisco a dizer que qualquer umque compreenda o carter provisrio e temporrio dessa hiptese ir se ver auxi-liado por ela, em vez de por ela obstado, em sua busca pela interpretao verdadei-ra dos fenmenos (Maxwell, 2003b [1861/1862], p. 486; grifo meu).

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    (III) Em A dynamical theory of the electromagnetic field, a teoria apresentada peloprprio Maxwell no mais como uma teoria mecnica, mas como uma teoria din-mica. De que maneira se poderia entender essa distino? Abrantes sugere que, nateoria mecnica existe a especificao de um mecanismo subjacente aos fenmenos(aqui, mecanicismo de tipo 2), ao passo que, na teoria dinmica, no se especifica aao de nenhum mecanismo ou parte de mecanismo, embora os processos ainda de-vam obedecer s leis da mecnica (aqui, mecanicismo de tipo 3b) (cf. Abrantes [1998],p. 197ss, o qual, no entanto, no emprega uma taxonomia dos vrios tipos de mecani-cismo como a nossa). Ora, essa definio consistente com os pronunciamentos meto-dolgicos de Maxwell (em A dynamical theory... e tambm no Treatise), porm nemsempre consistente com a ontologia e a axiologia instanciadas na prtica de Maxwell.

    (IV) indispensvel analisar aqui o salto lagrangiano executado por Maxwell, que descrito por Paulo Abrantes como uma guinada metodolgica importantssima, quehoje temos condio de avaliar como um passo no sentido de uma desmecanizao dateoria eletromagntica (Abrantes, 1998, p. 197).

    Aps citar uma passagem de Maxwell j reproduzida aqui o pargrafo (74) nofinal da parte (iii) de A dynamical theory, na qual Maxwell afirma que, ao falar sobrea energia do campo, ele deseja ser entendido literalmente Sparzani observa, em seuartigo sobre os conceitos de fora e campo, que daqui por diante, a descrio dos fen-menos eletromagnticos prossegue secamente em termos de campo. E, logo em se-guida, a respeito da nova fsica que comea a nascer com A dynamical theory of theelectromagnetic field, Sparzani comenta:

    Nestas poucas frases, e mais ainda na estrutura de todo o trabalho, assim comono Treatise, est contida uma considervel mudana de perspectiva relativamenteaos dois primeiros artigos: aqui se percebe um dos episdios importantes de umarevoluo epistemolgica de grande alcance, que apresenta aspectos diversos eproblemticos, mas que, em todo caso, se pode apreender na passagem de umideal explicativo, mecnico, modelstico em sentido realista, que inspirou a maiorparte da investigao fsica do sculo xix, a um ideal mais abstracto e formal,modelstico em sentido lgico e, em todo caso, mais matematizante, que grossomodo prevaleceu dos primeiros anos do sculo [xx] aos nossos dias.

    O excerto de Maxwell que citamos [Maxwell, 2003c [1864], p. 563-4] ilustraem particular uma nova maneira de considerar o problema da transmisso a dis-tncia de perturbaes eletromagnticas e prepara uma soluo que, a partir des-se momento, se foi tornando cada vez mais dominante. Maxwell afirma ainda quea propagao das ondas eletromagnticas se d num meio dotado de um funcio-

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    namento complicado e em todo o caso desconhecido para ns, mas de que sufi-ciente a descrio poderosa e exaustiva, que no entra no pormenor desconheci-do do mecanismo de transmisso, fornecida pelas quatro equaes diferenciaisque tm o seu nome (Sparzani, 1993, p. 294).

    Esta maneira de ver tambm compartilhada por J. M. Lvy-Leblond, que es-creve o seguinte:

    [E]m torno do segundo tero do sculo 19, o prprio Maxwell, que elaborou ateoria do campo eletromagntico em sua forma completa, insistindo na necessi-dade dos modelos mecnicos, deixa-os passar progressivamente para o segundoplano no desenvolvimento de sua teoria, cujo formalismo elegante e fecundo as-sume o lugar dos hipotticos e complexos mecanismos subjacentes (Lvy-Leblond, 2004, p. 108).

    No que diz respeito ao Treatise, porm, deve-se atentar para uma situao pecu-liar. Por um lado, o fato de que as tcnicas de Lagrange permitem descrever um siste-ma, apesar de desconhecermos seus agenciamentos internos a elegante expresso de Abrantes (1998, p. 202) , era aparentemente entendido por Maxwell como umavirtude. Vrias passagens parecem constituir uma profisso de f no mtodo lagran-giano e poderiam nos fazer supor, por implicao, que ele desistiu da busca por meca-nismos. Porm Maxwell ainda revela, em outros trechos importantes, uma ligao sur-preendentemente explcita com o mecanicismo (tanto de tipo 2, isto , mecanismos,como at de tipo 1, isto , matria e movimento):

    O primeiro tipo de energia, aquela do movimento, denominada energia cinticae, uma vez compreendida, parece ser um fato to fundamental da natureza que nopodemos imaginar a possibilidade de analis-lo em termos de alguma outra coisa.O segundo tipo de energia, aquela que depende da posio, denominada energiapotencial e deve-se ao daquilo que denominamos foras, vale dizer, tendncias mudana de posio relativa. Com relao a essas foras, embora possamos aceitara sua existncia como um fato estabelecido, sentimos, contudo, que qualquer expli-cao do mecanismo pelo qual os corpos so postos em movimento representa umacrscimo real ao nosso conhecimento (Maxwell, 1954 [1891], v. 2, p. 211).

    Com efeito, ele expressa a sua convico de que uma teoria dinmica completadeveria especificar os mecanismos pelos quais as aes so efetuadas diferentemente,admite ele, do que se faz no Treatise (confisso que no deixa de soar surpreendente):

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    Um conhecimento disso [isto , se a corrente eltrica realmente uma correntede uma substncia material, ou uma corrente dupla, ou se a sua velocidade grandeou pequena] corresponderia pelo menos aos primrdios de uma teoria dinmicacompleta da eletricidade, na qual deveramos considerar a ao eltrica no comoum fenmeno devido a uma causa desconhecida, sujeito apenas s leis gerais dadinmica (como neste tratado), mas sim como resultado de movimentos conheci-dos de pores conhecidas de matria, onde se toma como objetos de estudo noapenas os efeitos totais e os resultados finais, mas sim todo o mecanismo interme-dirio e os detalhes do movimento (Maxwell, 1954 [1891], v. 2, p. 218; grifo meu).

    Para sermos justos, devemos lembrar, com Abrantes (1998, p. 199), que a pr-pria possibilidade de aplicar o formalismo lagrangiano a um determinado domnio defenmenos era percebida na poca como uma indicao da natureza mecnica dosfenmenos estudados. Porm, essa maneira de ver foi se modificando posteriormen-te. De resto, cabe lembrar que, na atualidade, o formalismo lagrangiano demonstrapossuir aplicabilidade extremamente geral, no se restringindo apenas ao domnio damecnica.12

    De qualquer modo, embora a deciso metodolgica de utilizar o formalismolagrangiano apontasse numa direo oposta busca de uma concepo mecnica, pare-ce que Maxwell no enxergava inconsistncia entre, por um lado, adotar a abordagemlagrangiana e, por outro, manter no horizonte a busca por mecanismos subjacentes.Como observa Abrantes (1998, p. 197), Maxwell no viu a guinada metodolgica daabordagem lagrangiana como um passo no sentido de uma desmecanizao da teoriaeletromagntica . Assim, talvez no seja um grande exagero caracterizar Maxwell comoum lagrangiano ambivalente.

    12 Assim, o formalismo lagrangiano permite que teorias muito diferentes (por exemplo, sobre partculas clssicas,partculas qunticas, campos clssicos, campos qunticos) sejam formuladas de maneira estruturalmente anloga.Como se sabe, no sculo xx os prprios campos (e no apenas as suas aes sobre os corpos materiais) viriam a serdescritos em termos lagrangianos (como sistemas com um nmero infinito de graus de liberdade ver Thid, 2001,e Frenkel, 1996). Vale lembrar que esse mtodo no est restrito aos campos clssicos, podendo se estender tambmaos campos quantizados.

    Deveramos entender a possibilidade de estender o formalismo lagrangiano s outras reas como sendo umaindicao de que elas partilham de um certo carter mecanicista? Creio que no. Ao contrrio, creio que a validadedo formalismo lagrangiano em teorias que escapam do mbito mecanicista deveria ser lida no sentido inverso nocomo apontando para uma primazia da mecnica, mas sim como uma indicao de que existe um aspecto intrinseca-mente no-mecanicista nas outras teorias, e esse aspecto no-mecanicista est presente at mesmo na prpria mec-nica. No so as outras teorias que so mecanizadas, mas a prpria mecnica que tem o seu estatuto revisto emfuno das teorias no-mecanicistas. Assim, poderamos dizer que o formalismo lagrangiano no exporta para asoutras teorias o que h de mecanicista na mecnica, mas, antes, nos faz ver os aspectos no-mecanicistas que amecnica partilha com as outras teorias.

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    Maxwell, a teoria do campo e a desmecanizao da fsica

    scienti zudia, So Paulo, v. 4, n. 2, p. 177-220, 2006

    Vimos que Maxwell tem o cuidado de atribuir uma funo apenas ttica tanto adoo como rejeio das hipteses e modelos mecnicos, abrindo assim a possibili-dade de traar a distino aqui mencionada entre o plano metodolgico e o plano axio-lgico. Portanto, ele evita que haja uma contradio interna metodologia, ou interna axiologia; porm persiste uma tenso entre os dois planos: metodolgico e axiolgico.Como vimos, em diversas passagens dos escritos de Maxwell se pode perceber duastendncias opostas: no plano axiolgico, a busca de mecanismos subjacentes ao(que denominamos aqui mecanicismo de tipo 2) e, no plano metodolgico, o abando-no de tais mecanismos. A propsito, bom no deixar de notar que, no plano axiol-gico, at mesmo o mecanicismo que denominamos como de tipo 1 isto , reduo amatria e movimento parece voltar tona em algumas das passagens que acabaramde ser citadas.

    Que essa tenso entre metodologia e axiologia tem conseqncias no desprez-veis pode-se perceber, em primeiro lugar, lembrando que a metodologia deve ser en-tendida com um meio (ou um conjunto de meios) para a obteno de determinados finscognitivos. Se o fim a busca de uma concepo mecnica do eletromagnetismo, umametodologia que permite (na verdade, encoraja) um crescente afastamento de qual-quer modelo mecnico constitui um meio inadequado ao atingimento daquele fim.Alm do mais, uma vez que o processo de construo e seleo de teorias condiciona-do paralelamente tanto pela metodologia como pela axiologia, ele poderia ficar sujeitoa influncias conflitantes. Portanto, o princpio de coerncia que busca harmonizarteoria, metodologia e axiologia deve predominar, sob pena de se ter constraints atuan-do de maneira contraditria sobre as teorias. (A esse respeito, ver a concepo reticula-cional de dinmica cientfica desenvolvida por Larry Laudan, 1984.)

    Finalmente, consideremos o plano ontolgico. A teoria de Maxwell uma teoriado campo eletromagntico, mas, ao mesmo tempo, tambm uma teoria do ter eletro-magntico. Um primeiro aspecto a notar que existe uma tenso entre o trajeto deMaxwell rumo ao conceito de campo eletromagntico puro, sem suporte, e o seu com-promisso com o conceito de meio etreo quase-material. Retomemos a passagem jcitada do final da Parte iii de A dynamical theory, onde Maxwell fala sobre o fato de ocampo possuir energia. Como j observamos, essa passagem pareceria indicar que ocampo j se acha investido de estatuto ontolgico prprio:

    (74) Ao falar sobre a Energia do campo, no entanto, desejo ser entendido literal-mente. [...]

    Porm, logo em seguida, ele afirma que essa energia uma energia mecnica:

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    Valter Alnis Bezerra

    scienti zudia, So Paulo, v. 4, n. 2, p. 177-220, 2006

    Toda energia energia mecnica, quer ela exista sob a forma de movimento ousob a forma de elasticidade, ou ainda sob qualquer outra forma. A energia, nosfenmenos eletromagnticos, energia mecnica. [...]

    E Maxwell conclui, inicialmente atribuindo a energia ao campo, mas depois re-cuando dessa posio:

    A nica pergunta : onde ela reside? Segundo as teorias antigas, ela reside noscorpos eletrizados, circuitos condutores e ms, sob a forma de uma qualidadedesconhecida chamada energia potencial, ou poder de produzir certos efeitos adistncia. De acordo com a nossa teoria, ela reside no campo eletromagntico,no espao ao redor dos corpos eletrizados e magnetizados, bem como nos pr-prios corpos, e existe sob duas formas diferentes, que podem ser descritas, semhipteses, como polarizao magntica e polarizao eltrica, ou, segundo umahiptese bastante provvel, como o movimento e a deformao [strain] de um mesmomeio (Maxwell, 2003c [1864], p. 564; grifo meu).

    Desse modo, embora possa parecer primeira vista que a energia reside no cam-po, esta interpretao defronta-se com a dificuldade de o campo ainda no ser, aqui,uma entidade com estatuto ontolgico autnomo; assim, em ltima anlise, a energiado campo residiria, por sua vez, em um meio mecnico.

    Um segundo aspecto importante no plano ontolgico que Maxwell ainda atribuium papel ao meio na transmisso da ao eletromagntica e, por vezes, ainda recai numideal mecanicista que ecoa o mecanicismo de tipo (1), ou seja, matria e movimento:

    Eu preferi, portanto, buscar uma explicao para os fatos em outra direo,supondo que eles so produzidos por aes que ocorrem no meio circundanteassim como nos corpos excitados, e procurando explicar a ao entre os corpossem pressupor a existncia de foras capazes de agir diretamente a distnciasapreciveis.(3) A teoria que proponho pode, portanto, ser denominada uma teoria do campoeletromagntico, pois diz respeito ao espao nas proximidades dos corpos eltri-cos ou magnticos, e pode ser chamada uma teoria dinmica, pois pressupe quenaquele espao existe matria em movimento, por meio da qual os fenmenos ele-tromagnticos observados so produzidos (Maxwell, 2003c [1864], p. 527; lti-mo grifo meu).

    Maxwell, inclusive, discute as propriedades do meio etreo:

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    Maxwell, a teoria do campo e a desmecanizao da fsica

    scienti zudia, So Paulo, v. 4, n. 2, p. 177-220, 2006

    (4) O campo eletromagntico aquela parte do espao que contm e envolve oscorpos em condies eltricas ou magnticas.Ele pode ser preenchido com qualquer tipo de matria, ou ento podemos pro-curar esvazi-lo de toda matria macia [gross matter], como no caso dos tubos deGeissler e de outros assim chamados vcuos.

    Sempre resta, porm, matria suficiente para receber e transmitir as ondula-es da luz e do calor e, devido ao fato de que a transmissso dessas radiaes nose altera muito quando o assim chamado vcuo substitudo por corpos transpa-rentes de densidade mensurvel, somos obrigados a admitir que as ondulaesso de uma substncia etrea, e no da matria macia, cuja presena meramentealtera de algum modo o movimento do ter.

    Temos, portanto, razes para acreditar, com base nos fenmenos da luz e docalor, que existe um meio etreo preenchendo o espao e permeando os corpos,capaz de ser posto em movimento e de transmitir esse movimento de uma parte aoutra, e de comunicar esse movimento matria macia de modo a aquec-la eafet-la de vrias maneiras.(5) Ora, a energia que transmitida ao corpo ao aquec-lo deve ter existido antesno meio movente, pois as ondulaes haviam partido da fonte de calor algum tem-po antes de atingirem o corpo, e durante esse tempo a energia deve ter estadometade na forma de movimento do meio e metade na forma de resilincia elsti-ca. Com base nessas consideraes, o Prof. W. Thomson sustentou que o meiodeve possuir uma densidade comparvel quela da matria macia, e chegou mes-mo a atribuir um limite inferior a essa densidade.(6) Podemos portanto acolher, como um dado derivado de um ramo da cinciaindependente daquele com o qual precisamos lidar, a existncia de um meioonipresente [pervading medium], com uma densidade pequena porm real, capazde ser posto em movimento e de transmitir o movimento de uma parte a outracom velocidade grande, porm no infinita (Maxwell, 2003c [1864], p. 527-8).

    Conclumos que, em vrios nveis, Maxwell ainda oscila entre a adeso visomecanicista e o rompimento com ela algo que no nos deveria causar espanto, vistotratar-se de um personagem de transio, que ele mesmo o protagonista de uma re-voluo cientfica. No plano ontolgico, vemos que, em Maxwell, j existe um conceitode campo, dotado de sua prpria energia; porm, ainda se trata de um campo atreladoa um meio etreo. Por outro lado, o conceito de campo permitiria explicar a propaga-o das aes eletromagnticas sem recair na ao a distncia; entretanto, ainda ve-mos Maxwell lanar mo tambm do meio interveniente para explicar essa propaga-o. No plano metodolgico temos, primeiramente, a adoo dos modelos mecnicos

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    Valter Alnis Bezerra

    scienti zudia, So Paulo, v. 4, n. 2, p. 177-220, 2006

    apenas num registro analgico, depois, o abandono de tais modelos e, finalmente, aadoo do formalismo lagrangiano; mas, ao mesmo tempo, ainda identificamos, noplano axiolgico, entre os valores cognitivos operantes, uma clara expectativa de des-cobrir mecanismos subjacentes, bem como uma preferncia por explicaes que utili-zem uma ontologia de matria e movimento.

    Alan Chalmers comenta que os indubitveis xitos de Maxwell no eletromag-netismo foram obtidos apesar da sua busca por explicaes mecnicas naquele dom-nio, ao passo que sua abordagem conduziu a erros e becos sem sada que precisariamser superados por aqueles que adotassem uma abordagem diferente (Chalmers, 2001,p. 427; grifo meu). Ou seja, na elaborao por Maxwell de sua teoria eletromagntica,seus pressupostos metatericos teriam funcionado, na realidade, como um obstculo,mais do que como um estmulo. Creio ter ajudado a localizar de forma mais precisa asrazes desse obstculo: sustento que ele reside na axiologia e na ontologia de Maxwell ena sua relao de tenso com a metodologia, mais do que na metodologia propriamentedita. A tenso entre axiologia+ontologia, por um lado, e metodologia, por outro, so-mente viria a ser resolvida bem depois da poca de Maxwell. Conside