B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

18
CADERNOS FUNDAMENTOS | 1 Bernhard Häring Vocações Ministeriais: prognósticos para o futuro A diferença entre aqueles que convicta e conscientemente vivem o exemplo do baptismo de Jesus no Jordão no espírito e no sangue e, por outro lado, aqueles “católicos de berço” que são mais ou menos seguidores passivos é muito mais relevante do que a diferença entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio universal Livraria Fundamentos | Braga, Setembro 2012

Transcript of B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Page 1: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

CADERNOS FUNDAMENTOS | 1

Bernhard Häring

Vocações Ministeriais:

prognósticos para o futuro

A diferença entre aqueles que convicta e conscientemente

vivem o exemplo do baptismo de Jesus no Jordão no

espírito e no sangue e, por outro lado, aqueles “católicos de

berço” que são mais ou menos seguidores passivos é muito

mais relevante do que a diferença entre o sacerdócio

ministerial e o sacerdócio universal

Livraria Fundamentos | Braga, Setembro 2012

Page 2: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 2

Bernhard Häring (1912-1998): missionário redentorista alemão. Já como padre, participou na 2ª Guerra Mundial no corpo médico alemão na frente russa. Destacou-se pelo seu trabalho de renovação da teologia moral católica, na passagem de um modelo casuísta (uma moral segundo casos e regras), para um modelo personalista, no qual se conjugam as exigências cristãs do seguimento de Jesus com uma compreensão do ser humano segundo os contributos da psicologia e das ciências sociais, na melhor herança paulina: «A lei do Espírito da vida em Cristo» (Rom 8,1) Teve um papel importante durante o Concílio Vaticano II, nomeadamente como secretário da redacção da constituição Gaudium et Spes. Durante as décadas seguintes continuou a sua missão como evangelizador e teólogo moral na Europa e EUA, tendo sofrido também um processo desgastante pela Congregação para a Doutrina da Fé. Em Portugal foram publicadas numerosas obras: actualmente destacam-se «Última Palavra de Profeta: Igreja, Estímulos e Esperanças», «Vida em Cristo Plenificada: as Virtudes do Cristão Adulto», e «A Igreja que eu Amo» (esgotado).

Page 3: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 3

Traduzido do original: «Priesthood Imperiled: a critical examination of ministry in the Catholic Church». Ed. Triumph Books, Liguori Missouri 1996 ISBN: 0892439203 A tradução corresponde ao capítulo IX da obra, com o título «Prognosis for the future of Priestly Vocations», páginas 121-137 e 165-166 («A Closing Prayer») da edição original Os nossos agradecimentos à Liguori Publications pela gentil cedência dos direitos de tradução das páginas assinaladas. Tradução: Gustavo Cabral e Rui Vasconcelos Livraria Fundamentos Av. Gen. Norton de Matos 78 4700-387 Braga Tel: 253272208 [email protected] www.fundamentos.pt

Page 4: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 4

Prognósticos para o futuro das vocações presbiterais A questão sobre o futuro das vocações presbiterais pode ser extremamente

dolorosa se a discussão se centrar apenas na escassez de padres, sem prestar a atenção essencial aos sinais dos tempos e à vocação fundamental de todos os cristãos. Tal perspectiva é muito estreita, até prejudicial à missão da Igreja. Deste modo, insisto que devemos dirigir um novo olhar à vocação fundamental de todos os cristãos, de modo particular à luz do baptismo de Jesus por João, no Jordão.

A vocação de Cristo à qual somos chamados é, acima de tudo, a vocação do Servo não-violento de Yahweh para a salvação e paz no mundo. O anúncio da feliz boa-nova da paixão, morte e Ressurreição durante a vida a pública de Jesus depende da sua relação e do seu chamamento pelo Pai. “Tu és o meu filho muito amado” (Mc 1,11). Jesus é chamado e consagrado para carregar os jugos da Humanidade numa solidariedade salvífica, de modo a libertar a Humanidade das lógicas destrutivas do pecado. Ele é o profeta que vai à nossa frente, guiando-nos no caminho da paz, da não-violência e da força do amor que procura transformar os inimigos em amigos.

Imediatamente depois do acontecimento do Baptismo, o Evangelho de Mateus oferece-nos uma das chaves essenciais para compreender o drama da Salvação. Fá-lo desmascarando as maiores tentações satânicas, iluminando as falsas expectativas de um violento e poderoso Messias, e expondo os abusos da religião para obter lucro, poder e exaltação. Apesar de as tentações rodearem a Jesus de todos os lados, elas não têm absolutamente nenhum poder sobre ele. Foi em nosso benefício que Jesus desmascarou de uma vez por todas essas tentações através da sua absoluta fidelidade à sua vocação como Servo-Filho de Deus, sofredor e não-violento.

Page 5: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 5

Compreendê-lo é sobretudo um modo de aprofundar a nossa vocação cristã à luz da vocação de Jesus. Assim, torna-se evidente que o futuro de todas as vocações cristãs depende da nossa inteira fidelidade aos passos do Servo de Yahweh neste novo contexto. Isto implica que o futuro da Igreja será marcado não apenas por vocações particulares, mas sobretudo por aqueles que conscientemente tomam uma opção pessoal por seguir a Cristo, o Servo não-violento de Deus. A diferença entre aqueles que convicta e conscientemente vivem o exemplo do baptismo de Jesus no Jordão no espírito e no sangue e, por outro lado, aqueles “católicos de berço” que são mais ou menos seguidores passivos é muito mais relevante do que a diferença entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio universal. O que realmente caracteriza os cristãos é a profundidade da sua compreensão do que significa ser chamado em e por Cristo para servir a causa do Reino do Servo de Yahweh, e a sua firmeza em abraçar esta vocação que a todos abrange.

Esta perspectiva é o fundamento básico de todas as vocações cristãs, incluindo a vida presbiteral num sentido estrito. Esta não é uma ideia completamente nova. Os meus pais, que eram cristãos por nascimento, tornaram-se, ao longo das suas vidas, cada vez mais cristãos por opção, e enquanto o viveram de modo especial na sua vocação como esposos e pais, viveram-no também como comprometidos criativamente na vida da Igreja. Foram agricultores segundo o sinal do Criador, amigos dos pobres, e em igual medida, enfrentaram enormes perigos na sua firme e corajosa resistência ao regime de Hitler.

Robert Schuman, que com Alcide de Gaspari e Konrad Adenauer foi um dos principais construtores da reconciliação na Europa Central, a certa altura hesitou entre a vocação presbiteral e a política profissional. O presbítero que lhe disse que poderia viver mais plenamente a sua vocação cristã na política do que no ministério presbiteral prestou um grande serviço à Igreja e ao Mundo. Como jovem professor, eu tive a sorte de conhecer de Gaspari e a sua família. Com uma simplicidade impressionante, em diversas ocasiões ele

Desde a era

Constantiniana até

praticamente à

presente era, a maioria

das pessoas era cristã

por nascimento. Agora

o novo paradigma

urge-nos mais

claramente para

sermos e tornarmo-nos

cristãos por escolha,

por vocação.

Page 6: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 6

serviu em celebrações da Eucaristia a que presidi. Foram homens assombrosos que viveram a sua vocação cristã mantendo o testemunho do Servo não-violento de Yahweh.

De modo nenhum pretendo menosprezar a vocação presbiteral, tendo eu tantas razões de a agradecer; mas atrevo-me a dizer que o futuro da Igreja e das vocações ministeriais depende de uma mudança radical do paradigma constantiniano para o da vocação cristã livremente assumida – evitando, a todo o custo, qualquer pensamento de superioridade. Tal mudança significará, necessariamente, uma nova abordagem à vocação do sacerdócio ministerial. Haverá um número suficiente de vocações presbiterais se a abordagem se fizer num sentido ao mesmo tempo mais amplo e mais especificamente cristão da vocação, e sempre em vista da salvação do mundo.

Que bênção é encontrar médicos e todo o tipo de terapeutas que, de um modo convicto, abraçam a vocação cristã como curadores e, ao mesmo tempo, dão testemunho de Cristo-curador! Do mesmo modo, não podemos também referir os advogados que sabiamente trabalham no sentido de criar leis mais humanas e de melhor as aplicar, apontando, através da sua profissão, para Cristo que não veio para julgar mas para salvar?

Penso aqui num dos meus antigos estudantes que entusiasticamente estudou teologia mas que não se sentiu chamado ao celibato. Como juiz num tribunal de menores, desenvolveu uma magnífica e criativa capacidade libertadora. Em vez de enviar jovens problemáticos para a prisão, ofereceu-lhes oportunidades terapêuticas para mudar as suas vidas para melhor servindo a comunidade. Por exemplo, os jovens foram encarregados de visitar os doentes e idosos, por vezes levando-lhes flores e perguntando-lhes em que poderiam ser-lhes úteis. Os jovens foram proibidos de dizer às pessoas a quem visitavam que o faziam como cumprimento de uma pena pelo seu mau comportamento, especialmente porque o juiz não decretou essas penas com o objectivo de punir.

Um livro poderia ser escrito sobre a variedade de vocações e de caminhos pelos quais podemos viver a nossa vocação cristã para a salvação do mundo, de modo a que o novo paradigma de “cristãos por vocação” adquira carne e sangue. Não temo que tal visão possa ser em detrimento da específica vocação ministerial. Pelo contrário, acredito que pode acentuar significativamente a sua autenticidade.

Page 7: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 7

Deve a Igreja reconhecer a sacramentalidade das diversas vocações ministeriais?

Ao renovar a doutrina do sacerdócio ministerial dos fiéis, e ao confiar

explicitamente uma diversidade de actividades apostólicas e eclesiais a leigas e leigos, o Concílio Vaticano II deu um contributo oportuno e significativo para a questão das vocações. Por todo o globo, ainda que em diferentes graus e diversas modalidades, um “clero” não-clerical emergiu.

Com grande alegria e confiança no futuro da Igreja, pude observar este desenvolvimento sobretudo em África. Milhares de catequistas bem preparados, juntamente com as suas generosas esposas, fazem praticamente todo o trabalho paroquial, o que inclui a catequese, a formação de adultos, mediação de paz, edifícios comunitários, cuidado com os pobres e doentes, solenes e festivas celebrações do baptismo e, em cada domingo, celebram a liturgia da Palavra e presidem ao serviço da comunhão, apenas para referir algumas actividades.

À luz destes contributos excepcionais, a minha questão é: devem estas pessoas ser obrigadas a percorrer longas distâncias a pé ou de bicicleta para receber o pão previamente consagrado? De um ponto de vista legal, considerado tudo o que fizeram, eles ainda não participam de um sacerdócio sacramentalmente constituído. A maioria destes homens não pretende ser ordenados de diáconos, porque isso significaria abraçar o celibato aquando da morte das suas esposas. Além disso, como pode o celibato actualmente ser concebido na cultura africana?

Eles não podem celebrar o sacramento do crisma que, na cultura africana, tem um profundo significado. Pessoalmente, eu não vejo nenhum obstáculo dogmático à mudança desta situação. Não dizem, por sinal, a inteira vida de Jesus e a missão do Espírito “sejam criativos!” à Igreja?

Nunca na história da Igreja houve um tão grande número de homens e mulheres preparados e qualificados ao nível teológico. No tempo presente, a Igreja tem mais pessoas preparadas do que teve nos dezoito séculos anteriores juntos. Porque devemos então queixar-nos da falta de vocações cristãs na Igreja?

Page 8: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 8

Juntamente com o Papa João Paulo II, durante muito tempo rezamos fervorosamente pelas vocações presbiterais e celibatárias. Muitos desistiram desta busca devido à ausência de respostas a alguns pensamentos e questões perfeitamente razoáveis: porque dizemos ao Espírito Santo que os presbíteros devem ser-nos dados apenas através da porta do celibato?

Achamos que o Espírito Santo está encantado pelo facto de nós, clérigos, determinarmos o tamanho do buraco da agulha pelo qual o Espírito nos deve fazer passar as tão necessárias e desejadas vocações? Haverá algo mais idolátrico do que impor ao Espírito a vontade humana ou encaixar o Espírito nas nossas estreitas categorias de pensamento? Tivessem os apóstolos e os seus primeiros sucessores actuado deste modo, impondo este tipo de

prescrições ao Espírito Santo, e eles teriam de deixar as suas esposas e, o que é ainda mais importante, teriam de deixar praticamente todas as jovens comunidades cristãs sem Eucaristia.

Repito: o celibato, como um carisma livremente suscitado pelo Espírito, é um nobre e gracioso dom, mas as autoridades eclesiais devem fazer uma escolha consciente e bem ponderada entre a absoluta fidelidade ao testamento e mandato de Jesus – “Tomai e comei, tomai e bebei, todos vós” – e as meras tradições humanas. Devemos recordar que nós clérigos podemos ser presas, não apenas dos perigos das heresias verbais, mas também dos perigos da “heteropraxis”. Durante o

período da Inquisição, a Igreja envolveu-se em práticas horríveis de tortura e morte pelo fogo de mulheres inocentes suspeitas de bruxaria. Denunciar estas práticas sombrias sem estar atento ao presente pode ser uma forma subtil de encobrimento.

O celibato, como um carisma precioso de testemunho do Reino de Deus, não retira o seu valor dos números mas da autenticidade com que é vivido. Nem o celibato deve ser entendido segundo a perspectiva da lei. Pelo

Nunca na história da

Igreja houve um tão

grande número de

homens e mulheres

preparados e qualificados

ao nível teológico. No

tempo presente, a Igreja

tem mais pessoas

preparadas do que teve

nos dezoito séculos

anteriores juntos. Porque

devemos então queixar-

nos da falta de vocações

cristãs na Igreja?

Page 9: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 9

contrário, mais do que qualquer outra coisa, o celibato proclama as palavras de Paulo: “Vós já não estais sob a lei, mas sob a Graça” (Rm 6,14).

A vocação cristã fundamental: o testemunho da não-violência Estes pensamentos são escritos no dia a seguir ao meu encontro com uma

corajosa mulher, numa grande assembleia de membros da Pax Christi. Falamos acerca da nobre vocação daqueles que, na sua fé em Jesus como o Servo de Yahweh, testemunham a não-violência. A sua história pessoal de angústia marcou-me fortemente, uma história a que já referi anteriormente mas que merece ser de novo contada.

Quando o seu marido, um jovem sacristão, decidiu que seria melhor para ele morrer às mãos do regime de Hitler do que participar na morte de outros através de uma guerra claramente injusta, o seu pastor e o seu bispo não o apoiaram. Pelo contrário, tentaram dissuadi-lo com o argumento de que, na obediência à lei, deveria estar preparado para aceitar o serviço militar. A sua esposa, contudo, apoiou-o totalmente com o co-testemunho. As cartas que ele lhe escreveu durante os últimos dias da sua vida são um impressionante desafio para todos os que professamos testemunhar o amor não-violento do Servo sofredor de Deus. Numa das cartas ele diz:

«Querida esposa, de modo nenhum pude poupar-te pelo sofrimento da minha ausência. Como deve o nosso querido Redentor sentido a dor da sua mãe diante da sua paixão! Jesus e Maria sofreram pelo nosso amor. Agradeço ao nosso Salvador por me permitir sofrer e morrer pelo seu amor.» Mahatma Gandhi, que viveu o espírito da não-violência, criou ashrams

(eremitérios hindus), casas para a aprendizagem da não-violência, especialmente no espírito das Bem-Aventuranças. Não seria então expectável que homens como Gandhi e Martin Luther King jr. enfrentassem a morte como um selo pela sua missão e vocação?

Pela primeira vez na história temos a capacidade de exterminar o nosso planeta, seja rapidamente pela guerra nuclear ou gradualmente pela erosão de todas as formas de vida através dos nossos pecados pessoais e corporativos de

Page 10: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 10

irresponsabilidade ecológica. O mundo precisa urgentemente de pessoas como o sacristão e a sua esposa, Mahatma Gandhi, Martin Luther King e Dorothy Day – todos eles viveram a sua vocação de um modo muito exigente. Se das nossas celebrações eucarísticas não brota uma força e uma determinação a viver o testemunho radical da justiça, da paz e da não-violência, então deveremos tristemente concluir que demasiadas vocações cristãs, ministeriais e laicais, não são suficientemente autênticas.

Para mim, esta é uma preocupação infinitamente maior do que o número de padres celibatários. Quanto mais as nossas preocupações se tornarem estreitas e paroquiais, mais dificilmente nos preocuparemos nas questões mais essenciais e abrangentes.

O que dizer das mulheres em relação ao sacerdócio?

Processos e acontecimentos históricos de rápida mudança são particularmente evidentes na recente evolução da identidade e do papel social da mulher. Será que a Igreja deve adaptar-se a estas mudanças ou ficar para trás? Nesta era, a emancipação das mulheres representa um teste oportuno e decisivo para a Igreja, no seu desejo de ser sal da terra na história humana e numa dimensão importante do seu ministério.

Uma visão patriarcal e artificial da Igreja criou problemas muito sérios. Há poucos séculos atrás, parecia algo miraculoso que São Vicente de Paulo obtivesse permissão para as mulheres religiosas saírem da clausura, de forma a servirem os doentes e os pobres sem interferência e supervisão incessante dos clérigos.

Qual é o estatuto da mulher na Igreja no fim do segundo milénio? A experiência feminina está muito à frente da actual perspectiva institucional da Igreja. Já existem centenas – senão milhares – de mulheres teólogas talentosas e criativas, mais do que em todos os séculos anteriores reunidos. Porém, o Vaticano continua a dificultar às mulheres o acesso às posições de cátedra nas suas Universidades Católicas, sobretudo se estão comprometidas numa crítica e reconstrução de assuntos e questões teológicas, já sem falar das doutrinas da Igreja. Apesar disso, as mulheres já exercem uma influência significativa nas Universidades não controladas por Roma, e mais ainda, nas Faculdades teológicas ecuménicas.

Page 11: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 11

Em diversas regiões do mundo é confiado às mulheres uma variedade de papéis pastorais de grande importância e, na prática, até já partilham alguns papéis eclesiais. Muitas já pregam retiros e dirigem “workshops”, com o reconhecimento e elevada estima de padres pela sua especialidade.

Ao nível paroquial, muitas delas são agentes pastorais, – além de acumularem outras responsabilidades – consolando e levando a comunhão aos doentes. Mais ainda, elas dão relevância ao laicado na medida em que formam e treinam equipas de cuidado pastoral aos doentes, um ministério que vai muito além de simples visitas iniciais a hospitais. Elas organizam e educam para a formação de equipas de justiça social laical, focadas no despertar duma consciência e envolvimento mais activo em questões sociais que afectam de um modo particular os pobres e oprimidos. As mulheres apoiam e desenvolvem grupos de estudo bíblico nas paróquias e em casas particulares para aprofundarem um melhor entendimento das Escrituras por parte dos leigos, especialmente como fonte de crescimento espiritual, e para ajudá-los a responderem ao seu chamamento como Cristãos. Todas estas coisas estão a ser realizadas nas paróquias onde uma liderança pastoral colaborativa é a norma; isto é, onde os pastores, que têm a necessidade de pouco protagonismo, resistem à tentação de controlo recusando exercer poder sobre outros. Pelo contrário, o pastor colaborativo partilha o poder do Espírito Santo com outros na tarefa de reconhecer, encorajar, e usar a riqueza de talentos e dons de fiéis bem formados hoje.

Podem as mulheres celebrar o sacramento da reconciliação? Muitas servem, nas suas vidas e ministérios, como sinais sacramentais de paz e reconciliação. As mulheres são dotadas de um especial carisma para o perdão generoso, e com uma habilidade tremenda para relacionarem-se com os doentes, idosos e moribundos de uma forma sadia e prestável. Na verdade, as mulheres são uma inspiração para os outros em mais formas das que foram apresentadas aqui. Eu pessoalmente conheço um número de mulheres verdadeiramente carismáticas cujos bispos nomearam para a capelania hospitalar. Claro que, ainda não vimos nenhuma mulher sentada no confessionário atendendo penitentes. Contudo, pessoas doentes e saudáveis – na sua necessidade e desejo de arrependimento e reconciliação – continuaram a confiar e a abrir as suas consciências a mulheres atenciosas.

Page 12: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 12

A este respeito, mencionarei dois exemplos significativos a partir da minha experiência. Após a segunda guerra mundial, foi construído em Gars – onde vivo actualmente – um hospital de soldados nazis que eram prisioneiros de guerra dos americanos. Alguns destes homens endurecidos sentiram a necessidade de confessar os seus pecados, e até os crimes que cometeram durante a guerra, a uma irmã [freira] que cuidava deles. Orando com eles, ensinou-lhes a apresentar diante de Deus o seu sofrimento e tristeza com uma prece humilde e confiante. Não consigo deixar de pensar que o que aconteceu ali foi de facto um momento sacramental muito mais profundo que aquelas confissões escutadas por padres austeros e ritualistas.

Outro exemplo diz respeito a uma irmã mais velha que, nomeada como capelã hospitalar, é considerada como fidedigna. Muitos pacientes abriram-se espontaneamente a ela, e confessavam o que consideravam como pecados graves. Infelizmente, aqui há um problema. Os pacientes falavam de um padre local que vinha ao hospital semanalmente ou de dois em dois meses, ciosamente inquirindo acerca do número e espécie dos seus pecados. Agora, se a irmã capelã tivesse dito aos seus pacientes que deveriam confessar-se a um padre – um pedido que, em muitos casos, teria significado uma confissão a este mal-amado padre – uma má reacção teria sido expectável. Os pacientes, ou ficariam zangados, recusando a confissão, ou pior, ficariam ainda mais fechados à possibilidade de tentarem-se confessar a ele.

A questão não é: “pode uma mulher celebrar o rito da reconciliação?”. Na nossa actual circunstância, ela não se oferece a esse rito. Eu sei apenas o que as mulheres fazem nessas situações. Elas escutam os pacientes, rezam com eles, e louvam a Deus pelo seu perdão generoso, esperando e rogando por um sinal de gratidão nos seus corações, e que os conduzirá, de futuro, a serem misericordiosos para com aqueles que os ofenderam.

Poderão as mulheres celebrar o sacramento da unção dos doentes? Enquanto não o podem fazer presentemente, as autoridades da Igreja poderiam certamente confiar-lhes essa missão. Eu conheço uma irmã muito graciosa e amável que, com óleo da santa unção, unge os doentes quando lhe é pedido, e até reza por eles. Contudo, ela não usa as fórmulas litúrgicas prescritas. Será que ela administra o sacramento? Formalmente falando, não; mas a sua presença radiante e a sua unção inspiradora podem muito bem ser mais cheias

Page 13: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 13

de graça do que no caso do padre que apressa-se a entrar na sala, unge sacramentalmente o paciente, e depois apressa-se a sair.

De acordo com a “definitiva” doutrina do Papa João Paulo II, as mulheres nunca podem celebrar como presbíteras na Eucaristia, ou, mais tecnicamente, jamais podem consagrar. Contudo, o sucessor de João Paulo II pode muito bem sentir que não está vinculado por tal declaração, caso escute mais pacientemente, não só os teólogos mais qualificados e confiáveis, mas também o bom senso dos fiéis que, na discussão destas questões, dão provas do seu processo de maturidade e discernimento.

Por vezes ouço esta pergunta: como é que então explica que os padres em estado de pecado mortal podem validamente consagrar, enquanto mulheres santas não o podem fazer? Eu respondo com uma pergunta chave: o que significa consagrar? Não é que nós padres consagremos de tal modo que o pão se torna na presença de Cristo. O mistério acontece no momento da epiclese, pelo poder do Espírito Santo. Não poderia a evocação solene do Espírito Santo “Santificai estes dons, derramando sobre eles o Vosso Espírito, …” ser proferida por uma santa mulher, quando, de facto, homens não tão santos o fazem? A meu ver, o maior pecado não torna um padre ordenado incapaz de “consagrar” da mesma maneira que uma mulher santa ficasse automaticamente e necessariamente excluída de o fazer. Noutras palavras, o simples facto de ser mulher constitui um obstáculo imensurável à validade, enquanto o estado de pecado grave de um homem não? Estas são coisas que não podemos compaginar satisfatoriamente.

Uma coisa que hoje é geralmente aceite é que as autoridades da Igreja não podem oferecer qualquer razão satisfatória para excluírem mulheres de todos os grandes processos e decisões que dizem respeito tanto a homens como mulheres. Antes de ser definitivamente decidido quais os ministérios a serem abertos a mulheres, deveria ter-se o cuidado de convidar mulheres, uma grande parte criativa da igreja, a participarem substancialmente nos processos

Antes de ser

definitivamente decidido

quais os ministérios a

serem abertos a mulheres,

deveria ter-se o cuidado de

convidar mulheres, uma

grande parte criativa da

igreja, a participarem

substancialmente nos

processos envolvidos em

todas as grandes decisões

colegiais

Page 14: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 14

envolvidos em todas as grandes decisões colegiais. Não é significativo que durante o Sínodo Mundial dos Bispos de 1994 (que adereçou a questão da vida consagrada), um bispo tenha sugerido que as mulheres deveriam também participar na eleição do papa?

A respeito do assunto acerca da ordenação de mulheres, foi suficientemente documentado que o tradicional argumento contra não só é falacioso como também vergonhoso, para não dizer até teologicamente perigoso. O documento InterInsigniores (15 de Outubro, 1976) do papado de Paulo VI refere-se mais a um número de teólogos medievais, do que a contemporâneos, tais como Boaventura, Duns Escoto, e Durando. Todos esses homens produziram o mesmo argumento duplo (e duplamente falso). A visão de Escoto é particularmente “clara” senão francamente odiosa:

«Ordem é um certo grau de eminência sobre outros na Igreja e é

por um certo grau de superioridade que deve, de alguma forma, ser significado por natural eminência de condição e grau. Mas a mulher está naturalmente num estado de sujeição em relação ao homem, e por isso, não pode possuir um grau de eminência acima de nenhum homem… se ela recebesse Ordens na Igreja, ela poderia presidir e governar, o que é contra a sua condição…desse modo, ela não é uma matéria capaz de receber este sacramento (Escoto, In IV sent. d. 25, Scholium Opus Oxoniense).

Assim, podemos ver como o complexo de superioridade masculina

transfere-se facilmente para um complexo de superioridade clerical, que, acrescento, está em gritante contradição com a verdade central e imagem de Cristo, o Servo [Sofredor]. Também fica claro que todo o assunto da ordenação de mulheres não pode realmente ficar resolvido enquanto o sacerdócio católico é teórica e praticamente entendido como um estado de superioridade. Um padrão de pensamento unilateral hierárquico e patriarcal tende também a excluir as mulheres na Igreja de todos os grandes processos de decisão. (ver Dennis Michael Ferrara, “The Ordenation of Women: Tradition and Meaning” Theological Studies 55 [1994]: 706-719.)

Page 15: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 15

Requisitos para presidir à celebração eucarística Cristo instituiu a Eucaristia como um dom particularmente amoroso à

Igreja peregrina de todos os tempos e lugares. Parece-me que, desta verdade fundamental, torna-se fácil retirar a conclusão de que qualquer tipo de pré-requisito que praticamente prive as comunidades cristãs da regular celebração da Eucaristia não pode ser defendido e mantido.

Esta é uma grave e vinculativa verdade para os que se encontram em autoridade. Note-se que o Catecismo da Igreja Católica refere:

«A Eucaristia dominical fundamenta e sanciona toda a prática cristã. É por isso que os fiéis têm obrigação de participar na Eucaristia nos dias de preceito, a menos que estejam justificados, por motivo sério (por exemplo, doença, obrigação de cuidar de crianças de peito) ou dispensados pelo seu pastor. Os que deliberadamente faltam a esta obrigação cometem um pecado grave» (n.º 2181). Numa teologia moral elaborada não apenas para os que estão sob

autoridade, mas igual e especialmente para os que detêm a autoridade, torna-se claro que os líderes eclesiais que criam tantas condições específicas e meramente humanas a tal ponto de impossibilitarem um grande número de pessoas e comunidades cristãs de participarem regularmente na Eucaristia, “cometem um pecado grave”.

Não poderemos dizer que as autoridades da Igreja incorrem em pecado através das suas normas que privam tantas pessoas da Eucaristia? O ponto de partida para futuras deliberações poderia bem ser as refeições comunitárias da Igreja primitiva.

Um agradecimento sincero aos Padres-Operários Sem dúvida, os padres-operários merecem a nossa profunda gratidão. Eles

foram e são pioneiros corajosos na exploração de novos horizontes para compreender melhor a inculturação do ministério presbiteral. Metaforicamente falando, eles constituíram um salto tremendo sobre uma larga e profunda vala. Padres e bispos vivem o seu zelo pastoral e a sua clarividência carismática

Page 16: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 16

enfrentando criativamente o tema escaldante da alienação das profissões de “colarinho azul” face à Igreja que não só marcou negativamente a história como o próprio Evangelho do “Deus Connosco” – o Emanuel.

Estes padres deram conta do escândalo causado pela perda de contacto com a classe operária, tal como hoje muitos cristãos atentos temem que a Igreja possa perder muitas das suas melhores e mais dotadas mulheres.

As encíclicas de Leão XIII e Pio XI sobre a questão social da classe operária foram certamente exemplos de passos na direcção certa, mas não puderam preencher o abismo entre a prática da Igreja e a cultura da classe operária.

O mundo da Igreja e o mundo operário surgiram como duas esferas diferentes. Na França e na Alemanha alguns bispos começaram a delegar padres capazes para servir primária ou exclusivamente a classe operária. Paul Gauthier, um entre muitos outros padres pastoralmente atentos, teve o bom senso e a coragem de o expressar em termos muito simples: “A França tornou-se um país de missão”. Ainda assim, apesar de toda a sua boa-vontade, os padres enviados junto da classe operária estavam realmente marcados pela sua identificação com uma classe e uma cultura diferentes – a cultura tridentina, simbolizada pela batina. Muitos padres foram simplesmente incapazes de se dar conta do tamanho de tal diferença e distanciamento cultural. E não podemos especificar qual distanciamento falamos, se o dos trabalhadores ou se o da Igreja, visto que ambos se deram.

Page 17: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring 17

Em jeito de Oração

Senhor Jesus Cristo: Ao longo destes cinquenta e seis anos permitiste-me que servisse a

milhares de homens que comigo partilham a vocação presbíteral, através do ensino, da direcção espiritual, da exortação, e do consolo. Juntos, aprendemos e, espero, continuaremos a aprender como humilde e corajosamente te havemos de seguir, a ti o Servo e Profeta de Yahweh, e como reverenciar e servir a todos os membros do teu povo sacerdotal, por todo o mundo.

Enche-nos de fé, alegria, esperança e de um profundo amor! Dia

após dia aprofunda as nossas capacidades de te reconhecer cada vez melhor como o Servo não-violento, o Caminho da Paz, o Consolador dos aflitos e desesperados! Pelo poder do Espírito, ajuda-nos a melhor compreender e promover os muitos caminhos da paz, e ajuda a cada um de nós a tornarmo-nos mais atentos e mais determinados a ser, acima de tudo, verdadeiros servos da tua Palavra, e a sermos ministros humildes e alegres de todos aqueles a cujo serviço nos confiaste.

Abençoa o nosso Papa e os nossos bispos, e a todos aqueles que

detêm autoridade na Igreja, para que possam cada vez mais viver e promover a unidade na diversidade. Fortalece-nos para que possamos tornar-nos autênticas testemunhas da tua Verdade, e instrumentos efectivos na promoção da unidade cristã e na solidariedade universal para a salvação de todo o mundo.

Page 18: B.Häring, Vocações Ministeriais, prognósticos para o futuro

Cadernos Fundamentos | I | Bernhard Häring

Livraria Fundamentos

Uma livraria dedicada à literatura cristã e

religiosa, de todas as editoras, confissões e

espiritualidades. Em Braga.

www.fundamentos.pt

18