BIBLIA AVE MARIA

119
INTRODUÇÃO GERAL A BÍBLIA. -- "Nós não sentimos necessidade de apoios e alianças, tendo em mãos, para nosso conforto, os livros sagrados" (1Mac 12,9). Assim, em 154 a.C, em nome de toda a nação, da qual era chefe, escrevia Jonatas Macabeu ao rei de Esparta. Nessas suas palavras, já se apresenta o termo usual, o valor singular e o emprego prático da obra cuja versão apresentamos. Do termo: os livros -- no texto grego um neutro plural tà biblía -- em nossa língua, através do latim vulgar, formou-se o feminino singular: a Bíblia. Outros sinônimos, encontramo-los freqüentemente na própria Bíblia: a Escritura ou as Escrituras, as santas Escrituras, e mais raramente, as sagradas Letras. A Bíblia, portanto, não é um livro só, mas muitos, uma coletânea, cuja unidade consiste no argumento comum e na origem sobre-humana. E de "livros santos" que a Bíblia se compõe, porque dentro de sua grande variedade eles coincidem em tratar de religião, tendo um objetivo essencialmente religioso. Com mais razão ainda chamam-se "livros santos" ou "sagrados" porque, como ensina a fé, tanto judaica como cristã, não foram escritos por mero talento humano, mas sob a influência de inspiração divina especial. Ê desta origem sobrenatural que a Bíblia recebe a sua dignidade de "livro por excelência" e o seu lugar único na vida dos povos que tiveram o primado na civilização. Ela é, com efeito, o fundamento e o alimento da fé para todos os povos cristãos, e nenhum outro livro no mundo pode ser a ela comparado, nem de longe, seja pelo número de tiragens de edições, quer manuscritas, quer impressas, seja pela influência sobre a vida individual e pública, sobre a literatura e as artes figurativas. Qualquer fiel sinceramente apegado à sua religião tem-na, por assim dizer, constantemente em mão, como Jonatas o apontava, para nela encontrar conforto em todas as vicissitudes da vida. DIVISÃO E NÚMERO DE LIVROS. -- CÂNON. -- Com o nome de Bíblia, pois, compreendem-se os livros sagrados da religião cujo centro é Jesus Cristo. Partindo deste ponto de convergência, a Bíblia divide-se em duas séries desiguais, a primeira, anterior a Jesus Cristo, a segunda, posterior. A primeira chama-se Antigo Testamento, a segunda Novo Testamento, conceito e vocábulo esses tomados da própria Bíblia. O Antigo Testamento consta dos livros seguintes, comumente agrupados em quatro classes: V Pentateuco ou cinco livros de Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio. 2° Livros históricos: Josué, Juízes, Rute, Reis, Crônicas, Esdras e- Neemias, Tobias, Judite, Ester, Macabeus. 3? Livros didáticos ou poéticos: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico (ou Sabedoria de Jesus, filho de Sirac). Livros proféticos: Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel, os Doze profetas menores, isto é: Amós, Oséias, Joel, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. No Novo Testamento, o primeiro e mais conspícuo lugar compete aos quatro Evangelhos: segundo Mateus, Marcos, Lucas, João. Seguem-se: um livro histórico, os Atos dos Apóstolos; catorze epístolas de S. Paulo: aos Romanos, duas aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, duas aos Tessalonicenses, duas a Timóteo, uma a Tito, a Filemon, aos Hebreus; sete epístolas chamadas católicas, ou canónicas: uma de Tiago, duas de Pedro, três de João, uma de Judas; finalmente, um livro profético, o Apocalipse. O elenco oficial dos livros sagrados chama-se cânon, no sentido de norma. Expusemos aqui o cânon católico, formado já no séc. IV nas cartas pontifícias e nos concílios provinciais da África, sancionado depois solenemente pelos concílios ecumênicos de Florença (1441) e de Trento (1546) e confirmado pelo Concílio Vaticano I (1870). Para a integridade do cânon não importa a ordem dos livros, porque, exceto o primeiro lugar reservado constantemente, no Antigo Testamento, ao Pentateuco e no Novo, aos Evangelhos, no restante diferem muito entre si os manuscritos, os autores, os catálogos oficiais de igrejas e de seitas.

description

BIBLIA AVE MARIA EM PDF

Transcript of BIBLIA AVE MARIA

Page 1: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO GERAL

A BÍBLIA. -- "Nós não sentimos necessidade de apoios e alianças, tendo em mãos, para nosso conforto, os livros sagrados" (1Mac 12,9). Assim, em 154 a.C, em nome de toda a nação, da qual era chefe, escrevia Jonatas Macabeu ao rei de Esparta. Nessas suas palavras, já se apresenta o termo usual, o valor singular e o emprego prático da obra cuja versão apresentamos. Do termo: os livros -- no texto grego um neutro plural tà biblía -- em nossa língua, através do latim vulgar, formou-se o feminino singular: a Bíblia.

Outros sinônimos, encontramo-los freqüentemente na própria Bíblia: a Escritura ou as Escrituras, as santas Escrituras, e mais raramente, as sagradas Letras. A Bíblia, portanto, não é um livro só, mas muitos, uma coletânea, cuja unidade consiste no argumento comum e na origem sobre-humana.

E de "livros santos" que a Bíblia se compõe, porque dentro de sua grande variedade eles coincidem em tratar de religião, tendo um objetivo essencialmente religioso. Com mais razão ainda chamam-se "livros santos" ou "sagrados" porque, como ensina a fé, tanto judaica como cristã, não foram escritos por mero talento humano, mas sob a influência de inspiração divina especial.

Ê desta origem sobrenatural que a Bíblia recebe a sua dignidade de "livro por excelência" e o seu lugar único na vida dos povos que tiveram o primado na civilização. Ela é, com efeito, o fundamento e o alimento da fé para todos os povos cristãos, e nenhum outro livro no mundo pode ser a ela comparado, nem de longe, seja pelo número de tiragens de edições, quer manuscritas, quer impressas, seja pela influência sobre a vida individual e pública, sobre a literatura e as artes figurativas. Qualquer fiel sinceramente apegado à sua religião tem-na, por assim dizer, constantemente em mão, como Jonatas o apontava, para nela encontrar conforto em todas as vicissitudes da vida.

DIVISÃO E NÚMERO DE LIVROS. -- CÂNON. -- Com o nome de Bíblia, pois, compreendem-se os livros sagrados da religião cujo centro é Jesus Cristo. Partindo deste ponto de convergência, a Bíblia divide-se em duas séries desiguais, a primeira, anterior a Jesus Cristo, a segunda, posterior. A primeira chama-se Antigo Testamento, a segunda Novo Testamento,

conceito e vocábulo esses tomados da própria Bíblia.

O Antigo Testamento consta dos livros seguintes, comumente agrupados em quatro classes:

V Pentateuco ou cinco livros de Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.

2° Livros históricos: Josué, Juízes, Rute, Reis, Crônicas, Esdras e- Neemias, Tobias, Judite, Ester, Macabeus.

3? Livros didáticos ou poéticos: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico (ou Sabedoria de Jesus, filho de Sirac).

4° Livros proféticos: Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel, os Doze profetas menores, isto é: Amós, Oséias, Joel, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.

No Novo Testamento, o primeiro e mais conspícuo lugar compete aos quatro Evangelhos: segundo Mateus, Marcos, Lucas, João. Seguem-se: um livro histórico, os Atos dos Apóstolos; catorze epístolas de S. Paulo: aos Romanos, duas aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, duas aos Tessalonicenses, duas a Timóteo, uma a Tito, a Filemon, aos Hebreus; sete epístolas chamadas católicas, ou canónicas: uma de Tiago, duas de Pedro, três de João, uma de Judas; finalmente, um livro profético, o Apocalipse. O elenco oficial dos livros sagrados chama-se cânon, no sentido de norma. Expusemos aqui o cânon católico, formado já no séc. IV nas cartas pontifícias e nos concílios provinciais da África, sancionado depois solenemente pelos concílios ecumênicos de Florença (1441) e de Trento (1546) e confirmado pelo Concílio Vaticano I (1870). Para a integridade do cânon não importa a ordem dos livros, porque, exceto o primeiro lugar reservado constantemente, no Antigo Testamento, ao Pentateuco e no Novo, aos Evangelhos, no restante diferem muito entre si os manuscritos, os autores, os catálogos oficiais de igrejas e de seitas.

Page 2: BIBLIA AVE MARIA

Os livros históricos mais extensos do Antigo Testamento, Samuel-Reis e Crônicas, na antiquíssima versão grega (dos LXX, veja abaixo), por razões práticas foram divididos em dois; além disso, considerando Samuel e Reis como uma obra só, chegou-se a contar 4 livros dos Reis e dois das Crônicas, costume esse que se estendeu aos latinos e dura ainda em parte entre nós. No texto hebraico, adotada semelhante divisão, conhecem-se dois livros de Samuel, dois dos Reis, dois das Crônicas. Esdras e Neemias são chamados também de primeiro e segundo de Esdras. Também dos Macabeus contam-se dois livros, que na realidade são duas obras perfeitamente distintas. Na Vulgata, a Carta de Jeremias constitui o último cap. (6?) de Baruc. Tudo bem calculado, o Antigo Testamento consta de quarenta e seis livros, o Novo, de vinte e sete.

Por razões igualmente práticas, desde os primeiros séculos da nossa era, cada livro foi dividido em seções de várias extensões, conforme sistemas bastante diversos para lugares e épocas. Para eliminar os inconvenientes dessas antigas divisões e facilitar o estudo uniforme, no início do séc. XIII, na Universidade de Paris, Estêvão Langton (depois cardeal) introduziu a divisão em capítulos de extensão mediana, que depois, pela sua utilidade prática, propagou-se em todas as escolas e em todas as edições, e é ainda hoje de uso universal, agora insubstituível.

Mais tarde, no séc. XVI, os mesmos capítulos foram divididos em versículos numerados (por Sante Pagnini, para o Antigo Testamento [1528], por Roberto Estêvão, para o Novo [1550]), tendo sido também essa numeração, pela comodidade das citações, aceita logo e perdura até agora em toda parte. Entende-se, entretanto, que essas divisões são apenas de valor prático, não científico.

LÍNGUAS ORIENTAIS E CÂNONES DIVERSOS. -- O Novo Testamento inteiro foi escrito em grego; só o Evangelho de Mateus, conforme testemunhos de antigos, teve uma primeira redação em aramaico, a qual, porém, se perdeu sem deixar vestígios; em lugar dela temos uma tradução, ou melhor, uma redação grega.

Quanto ao Antigo Testamento, temos três idiomas originais. A maior parte foi escrita e chegou até nós em língua hebraica. Alguns capítulos dos livros de Esdras e de Daniel, e um versículo de Jeremias, estão em aramaico, que foi o idioma falado na Palestina depois do exílio

babilónico (séc. VI a.C). Dois livros, o segundo dos Macabeus e a Sabedoria, foram escritos originariamente em grego. Dos livros de Judite, Tobias, Baruc, Eclesiástico e parte também de Daniel e Ester, perdeu-se, como no caso do Evangelho de Mateus, o texto original, hebraico ou aramaico, sendo substituído pela versão grega.

Essas diferenças lingüísticas não deixaram de exercer a sua influência sobre a extensão do cânon dos livros sagrados. Enquanto os judeus disseminados no mundo greco-romano não tinham dificuldades em introduzir os livros redigidos em grego, os judeus da Palestina não queriam conformar-se com isso. Além disso, foi-se formando entre eles a opinião de que, depois de Esdras (séc. V a.C), faltando ou sendo incerto o dom profético (veja IMac 4,46; 14,41), nem sequer admitiam pudessem ser escritos livros inspirados por Deus. Por isso, quando nos fins do séc. I d.C, os doutores da Sinagoga fixaram o cânon das Sagradas Escrituras, foram excluídos até os livros escritos em hebraico depois daquela época, como o Eclesiástico. Daí resultou um cânon hebraico em que faltam sete livros: Tobias, Judite, os dois dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e a Carta de Jeremias, e mais algumas partes de Ester e de Daniel.

O veredito dos doutores hebreus não deixou de repercutir na Igreja cristã. Enquanto no uso comum se difundia o cânon mais pleno, concretizado na versão dos LXX, empregada e recomendada pelos apóstolos, alguns escritores (Melitão de Sardes, Sto. Atanásio de Alexandria, S. Gregório de Nazianzo, entre os gregos; Sto. Hilário de Poitiers, Rufino de Aquilêia e principalmente S. Jerônimo, entre os latinos) adotaram o cânon mais restrito dos hebreus, e, devido à autoridade desses antigos doutores cristãos, toda hesitação entre os católicos não foi eliminada senão pelo sagrado Concílio de Trento (1546).

No entanto, em virtude de tais vozes discordantes da crença comum, chegou-se a fazer distinção entre "livros reconhecidos" (homologúmenos), admitidos por todos (os do cânon hebraico), e "livros controversos" (antilogúmenos), não admitidos por todos, os oito acima enumerados, constantes do cânon cristão. Na terminologia moderna, os primeiros se chamam protocanônicos, os segundos deuterocanônicos, ou seja, canónicos de primeira e de segunda época, à medida que a unanimidade a seu respeito foi alcançada logo no começo ou só mais tarde. Entende-se, porém, que, com esses vocábulos, não se queria

Page 3: BIBLIA AVE MARIA

distinguir o valor ou a autoridade das duas categorias de livros, e sim lembrar somente um fato histórico e servir para maior brevidade e clareza no tratamento destas matérias. Analogamente, no Novo Testamento, por outras razões, porém, alguns livros nem sempre foram admitidos, e nem em todas as Igrejas, entre as divinas Escrituras; tais como a Epístola aos Hebreus, a de Tiago, a segunda de Pedro, a segunda e terceira de João, a de Judas e o Apocalipse; aos quais, por isso, também se aplicou a designação de deuterocanônicos, no sentido explicado.

Tudo o que foi dito até aqui vale para os autores católicos. Compreende-se que os hebreus rejeitem, em sua totalidade, o Novo Testamento, além dos deuterocanônicos do Antigo. Os protestantes ocupam uma posição de meio termo. No Novo Testamento, depois das primeiras incertezas de seus fundadores admitiram integralmente e sem distinção o Cânon católico. No An-tigo Testamento, ao invés, seguindo o cânon mais restrito dos hebreus, rejeitam, como fora da série dos livros sagrados, sob o nome de "apócrifos", os que nós chamamos deuterocanônicos.

Para os católicos, os apócrifos são certos livros antigos, semelhantes a livros bíblicos, quer do Novo, quer do Antigo Testamento, o mais das vezes atribuídos a personagens bíblicas, mas não inspirados, como os livros canónicos, e nem sempre escritos por pessoas fidedignas, nem de doutrina segura. Os apócrifos do Antigo Testamento .são chamados "pseudo-epígrafos" pelos protestantes.

INSPIRAÇÃO E INTERPRETAÇÃO. -- "As coisas

reveladas por Deus, que se encontram e manifestam na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. De fato, a Igreja, por fé apostólica, considera como sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, tendo sido escritos por inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31;

J2Tim

3,16; 2Pdr 1,19-21; 3,15 --16), têm a Deus por autor e como tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os Livros sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que, agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele quisesse.

Portanto? como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos se deve ter como afirmado pelo Espírito Santo, por isso

mesmo havemos de acreditar que os Livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade relativa à nossa salvação, que Deus quis fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, 'toda Escritura divinamente inspirada é útil para ensinar, para argüir, para corrigir, para instruir na justiça: a fim de que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as boas obras' (2Tim 3,16-17 gr.).

Mas como Deus na Sagrada Escritura falou por meio de homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis nos comunicar, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e aprouve a Deus manifestar por meio das palavras deles.

Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem-se ter em conta, entre outras coisas, também os 'gêneros literários'. A verdade é proposta e expressa de modos diferentes, segundo se trata de textos históricos de várias espécies, ou de textos proféticos ou poéticos ou ainda de outros modos de expressão. Ê preciso, então, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo -- em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura -- pretendeu exprimir e de fato exprimiu usando os 'gêneros literários' então em voga. Para entender retamente o que o autor sagrado quis afirmar por escrito, deve-se atender bem quer aos modos peculiares de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que na mesma época costumavam empregar-se nos intercâmbios humanos.

Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que levou à sua redação, ao investigarmos o sentido bem exato dos textos sagrados, não devemos atender menos ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a6 Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas, de harmonia com estas regras, trabalhar para entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, graças a este estudo de algum modo preparatório, chegue a termo o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.

Portanto, na Sagrada Escritura, salvas sempre a verdade e a santidade de Deus, manifesta-se a admirável 'condescendência' da eterna Sabedoria, 'para nos levar a conhecer a inefável benignidade de Deus e a grande acomodação

Page 4: BIBLIA AVE MARIA

que usou nas palavras, tomando antecipadamente cuidado da nossa natureza' (S. João Crisóstomo).

As palavras de Deus, expressas em línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do Eterno Pai, tomando a carne da fraqueza humana, se tornou semelhante aos homens". (Dei Verbum, 11-13).

A inspiração bíblica, segundo o conceito católico, não é uma moção mecânica, nem um ditado, como se o autor humano fosse passivo e nada de próprio assentasse no livro inspirado. Não; a força inspiradora age no homem de maneira digna dele, condizente com sua natureza de criatura inteligente e livre. Antes de tudo, a inspiração é uma luz intelectual, que, ou descobre ao homem aquilo que antes ignorava (e então tem-se a revelação), ou com novo esplendor lhe apresenta aquilo que já sabia. Sob a sua ação, a inteligência humana não é perturbada, não perde a consciência de si, como afirmavam os antigos acerca dos oráculos pagãos; pelo contrário, é mais do que nunca lúcida e inteligente. Nem a vontade é arrastada à força contra a sua inclinação; antes, mais do que nunca livre, segue dócil e espontaneamente o impulso divino. A ação inspiradora estende-se a todas as faculdades do homem, a todas as suas ações empregadas ao escrever, até à redação completa; mas a todas e a cada uma toca e dirige segundo a natureza de cada uma e segundo a parte que tomam no trabalho complexo de escrever. Daí se segue que a inspiração não suprime nem atenua a personalidade do escritor humano, e nos vários livros da Bíblia pode-se ver refletida a índole e o estilo de cada autor.

TEXTOS E VERSÕES. -- "Todos os Padres e Doutores tiveram firmíssima persuasão" -- escreve Leão XIII na citada encíclica Providentissimus -- "de que as divinas Escrituras, quais saíram da pena dos autores sagrados, são inteiramente isentas de qualquer erro". Mas será que todas nos chegaram tais "quais saíram da pena dos autores sagrados?" Nenhum autógrafo, nem sequer do último dos autores inspirados, chegou até nós, como também o de nenhum escritor da antigüidade profana; só possuímos deles cópias remotas. Ora, os copistas não tiveram a assistência do Espírito Santo como os hagiógrafos, e enquanto copiavam à mão, era natural que se introduzissem no texto alterações de várias espécies. No longo período de 1500-3000 anos,

desde as primeiras cópias até à invenção da imprensa (séc. XV), era moralmente impossível que dois exemplares de um mesmo livro, ao menos os mais extensos, fossem exatamente iguais, e Deus, que: preservou de todo erro os originais dos livros sagrados, não quis obrigar-se a milhares de milagres que seriam necessários para que se conservassem intactas as cópias. Bastava conservar inalterada a substância do depósito da fé contido nos livros sagrados. E para tanto foi magnificamente providenciado, como precisamente nos ensina a historia do texto.

Os textos originais da Bíblia, em particular os do Novo Testamento, são comprovados por tamanha abundância e antigüidade de documentos, que também sob o aspecto da transmissão textual a Bíblia mantém o seu primado, o seu lugar eminente na literatura mundial. Confrontada aos mais célebres monumentos da literatura profana, tais como as obras-primas da literatura grega e latina, ela brilha como o sol entre as estrelas. As obras de autores gregos e latinos, não raramente, nos chegaram num único manuscrito, e as mais afortunadas gloriam-se de algumas dezenas deles; os manuscritos do Novo Testamento, porém, contam-se às centenas e aos milhares. Deles possuímos ainda códices inteiros em pergaminho, do século IV; com fragmentos de papiros podemos remontar aos séculos III e II, isto é, a menos de um ou dois séculos da morte dos autores, enquanto que para Cícero e Virgílio a distância das cópias mais antigas é de cinco ou seis séculos, para Homero de um milênio e mais. O testemunho da transmissão direta dos códices gregos é reforçado quer por antiquíssimas versões -- já no séc. II, como a antiga versão latina --, quer pelas abundantes citações de escritores cristãos, a partir do séc. II. Ora, nesses antiquíssimos testemunhos encontramos a máxima parte do texto das modernas versões. Verdade é que a própria quantidade de manuscritos (além de versões e citações) ocasionou, pela razão já dita, um número proporcionado de variantes, ou seja, de alterações; pretende-se que no Novo Testamento inteiro, em 150.000 palavras, haja 200.000 variantes, mas na maioria são minúcias que não atingem absolutamente o sentido. Ademais, a riqueza de documentação oferece à crítica meios mais eficientes para precisar o texto original. Segundo o cálculo de juízes tão competentes como os críticos Westcott e Hort, sete oitavos de todo o Novo Testamento são transmitidos, concordemente, sem variantes, por todas as testemunhas. Quanto às variantes, somente a milésima parte atinge o sentido e só

Page 5: BIBLIA AVE MARIA

umas vinte assumem verdadeira importância. Nenhuma atinge a alguma verdade de fé. Auxiliados pela crítica textual podemos concluir, com os supracitados críticos, que o texto genuíno do Novo Testamento é assegurado não só na substância, mas também em quase todos os minuciosos particulares.

Quanto ao Antigo Testamento, as coisas apresentam-se um pouco diversamente. Antes das recentes descobertas junto ao mar Morto (1947), os códices hebraicos conhecidos, não anteriores aos séculos VIII-X d.C, dependiam todos de uma recensão ou arquétipo do fim do séc. I d.C, posterior, portanto, a cinco ou mais séculos dos originais. Dessa fonte temos o texto consonântico, isto é, só as consoantes das palavras hebraicas, segundo o uso das línguas semíticas, de não escreverem as vogais. Somente por volta do séc. VII d.C, para facilitar a leitura e para uso didático, foram inventados os sinais vocálicos e inseridos no texto, quando o hebraico tinha cessado há séculos (pelo séc. IV a.C), de ser idioma falado. No longo período do séc. I ao X d.C, o texto hebraico foi objeto dos mais minuciosos e diligentes cuidados da parte dos rabinos, chamados massoretas (de massorá = tradição). Ê ao trabalho infatigável deles que se deve a conservação inalterável do texto e dos manuscritos tão uniformes que não apresentam senão raríssimas variantes e de leve monta. Também as antigas versões, com uma só exceção, quer as gregas do séc. II (Áquila, Símaco, Teodocião, dos quais contudo não nos chegaram senão fragmentos), quer a siríaca, chamada Pechitta, o Targum aramaico (também chamado paráfrase caldaica), e a latina de S. Jerônimo, sendo todas posteriores à recensão do séc. I, e dela dependentes raras vezes supõem forma diversa do texto hebraico normal (massorético).

Tanto mais preciosa, em tais circunstâncias, é para nós a antiga versão grega, feita no Egito (mais exatamente, em Alexandria, motivo por que também é chamada "alexandrina") entre os séc. III e II a.C Considerada até os tempos modernos como obra coletiva de setenta e dois doutos hebreus vindos para isso de Jerusalém, a pedido de Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C), como narra uma pseudocarta de Aristéia, continua ainda a chamar-se a versão dos Setenta ou os Setenta (LXX). Na realidade, como mostra o exame interno, os tradutores foram muitos, traduzindo quem este, quem aquele livro, em épocas diversas, até que, reunidas as traduções, formou-se um A. Testamento totalmente grego, mais amplo do que o hebraico massorético, segundo o que

acima foi dito. Entra aqui o testemunho -- precioso pelo fato e pela época -- do neto do autor do Eclesiástico, o qual, no prólogo de sua tradução da obra do avô, assevera ter ido ao Egito pelo ano XXXVIII do rei Evérgetes (cerca de 132 a.C.) e ali já ter encontrado traduzidos em grego, a Lei (Pentateuco), os Profetas e os outros Escritos, isto é, as três partes em que os judeus dividem a sua Bíblia,

Assim, a versão grega dos LXX tem para nós valor de um manuscrito hebraico do séc. III a.C. ou mais antigo, representando um tipo de texto sensivelmente diferente, como o demonstra um confronto com o texto corrente na Palestina. Ela é para nós, portanto, o instrumento principal para a emenda crítica do texto hebraico. È, contudo, um instrumento de emprego freqüentemente delicado. Além de, por causa das divergências dos tradutores, alguns literais e até servis, outros mais livres, não termos um critério geral para remontar da tradução grega ao original hebraico, o próprio texto dos LXX, através de tantas vicissitudes de séculos, chegou-nos em manuscritos com tão grande número de variantes que nem sempre é fácil, entre essa selva de variantes, descobrir o texto genuíno.

Causaram enorme confusão, sem o querer, três recensões feitas no séc. III e difundidas largamente na Igreja grega. Um século depois, um ótimo perito e testemunha ocular dos fatos, S. Jerônimo (Prefação às Crônicas) escreve: "Alexandria com todo o Egito, nos seus LXX louva a obra de Hesíquio; de Constantinopla até Antioquia usam-se os exemplares do mártir Luciano; as províncias situadas entre essas duas regiões lêem os códices palestinenses, elaborados por Orígenes e divulgados por Eusébio e Pânfilo; de modo que todo o orbe se debate entre esta tríplice variedade". Felizmente nos foi conservado em poucos manuscritos, sobretudo no famoso Vaticano 1209 (assinalado com a sigla B), um texto anterior àquelas recensões e por elas tomado por base, o que facilita o trabalho do crítico em busca da forma primitiva.

Todavia, o exame atento e consciencioso nos revela que também o texto hebraico usado pela vetusta versão grega já estava bem afastado da primitiva pureza e integridade, e que a maioria das alterações agora deploradas no texto massorético, já existiam nos séculos imediatos ao exílio babilónico. Faltando o apoio dos LXX para emendar um texto corrompido, não nos resta senão o recurso à crítica interna, ou seja, à reconstituição conjetural. A legitimidade e a medida da aplicação destes critérios no Antigo Testamento, provam-nos alguns capítulos que, nos próprios livros canónicos, nos foram

Page 6: BIBLIA AVE MARIA

transmitidos em dois exemplares diversos. Como., por exemplo, o salmo 18 (Vulgata 17), reproduzido em 2Rs 22 e, no próprio Saltério, o salmo 14 (Vulgata 13) repetido com o número 53 (Vulgata 52). So tocante ao Pentateuco, além disso, temos como reforço o texto conservado entre os samaritanos, pertencente a um tipo mais antigo que o massorético, abstração feita de certos acréscimos e adaptações em favor do culto deles no monte Garizim (veja Jo 4,20). O arcaísmo do Pentateuco samaritano reflete-se até na forma de, escritura que eles ainda adotam. Trata-se dum descendente direto da primitiva escrita hebraica, mais próxima das origens fenícias (e portanto também de nosso alfabeto), do que o alfabeto em uso há séculos entre os hebreus. De fato, a hodierna escrita hebraica (chamada, pela forma geral das letras, quadrada) deriva do ramo aramaico do alfabeto adotado por eles na época persa (cerca do séc. V a.C.) em lugar da antiga, na qual anteriormente foram escritos os livros sagrados. No exame crítico do texto original, esta mudança de alfabeto deve ser levada em conta. Ê o primeiro estudo a ser feito por todo bom tradutor ou intérprete da Bíblia, como de qualquer outro livro: certificar-se da leitura genuína, isto é, das palavras exatas escritas pelo autor. "O primeiro cuidado de quem quer entender a divina Escritura [sentencia Sto. Agostinho no seu magistral De Doctrina Christiana, 1. II, c. 21] deve ser o de corrigir os códices". Traduzido em linguagem moderna pelo Pontífice Leão XIII, na encíclica Providentissimus Deus, este preceito soa assim: "Examinada com todo cuidado a leitura genuína do texto, quando for o caso, passar-se-á a sondar e expor o sentido" do texto sagrado.

A VULGATA, -- Vulgata, por antonomásia, chamase a versão latina em uso na Igreja latina. Ela é, em sua máxima parte, obra de S. Jerônimo, doutor da Igreja (cerca de 350-420), pois resulta da união de três categorias de livros: V livros que ele traduziu diretamente do texto original: todos os protocanônicos do Antigo Testamento, com exceção dos Salmos, mais Tobias e Judite; 2°- os livros de uma antiga versão latina por ele revista e corrigida à luz do texto grego: os Salmos, do Antigo Testamento; ao certo os Evangelhos e provavelmente o restante do Novo Testamento; 3° cinco deuterocanônicos do Antigo Testamento, que tinham ficado na antiga versão latina, não tocados por S. Jerônimo, a saber: os dois dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc (com a Carta de Jeremias). Não é, portanto, inexato dizer que o termo Vulgata, comumente

falando, seja sinônimo da versão de S. Jerônimo, denominando-se o todo pela parte principal e mais extensa.

O VALOR DA VULGATA. -- Entre os tradutores antigos da Bíblia, S. Jerônimo foi o último no tempo, embora o primeiro pelo mérito: não só por se ter podido valer dos trabalhos dos seus antecessores, mas sobretudo porque, pela prática constante, adquiriu domínio tal das línguas bíblicas (hebraico, aramaico, grego), que entre os antigos cristãos não se conhece igual. Acrescente-se um conhecimento igualmente único da literatura exegética, tanto judaica como cristã. Com uma bagagem de cultura literária incomum, com ótima preparação e excelentes critérios, pôs mãos. ao árduo trabalho. Começou por corrigir (em Roma, em 384, a convite do papa S. Dâmaso) os Evangelhos latinos, auxiliado para isso pelos melhores códices gregos. Transferindo-se depois para a Palestina (386), com o intuito de levar uma vida de ascetismo e de estudo, estendeu o mesmo trabalho de paciente revisão, baseado no original grego, aos livros do Antigo Testamento; mas, tendo terminado uma parte deles, sobretudo os Salmos, que passaram depois à Vulgata, compreendeu que prestaria um serviço muito melhor à Igreja, fazendo uma nova versão diretamente do texto hebraico. E sem esmorecer diante das ingentes dificuldades, e sem se cansar no longo e áspero caminho, a ela se dedicou com admirável constância pelo espaço de uns quinze anos, de 390 a 404, até o acabamento feliz da obra. Não traduziu os livros pela ordem que têm no cânon. Começou com os livros de Samuel, aos quais antepôs o conhecido Prólogo galeato, que é como que o programa de toda a sua versão. Passou depois aos Salmos, aos Profetas, a Jó, a Esdras e às Crônicas, aos três livros atribuídos a Salomão (Provérbios, Ecle-siastes, Cânticos). Em seguida, passando para o início, pôs mãos ao Pentateuco, e prosseguindo por Josué, Juízes e Rute, terminou com Ester. Não traduziu todos os livros com a mesma aplicação. Com maior cuidado traduziu e corrigiu (como se exprime ele mesmo) os primeiros livros, isto é, Samuel e Reis; os três livros ditos de Salomão concluiu-os em apenas três dias; o de Tobias, num dia; o de Judite, numa noite. Destas e de outras causas resulta certa desigualdade entre os vários livros, e também na unidade fundamental da versão. Em geral, tendo-se formado uma idéia clara do que queria dizer o autor sagrado, procurou produzi-la com a mesma clareza em latim, cuidando mais do sentido do que da letra, sem menosprezar a exigência da boa latinida-de. Guiado por esses

Page 7: BIBLIA AVE MARIA

critérios, conseguiu imprimir à sua tradução, de modo geral, uma propriedade de sentido e uma beleza de expressão tais, que só se apreciam plenamente quando comparadas com as versões rivais gregas ou latinas, em geral rudemente literárias e bárbaras e, portanto, também obscuras. Todavia, também S. Jerônimo, especialmente nos primeiros livros traduzidos, às mais das vezes por veneração à palavra divina, não se afasta de um duro literalismo e por amor à clareza não foge de termos e construções vulgares; nos seus escritos originais brilha muito mais pela linguagem e pelo estilo.

VICISSITUDES E ESTADO ATUAL. -- Ás traduções de S. Jerônimo não encontraram imediatamente no mundo latino a acolhida que mereciam. A propagação, devido em parte às dificuldades da época, foi lenta, mas em constante progresso, de sorte que dois séculos depois Sto. Isidoro de Sevilha (+ 636) pôde escrever que ela já estava em uso em toda a Igreja do Ocidente, e mais tarde o renascimento carolíngio consagrou-lhe definitivamente o triunfo sobre as antigas versões latinas. Formou-se assim, entre o séc. V e o IX, a versão que, propriamente é chamada Vulgata: fundo jeronimiano com algumas partes da antiga latina, como evidenciamos acima. No curso dos séculos, porém, transmitindo-se em exemplares manuscritos, perdeu, ora mais, ora menos, da sua primitiva pureza, seja por causa dos copistas, seja por infiltrações de antigas versões. Não faltaram, de vez em quando, doutos e zelosos varões para opor-se à invasão corruptora, emendando o texto corrente a fim de reconduzi-lo à primitiva integridade. Digna de memória pelo valor dos resultados e pela influência eficaz a revisão efetuada por Alcuíno (801), ordenada por Carlos Magno. Mas nem sequer esta escapou à rápida degeneração, nem impediu que se formassem outros tipos de textos, sobretudo na Espanha e na Itália. Quando, no séc. XIII, afluíam à Universidade de Paris estudantes de toda a Europa, trazendo cada qual o seu texto bíblico, sentiu-se a necessidade, para uso escolar, de uniformizar os textos muitas vezes discordantes entre si; e isso foi feito, enxertando-se sobre o fundo alcuiniano as variantes dos outros. Originou-se daí um texto de valor discutível que, todavia, graças à enorme influência exercida pela célebre Universidade, teve grande sucesso e propagou-se por toda a "Europa, primeiro em cópias manuscritas, e depois, inventada a arte tipográfica, também nas edições impressas. Só na primeira metade do séc. XVI deram-se os

primeiros passos para uma edição crítica da Vulgata; no entanto, outros a corrompiam ainda mais, corrigindo-a a bel-prazer com o texto hebraico; outros ainda mais radicalmente, segundo o caminho aberto pela reforma protestante, a repudiavam. Estes fatos motivaram a intervenção do Concílio de Trento na importante questão.

Na sessão IV (8 de abril de 1546) o Tridentino, depois de haver definido o cânon das divinas Escrituras, como dissemos, para enfrentar as desordens introduzidas no uso dos livros sagrados, decretou que a Vulgata, venerada pela antigüidade e pelo uso diuturno da Igreja, fosse considerada versão autêntica e, além disso, fosse impressa com a máxima correção. A execução da segunda parte deste decreto, isto é, a edição correta da Vulgata, foi confiada pelo próprio Concílio à Santa Sé. Os Sumos Pontífices, desde Pio IV até Clemente VIII, nomearam para esse fim quatro comissões sucessivas, cujos trabalhos, não obstante as numerosas dificuldades e várias vicissitudes, terminaram com a edição oficial vaticana que, sobre a base lançada por Sixto V, foi publicada por Clemente VIII em 1592, chamando-se, por isso, sixto-clementina; a essa, a qual se seguiram outras duas reedições vaticanas em 1593 e em 1598, tiveram que se conformar todas as edições subseqüentes em qualquer parte do mundo, até aos nossos dias.

A autenticidade da Vulgata, primordial decreto Tridentino, foi muitas vezes mal compreendida. Antes de tudo, com este privilégio conferido à Vulgata, de ser a única versão autêntica, o Concílio não entendeu colocá-la acima dos textos originais, nem diminuir o valor intrínseco das outras versões, sobretudo das antigas, mas também das modernas, como declaram expressamente as atas do concílio. O decreto põe diante da Vulgata somente as outras versões em língua latina; o resto (seja texto, sejam versões em outras línguas) não é alcançado pelo decreto. Em relação às versões latinas afora a Vulgata, portanto, o decreto é negativo; não lhes confere o valor reservado à Vulgata, mas não as rejeita nem as condena. Todo o peso do decreto, portanto, se concentra sobre o caráter positivo reconhecido à Vulgata; de autêntica.

AVE-MARIA

A Bíblia “Ave Maria” é uma versão da Bíblia cristã publicada pela Editora Ave Maria em 1959, traduzida do grego e hebraico, por monges beneditinos de Maredsous (Bélgica). Foi

Page 8: BIBLIA AVE MARIA

considerada uma das melhores traduções do mundo na época e em sua primeira edição teve uma tiragem de 42.000 exemplares. É uma das traduções mais populares no Brasil. Com poucas notas de rodapé, tem uma linguagem coloquial, porém sem prejuízo para a compreensão dos aspectos históricos e culturais. Na década de 50 publicaram a Bíblia católica do Brasil, cuja tradução, supervisionada pelo frei João José Pedreira de Castro, vice-presidente da LEB – Liga de Estudos Bíblicos – e fundador do Centro Bíblico de São Paulo, foi feita a partir da versão francesa dos monges beneditinos, de Maredsous, Bélgica, uma tradução direta do hebraico, grego e aramaico.

Com uma linguagem popular, que tornou sua leitura bastante acessível, a Bíblia Ave-Maria encontra-se agora ONLINE!

Page 9: BIBLIA AVE MARIA

ANTIGO TESTAMENTO

Nos relatos do Antigo Testamento presenciamos a história do povo hebreu durante quase dois mil anos, desde a vinda de Abraão à Palestina até a instalação da dinastia dos Hasmoneus (cerca dos séc. XX-II a.C): história essa em conexão, ora maior ora menor, ora direta ora indiretamente, com a dos povos vizinhos, sobretudo dos grandes impérios, entre os quais a Palestina jazia como ponte: ao sul, o Egito; ao norte, sucessivamente, Babilônia, a Assíria, a Pérsia e a Síria. Constituíam eles outros tantos centros de civilização, que se irradiava entre os povos submetidos ou vizinhos, formando uma vasta unidade cultural. No meio dessa civilização comum movia-se o povo de Israel, sofrendo a sua influência. Nas artes e na indústria, Israel jamais desenvolveu uma civilização própria; ficou devedor ao estrangeiro, como também a sua língua e literatura trazem o cunho da origem comum ou do prestígio de outros povos socialmente mais evoluídos. No entanto, a ausência de originalidade e independência de civilização material, põe em muito maior relevo o valor das instituições religiosas e morais, elementos básicos da civilização genuína e completa que foram glória exclusiva desse povo eleito.

VALOR DA INTERPRETAÇÃO. — O Antigo Testamento é uma obra verdadeiramente divina porque inspirada por Deus e porque nos apresenta, pode-se dizer, em cada uma de suas páginas, a ação de Deus sobre os homens. Ao mesmo tempo, porém, é uma obra profundamente humana, porque destinada aos homens, fala uma linguagem humana e nos apresenta, na sua história, os homens tais quais são, com suas deficiências e rebeldias contra os desígnios divinos. Não costuma encobrir as faltas dos seus heróis; Davi,

por exemplo, de quem narra os pormenores do adultério e do homicídio (2Sam 11). Mas ao lado do escândalo aparece a correção. Que há de mais edificante do que a santa ousadia de Natan em lançar à face de seu soberano o duplo delito, do que o arrependimento e a humilde confissão de Davi, o perdão da culpa, seguido da execução dum castigo da parte de Deus? (2Sam 12). Outras vezes o pecado é censurado mais abertamente (Gên 38,9-10). Só os fariseus poderiam escandalizar-se com tais narrativas, motivos de ensinamento! Além disso, quão poucos são eles em comparação com tantos exemplos de nobres virtudes! São apenas sombras humanas a dar maior realce às luzes divinas da história sagrada. As não poucas cenas de sangue que ela relata, não passam dum reflexo daqueles tempos rudes e ferozes. Também os anais de outros povos orientais estão repletos delas, distinguindo-se os dos hebreus até por um maior senso de humanitarismo; os reis de Israel gozavam de fama universal de clemência (lRs 20,31).

A relativa brandura dos hebreus derivava da legislação que Deus lhes dera por intermédio de Moisés. A pena de morte é aplicada mais raramente do que no código de Hamurabi, e quase só por meio de apedrejamento. Reconhece a lei de talião, em voga nos costumes dos povos, mas a mitiga (Êx 21, 23125.28-32). Assim em outras asperezas (vingança do sangue) ou relaxamento de costumes (poligamia, divórcio) a lei, encontrando costumes inveterados e não podendo desarraigá-los totalmente, intervém para os refrear e regulamentar (cf. Mt 19,8). Doutra parte, impõe os deveres de humanitarismo também para com o próprio adversário (Êx 23,4-5) e estabelece a medida da mútua benevolência, com o preceito: "Amarás o

Page 10: BIBLIA AVE MARIA

teu próximo como a ti mesmo" (Lev 19,18), donde a norma: "Não faças aos outros o que não te agrada" (Tob 4,16). Para com os estrangeiros, as viúvas, os órfãos, em suma, os mais necessitados, recomenda considerações especiais (ÊX

22,21-23; Dt passim). Muitas vezes o próprio Deus, especialmente pela pregação dos profetas, faz-se seu advogado e protetor. Contra o abuso da escravidão, praga da sociedade antiga, a lei mosaica, além de múltiplas restrições (Êx 21,1-11; Lev 25,39-45; Dt 15,12-18), já defende o princípio de igualdade dos homens perante Deus (Lev 25,42). Nada disso se encontra em outros códigos orientais, sem falar na genuína doutrina religiosa, própria do Antigo Testamento, que também ê fator autêntico de verdadeira civilização. Por outro lado, as suas mais nobres eminências o Antigo Testamento as atinge nos seus profetas, figuras grandiosas de poetas e de heróis.

Em comparação com a sublime doutrina evangélica, a lei antiga, evidentemente, é bem imperfeita; para aqueles tempos e povos antigos, porém, era uma lei santa, que trazia em si os germes de um pleno aperfeiçoamento. Era uma instituição religiosa preparatória para um regulamento definitivo, que devia ser trazido pelo Messias, por Cristo. S. Paulo, com razão (Gál 3,24), comparou a lei mosaica ao pedagogo, que conduz os discípulos à escala do Mestre, de Cristo. As próprias falhas do Antigo Testamento levavam a desejar o Senhor e Salvador, cujo advento fora anunciado pelos profetas.

Observa-se, puis, um progresso vital do Antigo ao Novo Testamento, como do embrião que se desenvolve num organismo perfeito. Deste caráter do Antigo Testamento e desta sua relação com o Novo, deriva uma conseqüência importante para a sua correta interpretação, pois as suas instituições deviam ter alguma semelhança com as do Novo; eram as suas imagens antecipadas. Analogamente quanto aos

fatos históricos e às pessoas desse "drama" divino, que no Novo Testamento recebem a sua conclusão. Os apóstolos e o próprio Jesus (Mt 12,40; Jo3,14;6,32) indicaram-nos algumas dessas imagens antecipadas que, a exemplo de S. Paulo, costumam chamar-se tipos ou figuras; o objeto por elas vislumbrando chama-se antítipo ou figurado. Daí se segue que no Antigo Testamento, além do sentido das palavras chamado verbal ou literal, há que reconhecer um sentido das coisas, chamado real ou típico, e às vezes menos felizmente, místico e alegórico. Entre estas duas categorias de sentido há conexão, mas ao mesmo tempo grande diferença. O sentido literal (que pode ser próprio ou impróprio, isto é, metafórico) não pode faltar em nenhum dito da Escritura e acha-se freqüentemente sem o típico, do qual é fundamento necessário. O típico, ao invés, jamais pode disjungir-se do literal e não existe em toda parte, mas tão-somente onde há verdadeira semelhança e relação com algo de análogo no Novo Testamento.

A autêntica originalidade do Antigo Testamento consiste na sua doutrina religiosa e moral, cujo centro ocupa-o a idéia do monoteísmo. Na expressão artística do pensamento, porém, não difere muito dos produtos das línguas e literaturas irmãs, em particular da acádica e da fenícia (ugarítica). A língua hebraica, bastante parca de conjunções subordinativas, costuma exprimir-se em proposições breves coordenadas com a simples aditiva: e . . . e . . . Resulta daí certa dureza e monotonia, sobretudo na parte narrativa, que as versões modernas devem atenuar, ligando e construindo à nossa maneira usual.

O estilo hebraico é imaginoso e concreto; exprime-se com metáforas ousadas e imagens exuberantes, apresentando as coisas abstratas e espirituais com termos realistas capazes de chocar nossos costumes e gostos mais refinados. Em particular fala de Deus e

Page 11: BIBLIA AVE MARIA

de suas ações em termos de atividade humana: mãos, olhos, ouvidos (antropomorfismo), ficar sentido, comover-se, arrepender-se (antropopatismos), e semelhantes. Que o

leitor não se admire disso, nem se deixe levar a erro. Sob a aparência muitas vezes áspera, oculta-se sempre um pensamento nobre e puro.

Page 12: BIBLIA AVE MARIA

O PENTATEUCO

O primeiro lugar de ordem e de honra entre os livros do Antigo Testamento ocupa-o aquele que os gregos chamaram Pentateuco, isto é, obra em cinco tomos. Para os hebreus é a "tora", ou seja, a lei, nome tomado da matéria central. Também os hebreus o dividiram nos mesmos cinco livros que os gregos, distinguindo--os com a palavra inicial. Nós usamos exclusivamente os nomes impostos pelos gregos, que de maneira graciosa lhes caracterizaram o conteúdo: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio. De jato, o Gênesis narra as origens do universo e do gênero humano até à formação paulatina do povo de Israel na sua estada no Egito. O Êxodo narra a saída dos israelitas do Egito, conduzidos por Moisés aos pés do Sinai, para aí receberem de Deus a sua lei religiosa e civil e se constituírem, por meio de um pacto sagrado ("testamento"), em peculiar "povo de Deus (Javê)". O Levítico regula o culto religioso à maneira de ritual, dirigido especialmente aos levitas, que formavam o clero consagrado ao serviço do santuário. Os Números recebem o nome dos recenseamentos do povo contidos na primeira parte, estendendo-se, depois, em referir fatos e providências legislativas correspondentes a cerca de quarenta anos de vida nômade no deserto da península sinaítica. No Deuteronômio, ou segunda lei, emanada pelo fim da jornada no deserto, Moisés retoma a legislação precedente para adaptá-la às novas condições de vida sedentária, em que o povo viria a se encontrar com a conquista iminente da Palestina.

Neste rápido apanhado aparece num só lance tanto a unidade como a variedade do Pentateuco, bem como a sua importância fundamental para a religião

antiga e para a história especial do povo hebreu.

Quem ê o autor do Pentateuco? Desde a mais remota antigüidade foi considerado seu autor o próprio Moisés, o protagonista dos últimos quatro livros. Já nos livros posteriores da Bíblia citam-se-lhe várias sentenças com a fórmula: "Está escrito na lei de Moisés", ou "no livro de Moisés", ou "no volume da lei de Moisés". Assim, para não falar do livro de Josué, que é a continuação imediata e como que o complemento do Pentateuco (Jos 8,31;23,6), em lRs 2,3; 2Rs 14,6; 2Crôn 23,18;25,4;35,12; Esdr 3,2;6,18; Ne 8,1; 10,34; 13,1; Bar 2,2; Dan 9,11 etc. Os Evangelhos nos apresentam a convicção de que Moisés é autor da lei, difundida e radicada entre os judeus; o próprio Jesus, bem como os apóstolos admitem-na e a confirmam (veja Mt 8,4; Mc 12,26; Lc 20,37; Jo 5,46; At 3,32;15,21; Rom 10,5 etc.). Entre as testemunhas eloqüentes da fé judaica figuram Fílon, José Flávio, e com maior crédito e ressonância o Talmud (tratado Baba batra, f. 14,15); entre os cristãos, os Padres da Igreja são unânimes em reconhecer Moisés autor do Pentateuco.

Não contraria essa atribuição o fato de que de Moisés se fale sempre em terceira pessoa; Xenofonte e Júlio César (para falar só em nomes célebres), fizeram o mesmo. Nem suscita a menor dificuldade a grande antigüidade de Moisés (cerca do século xiv a.C), pois agora sabemos por documentos originais recentemente descobertos, que naquela época, não só a escrita já era conhecida desde séculos, mas até o próprio alfabeto fenicio-hebraico já fora inventado. Nem derrogam esta convicção universal a opinião de alguns, já na Idade Média, de que um outro trecho breve, como os oito

Page 13: BIBLIA AVE MARIA

últimos versículos do Deuteronômio, que narram a morte de Moisés, tenha sido acrescentado mais tarde ao Pentateuco. Só nos tempos modernos é que surgiram dúvidas e negações radicais.

A partir do século xvin vem-se fazendo pesquisas perspicazes em três sentidos: composição, autor, idade do Pentateuco. A composição: é fruto ou não da união de vários documentos ou de mais escritos originariamente distintos? O autor: de quem são as partes individuais ou os documentos, quem as reuniu num todo, ou seja, de quem é a redação definitiva do atual Pentateuco? A idade: quando viveu cada um dos autores e redatores? São três questões distintas entre si, mas tão conexas que podem e habitualmente são tratadas como um tema comum: a questão mosaica. Para responder a tais questões elaboraram-se, no século xix, vários sistemas; mas prevaleceu sobre todos, no fim do século, o defendido por K. H. Graf (1866) e aperfeiçoado por J. Wellhausen (1876-78). Ele distingue no Pentateuco quatro autores ou escritores diferentes: dois narradores denominados pelo uso diferente do nome de Deus, um ¡avista (abreviado }), o outro eloísta (E), aos quais se deve a maior parte dos fatos referidos no Gênesis, Êxodo, Números; um deuteronomista (D), autor quase exclusivo do Deuteronômio; e um tratado presbiteral (P) ou código sacerdotal, que compreende todo o Levítico e muitas partes narrativas de Gênesis, Êxodo e Números. Esses os documentos. Para as respectivas datas, segundo a supracitada escola, o código sacerdotal (P) seria posterior ao profeta Ezequiel (primeira metade do século vi a.C), o Deuteronômio teria sido composto pouco antes da reforma religiosa de Josias, ou seja, pelo ano de 621 a.C, o eloísta e o ¡avista seriam mais antigos (século viu e ix). A união de todos esses escritos no atual Pentateuco ter-se-ia realizado no tempo

de Esdras (século v a.C). Com tais conclusões, nada mais resta a Moisés do Pentateuco, exceto um ou outro fragmento, como o Decálogo (Êx 20), incorporado pelos primeiros colecionadores das antigas memórias (J E) à própria obra.

Esta teoria, que se estriba, em boa parte, no princípio filosófico da evolução aplicado à religião e à história do povo hebreu, se bem que tenha encontrado a maior aceitação entre os protestantes, teve na própria Alemanha, fortes opositores entre os críticos de primeira ordem, especialmente no que concerne às datas atribuídas aos supostos documentos, que, se na verdade é o ponto mais revolucionário, é também o mais vulnerável de todo o sistema. Para desmenti-lo neste ponto, surgiram no século xx novas escolas; novas orientações emergiram do solo, com as escavações no Oriente, importantíssimos documentos, tais como o código de Hamurabi, rei de Babilônia, os arquivos dos heteus, ou hititas, em Bogazkõy, na Ásia Menor, e os poemas ugaríticos descobertos em Ras Shamra, no litoral da Síria, para só mencionar os principais. Eles trazem à luz costumes, instituições e ritos análogos aos do Pentateuco de tempos até mais antigos de Moisés, e que os críticos julgavam próprios de época mais recente, e nos revelam fatos que se refletem na vida dos patriarcas (Gên 12, fim), com matizes que poucos séculos atrás teria sido impossível imaginar.

Conseqüentemente, a brilhante concepção arquitetada por Wellhausen acha-se em plena dissolução. Resiste ainda tenazmente a análise documentária, ou seja, a distinção de quatro (ou mais) fontes, de cuja fusão teria resultado o Pentateuco.

Remetendo, para mais amplas explicações, a tratados especializados de introdução bíblica, ou a comentários mais

Page 14: BIBLIA AVE MARIA

desenvolvidos, exporemos aqui os fatos objetivos, sobre os quais se quer fundamentar a prova da estrutura compósita do Pentateuco, para indicar depois uma via de solução, e mostrar como esses fatos, quando reduzidos ao seu justo valor, não impedem que Moisés possa ser verdadeiramente chamado autor do Pentateuco. A exposição que segue auxiliará o leitor a formar-se uma compreensão mais clara destes livros.

Nomes divinos. — Para exprimir a idéia de Deus, a língua hebraica dispõe de muitos termos. O mais freqüente (1.440 vezes no Pentateuco, mais de 6.800 em toda a Bíblia) é "Javé" (ou "Jeová", segundo uma pseudo pronúncia introduzida entre os séculos xvi e xix), nome próprio, pessoal. " 'Elohim" (975 vezes no Pentateuco, cerca de 2.500 na Bíblia) é nome de natureza, como se disséssemos: a divindade; gramaticalmente plural (a forma singular, " 'eloah", é poética e existe só 2 vezes no Pentateuco), quanto ao sentido é singular "El", de igual valor, mas arcaico e poético, 46 vezes no Pentateuco; " 'Adonai" = Senhor, 17 vezes; "Saddai" = o Onipotente (?), 9 vezes; "

eElion" = o

Altíssimo, 6 vezes. À questão mosaica interessam principalmente os dois primeiros. Foi observado (e o primeiro a dar pelo fato foi o médico católico francês Jean Astruc em 1756) que no Gênesis e no início do Êxodo capítulos inteiros empregam exclusivamente, ou quase, o nome Javé; outros, ao invés, com a mesma exclusividade e constância rezam Eloim. Assim, por exemplo, em Gên 1, lê-se 33 vezes Eloim, e nunca Javé; em Gên 4, uma vez Eloim e 10 vezes Javé (em 2-3 diga-se de passagem, estão juntos Javé e Eloim); em Gên 10,16 nenhum Eloim, 36 Javé (com 2 Adonai); em Gên 17, ao invés, 7 Eloim, 1 Javé; em Gên 24 nenhum Eloim, 19 Javé; em Gên 30-35 contra 32

Eloim 6 Javé. Na tradução, a Vulgata nem sempre conserva a distinção.

O emprego alternado dos dois nomes divinos não é casual; nem é sem motivo que cessa em Êx 6, predominando depois quase exclusivamente Javé; isso está manifestamente em relação com o que aí se lê; às gerações precedentes Deus se revelava como Sadai, pois desconheciam o nome sagrado de Javé, revelado pela primeira vez a Moisés (veja também Êx 3,13-15,). Compreende-se, pois, porque nas narrativas precedentes o nome usado seja Eloim. Mas, como explicar a presença de Javé em tantas partes do Gênesis? Depois de Astruc viu-se aqui a prova tangível de duas fontes ou dois autores diferentes, chamados um eloísta (sigla E), outro javista (sigla J). Veremos se com razão.

Língua e estilo. — No entanto, estão já todos concordes que o argumento dos nomes divinos, por si só, não é suficiente para se distinguirem solidamente fontes ou autores. Este argumento por isso é acompanhado de provas subsidiárias. Com efeito, observam eles, à alternação dos nomes divinos acha-se associada a semelhantes mudanças de vocábulos e construções. Por exemplo, o ato criador em Gên 1 exprime-se com "bara' ", em 2 com "yasar"; os habitantes da Palestina antes dos hebreus são chamados "cananeus" por J,

(í amor eus" por E; a

serva, "sifha" por J, * 'amah" por E; o patriarca Jacó só em J toma o nome de Israel. A diversidade prolonga-se além do Gênesis; o monte onde foi promulgada a lei, em J chamava-se "Sinai", em E "Ho-reb"; o sogro de Moisés, em J tem o nome de "Raguel", em E de "Jetro", e assim por diante, igualmente, mudando os nomes divinos, muda o estilo. J é mais abundante e minucioso; condescendente e popular, não evita os mais chocantes antropomorfismos; vivaz e dramático, tem um colorido poético, fascinante. E é

Page 15: BIBLIA AVE MARIA

mais seco, anedótico, um pouco descuidado.

Observando-se a diversidade de estilo, descobrem-se mais duas fontes ou autores: um segundo eloísta que, nas partes legislativas, ocupa-se de preferência do culto religioso, donde foi chamado sacerdote e autor do "código sacerdotal" (P); e na seção narrativa ele aprecia as estatísticas, anotações cronológicas, fórmulas esquemáticas (exemplo seja a narração da criação, Gên 1), a linguagem precisa e quase pedante do jurista. E, enfim, o pregador que escreveu o Deuteronômio (D) num estilo amplo, parenético, cheio de afeto humanitário e de suave insinuação.

Os duplicados. — Para provar a pluralidade de autores do Pentateuco surge um terceiro argumento, mais valioso do que os dois antecedentes. Certos acontecimentos — diz-se — e não poucas leis, ocorrem duas e até três vezes em forma pouco diversa. Assim, a criação do mundo é narrada duas vezes (Gên 1,1-2,3 e 2, 4-24); duas vezes Agar é expulsa da casa de Abraão (16 e 21); duas vezes acha-se em perigo a honestidade de Sara (12 e 20) e uma terceira a de Rebeca (26); as duas genealogias de Caim (4) e de Set (5) têm em comum a maior parte dos nomes; no dilúvio (6-8) são entrelaçadas duas narrações distintas. Duas vezes é repetida a vocação de Moisés (Êx 3 e 6), a queda do maná e a pousada das co-dornizes no deserto (Êx 16 e Núm 11), a prova junto às águas de Meribá (Êx 17 e Núm 20). O preceito das três solenidades anuais é repetido até cinco vezes (Êx 23,14-19;34,23-26; Lev 23; Núm 28; Dt 16).

Variações nas leis. — Entre os duplicados legais, especial atenção reclamam os que introduzem uma modificação. A mais célebre e mais grave de tais modificações diz respeito ao lugar do culto (templo e altar). Êx 20,24 parece

permitir a ereção de um altar em qualquer lugar, memorável por alguma intervenção divina, e aí imolar vítimas sagradas. Lev 17,3-9 não admite nenhuma matança de animal longe do altar, sobre o qual deve ser derramado o sangue, sendo este altar, em união com o tabernáculo sagrado, o único para todos. Em Dt 12,1-28, segundo a interpretação comum e óbvia, únicos são o templo e o altar, e fora deles não é permitido oferecer sacrifícios a Deus. Permite-se, no entanto, que se matem animais em qualquer lugar, para o uso comum, derramando-lhes o sangue por terra, ação declarada profana e não mais sagrada.

A esta variedade de leis corresponde — observa-se — a prática na história, conforme vem narrada pela própria Bíblia. De fato, vemos nos livros dos Juízes (6,24-28; 13,15-23), de Samuel (ISam 6, 9.17;9,12; 2Sam 15,7-12;24,18-25), dos Reis (IRs 3,2-4; 15,14 etc.), altares erigidos e sacrifícios oferecidos quase por toda parte, segundo as circunstâncias, em harmonia com a lei do Êxodo. Mas, em 2Rs 22,23, lemos que o rei Josias no sétimo ano de seu reinado (621 a.C.), tendo-se encontrado como que por acaso, no templo, um exemplar da lei, fez dela uma aplicação imediata, que corresponde exatamente às prescrições do Deuteronômio, particularmente acerca da unicidade do santuário e do altar. Trata-se da chamada reforma de Josias, precedida, um século antes, por uma tentativa de Ezequias no mesmo sentido (2Rs 17,22; 2Crôn 32,12; Is 36,7).

Esses os fatos. A supradita escola crítica tira daqui as conseqüências que temos visto: o Deuteronômio, o primeiro a ostentar a lei do altar único, foi composto no século vil a.C, pouco antes da reforma de Josias. O Levítico, que já supõe essa lei, bem como todo o código sacerdotal ao qual pertence, é posterior a Josias e ao exílio, acrescentado pouco depois. Os

Page 16: BIBLIA AVE MARIA

dois escritos narrativos, o javis-ta e o eloísta, que já circulavam separadamente, o primeiro desde o século ix na Judéia, o segundo desde o século viu no reino de Israel, refletem a prática mais antiga.

Essas conseqüências sustentam-se? Será que os fatos acima mencionados, reduzidos aos seus justos limites, não comportam outra explicação? A solução da questão da autenticidade mosaica do Pentateuco depende da resposta a esses dois quesitos.

Partindo do primeiro argumento, o dos nomes divinos, afirmamos antes de mais nada que nem sempre esteve ao arbítrio do escritor usar Javé ou Eloim; o matiz sutil de sentido e a associação diferente de idéias contidas nos dois nomes, levam, em dadas circunstâncias, a usar um com exclusão de outro, e em certas construções o uso, sem razão aparente, ligou-se exclusivamente a um ou ao outro. Ê daí que se diz: " 'is Elohim" = homem de Deus, mas "debar Jahvé" = palavra do Senhor, e não o contrário. O critério dos nomes divinos, portanto, está sujeito à cautela. Além disso, será que estamos certos de que os nomes divinos, como figuram no texto atual, são originais, isto é, remontam ao próprio autor?

A tese crítica o supõe, e é para ela indispensável. Há, porém, boas razões para duvidar. A alternação dos nomes divinos não é particularidade do Pentateuco: constata-se também em outros livros da Bíblia, especialmente no Saltério, onde os primeiros quarenta e os últimos sessenta salmos usam quase exclusivamente Javé, ao passo que os demais cinqüenta, do meio, empregam geralmente Eloim. Ora (e isto é de importância capital), pode-se demonstrar com vários argumentos que também naqueles salmos, agora eloísticos, originalmente no lugar de Eloim havia Javé. Mais de um salmo da seção javista é

repetido na eloísta (um "duplicado" análogo aos do Pentateuco) sem outra variante, ou quase, senão justamente esses nomes divinos. Ora, assim como ninguém duvida que os salmos assim repetidos, por exemplo, 13 e 52 sejam do mesmo autor, assim também não está provado que seções ¡avistas e eloístas no Pentateuco devam pertencer a autores diferentes.

A língua e o estilo não dependem unicamente do autor, mas também do assunto e do gênero literário. Santo Agostinho ditava os seus trabalhos dogmáticos de modo diverso dos seus sermões populares. O Deuteronômio, que é a promulgação oral de uma lei, em reunião pública, não pode ter o estilo lapidar de um código gravado em tábuas, nem as disposições rituais do código sacerdotal têm que se amoldar às leis civis do código da aliança (Êx cc. 21-23). A variedade, por maior que seja, não se opõe à unicidade substancial do autor. Além disso, não está excluído, como veremos, o emprego de fontes e de colaboradores que também deixam a sua marca na obra definitivamente concluída.

Distinguimos duas espécies dos chamados duplicados: duas vezes ocorre um fato semelhante (duplicado real), ou duas vezes narra-se o mesmo fato (duplicado literário); para a questão de unicidade ou pluralidade de autor, somente a segunda espécie tem valor. Ora, que, por exemplo, a beleza de Sara tenha excitado duas vezes, em duas cidades diversas, a cobiça de um déspota oriental (Gên 12 e 20) nada tem de improvável. Ê também positivamente verossímil que em quarenta anos mais de uma vez se tenha verificado a passagem das codornizes nas suas migrações através do deserto (Êx 16; Núm 11); estes são duplicados reais. Cumpre examinar, assim, caso por caso. Para a repetição em que o mesmo ato não pareça admissível,

Page 17: BIBLIA AVE MARIA

isto é, em se tratando de verdadeiros duplicados literários, tem valor a solução que delinearemos mais adiante.

É insito em toda lei, civil ou religiosa que, permanecendo inalterados os pontos fundamentais, em muitos outros esteja sujeita a variações com o decorrer do tempo e as mudanças de circunstâncias. Nem a lei mosaica podia escapar a essa necessidade quase vital. Mas o próprio texto apresenta a razão das variações observadas no Pentateuco. Desde a primeira legislação no Sinai (código da aliança) e a segunda, às margens do Jordão, o Deuteronômio, passam-se cerca de quarenta anos, e, o que mais importa, o povo de Israel, no fim desse período, encontra-se prestes a sofrer uma profunda transformação, ao passar da vida nômade ou pastoril, à sedentária e agrícola. Impunha-sef portanto, uma adaptação do antigo direito às novas condições. Da não observância rigorosa, durante séculos, da lei deuteronômica sobre a unicidade do altar, não prova de per si que não existisse. De resto, um ou outro acréscimo ou modificação pode ter-se introduzido com o tempo nas leis mosaicas sem derrogar ou diminuir a paternidade de Moisés do Pentateuco.

A escola crítica, portanto, não provou, contra o testemunho claro da própria Bíblia, a sua tese de que o Pentateuco em nada pertence a Moisés. Das discrepâncias, quaisquer sejam, de vocabulário, de estilo, de leis, dão-se outras explicações conciliáveis com a autenticidade mosaica. No Gênesis, por exemplo, não se lhe opõe a distinção de fontes, pois trata-se de acontecimentos anteriores a Moisés, transmitidos, ao menos em grande parte, oralmente

(talvez também, parcialmente, por escrito) às gerações do povo de Israel, cujas memórias o grande legislador teria registrado, deixando às narrações o seu matiz original. Um exemplo claro deste gênero temo-lo no capítulo 14 (expedição de Abraão e encontro com Mel-quisedec), de características tão individuais, que a crítica o atribui a uma fonte especial, não pertencente a nenhuma das quatro habituais. No tocante aos quatro livros posteriores, que versam exatamente sobre os tempos de Moisés, já indicamos as razões que explicam as particularidades estilísticas de dois grandes documentos legislativos, o Código sacerdotal e o Deuteronômio.

Outra hipótese, baseada na analogia do Saltério, é a seguinte: o Pentateuco, composto inteiramente por Moisés, parte baseado em suas recordações, parte em documentos fornecidos pela tradição e pela casta sacerdotal, propagou-se na sociedade hebraica, e, durante a transmissão, sofrendo modificações na forma, em nada insólitas na transcrição de obras literárias, chegou, com o tempo, a receber, em dois pontos diversos da área israelita, por exemplo, no reino de Efraim e no reino de Judá, duas formas um tanto diferentes; em uma delas, entre outras coisas, o primitivo nome de Javé foi substituído por Eloim. Mais tarde (no reinado de Ezequias ou Josias), quando se sentiu a necessidade ou a oportunidade de unificar as duas recensões, um redator fundiu-as, extraindo ora desta ora daquela, muitas vezes contentando-se com justaposições, sem alterar as feições próprias de cada uma. Destarte explicar--se-iam os fenômenos que levaram a acreditar na existência de fontes diversas.

Page 18: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO GENESIS

O Gênesis narra as primeiras origens do mundo, do gênero humano, do povo hebreu, tudo relacionado com Deus, com sua revelação, com seu culto. Deus cria o universo, revela-se aos primeiros homens, Deus escolhe uma família (Abraão e sua descendência), para no seio dela conservar e desenvolver os germes da primitiva revelação e a verdadeira religião, no intuito de preparar a solene revelação do Sinai, narrada no Êxodo.

A criação do céu e da terra (1,1-2,3), é como que o prólogo do grandioso drama, que se divide em duas partes, e tem por protagonistas os cinco grandes patriarcas: Adão e Noé, patriarcas do gênero humano; Abraão, Isaac e Jacó, patriarcas do povo hebreu.

O todo ê enquadrado pelo autor sagrado em dez tábuas genealógicas (2,4; 5,1; 6,9; 10,1; 11,10; 11,27; 25,12; 25,19;36, 1;37,2) dispostas de tal modo que, após ter registrado os ramos secundários da propagação humana, volta a narrar difusamente os destinos do ramo patriarcal, isto é, da descendência eleita, portadora da revelação divina e da verdadeira religião.

O Gênesis abrange na sua narração uma longa série de séculos, e colocando (no tronco principal das suas genealogias) ao lado dos nomes também números de anos, forneceria os elementos de uma cronologia. Infelizmente as cifras não parecem bem conservadas, porque nos números dos capítulos 5 e 11 os três textos independentes: o hebraico, o samaritano e o grego divergem entre si. Baseando-se sobre o seu texto, os gregos do império bizantino colocavam a criação do homem 5.508 anos a.C. Os hebreus ainda usam uma era que no mesmo período conta 3.760 anos. As ciência antropológicas exigem um tempo assaz maior para a existência

do homem sobre a terra. A Bíblia não é contrária a resultados certos de tais ciências, também porque as listas genealógicas do Gênesis poderiam ser incompletas, ou seja, com omissões de elos intermediários.

Do nascimento de Abraão à descida dos israelitas ao Egito -- 290 anos -- (Gên 21,5 + 25,26 + 47,28), a cronologia respectiva é mais ou menos certa. Para a cronologia absoluta (baseada na era vulgar) ter-se-ia um ponto fixo no sincronismo de Abraão com Hamurabi, o célebre rei da Babilônia, cujo famoso código de leis foi descoberto em 1902. A identificação, porém, de Amrafel, rei de Senaar (Gên 14,1), com Hamurabi da Babilônia, é hoje mais do que duvidosa; tampouco a data do reinado deste último está definitivamente fixada; atualmente tende-se a colocar-Ihe o início por volta de 1728 a.C. Tomando como ponto de partida a data em que os israelitas saíram do Egito sob o faraó Menefta pelo ano de 1200 a.C, e remontando o curso dos séculos com os dados da própria Bíblia (Ex 12, 40 e passagens acima citadas), Abraão teria nascido por volta de 1900 a.C, mas não é certo qual seja o faraó do Êxodo.

Muitas páginas do Gênesis têm correspondência nos monumentos babilónicos e egípcios: nos primeiros, a história primitiva, isto é, os primeiros 11 capítulos; nos egípcios, o resto, especialmente a história de José (37-50). Com os dois primeiros capítulos (a criação) têm algo de semelhante vários poemas babilónicos entre si discordantes e que são uma fantasiosa mitologia de crasso politeísmo; quão mais sublime pela nobreza de pensamento é a prosa simples da Bíblia! Também a tradição babilônica conhece dez reis, como Gên 5, dez patriarcas, de vida longuíssima antes do dilúvio. Este cataclisma foi narrado em muitas

Page 19: BIBLIA AVE MARIA

lendas babilônicas, uma das quais foi inserida no romanesco poema "Gilgames", assim chamado por causa do herói protagonista. Os pontos de contato com a narração bíblica (Gên 7; 8) são numerosos e típicos. A narração da torre de Babel (Gên 11,1-9) é toda tecida de elementos babilônicos; mas um paralelo exato não foi ainda encontrado na literatura cuneiforme. Nada ainda se encontrou nessa literatura de verdadeiramente análogo à narração do paraíso terrestre e da queda do homem (Gên 3).

Nos monumentos egípcios temos representadas muitas cenas semelhantes às narradas no Gên cc. 12,37-50.

Page 20: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO ÊXODO

O segundo livro do Pentateuco toma o nome de Êxodo da saída dos hebreus do Egito, onde, depois dos bons tempos de José, passaram a sofrer a mais dura escravidão. Esse acontecimento, porém, nada mais foi do que o prelúdio de jatos muito mais importantes na vida dos filhos de Israel, os quais, de um conglomerado de famílias que eram, recuperando a liberdade, conquistaram verdadeira unidade de nação independente e receberam uma legislação especial, uma forma de vida moral e religiosa, pelas quais se distinguiram de todos os outros povos da terra.

Com toda facilidade compreender-se-á a importância deste livro, sobretudo em se pensando que, se a história civil das nações, mormente as antigas, acha-se intimamente vinculada à religião e essa à moral, isto jamais foi tão verídico como a respeito dos hebreus. As leis contidas no Êxodo formam a essência da vida civil e religiosa do povo eleito.

Ê bem verdade que, de todas essas leis, e especialmente as do chamado código da aliança (21-23), foram encontradas analogias notáveis no código de Hamurabi (rei babilônico, que viveu alguns séculos anteriormente a Moisés), que foi descoberto, traduzido e publicado pelo dominicano Pe. Scheil, em 1902. De tais analogias não se infere, porém, em absoluto, como pretendem alguns, a dependência do código mosaico do babilônico. Elas têm sua explicação adequada nos fatores comuns às duas sociedades, israelita e babilônica, tão próximas no tempo, no lugar e também na origem, pois os patriarcas do povo hebreu procediam do vale do Tigre.

Realmente, na legislação decretada no Sinai, nem tudo foi criado desde a raiz; muitos usos e costumes já introduzidos na prática social foram confirmados pela aprovação divina. De resto, também nas famosas leis romanas das doze tábuas descobrem-se semelhanças com o código mosaico, sem que ocorra a alguém o pensamento de querer estabelecer um parentesco entre as primeiras e o segundo. Providências semelhantes surgem espontaneamente de necessidades sociais do gênero. No decálogo, porém, e na doutrina religiosa que lhe forma a base inconcussa (20,2-

17), reside a verdadeira prerrogativa do povo de Israel; nada de semelhante se encontra em nenhum outro povo. Citam-se, é certo, da literatura egípcia, certas desculpas espirituais como: "Não cometi injustiça, não roubei, não matei'' etc., ou da babilônia, os esconjuros, onde se pergunta se o exorcizado ultrajou alguma divindade, se desprezou pai e mãe, se mentiu ou praticou obscenidades etc. Mas não há proporção entre os protestos de um particular para evitar o castigo (finalidade daquelas fórmulas rituais) e a autoridade soberana que impõe a lei a todo um povo. Entre os próprios egípcios e babilônios, nada há de correspondente, na legislação, àquelas fórmulas cerimoniais. O decálogo de Moisés não tem rivais no mundo.

Pelas razões citadas, os acontecimentos narrados no Êxodo tiveram um eco enorme na memória das tribos israelitas. Em quase todas as páginas do Antigo Testamento são recordadas a libertação da escravidão do Egito, a prodigiosa passagem do mar Vermelho, os golpes tremendos com os quais foi dominada a tenaz oposição do opressor egípcio, as grandiosas manifestações divinas no Sinai, o sustento milagroso de povo tão numeroso no deserto. Daí Israel deduzia os motivos mais fortes para ser grato e fiel a Deus, e conservar uma confiança inabalável na sua providência soberana e nos seus próprios destinos.

A cronologia do Êxodo, ou seja, o ano em que os hebreus saíram do Egito, está naturalmente ligada à história desse país. Mas, já que a Bíblia não fornece os nomes dos dois faraós, o da opressão (1,8;2,23) e o da saída (14,5), duas opiniões diversas se equilibraram entre os doutos, com autoridade e número de defensores quase iguais. Para uns, o opressor seria Totmés III (1500--1450) e o outro Amenofis II (1447-1420), da XVIII dinastia; para outros, no entanto, Ramsés II (1292--1225), da XIX dinastia, teria oprimido os hebreus, e seu sucessor, Menefta (1225-1215), tê-los-ia libertado. A segunda opinião, que estabelece o século XIII a.C. para o Êxodo, parece-nos mais condizente com o texto (1,11) e mais coerente com outros dados da história sagrada e profana.

Page 21: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO LEVÍTICO

Este livro traz o nome de Levítico, por tratar quase exclusivamente dos deveres sacerdotais. Poder-se-ia compará-lo a um ritual.

Com exceção de dois trechos históricos (8 a 10;24,10-23), compõe-se inteiramente de leis que visam à santificação individual e nacional. Santificação, de per si ritual e exterior, que, porém, simboliza e promove certa santidade interior e moral. Toda a matéria pode ser dividida em cinco partes:

1- Leis relativas aos sacrifícios (1-7). Os sacrifícios são de cinco espécies; duas séries de leis: V série — o rito de cada sacrifício (1-5), holocausto (1), oblação de vegetais (2), sacrifício salutar (3), sacrifício expiatório (4), sacrifício de reparação (5). 2? série — direitos e deveres dos sacerdotes em cada espécie de sacrifícios (6-7).

2- Consagração dos sacerdotes (8-9). Nadab e Abiú são punidos por terem usurpado um ofício sagrado (10-1-7). Várias prescrições para os sacerdotes (10,8-20).

3- Leis sobre a pureza legal (11-16): dos alimentos (11), da puérpera (12), da lepra nas pessoas (13,1-46; 14,1-32), nas vestes (13,47-59) e casas (14-33-57); sobre a gonorréia (15). Rito para o dia solene de expiação (16).

4- Leis sobre a santidade (17-23): a) do povo (17-20); matança dos animais, uso do sangue, unicidade do santuário (17); prescrições que regulam os atos sexuais (18); várias prescrições religiosas e morais (19); punição para os transgressores (20); b) dos sacerdotes: núpcias e luto (21,1-15); irregularidades (21,16-24); impureza cerimonial (22,1-16; qualidades das vítimas (22, 17-30); conclusão (22,31-33); c) dos dias

festivos: solenidades anuais e o sábado (23).

5- Determinações diversas: lâmpadas no santuário e pães da apresentação (24,1-9); pena para o blasfemador (24,10-23); prescrições para o ano sabático e jubileu (25); promessas e ameaças relativas a observância da lei (26); votos e dízimos (27).

O sacrifício, o ato mais sagrado da religião, isto é, oferecer a Deus vítimas, animais ou vegetais, não foi instituído por Moisés, mas remonta às próprias origens da humanidade (Gên 4,3-4). Moisés encontrou o seu uso estabelecido e arraigado entre todos os povos. Nas tabuinhas recentemente descobertas em Ras Shamra (antiga Ugarit), na Fenícia setentrional, anteriores alguns séculos a Moisés, são mencionadas espécies idênticas de sacrifícios, até mesmo com nomes iguais (afinidade das duas línguas) aos do Pentateuco. Moisés, com suas leis, só regulamentou e consagrou ao culto do verdadeiro Deus um cerimonial já praticado, deixando ainda toda essa legislação dos sacrifícios separada das condições essenciais do pacto celebrado entre Deus e o seu povo (Êx 19,23). Nesse sentido deve-se entender aquele protesto do próprio Deus contra os judeus, por boca de Jeremias (7,22-23): "Em matéria de sacrifícios e holocaustos, eu nada disse e nada ordenei aos vossos pais ao tirá-los do Egito; dei-lhes somente esta ordem: — Escutai a minha voz; eu serei vosso Deus e vós sereis o meu povo —" cf. Êx 19,5).

Nada, portanto, impede atribuir-se ao próprio Moisés a legislação cerimonial do Levítico, embora seja óbvio que não a tenha escrito toda de uma vez e se tenha servido, para a fixar, da obra de algum sacerdote ou levita de profissão. Nem se exclui que algumas destas leis tenham

Page 22: BIBLIA AVE MARIA

recebido em tempos posteriores modificações e acréscimos.

Devemos observar ainda, que todas essas leis cerimoniais foram ab-rogadas depois de Jesus Cristo. Entretanto, os sacrifícios da antiga lei haviam prefigurado o seu sublime sacrifício na cruz, no qual, único e perfeito sacrifício, te-ve cumprimento toda a variedade dos sacrifícios do Antigo Testamento. Ou melhor, como nos ensina S. Paulo (Hebr 9,9; 10,10), os sacrifícios levíticos recebiam sua principal eficácia de aplacar a Deus daquele valor figurativo, pois que "é impossível que, por si só, o sangue dos touros e dos cabritos cancele os pecados" (Hebr 10,4). Considerados no seu significado típico e simbólico, os ritos escritos no Levítico continuam e continuarão a ser instrutivos.

Page 23: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS NÚMEROS

O quarto livro do Pentateuco recebeu o nome de Números (em grego Arith-moi, que aqui tem o sentido de "recenseamentos") por causa dos "recenseamentos" (1,1-4,26), que são próprios deste livro e que lhe dão a sua feição particular. Contém, além disso, alguns fatos que se ligam imediatamente aos acontecimentos narrados no Êxodo, e leis semelhantes às do Levítico. Pode ser dividido facilmente, de acordo com os lugares e tempos, em três partes: no Sinai (1,1-10,10); viagens através do deserto (10,11-21,35); na margem oriental do Jordão (22-36).

1a Parte. No Sinai: disposições para a partida: 20 dias.

1) Recenseamento das tribos e respectivas posições no acampamento (1-2).

2) Os levitas: seu destino e recenseamento (3); divisão por famílias e por ofícios (4).

3) Leis: banimento dos impuros, restituições, ciúmes (5), nazireato, bênção litúrgica (6).

4) Últimos fatos: donativos dos chefes das tribos ao santuário (7), consagração dos levitas (8), segunda Páscoa (9,1-14), sinais para a partida e para a parada, as trombetas (9,15-10,10).

2a Parte. Viagem através do deserto:

1) Do Sinai a Cades: partida e ordem de marcha (10,11-36), murmuração do povo, as codornizes (11), a lepra de Maria, irmã de Moisés (12).

2) Parada em Cades: missão dos doze exploradores (13) e queixas do povo (14); leis sobre as oblações e primícias, sobre o sábado e os filactérios (15); sedição de Coré, Datan e Abirão, e sua punição (16) e confirmação do sacerdócio na família de Arão (17); relações entre sacerdotes e levitas, emolumentos de uns e de outros (18); a água lustral (19); sedição do povo por falta de água (20,1-13).

3) De Cades ao Jordão: os edomitas negam passagem pelas suas terras; morte de Arão (20,14-29); queixas do povo e castigo, a

serpente de bronze (21, 1-9); vitória sobre os amorreus e conquista de Basan (21,10-35).

3a Parte. Na margem oriental do Jordão: cerca de cinco meses. A matéria desta parte, mais por ordem lógica do que por ordem do texto, pode ser assim agrupada:

1) Últimos encontros com os povos da Trans Jordânia; Balaão e seus vaticínios (22-24); prostituição a Beelfegor (25); guerra santa contra os ma-dianitas e leis sobre a divisão dos despojos (31); lista das etapas (33).

2) Grupo de leis: herança (27,1-11), festas e sacrifícios (28-29), votos (30).

3) Disposições para a ocupação da terra prometida. Segundo recenseamento (26); nomeação de Josué (27,12-23). Distribuição da Transjordânia (32); normas para a ocupação e distribuição da CisJordânia (33,50-34,12); designação das cidades levíticas e de refúgio (35); disposições para manter inalterada a primitiva distribuição (36).

A julgar pelo resumo, o presente livro compreende um período de cerca de trinta e oito anos e meio. Sobre a maior parte desse período (os trinta e oito anos no deserto) narra-nos apenas uns poucos fatos, mas muito notáveis pelo significado religioso, como a serpente de bronze, a sedição de Coré, os vaticínios de Balaão, a água brotada da rocha; fatos dos quais os apóstolos no Novo Testamento tiraram utilíssimas lições (ICor 10,1-11; Hebr 3,12-19; Jo 3,14-15). No centro do drama acham-se dois fatos semelhantes entre si, duas sedições do povo contra Moisés, executor das ordens divinas; a primeira (14), originada pela repugnância em empreender a conquista da Palestina; a segunda (20), por falta de água. Conseqüência ou punição da primeira foi a longa demora da nação inteira no deserto da península sinaítica; a segunda deixou a

Page 24: BIBLIA AVE MARIA

mais profunda impressão na consciência nacional e na literatura posterior (cf. SI 80;94;105), envolvendo o próprio Moisés, que por um instante duvidou da clemência divina e por isso teve de deixar a outros o remate de sua obra, a conquista de Canaã (cf. Dt 32).

O livro dos Números é importante para a literatura porque, entre outras coisas, nos conservou fragmentos de antiquíssimos cânticos populares (21; 23; 24), com a indicação de coleções já existentes, como "o Livro das guerras de Javé" (21,14), do qual não se tem outra menção.

Page 25: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO DEUTERONÔMIO

O quinto e último livro do Pentateuco foi chamado Deuteronômio, isto é, "segunda lei", talvez porque assim tenha sido traduzida, embora inexatamente pelos LXX, uma frase hebraica em 17,18. No entanto, convém-lhe perfeitamente esse nome. O livro não é uma simples repetição da legislação contida nos livros precedentes, mas além de leis novas, oferece complementos, esclarecimentos e modificações às primeiras. É, de certo modo, uma segunda lei, promulgada no fim da longa peregrinação dos israelitas, paralela à lei dada no Sinai e destinada a regular mais de perto a vida do povo escolhido, no solo da Terra Prometida à qual eles estavam para chegar e dela tomar posse definitiva. Não é, porém, simples enumeração de leis e determinações; o que caracteriza esse livro, o que lhe constitui a alma, é um ardente sabor oratório. O hagiógrafo nos faz ouvir um Moisés que exorta, encoraja, invectiva; inculca a observância das leis, a começar dos grandes princípios morais; apela para os mais poderosos motivos, evoca a glória do passado, a missão histórica de Israel, os triunfos do porvir. Na mente do autor sagrado temos o testamento definitivo, que o grande guia e legislador deixa ao povo de Deus às vésperas da sua morte. Pelo estilo, o Deuteronômio é um discurso, ou melhor, vários discursos, dirigidos por Moisés aos israelitas. Deduz--se daí a divisão do livro em quatro partes:

1a parte: 1o discurso (14): olhar retrospectivo aos fatos acontecidos desde a partida do Horeb até às últimas conquistas da TransJordânia (1-3); exortação geral à observância da lei (4,1-40).

2a parte: — 2o discurso: renovação da lei 4,44-26,19). Princípios gerais: o Decálogo (5), o culto e o amor ao único Deus verdadeiro (6), guerra à idolatria

(7), benefícios de Deus, censura da infidelidade anterior de Israel, promessas e ameaças (8-11). Leis especiais: 1) Deveres religiosos. Unicidade do santuário e disposições relativas (12, 1-28); contra a apostasia (12,29-13-18); alimentos e dízimos (14); ano da remissão (15); as três grandes solenidades anuais (16,1-17). 2) Direito público. Juízes (16,18-17,13), rei (17,14-20), sacerdotes (18,1-8), profetas (18,9-22); homicídio involuntário (19), guerra (20), homicídio por mão desconhecida (21,1-9). 3) Direito familiar e privado. Grande variedade; os pontos principais são: matrimônio (21,10-14;22,13-23,1) e filhos (21,15-20), o divórcio (20,1-4), levirato (25,5-10), deveres de humanidade (22,1-12;23,16-20;24,6-25,4), honestidade (25,11-19), votos (23,22-24), primícias e dízimos (26).

3ª parte: 3o e 4o discursos: ordem de promulgar a lei em Siquém, maldições para os transgressores (27), ameaças e promessas (28). Exortação à observância da lei, com a recordação dos fatos históricos, das promessas e das ameaças (29-30).

4ª parte. Apêndice histórico. Últimas disposições de Moisés, nomeação de Josué, seu sucessor (31); cântico de Moisés (32), bênção das doze tribos (33), morte de Moisés (34).

Amor de Deus, beneficência, alegria no cumprimento do dever, eis as principais características do Deuteronômio, princípios inculcados e repetidos com solicitude incansável. Por isso, perpassa-o um sopro ardente de sincera e profunda piedade para com Deus e uma ternura simpática pelo homem, que edifica e comove. Há páginas que se aproximam da sublimidade divina dos ensinamentos evangélicos, mais do que quaisquer outras.

Page 26: BIBLIA AVE MARIA

LIVROS HISTÓRICOS

Entre os vários gêneros literários da Bíblia, a história, por sua extenção, ocupa o primeiro lugar. Esse fato já prova quanto a história fosse cultivada pelo antigo povo de Israel. O fato é confirmado pelas fontes de que logo falaremos. E comparando, sob esse aspecto, a Bíblia com a literatura dos demais povos do Oriente antigo, notaremos o lugar preeminente e singular que cabe aos Livros Sagrados. A abundante literatura histórica que os egípcios e os assírio-babilônios, os dois povos mais poderosos e evoluídos da antigüidade, nos transmitiram, consiste quase toda em documentos, tais como as inscrições dos soberanos, onde se narram com intenção e estilo laudatórios, as façanhas dos mesmos. Mais tarde, entre os babilónicos, surge o gênero, menos oficial e mais literário, da crônica que registra, ano por ano, os acontecimentos mais importantes. Nenhum povo, porém, nos legou, como os israelitas, uma série de escritos que, reunidos, formam como que uma história nacional desde as origens até os tempos do cristianismo; tampouco quadros históricos de períodos particulares comparáveis aos dos Juízes e de Samuel.

Rigorosamente falando, devia figurar entre os livros históricos grande parte do Pentateuco, assinaladamente o Gênesis; estas partes, porém, devido à sua estreita relação com a legislação mosaica, formam um só corpo com o nome de lei.

Os escritos históricos da Bíblia propriamente ditos Livros históricos, pela matéria e pelos caracteres internos, são divididos em três categorias:

V Josué, Juízes, Rute, Samuel e Reis relatam a história do povo de Israel desde a conquista da Palestina até o exílio na Babilônia (586 a.C.);

2- as Crônicas e Esdras-Neemias retomam essa mesma história sob pontos de vista particulares desde o reino de Davi (as idades precedentes, desde as origens do homem, estão, como que resumidas, no princípio 1Crôn 1-9 em tábuas genealógicas) até à formação da sociedade judaica depois do retorno do exílio (cerca de 430 a.C.);

3? os livros de Tobias, Judite e Ester ilustram alguns episódios notáveis dos últimos séculos (VII-V a.C); nos dois livros dos Macabeus narra-se a resistência dos judeus

contra o jugo dos selêucidas e a reconquista da soberania política (séc. ii a.C).

A série dos livros históricos Josué-Reis, considerados como grupo autônomo, os hebreus chamam-nos "Profetas anteriores", formando com os "Profetas posteriores" (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze menores) a segunda classe ("os Profetas") da sua Bíblia tripartida. Os livros históricos contidos na série Crônicas-Macabeus recebem apreciações diversas dos hebreus. A maioria deles admitem no seu cânone as Crônicas, Esdras-Neemias e Ester, mas colocam-nos, com os restantes Livros Sagrados, na terceira classe dos "Escritos".

Essa divisão é antiga (atesta-a já S. Jerônimo no "Prólogo Galeato" ou prefação à sua tradução de Samuel e Reisj, não, porém, primitiva. Nos manuscritos da antiquíssima tradução grega dos LXX, e nas listas (cânones) das igrejas ou escritores cristãos, os livros das Crônicas e, com diferença de ordem, os outros, são anexados aos precedentes Reis com o título comum de "histórias". Os dois dos Macabeus nas Bíblias latinas apareciam habitualmente no fim do Antigo Testamento, mas a conveniência da matéria e razões práticas persuadem-nos, seguindo, além disso, o exemplo de tradutores modernos católicos, a não separá--los do grupo dos outros livros de caráter narrativo, e o leitor os encontrará, quase em ordem cronológica, depois de Judite.

Quase todos os livros históricos da Bíblia indicam, ainda que parcamente, uma ou mais fontes escritas donde tiraram o material e às quais remetem o leitor para maiores e mais amplas informações (Num 21,14 o livro das batalhas do Senhor; ib., 27 os poetas). Tornam-se mais freqüentes nos livros seguintes, especialmente nos Reis e Crônicas. Desde os primeiros tempos da monarquia (2Sam 8,16), entre outros oficiais do rei encontramos um "monitor" ou "chanceler" encarregado de registrar os acontecimentos do reino (cf. 1Rs 11,41). Daí o encontrarem-se freqüentemente alusões a tais memórias dos reis de Judá e de Israel desde 1Rs 14,19-29 até 2Rs 24,5. O autor das Crônicas cita escritos de vários profetas: Samuel, Natan, Gad (1Crôn 29,29), Aia, Ado (2Crôn 9,29), Semeia, Jeú, Hozai (ib. 12,15; 20,34;33,19). O primeiro deles provavelmente é o livro

Page 27: BIBLIA AVE MARIA

canônico de Samuel; os outros se perderam, excetuando-se, talvez} alguma parte incorporada aos livros canónicos dos Reis.

Comparando-se as passagens paralelas dos livros das Crônicas e dos Reis — quer os Reis tenham servido de fonte ao redator das Crônicas ou quer ambos haurissem duma fonte comum — observamos que a fonte geralmente é transcrita literalmente conforme os hábitos da historiografia semítica, numa época que não conhecia os direitos de propriedade literária. Nesse caso, o autor sagrado, apropriando-se das palavras da fonte, torna-as expressão do seu próprio pensamento e, através do carisma da inspiração divina, que não se opõe ao uso de fontes profanas, imprime-lhe o selo da sua infalibilidade.

Pode acontecer que o autor sagrado julgue útil citar um documento como notícia interessante deixando, porém, quanto à exatidão dos fatos, a responsabilidade pela afirmação ao autor primitivo. Isto pode-se sempre admitir no caso de citação explícita, isto é, com a expressa designação da fonte, como nas cartas citadas em Esdras 4,7-16; IMac 12,5-23; 2Mac 11,16-38. Não havendo indicação da fonte, e, portanto, quando a citação é implícita, requer-se maior circunspecção. Para se afirmar que o autor sagrado não garante a verdade do que refere, a Pontifícia Comissão Bíblica (13 de fev. de 1905) exige duas condições, duas provas com argumentos sólidos: V que o autor inspirado realmente cite um documento ou uma palavra

de outrem; 2° que não pretenda responsabilizar-se pelo conteúdo da citação, mas deixá-lo no seu valor original.

Para apreciar devidamente os livros históricos do Antigo Testamento é mister levar em conta a finalidade dos autores sagrados, bem como o espírito que os animava ao escreverem seus livros. Os escritores bíblicos não pretendem escrever história propriamente dita, nem narrar para satisfazer a sede de saber. Eles querem evidenciar a mão de Deus no dirigir a sociedade humana segundo as altas finalidades de sua Providência, especialmente de acordo com a religião e com a salvação do gênero humano. A sua historiografia é religiosa e não profana. Daí a escolha, sensível de modo especial, nos livros dos Reis e das Crônicas, de poucos fatos dentre a enorme quantidade de acontecimentos que, mesmo limitando-se à Palestina, decorreram nos largos tempos abrangidos pela sua narrativa; enquanto se atribui um papel importante aos profetas, ministros e porta-vozes de Deus, junto do seu povo. Segue-se que não devemos esperar dos hagiógrafos um quadro completo da sociedade israelita da época. Apesar disso oferecem sempre excelente material para a reconstrução da história profana, completando os dados transmitidos pelos documentos extra-bíblicos, principalmente as inscrições cuneiformes dos reis assírios e babilónicos, onde se registram muitos fatos e personagens dos livros dos Reis.

Page 28: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A JOSUÉ

O livro de Josué toma o nome do

protagonista dos fatos nele contidos.

Moisés, libertando o povo da escravidão

dos egípcios, organizou-o na península do

Sinai e o conduziu até às margens do

Jordão. Para continuar a mesma missão

de Moisés, sucede-lhe Josué. Tinha na

sua frente duas tarefas: ocupar a terra de

Canaã ou Terra Prometida, expulsando os

antigos habitantes, e dividir o país entre as

várias tribos de Israel. O livro de Josué é a

narração, ora pormenorizada e viva, ora

esquematizada, desta grande empresa.

Daí a divisão lógica do livro em duas

partes: ocupação da Terra Prometida e

sua partilha; segue-se um apêndice sobre

os últimos fatos de Josué.

Os fatos aqui resumidos abrangem um

período de cerca de 30 anos, como se

pode inferir de dois indícios oferecidos pelo

próprio livro. Josué, sendo quase da

mesma idade de Caleb (Num 13,6-8;

14,6-38), tinha, no tempo do Êxodo,

aproximadamente 40 anos (Jos 14, 7);

morreu com 110 anos. Tendo em conta os

40 anos passados no deserto, resulta que

empreendeu a ocupação da Palestina aos

80 anos, sobrevivendo mais trinta.

Cronologicamente, esses 30 anos

coincidiram com a época de 'el-Amarna se,

conforme alguns, colocarmos o Êxodo no

reinado de Amenófis II; se, conforme

outros, o colocarmos no de Menefta, então

coincidiram com o fim do reinado de

Ramsés III (1198-1167) e de seus fracos

sucessores. Duas indicações do próprio

livro de Josué estariam a favor dessa data:

não existe indício algum duma dominação

dos egípcios na Palestina; pelo contrário,

encontramos firmemente estabelecidos e

fortalecidos os filisteus (13,2-3), dois fatos

explicados pela decadência do Egito sob a

dinastia (XX) dos Ramésidas.

O relato do glorioso passado visa à uma

dupla finalidade: evidenciar a fidelidade

divina no cumprimento das suas

promessas (vide 21,43) e agir sobre o

povo como um estímulo a repelir o

desânimo no tempo da provação e a

confiar fielmente no serviço do Senhor.

O livro de Josué foi considerado pelas

escolas críticas do século XIX, intimamente

ligado ao Pentateuco. Os mesmos

documentos do Pentateuco teriam servido

para a sua compilação, que seria obra de

vários autores sucessivos, e cuja última

redação teria visto a luz por volta dos

séculos V ou IV a.C.

Hoje, a dita crítica modificou bastante a

sua hipótese; começa-se, também por

parte da maioria dos racionalistas, a

considerar o livro de Josué como um livro

independente; reconhece-se que a sua

composição é diferente da composição do

Pentateuco, formando um conjunto distinto

e bastante harmônico. É uma espécie de

Page 29: BIBLIA AVE MARIA

retorno ao que a tradição judaica e cristã

sempre defenderam.

Apesar dessas concessões, entretanto,

não se deixa de impugnar, embora sem

sólido fundamento, a unidade do livro e a

sua origem antiga. É verdade que se

encontram alguns trechos de estilo

diferente, certas expressões e algumas

repetições discordantes do corpo do livro,

mas para explicar isso seria suficiente

supor um único autor que tenha

aproveitado documentos parciais.

Da unidade do livro não se pode fa-

cilmente chegar à determinação concreta e

segura nem da data de origem nem do

autor. Alguns indícios levariam a concluir

que o livro é anterior ao tempo de Isaías

(cf. 8,28 com Is 10,28), de Salomão

(16,10 com 1Rs 9,16), de Davi (15,63

com 2Sam 5,6-9). Não faltam,

entretanto, dificuldades em contrário, que

podem, porém, ser adequadamente

solucionadas. Uma das principais é a

repetição da fórmula: "até o dia de hoje"

(4,9;5,9;6,25;7,26;8,29;9,27;10,

27;13,13;14,14;15,63;16,10;22,3.17),

que faz supor se tenha passado um longo

período de tempo entre os fatos e a com-

posição do livro. Mas, os trinta anos de-

corridos entre estes fatos e a morte de

Josué são espaço de tempo suficiente

para legitimar tais expressões.

A origem antiga do livro de Josué e o fim

que o autor sagrado se propôs contribuem

para fortalecer a autoridade do livro. Os

seus relatos são confirmados, em muitos

pontos, pelos documentos oficiais

encontrados em 'el-Amarna, a oriente do

Egito, bem como pelas escavações feitas

na Palestina desde 1902 especialmente

em Jericó, Betel, Gezer e Laquis, que nos

revelaram vestígios da invasão dos

israelitas, ou pouco antes.

Page 30: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS JUÍZES Juízes foram chamadas certas

personagens insignes que, depois da

morte de Josué até à constituição do

reino — isto é, desde o século XII ao XI

a.C. — libertaram, em várias

circunstâncias, o povo de Israel dos

inimigos.

Não formaram uma série ininterrupta,

mas eram chamados pelo Senhor

segundo as necessidades. Eram uma

espécie de "ditadores" que, cumprida a

missão libertadora, continuavam a

exercer autoridade sobre o povo pelo

resto da vida. Não dominavam sobre

todo o povo, mas só nas tribos que

libertavam i do inimigo; desta forma não

é impossível que alguns juízes

exercitassem ao mesmo tempo sua

função.

O livro dos Juízes narra as empresas

desses beneméritos libertadores do

povo eleito. Em vez de uma história

propriamente dita, da época, é uma

coleção de memórias dos diversos

heróis. São doze ao todo, classificados

em maiores e menores, não tanto pela

diferente importância dos

empreendimentos e dos heróis, quanto

pelo modo de serem apresentados. Dos

menores, o autor contenta-se com citar

o nome, alguma notícia da família, a

duração de sua atividade e o lugar da

sepultura, sem especificar o

empreendimento; ao passo que dos

maiores narra a história com mais

particularidades, segundo um esquema

fixo, que comporta quatro momentos: o

pecado do povo (práticas ido-látricas), o

castigo (dominação estrangeira), o

arrependimento e a libertação por obra de

um juiz.

Esse esquema está em perfeita

harmonia com o pensamento dominante

(2,11-19) da introdução especial (2,6 ■—

3,6) ao corpo do livro, que defende a tese

segundo a qual Israel foi feliz enquanto se

manteve fiel ao Senhor, e infeliz quando

se apartou dele. Com isto dá-nos a

conhecer a finalidade do autor: afastar

eficazmente os israelitas do culto

idolátrico.

Destarte o corpo da obra resulta

composto, com sua própria introdução, à

qual foi anteposta outra introdução geral

(1,1-2,5) e foram acrescentados dois

apêndices (17—18 e 19—221).

Não é fácil precisar a data dos dois fatos

narrados nesses apêndices; há, contudo,

razões sérias para admitir que ambos se

deram nos primeiros tempos dos juízes,

pois no episódio dos dani-tas aparece

como sacerdote um neto de Moisés (Jz

18,30) e um neto de Arão é

contemporâneo de outro episódio. A

Page 31: BIBLIA AVE MARIA

cronologia do corpo do livro é uma das

dificuldades mais laboriosas que

possam ocupar os intérpretes e entre as

soluções propostas não há nenhuma

que satisfaça plenamente. Como quer

que seja, sem entrar em discussões

inúteis, basta recordar que segundo lRs

6,1, entre o Êxodo e a construção do

templo (4° ano do reinado de Salomão)

passaram 480 anos. Portanto, se desse

número subtrairmos 4 anos de

Salomão, 40 de Davi e outros tantos de

Saul (At 13,21), e ainda 70 anos que

decorreram desde o Êxodo à primeira

opressão, restariam ainda 330 anos

para o período dos Juízes. Esse

resultado estaria suficientemente de

acordo com o que disse Jefté ao rei de

Amon (11,26). Somando-se, porém,

todos os tempos das opressões e os

dos domínios dos juízes, obtêm-se 410

anos. Deve-se, portanto, admitir que o

autor relatou números aproximados.

A parte principal (2,6—16,31) é obra

de um só autor, como prova o esquema

delineado e fielmente seguido em toda

a narração. O autor, porém, não podia

ter sido testemunha de tudo o que

narra, já que sua história abrange um

período de quase dois séculos. Serviu-

se, portanto, de documentos

preexistentes e de tradições orais. A

sua fidelidade às várias fontes se

manifesta na concisão com que narra

fatos de máxima importância e que um

escritor menos escrupuloso teria ampliado

a seu bel-prazer.

Quando foi composto o livro? Com boa

verossimilhança pode-se crer que foi nos

primeiros anos do reinado de Saul. Com

efeito, quatro vezes observa-se nos

apêndices que os inconvenientes narrados

aconteceram quando "em Israel não havia

rei e cada um fazia o que lhe agradava".

Tal coisa só podia ter sido escrita nos

primeiros tempos da monarquia, quando

se gozava dos seus bons efeitos e ainda

não pesavam gravames que sobreviriam

mais tarde.

Page 32: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A RUTE

A comovente história de Rute, que dá o

título a este opúsculo, é um edílio pela

suavidade e pelo ambiente campestre; um

pequeno drama pela variedade e

vivacidade das cenas. Apenas um terço de

todo o livro pertence ao gênero narrativo,

sendo o resto, diálogo.

Os quatro capítulos em que se costuma

dividi-lo são como quatro atos no drama;

podemos assim resumi-los:

1. Em companhia da sogra que volta à

pátria. Rute, jovem moabita, viúva sem

filhos, de um hebreu que emigrara de

Belém, não abandona a sogra que, depois

da morte do marido e dos filhos, deseja

voltar ao torrão natal.

2. A respigadura. Para o sustento

próprio e o da sogra, Rute vai respigar

atrás dos segadores, conquistando com os

seus encantos e suas virtudes a afeição

de Booz, rico proprietário, parente de seu

sogro.

3. A noite passada na eira. Por

conselho da sogra, que pensa em casá-la

com Booz, Rute passa uma noite junto de

Booz na eira da colheita e aproveita a

ocasião para lembrar ao mesmo o dever

de desposar a viúva do parente falecido

sem filhos.

4. As núpcias de Booz com Rute. O

convite de Rute agrada a Booz, mas há

outro parente com direito de precedência.

Superado o obstáculo pela desistência

deste parente, Booz desposa Rute, que

o torna pai de Obed, de quem nasceu

Isaí (Jessé), pai, por sua vez, do

grande rei Davi, antepassado do

Messias.

Dessa relação com Davi, provém a

importância do opúsculo, bem como o

seu lugar no cânon, entre Juízes e

Samuel, ao primeiro dos quais pertence

pela época dos acontecimentos

narrados (Rut 1,1), e com o segundo se

relaciona pela fundação da dinastia da-

vídica, cf. ISam 16; 2Sam 2-8. É aqui,

portanto, que as Bíblias gregas e

latinas o inserem; os hebreus,

antigamente, também o colocavam

aqui, e só na Idade Média, devido ao

uso litúrgico, foi colocado, juntamente

com os outros quatro opúsculos (Cânt,

Ecl, Lam, Est)t entre os componentes

da última das três partes na qual eles

dividem os Livros Sagrados.

Além desta importância histórica,

Rute oferece numerosos e preciosos

ensinamentos. A protagonista é um

modelo de piedade filial, de dócil

obediência para com a sogra, de

espírito de sacrifício no cumprimento

destes seus deveres. Na sua história

sobressai o papel da divina Providência

que, por caminhos inesperados, premia

a virtude de Rute, dando-lhe uma

Page 33: BIBLIA AVE MARIA

posição social elevada. Além disso, sob o

aspecto religioso, é digno de nota como

esta estrangeira, que deixa a pátria e os

concidadãos para não abandonar a sogra

hebréia, não somente é recebida na

verdadeira fé para fazer parte do povo de

Deus, mas também teve a honra de ser

inscrita na genealogia do Messias (Mt 1,5).

O autor de Rute nos é totalmente

desconhecido. O tempo em que foi escrito,

deve-se deduzir do próprio livro. Sem

dúvida correu muito tempo entre os

acontecimentos e sua narração (cf.

4,7). A linguagem, afora algumas

particularidades, é da boa época da

monarquia; o estilo, simples e polido, a

beleza da narrativa, a pintura viva dos

caracteres e dos costumes colocam

Rute entre os melhores modelos de

prosa narrativa do Antigo Testamento.

Em Rute temos a amenidade da novela

unida à singela veracidade histórica.

Page 34: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A SAMUEL

O livro de Samuel, dividido pelos gregos e pelos latinos — não pelos hebreus — em dois, recebe o nome do santo profeta, cujas gestas constituem os seus primeiros capítulos, e cuja ação o dominam inteiramente. A matéria tratada divide-se marcadamente em três partes, segundo as três personagens que governam sucessivamente o povo de Israel: Samuel, Saul e Davi.

1ª parte. Samuel, o último Juiz

1) Nascimento de Samuel (1,1-2,10); sua juventude a serviço do templo; reprovação do sacerdote Heli e de seus filhos (2,11-3,21).

2) Primeira guerra filistéia; derrota, captura da arca, morte de Heli e de seus filhos (4). Retorno da arca santa (5-7,2).

3) Judicatura de Samuel: reforma religiosa, segunda guerra filistéia, vitória; governo de Samuel (7,3-17).

4) Mau governo dos filhos de Samuel. O povo pede um rei (8); Saul é ungido e proclamado rei (9-10). Vitória sobre os amonitas (11). Samuel abdica e despede-se do povo (12).

2ª parte. Saul, primeiro rei

1) Terceira guerra filistéia; desobediência de Saul; audácias de seu filho Jonatas; vitórias. Sumário do reinado de Saul (13-14).

2) Vitória sobre os amalecitas, e outra desobediência de Saul, que é por isso reprovado (15).

3) Samuel unge secretamente rei a Davi, que é chamado à corte de Saul, assaltado por mania furiosa (16). 4) Quarta guerra filistéia. Davi vai ao

acampamento e mata o gigante Golias (17,1-54). Amizade de Jonatas com Davi e inveja de Saul para com o mesmo (17,55-18,9). 5) Saul procura matar Davi, o qual foge da

corte (18,10-19,17); vai ter com Samuel, renova com Jônatas o pacto de amizade (19,18-21,1).

6) Davi anda errante por vários lugares (21,2-22,5); Saul mata os sacerdotes fautores de Davi (22,6-23). Davi em Ceila (23,1-13); em Zif salva-se de grave perigo (23,14-28); em Engadi poupa a vida a Saul (24); ofendido por Nabal, é aplacado por Abigail, que depois desposa (25); novamente poupa a vida a Saul (26); vive entre os filisteus (27).

7) Quinta guerra filistéia. Saul consulta a nigromante de Endor (28). Davi. afastado pelos filisteus (29), vence os amalecitas (30). Saul morre no campo de batalha (31) e Davi pranteia a sua perda (2Sam 1).

3a parte. Davi, fundador da dinastia (2Sam 2-24)

1) Rei de Judá em Hebron (2,1-7); guerra civil entre os dois partidos, progressos de Davi (2,8-3,5); assassínio de Abner (3,6-39) e de Isboset (4).

2) Rei de todos os israelitas em Jerusalém (5,1-16); vitória sobre os filisteus (5,17-25); transladação da arca para Sião (6); promessa messiânica (7); conquistas no exterior (8); favores ao filho de Jônatas (9).

3) Desordens domésticas. Guerra amonita (10); duplo pecado de Davi (11); arrependimento de Davi (12); incesto de Amnon (13,1-22); vingança de Absalão (13,23-36); seu exílio e repatriação (13,37-14,33).

4) Revolta de Absalão (15,1-12); fuga de Davi (15,13-16,14) e entrada de Absalão em Jerusalém (16,15-17,23); guerra civil (17,24-18,8); morte de Absalão e luto de Davi (18,9-19,8). Davi retorna à capital (19,9-43); a rebelião de Seba é dominada (20,1-22); governo (20,23-26).

5) Diversos episódios. Cessa a fome, dando satisfação aos gabaonitas (21,1--14). Heroísmo de alguns homens contra os filisteus (21,15-22). Cântico triunfal de Davi (22). Ultimas palavras de Davi (23,1-7). Os heróis campeões (23, 8-39). Recenseamento do reino; a peste; ereção de um altar sobre o Sião (24).

Todos esses acontecimentos encheram o período de cerca de um século e meio, aproximadamente os anos 1120-970 a.C, um lapso de história israelita isento de toda interferência quer do Egito, quer da Assíria e da Babilônia.

Ao escrever o livro, o autor sagrado tem por finalidade mostrar-nos as vias providenciais pelas quais foi estabelecida no povo de Deus a monarquia e a dinastia davídica, de cuja cepa devia nascer o Messias, cujas glórias ter-lhe-ia perpetuado. Em Samuel apresenta-nos o modelo do ministro fiel de Deus, em Davi o tipo de magnanimidade aliada a uma sincera piedade.

Page 35: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS REIS

Aos livros de Samuel, que narram a fundação da monarquia hebraica seguem-se Reis, cuja história continua até sua queda sob os assaltos dos poderosos impérios da Assíria e da Babilônia, isto é, desde os últimos dias de Davi {cerca de 970 a.C) até à tomada de Jerusalém em 587 a.C, uma duração de cerca de quatro séculos. A cisão política e religiosa, que se seguiu à ascensão ao trono do segundo sucessor de Davi, cindiu a nação em dois reinos rivais, o de Israel e o de Judá, e findou com o desaparecimento do primeiro na luta com a Assíria (721 a.C), delimitando este lapso de tempo em três períodos, com reflexos análogos na composição da obra.

O livro é escrito à base de um esquema simples e transparente, sobretudo na segunda e maior parte, daquela dos reinos separados. Seu enredo é formado pelas notícias sobre cada um dos reis, quer de Judá, quer de Israel, redigido com um cunho uniforme e distribuído em três partes: 1) Introdução: sincronização do outro reino com o rei contemporâneo, duração do reinado no momento e para os reis de Judá também os anos de idade à elevação ao trono e nome da rainha-mãe. 2) Corpo: qualidades morais relativamente à religião e ao culto mosaico, e breves referências a algum fato mais relevante. 3) Epílogo: envio para notícias mais amplas, aos "anais dos reis" (de Judá ou de Israel, segundo o caso), morte e sepultura.

Nas linhas deste traçado, inserem-se os mais amplos e minuciosos relatos de coisas concernentes à religião e a atividade dos profetas, entre os quais avultam as grandiosas figuras de Elias e Eliseu. O interesse religioso, sobre o qual se fixa o olhar do autor sagrado, manifesta-se, inclusive nos poucos acontecimentos políticos narrados com abundância de pormenores fora do comum, como as ações de Acab (lRs cc. 20-22), a ascensão de Jeú ao trono (2Rs 9,1-7), o cerco e libertação de Jerusalém do exército de Senaquerib (2Rs 18,13-19, 37). Essas notícias mais abundantes formam o fundo do livro, ao passo que os esquemáticos perfis dos reis, donde lhe vem o título usual, constituem-lhe como que a moldura e o enredo. As primeiras, o autor hauriu-as das histórias dos profetas, transmitidas, por escrito ou de viva voz, pelos discípulos dos mesmos. Nos segundos, isto é, na mencionada moldura, devemos ver um trabalho mais pessoal do redator final, baseado por certo em bons documentos.

O valor histórico do livro dos Reis é incontestável. Garantido pela inspiração divina, é confirmado por documentos paralelos da história

profana, cabendo a primazia à assírio-babilônica, que aqui se nos apresenta com tão grande riqueza, não igualada para nenhum outro livro do Antigo Testamento.

Não nos foi transmitido quem seja o autor de Reis nem a data da sua existência; seu nome permanecerá provavelmente para sempre ignorado, ao passo que a idade pode ser deduzida do próprio livro. Se os últimos quatro vv. (2Rs 25,27-30) não são um apêndice ou acréscimo posterior, como em si é possível, sem, contudo, parecer provável, o autor teria terminado a sua obra entre os anos 560 (37- da prisão de Joiaquin) e 538 a.C, que marca o fim do exílio babilónico, porque não faz nunca alusão ou referência a este grande acontecimento.

É visível o caráter essencialmente religioso desta história dos reis. Numerosos ensinamentos de doutrina e vida religiosa estão contidos especialmente na atividade dos profetas, que ocupam continuamente o centro da cena, e nas reflexões do autor sagrado sobre o procedimento dos reis e dos povos, que freqüentemente rematam o quadro. Cumpre não deixar de notar o impressionante fato de que, enquanto no reino cismático de Israel houve em apenas dois séculos (c. 930-730 a.C), nada menos de oito mudanças de dinastia, no vizinho e politicamente mais fraco reino de Judá dominou, por mais de 4 séculos (c. 1010-586 a.C), constante e invariavelmente a descendência de Davi, embora não faltassem as violências e os contrastes a partir do exterior (intromissões de Atália, de Necao, de Nabucodonosor). Verificava-se assim a promessa divina feita a Davi por boca do profeta Natan (2Sam 7), anúncio e penhor do reino do Messias, filho de Davi por excelência (Lc 1,32), insigne pedra miliar na preparação da salvação humana.

Page 36: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO ÀS CRÔNICAS

Samuel e Reis receberam uma obra paralela nas Crônicas. Nas Bíblias hebraicas constituem os mesmos uma só livro e tem o título equivalente ao nosso termo "anais". Ê aquilo que nos Reis se lê tantas vezes no epílogo dos respectivos reinados. Seguindo uma sugestão de S. Jerônimo (no "prólogo galea-to" ou prefácio aos livros de Samuel e Reis), os modernos dão

comumente a esta obra o nome de "Crônicas". Na versão grega dos LXX acha-se dividida em dois livros e intitula-se Paralipômenos, que significa "coisas omitidas"; subentende-se, nos livros dos Reis. Este título com a respectiva divisão introduziu-se na Igreja latina.

A narração das Crônicas, excetuando-se as genealogias dos nove primeiros capítulos e a alusão ao decreto de Ciro nos dois últimos vv., abrange o mesmo espaço de tempo de Samuel e Reis. Distingue-se deles, porém, pela extensão da matéria, pois, de um lado, restringe-se ao reino de Judá e, de outro, acrescenta muitas notícias relativas ao culto divino.

Na verdade, a grande idéia central de toda a obra é o templo. O templo,

único lugar destinado ao culto legítimo no Deus de Israel, é o centro vital de Jerusalém; Jerusalém é o centro de todo o Judá, que é a parte fiel do povo eleito. Destarte toda a vida de Israel palpita em torno do templo, o qual não é considerado como simples edifício material, fosse embora simbólico, mas como verdadeiro fator de unidade religiosa e nacional para todo Israel, mediante o único culto legítimo, exercido somente pelos descendentes de Levi. Donde o cuidado especial, a insistência, dir-se--ia, com que o autor desce a certas particularidades que a nós, tão afastados da sua época, nos parecem supérfluas, mas que então constituíam o fundamento da vida

coletiva: assim as importantes genealogias, que eram verdadeiros documentos oficiais para provar o direito que todo o levita tinha de exercer os atos de culto; assim, as minuciosas normas litúrgicas, as amplas descrições de solenidades (da Páscoa, sobretudo), com o número das vítimas imoladas, sem faltar sequer as várias exceções ao rito legítimo, e todos os trabalhos executados no próprio edifício, desde os preparativos feitos por Davi até à restauração de Josias.

Paralela, mas subordinada a esta idéia principal, desenvolve-se outra, a da dinastia davídica. A família davídica é a única depositária do poder legítimo sobre todo o Israel. Os seus membros, portanto, são os principais servos de Javê, e os reis que dela descendem têm como dever primordial o cuidado do templo, pois a sua autoridade régia é um reflexo da autoridade divina, que brilha no templo. Todavia, a distinção entre o poder régio e o sacerdotal é radical: o rei não deve usurpar funções sacerdotais. O monarca é realmente o primeiro servo do templo, mas é o primeiro servo "externo", fora do recinto sagrado.

Destas duas grandes idéias basilares, tomadas em conjunto, explica-se por que o autor se estenda tanto na citação das genealogias de Levi e de Judá (à qual pertencia a família de Davi) e por que se desinteresse do reino do norte, que constituía a parte mais numerosa do povo eleito. Este reino rebelara-se contra a dinastia davídica e rejeitara o culto do templo de Jerusalém, fabricando para si os bezerros de ouro. Por isso, depois de narrar a sua

defecção, o autor alija-o do esquema de sua obra.

Ê evidente, e em mais de uma passagem (1Crôn 10,13-20,1 etc.),

que o autor supõe conhecida a

Page 37: BIBLIA AVE MARIA

história que narra, ao passo que, excetuadas as particularidades litúrgicas, raríssimos são os fatos que narra com exclusividade. Destes fatos, porém, um há que, em 1880,

recebeu esplêndida confirmação das descobertas arqueológicas (cf. 2Crôn 32, 30). Quanto às freqüentes divergências entre as cifras de Crônicas e Reis, cumpre recordar que os números, no texto hebraico, têm muitas vezes contra si uma componente desfavorável; e muito mais em Crônicas, que na transmissão manuscrita são dos livros mais corrompidos e mal conservados de toda a Bíblia.

Literariamente, Crônicas são um produto da decadência. O material linguístico situa-o entre as obras mais tardias da Bíblia hebraica. O fraseado tortuoso, duro e insistente, é testemunho de uma época em que o hebraico já não era a língua comum, mas ia cedendo lugar ao aramaico.

Page 38: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A ESDRAS

No texto hebraico e na versão dos LXX,

Esdras e Neemias constituem um só livro,

com o título comum de Esdras. Mas já no

tempo de Orígenes (inícios do séc. III) eram

divididos em dois. Na Vulgata latina são

intitulados I e II de Esdras. Desde épocas

longínquas, porém, chamam-se habitualmente

Esdras e Neemias, nomes tomados da

principal personagem de cada um deles.

Com o título de 3? de Esdras, as Bíblias

latinas (1 Esdras nas gregas) contam com um

livro composto de 9 capítulos, e que

apresenta versão diferente daquela dos dois

últimos capítulos das Crônicas, de todo o

Esdras (com a transposição de 4,7-24 no fim

do c. 1) e de Neemias 8,1-12. Além disso, tem

de próprio a longa descrição (3,1-5,6, antes

de Esdras 2) de uma disputa literária entre

três pagens da corte de Dario, o terceiro dos

quais, Zorobabel, tendo saído vencedor,

obteve do rei todas as facilidades para

reconduzir à pátria os seus compatriotas

judeus. Por causa desse relato não canônico,

isto é, não inspirado, todo o livro foi colocado

pela Igreja católica entre os apócrifos.

O livro canónico de Esdras-Neemias

descreve a volta dos judeus do exílio

babilónico e a restauração religiosa, e, em

parte, também a política da sua comunidade.

Por sua própria natureza divide-se em três

partes, em cujo centro estão as três

personagens que encabeçam o movimento.

1. Regresso, sob as ordens de ZOROBABEL,

no tempo de Ciro (no 537 a.C.) e reconstrução

do templo (Esd 1-6).

Decreto de Ciro permitindo a reconstrução

do templo (1); elenco dos judeus que

regressaram guiados por Zorobabel (2).

Ereção do altar (3,1-6) e início da construção

do templo (3,7-13); obstáculos da parte dos

adversários e suspensão dos trabalhos (4,1-5).

Obstáculos opostos mais tarde pelos inimigos

à reconstrução da cidade (4,6-24).

Prosseguimento da construção do templo,

término e inauguração entre grandes

solenidades (5-6).

2. Retorno sob a direção de ESDRAS, no

sétimo ano de Artaxerxes, e reforma dos

costumes (Esd 7,10).

Esdras obtém de Artaxerxes rescrito

favorável (7); preparativos para a volta (8,1-

30); partida e chegada a Jerusalém (8,31-36).

Deploração da desordem dos matrimônios

mistos (9), que são suprimidos (10,1-17). Rol

dos culpados (10, 18-44).

3. Regresso de NEEMIAS, no vigésimo ano

de Artaxerxes, reconstrução da cidade e

restauração religiosa (Ne 1-13).

Tendo recebido notícias alarmantes,

Neemias obtém do rei permissão para ir a

Jerusalém (1,1-2,10); inspeção das muralhas e

decisão de reconstruí-las (2, 11-20); elenco

dos que restauraram alguma parte delas (3);

oposição e insídias de Sanabalat e outros

inimigos (4). Extirpação da desordem

Page 39: BIBLIA AVE MARIA

econômico-social (5). Novas insídias dos

inimigos; apesar delas, a muralha é terminada

(6). Recenseamento do povo: elenco dos

repatriados (7,6-57 = Esdr 2,1-55). Leitura

pública da lei mosaica e festa dos

Tabernáculos (8). Confissão pública e

penitência (9); solene renovação da aliança

com Deus (10). Medidas para repovoar

Jerusalém (11,1-24); outras cidades

repovoadas (11,25-36). Lista dos sacerdotes e

levitas (12,1-26). Dedicação das muralhas de

Jerusalém (12,27--42). Regulamentação das

ofertas sagradas e dos matrimônios mistos

(12,43-13, 14.23-31); medidas para a

observância do sábado, no ano trigésimo

segundo de Artaxerxes (13,15-22).

Os fatos aqui narrados abrangem o período

de um século aproximadamente (537-432

a.C.), período importantíssimo para a história

do povo eleito e da religião em geral. O autor

não pretende, porém, deixar-nos uma história

completa daquele período memorável, mas

descreve-nos apenas os fatos principais,

agrupados mais segundo uma ordem lógica

do que segundo a sucessão cronológica.

Page 40: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A TOBIAS

Semelhante ao livro de Rute pela suavidade de cenas domésticas, Tobias supera-o pela variedade e entrelaçamento de acontecimentos e pela riqueza de ensinamentos morais. O livro de Tobias foi escrito em hebraico ou aramaico. Encontraram-se fragmentos em ambas as línguas (1952) nas grutas próximas do mar Morto. S. Jerônimo verteu-o para o latim, servindo--se de uma redação aramaica, e assim foi inserido na Vulgata. A versão grega dos LXX deriva do texto original, seguindo outra via; dessas duas fontes, a grega e a latina, surgiram todas as outras versões chegadas até nós.

A primeira e mais palpável diferença entre essas duas versões é que na Vulgata toda a narração, desde o princípio, desenvolve-se em terceira pessoa, ao passo que no grego o preâmbulo (1,1-2,6) ê narrado por Tobias na primeira pessoa. Na Vulgata é mais abundante o elemento parenético, no grego prevalece o biográfico. Na Vulgata, pai e filho têm o mesmo nome: Tobias; no grego, ao invés, o pai chama-se Tobit, ou mais corretamente, Tobi, e somente o filho, Tobias.

A própria versão grega, porém, chegou-nos em três formas ou redações, duas principais e completas e uma secundária e incompleta. As duas principais têm os seus representantes mais antigos e autorizados, respectivamente, nos dois re-putadíssimos códices (aqui

rivais, de resto, irmãos) Sinaítico (atualmente no Museu Britânico) e Vaticano (grego 1209, conhecido com a sigla B) do séc. IV. A redação do Sinaítico difunde-se mais na narração, valendo-se de uma expressão mais vulgar, de colorido mais semítico; a do Vaticano é mais sucinta e de grecidade mais pura. Existe grande discordância entre os doutos em determinar qual das duas esteja mais próxima do original semítico; mas atualmente vai prevalecendo a opinião em favor da redação sinaítica, a qual tem por seguidora fiel a antiga versão latina e por aliados os fragmentos semíticos encontrados às margens do mar Morto.

Discutiu-se também se o livro de Tobias seria uma história verdadeira ou uma novela com finalidade moral. Não obstaria ao ensinamento da Igreja católica considerá-lo, em abstrato, uma narração de livre invenção (Encíclica Divino afilante Spiritu). Mas, se por um lado, parece manifesta a intenção do autor, em vista do cuidado que emprega em referir nomes de pessoas e lugares, e circunstâncias pormenorizadas, de narrar fatos realmente ocorridos, doutro lado, porém, às razões aduzidas contra a historicidade dos fatos narrados, como anacronismos de pessoas e alguma pseudoqualificação, responde-se facilmente que, faltando-nos o texto original, os erros podem provir de traduções incorretas ou de falhas de

Page 41: BIBLIA AVE MARIA

copistas. O maravilhoso que ressalta no livro pode criar dificuldades somente para quem, por princípio, nega-se a admitir o sobrenatural. Isto posto, nada nos veda que retenhamos a estrita historicidade de Tobias, ou pelo menos com alguns escritores católicos, admitamos um amplo fundo histórico com acessórios embele-zadores.

A primeira documentação dos fatos narrados neste livro deve ter sido, indubitavelmente, o testemunho dos dois protagonistas, Tobi e Tobias, e nada obsta que tenha sido escrita por eles; contudo, tampouco está provado, nem mesmo pelo emprego da primeira pessoa em 1-3, que eles sejam os autores do nosso livro; um escritor posterior pode muito bem ter-se servido daquilo que eles deixaram dito ou escrito. Judeus e protestantes não reconhecem o livro de Tobias como canónico, isto é, inspirado, relegando-o entre os "Apócrifos". Mas a Igreja católica, tanto latina como oriental, recebeu-o desde o princípio no cânone das divinas Escrituras, não obstante a opinião contrária de alguns Padres da antiguidade. Com isso a Igreja oferece-nos para instrução um delicioso modelo de prosa narrativa, "pleno de ensinamentos religiosos e morais" (S. Beda). Nele, virtudes domésticas e sociais, sobretudo o exercício de uma generosa beneficiência, e a paternal providência de Deus para com os seus servos fiéis fulgem numa luz tão viva quão suave.

Page 42: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A ESTER

É provável que desde o séc. V a.C. (cf. 2Mac 15-27), os hebreus tenham celebrado a festa chamada "purim", em memória da eliminação do perigo de exílio decretado contra os seus antepassados durante a dominação persa. O livro de Ester narra os fatos que deram origem a essa festa, mostrando a providência especial usada por Deus com o seu povo eleito, naquela ocasião tão crítica.

Duas redações nos chegaram deste livro: a hebraica e a grega dos LXX, com a única diferença, entre si, de que a grega, além da versão fiel do hebraico, contém mais seis seções, que, tomadas em conjunto, igualam a dois terços do livro hebraico.

O rei da Pérsia, sob o qual se desenrolam esses acontecimentos, é chamado Ahasveros no texto hebraico (donde "Assuero" na Vulgata), transcrição imperfeita do nome persa Hsarjarsa, que os gregos transcreveram como Xerxes. A versão grega, ao invés, traz constantemente "Artaxerxes" no livro inteiro. Daqui as divergências em torno da pessoa do rei assim denominado. Hoje, a opinião mais comum e provável sustenta que seja Xerxes I, o qual reinou de 485 a 465 a.C. e ê conhecido sobretudo por sua campanha infeliz contra a Grécia. Não perdeu, porém, a sua boa probabilidade a opinião dos antigos, assinaladamente de Eusébio e S. Jerônimo, de que se trata, ao invés, de Artaxerxes II, chamado o Mnemon (405-365 a.C.), que antes de subir ao trono tinha o nome de Arsu (v.

PLUTARCO, Vida de Artaxerxes, I), forma abreviada ou carinhosa de Hsajarsu. O caráter efeminado de ambos os monarcas, como no-lo dão a conhecer os escritores profanos, condiz admiravelmente com o que se reflete no livro de Ester.

Ambos entregues aos prazeres, ambos dominados pela influência de cortesãos e de mulheres, as histórias dos seus reinados são tecidas de intrigas, de amores ilícitos e também de crueldades. Sobre Xerxes veja-se HERÓDOTO, Histórias, IX, 108-110. A respeito de Artaxerxes II, Plutarco, na vida do mesmo, carrega as tintas sobre a sua moleza e volubilidade e afirma que no seu gineceu sustentava tantas mulheres quantos eram os dias do ano (24,3;27,1-3; cf. Est 2,1-4.12-14).

Esta é já uma das provas da verdade histórica do livro. Outras são: o conhecimento exato dos costumes persas, a descrição precisa do palácio real em Susa, confirmada por escavações recentes, a narração cheia de vida, colorido e particularizada, a ausência de todo anacronismo, a reiterada referência aos anais oficiais do reino (2,23;6,10,2); o próprio fato da celebração da festa dos purim, desde tempos imemoriais, como foi dito acima, fato que, sem dúvida, deve sua origem a algum evento extraordinário na vida da nação hebraica; e não se tem provas para indicar outro qualquer, a não ser exatamente o que vem narrado neste livro.

Page 43: BIBLIA AVE MARIA

Pode-se ter como provável que, sobre um fundo comum, oral ou escrito, foram inicialmente redigidas: a narração hebraica atual e uma redação grega mais ampla; feita depois a tradução grega da narração hebraica, passou ela a ser adotada, inserindo-se as seções excedentes da redação grega, isto é, as seções deuterocanônicas. Assim chegou-se a atual versão grega, ao que parece, por obra do Lisímaco.

No que tange ao gênero literário, já S. Jerônimo notava grande diferença entre as duas redações, hebraica e grega, diferença que tem suas raízes profundas nos costumes estilísticos das respectivas literaturas.

Mas, seja qual for o modo de pensar em torno disso, nenhuma das duas composições do livro de Ester tem por finalidade única recordar a origem da festa de purim, e sim também, e mesmo preponderantemente, mostrar os cuidados que Deus teve por seu povo naquele terrível transe da sua história sob a dominação persa; e bastaria isso, sem dúvida, para levar-nos a apreciá-lo altamente.

Costuma-se lamentar sobre o livro o nacionalismo acanhado dos protagonistas hebreus e a sua dureza para com os adversários. Decerto, os seus sentimentos e atos estão assaz afastados da abertura de coração e mansidão do espírito cristão. Mas, cumpre julgar os homens pelo seu tempo. Em todas as épocas, até nos tempos modernos, acontecem casos de crueldades Incompreensíveis.

Page 44: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO I MACABEUS

O título de I ou II Macabeus deve ser tomado em sentido totalmente diferente de I ou II Samuel, ou Reis ou Crônicas. Nestes últimos, que formam uma única obra literária, a divisão em dois livros é artificial, arbitrária e nada original, ao passo que os dois livros dos Macabeus são duas obras originariamente distintas. Tomam o nome de Judas, apelidado Macabeu, figura central da história que narram (1Mac 2,4). O objeto comum dos dois livros é a libertação da nação judaica do jugo dos se-lêucidas, os soberanos gregos do mais vasto dos reinos surgidos após a divisão do império de Alexandre Magno. O primeiro livro abrange um período de 41 anos (175-135 a.C), ou seja, desde o início do reinado de Antíoco IV Epifanes (175-163) até ao assassínio de Simão, chefe do novo estado judaico (135 a.C). O segundo inicia-se um pouco antes, desde os últimos dias de Seleuco IV Filópator, predecessor de Antíoco Epifanes, mas vai somente até a morte de Nicanor, general do rei se-lêucida, no ano 161 a.C, pouco tempo antes da morte heróica de Judas Macebeu, abrangendo assim um período de cerca de 15 anos. Em extensão de tempo, o l

o livro alcança quase o

triplo do 2°, mas na narração do período comum é quase um quarto mais breve (IMac 1-7; 2Mac desde 4,7 até o fim). O seu conteúdo, depois de expostas, à guisa de introdução, as causas e as origens da insurreição judaica, divide-se

facilmente em três partes, correspondendo cada uma ao governo respectivamente dos três irmãos Macabeus.

Do epílogo pode-se deduzir que o autor, cujo nome e profissão se desconhecem, escreveu o livro no tempo de João Hircano (134-103 a.C); isto é, em tempos não muito afastados da ocorrência dos acontecimentos narrados; sendo, portanto, muito provável que tenha tido acesso a fontes e a testemunhas diretas. Cita doze documentos oficiais por extenso: cartas entre chefes de estado (12,5-23; 14,20-23), indultos dos reis (10,17-45; 11,30-37; 13,36-40; 15,2-29), documentos cuja exatidão estilística e diplomática foi recentemente demonstrada mediante o confronto com papiros e inscrições daquela época.

Outra prova da exatidão do autor sagrado são as freqüentes datas precisas de cada acontecimento (1,10.54.59; 2, 70; 4,52; 6,20.49; 7,1.43; 9,3.54 etc.) Conta os anos segundo a era dos gregos (cf. 1,10), outrora dita dos Selêucidas, que começava oficialmente no ano 312 a.C; mas para os acontecimentos especificamente judaicos emprega o início do ano no equinócio da primavera (cf. 4,52; 10,21); o que demonstra que toma as datas de documentos oficiais, de fontes de primeira ordem. Tudo isso nos leva a concluir quão importante seja o valor histórico deste livro.

Page 45: BIBLIA AVE MARIA

A obra revela a índole da antiga literatura hebraica, em estilo simples e conciso, elegante e nervoso no conjunto, mas, às vezes, se alonga em lamentações, descrições e júbilos de colorido poético (cf.1,25-28.37-40; 2,7-13; 3,3-9.45; 14,4-15), também essas recolhidas, com reservas embora, das fontes orais ou escritas, das quais o autor se serviu. Escreveu em hebraico, mas o original, que são Jerônimo ainda conseguiu ter em mãos, perdeu-se; para nós ocupa-Ihe o lugar uma antiquíssima versão grega.

O espírito que perpassa toda a narração é um apego fervoroso à religião tradicional e à santa lei de Deus, com cordial adesão à dinastia sacerdotal que havia restituído a liberdade religiosa e civil ao povo hebreu. A intervenção divina é notória e marcante através do livro inteiro. Não obstante, nunca se lê o nome de Deus ou Senhor. Em substituição, o autor sagrado emprega uma dúzia de vezes o vocábulo "Céu" (note-se especialmente em 4,24, a antífona ou estribilho tão freqüente nos Salmos e em outros livros: 2Crôn 5,13; 7,3; 20,21; Jer 33,11; Esdr 3,11; Dan 3, 89). É uma forma de religioso respeito para com o augusto nome de Deus, que passou também para a linguagem do Novo Testamento. Em conjunto, pelas suas eminentes qualidades históricas, literárias e religiosas, este livro é tido com justiça como uma pérola do cânon católico da Sagrada Escritura.

Page 46: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO II MACABEUS

O segundo livro dos Macabeus, conforme, testemunho do próprio autor (2,23), é o resumo de uma obra mais vasta, composta de cinco livros, que não chegou até nós, e de autoria de Jasão de Cirene, autor, de resto, completamente desconhecido, como desconhecidas nos são as características de sua obra. Podemos, todavia, compreender perfeitamente que um historiador de certa importância pudesse surgir de Cirene, na África do norte, porque não ignoramos que no séc. I a.C. existia ali uma florescente comunidade judaica. As informações que Jasão possuía — segundo o que podemos deduzir do resumo fiel — especialmente as notícias minuciosas e exatas sobre certas particularidades da história dos Selêucidas, informações precisas sobre títulos, cargos etc, nos levam a crer que tenha consultado arquivos palestinenses e ouvido boas testemunhas. É sabido, com efeito, que os judeus cultos da época costumavam empreender tais viagens e pesquisas. Memórias escritas já haviam sido recolhidas por Judas Macabeu (2,14); e, por ocasião das festas da Dedicação e de Nicanor, não deviam faltar os habituais rolos narrativos para uso "litúrgico". As interessantes cartas dos cc. 9 e 11, agora ilustradas por descobertas papirológicas, provêm de arquivos.

A exatidão das notícias, que Jasão só poderá ter recolhido por via oral,

leva-nos a crer que as tenha escrito quando ainda vivas as testemunhas oculares dos fatos, e que, portanto, sua obra tenha sido escrita nos últimos 20 anos do séc. II a.C.

Ignoramos também o autor do resumo, isto é, do presente livro. Reve-la-se-nos ele como homem de índole piedosa, zeloso da sua fé e do seu templo, amante das memórias pátrias e profundo conhecedor da retórica grega (cf. especialmente o prólogo e o epílogo), muito estudada naquela época.

Faltam-nos provas para afirmar que toda a obra original tenha sua parte representativa no compêndio também e, em que relação estejam, quanto à extensão, as duas obras. Parece que o autor do resumo não seguiu um critério constante de composição.

Quanto ao conteúdo, a obra relata essencialmente os feitos de Judas Macabeu, precedidos, porém, de uma longa apresentação das condições em que surgiu a revolta, e, antes ainda, de duas ou três cartas de judeus de Jerusalém aos do Egito, documentos que não têm por fonte Jasão e. que talvez nem mesmo tenham sido apostos ao livro pelo autor do resumo, mas são de autenticidade comprovada.

No tocante à inspiração, o livro oferece possibilidades especiais de observação, além de no prólogo e no epílogo, na abundância de citações documentadas. Quanto a estas, aplica-se o princípio comum em tais

Page 47: BIBLIA AVE MARIA

casos: o autor garante que o documento foi realmente escrito, e nas circunstâncias em que ele o coloca; pelo simples fato de citá-lo, porém, não lhe garante o conteúdo (STO AGOSTINHO, A Orósio contra os Priscilianos, 9). Isto é, esses documentos não são em si inspirados, ao passo que é inspirada a sua inserção no texto sagrado. O resto do texto está nas condições costumeiras dos livros históricos; inspirado é o texto grego, não, porém, a obra de Jasão, que ele compendia. O livro não era geralmente reconhecido como sagrado pelos judeus palestinenses, que consideravam encerrado o cânon no tempo dos Macabeus. Mas era tido como tal em Alexandria, bem como os demais deuterocanônicos, e nesta qualidade passou à Igreja.

O livro contém ensinamentos já no próprio espírito com que foi escrito, espírito de entusiasmo pela liberdade do povo, de fé na providência divina, de piedade. Diretamente, e com palavras de profunda convicção religiosa, são ensinados, de modo particular, alguns pontos: a ressurreição da carne (cf. especialmente 7,11;

12,43-44; 14,46), a eficácia do sacrifício e da oração pelos defuntos e da oração dos santos por aqueles que ainda militam na terra (12,43-45; 15,12-16), a existência dos anjos e suas intervenções, também com efeitos miraculosos, em auxílio do povo de Deus, nos momentos mais críticos.

Page 48: BIBLIA AVE MARIA

LIVROS POÉTICOS

Os Salmos, Jó e os Provérbios, nas Bíblias hebraicas, formam um grupo à parte, com a denominação de Livros poéticos. No uso comum, cristão e moderno, porém, acrescenta-se-lhes também o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, o livro da Sabedoria e o Eclesiástico ou Jesus de Sirac; e é freqüente entre os Padres gregos bem como entre os autores modernos, estender a todos o nome de Livros poéticos. E com razão; pois o Cântico dos Cânticos e o Eclesiástico são escritos em versos como os Provérbios. O Eclesiastes e o livro da Sabedoria possuem, outrossim, forma poética, embora menos rigorosa. Trata-se, portanto, de um elemento comum a todos esses livros. São também chamados livros didáticos ou sapienciais, por falarem muito de sabedoria. Mas o título de sapienciais é reservado especialmente aos últimos cinco livros (Prov, Ecl, Cânt, Sab e Eclo); os salmos são na máxima parte de gênero lírico, sem, todavia, lhes faltar o elemento didático; o gênero do Cântico dos Cânticos é exclusivamente o lírico. De resto, lírico e didático são os dois gêneros de poesia cultivada pelos hebreus.

O que caracteriza toda a poesia hebraica é o chamado paralelismo. Ordinariamente, o verso compõe-se de dois membros ou hemistiquios, o segundo dos quais forma certa simetria com o primei-do, ora repetindo com outras palavras o conceito (paralelismo sinonímico), como, por exemplo:

"Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó do meio dum povo bárbaro, Deus consagrou ao seu serviço o povo de Judá, e estabeleceu em Israel o seu império; (SI 113,1-2); ora destacando o mesmo conceito por meio de contrastes (paralelismo antitético), como, por exetriplo: "Um filho sábio é a alegria de seu pai, porém um filho insensato é a tristeza de sua mãe" (Prov 10,1). O segundo hemistiquio não é, às vezes, a repetição, e sim o complemento do primeiro (paralelismo sintético ou progressivo), como, por exemplo: "Com a minha voz clamei ao Senhor, e ele ouviu-me do seu santo monte" (SI 3,5). A observância dos paralelismos ajuda a compreensão do verso, visto que a segunda parte repete e, muitas vezes, esclarece obscuridades ou figuras contidas no primeiro hemistiquio. Por exemplo: Sab 33,6 o "sopro da boca" de Deus não é senão a sua "palavra", o "fiat" da criação (cf. v. 9); SI 71,1 "o filho do rei" não é pessoa diversa do "rei" do primeiro hemistiquio. Deve-se notar de maneira especial que freqüentes vezes os dois hemistiquios paralelos apresentam cada um uma parte e aspecto da idéia, e unidos formam um só conceito. Destarte o citado Prov 10,1 quer significar que o filho sábio é a glória dos pais, ao passo que o insensato causa-lhes tristeza. Assim no SI 91,3 proclamar pela manhã a bondade de Deus, e pela tarde a sua fidelidade tem o sentido de: exaltar dia e noite a liberalidade constante de Deus.

Muito se disputou nos últimos tempos se o verso hebraico tenha um determinado ritmo e qual, sem contudo se ter chegado a um acordo entre os estudiosos a respeito. Mais solidamente provadas parecem estas normas: 1° O verso, ou melhor dito, o hemistiquio hebraico, deve ter um determinado número de sílabas acentuadas, nada mais. 2o O número de sílabas acentuadas varia de duas a cinco em cada hemistiquio. 3° Quando o hemistiquio possui cinco acentos, ordinariamente entre o terceiro e o quarto interpõe-se uma cesura, resultando assim um ritmo elegíaco (com dois períodos de comprimento desigual). 4° Entre as duas sílabas acentuadas estão em geral uma, duas ou três não acentuadas. Portanto, o número de sílabas num verso ou hemistiquio ê indeterminado, mas conservado dentro de certos limites.

A observação exata desse ritmo é de grande utilidade para a pontuação, isto é, a divisão entre os hemistiquios e também entre os versículos, que não raro são mal distinguidos, inclusive na divisão massorética, introduzida pelos mestres hebreus, e geralmente seguida, como se pode ver em Jó 15,23-24.31-32; 16,7-8; 19,14-15, ou nos SI 16,3-4;30,11-12;39 7-9; 64.2-4 etc. Conseqüência dessa atenção às exigências do ritmo é a restituição da composição do poeta sagrado a toda a sua natural beleza e a projeção de uma luz intensa para a compreensão do seu pensamento, animado pelo sopro divino.

Page 49: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A JÓ

O livro, que recebe o título de Jó, do nome de um protagonista, pode ser considerado com toda justiça um dos mais belos poemas da literatura mundial. Tema apaixonante, drama a um só tempo profundamente humano e divinamente sublime, é desenvolvido com tal riqueza de colorido, vigor de afeto e tantos artifícios de forma, que ê permitido afirmar que nele o idioma hebraico exauriu a sua facúndia, e a arte, o seu estilo. Na verdade, a ação é simples. Um homem de proceder irrepreensível é alvo de infortúnios de toda sorte, ao ponto de não lhe restarem senão poucas carnes semicorrompidas a cobrir-lhe o esqueleto. Alguns de seus amigos, vindos para consolá-lo, vêem nesse cúmulo de sofrimentos a prova tangível de gravíssimos pecados, pelos quais ele o teria merecido, e o exprobam. Jó, paciente, protesta a sua inocência, sem, porém, conseguir vencer os preconceitos dos seus acusadores. O próprio Deus parece surdo aos brados dilacerantes do infeliz Jó, cujo espírito é torturado ainda mais do que a sua carne. Contudo, sua fé na bondade da própria causa e na justiça de Deus não desfalece, e, superada a prova, Deus intervém para defendê-lo e para restituir-lhe a antiga prosperidade. A conclusão é que, embora por uma misteriosa e sábia disposição divina, às vezes também os justos sofrem sem culpa nenhuma; e que, finalmente, Deus recompensa a virtude desconhecida pelos homens. O objetivo do livro é a discussão, concretizada num fato, em tomo da razão e da origem ontológica da dor. A discussão, desenvolvida em forma de diálogo entre Jó e seus amigos, e em versos de esmerada feitura, constitui a parte principal e como que o corpo da obra, o poema propriamente dito (3-41). Precede a introdução em prosa (1-2) e encerra-o um epílogo, também em prosa (42), à guisa de coroamento. Esse o grandioso drama, no qual uma rara profundidade de sentimentos, unida a uma incomparável beleza literária, mantém-se até ao toque final. A diferença entre o Jó paciente e resignado (1-2) e o Jó queixoso e agressivo (3-31) explica-se pelos gêneros literários diferentes das seções. Os discursos de Eliú (32-37) podem ter sido inseridos posteriormente, para completar o assunto, deixado sem solução nos capítulos anteriores. O mesmo se diga quanto à teofania (38-41).

Quem foi o autor desta obra maravilhosa? Ante o silêncio completo do próprio texto, as conjeturas não tem conta. Um dos grandes profetas pré-exílicos? Estariam a seu favor o estilo e a linguagem. Um dos sábios doutores da lei pós-exílicos? O assunto e o modo de dialogar justificariam essa suposição. Seja como for, o autor foi um dos grandes representantes da língua e do pensamento do povo hebraico. Da natureza poética do livro se segue que não se deve insistir na veracidade histórica de cada passo da discussão. Além disso, a própria índole do diálogo supõe que o autor não tenha querido aprovar todas as idéias expressas pelos interlocutores. A chave da composição conexa está em 42,1-8: Jó, embora tendo um conceito elevado de Deus, pecou por presunção e violência; aos seus amigos, pelo contrário, faltou o conceito adequado de Deus e de sua Providência. O prólogo e o epílogo são ficções literárias. Discute-se a historicidade da pessoa de Jó; a opinião mais plausível é a de que também seja uma personagem fictícia, pois o objetivo da obra não é contar a história de um sofredor, e sim, oferecer uma solução e um consolo a todos os que sofrem. A cena passa-se nas fronteiras entre a Idumêia e a Arábia. A antigüidade cristã venerava a terra de Jó nas vizinhanças de Carnaim, hoje Cheh Sa'ad, na Batanéia (cf. IMac 5,26), onde subsistem reminiscências na toponomástica local. Jó raras vezes é mencionado no resto da Sagrada Escritura. Em Ez 14, 14.20 é posto entre os homens renomados pela sua justiça e virtude. Em Tob 2,12-15 (segundo a Vulgata) e em Tg 5,11 é proposto como exemplo de paciência heróica. Com efeito, a paciência de Jó tornou-se proverbial. Se hoje, à luz da doutrina evangélica, encontramos motivos de conforto bem mais eficazes do que os que Jó podia encontrar na luz imperfeita da razão e mesmo da antiga lei, tanto mais valem a sua heróica resignação e constância sob o peso de tamanhas desgraças.

Page 50: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS SALMOS É uso vindo das Bíblias gregas e latinas, chamar Salmos aos cânticos sagrados que os hebreus, e também os gregos e os latinos, bem como as nossas antigas vulgarizações, com mais propriedade intitulam hinos. São poesias religiosas de argumentos variados, o mais das vezes orações ou louvores a Deus. A coleção desses hinos, chamada, por analogia, Saltério, nas Bíblias hebraicas divide-se em cinco livros, separados entre si pela doxologia ou aclamação ("Bendito seja o Senhor" etc.), que se lê no final dos salmos 41,72,89,106. Mas é divisão recente, introduzida, ao que parece, por volta do séc. III a.C. Em tempos mais remotos, compunha-se de três grandes coletâneas, que se distinguem pelo emprego dos nomes para invocar a divindade. A V (salmos 1-40) e a y (91-150) empregam Senhor (hebr. "Javé"), a 2? (41-88), Deus (hebr. "Eloim").

Distinguem-sé ainda pelos nomes dos autores, que cada salmo traz no cabeçalho. Na 1', quase todos os salmos, exceto 1,2,32, são intitulados de Davi; na 2* são três séries, intituladas, respectivamente, dos filhos de Coré, ou coreí-tas, de Davi e de Asaf; na 3- quase todos os salmos são anônimos. Com os títulos, varia também o teor geral do argumento.

Os salmos atribuídos a Davi são, em máxima parte, pedidos de auxílio em todas as aflições, de modo especial nas enfermidades e nas perseguições. Os cantos dos filhos de Coré, conforme sua condição de levitas (cf. Núm 16,1), têm por tema central o culto, o templo, a cidade santa. Os de Asaf são cânticos nacionais ou didáticos, que celebram o triunfo ou deploram as derrotas de todo o povo, ou têm por fim ensinar verdades morais. A coleção anônima compõe-se na maioria de hinos de louvor ou de ações de graças ao Senhor. Nela sobressai também uma coletânea partícula} de salmos breves, chamados graduais (119-133), de índole levítica. Do exposto infere-se que a atual coleção de salmos ou Saltério, foi se formando aos poucos, desde os tempos de Davi (cerca de 1000 a.C.) até depois de Neemias (cerca de 400 a.C). Em todo esse longo período, em todas as gerações, os piedosos poetas, inspirados por Deus, transfundiram nos salmos os seus santos afetos, suas fervorosas súplicas, os transportes de sua alma profundamente religiosa. Destarte, recolhendo o Saltério o eco de todo um povo e de tantos séculos, era, por natureza, apto a se tornar, como de fato se tornou, o livro de orações, o manual de piedade, primeiro para a Sinagoga israelita, depois para toda a Igreja cristã. Muito importantes, relativamente aos nossos conceitos, são dois vocábulos que raramente aparecem nos títulos, mas são freqüentes no texto dos Salmos: "tefilã = súplica" e tehilã = louvor". É assim que são designados os gêneros mais freqüentes dos Salmos. No primeiro, na súplica, que compreende mais de um terço de todo o Saltério, um indivíduo ou (mais raramente) a nação, assaltado por males de toda a espécie, recorre a Deus para deles se livrar. Destarte, na sua abundância e variedade, os salmos oferecem modelos de oração para todas as circunstâncias da vida humana. O outro gênero, de louvor ou hino a Deus, era indicado de maneira especial para o culto público nas funções religiosas do templo e está concentrado sobretudo nos livros IV e V. Em menor número são os salmos didáticos ou sapienciais e morais, cheios dos mais diversos ensinamentos para a vida, e os salmos históricos, que rememoram, para exaltação de Deus ou ação de graças, ou para ilustração dos pósteros, os grandes acontecimentos da vida nacional. Restam ainda salmos que escapam a qualquer categoria, tão grande é a variedade desta nobilíssima antologia de poesia religiosa. Para melhor lhe saborear toda a beleza e experimentar a eficácia, esforce-se o leitor por se apossar dos sentimentos e afetos expressos pelo texto sagrado. Se alguma passagem, como nos chamados salmos imprecatorios (58-69; 83; 109), parece dura e chocante para almas acostumadas à suavidade evangélica (cf. Mt 5,43), lembremos o zelo puro pela justiça e honra de Deus que animava os autores sagrados (cf. 5,11; 69,10; 139,21), e poderemos manifestar para com o pecado todo o rigor da antiga lei, ao passo que reservaremos toda a caridade e a misericórdia da nova lei para o pecador.

Page 51: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS PROVÉRBIOS

Entre os hebreus, como em todas as nações, eram correntes os provérbios vulgares, patrimônio comum da sabedoria popular. Por exemplo: "Dos maliciosos procede a malícia" (1Sam 24,14) ou: "Tal mãe, tal filha" (Ez 16,44). Bem superior a este gênero popular eleva-se o provérbio douto, o "masar

5 dos

sábios, fruto da reflexão, digamos, filosófica. Ê uma sentença breve e conceituosa que, sob forma sutil e freqüentemente figurada, dita ensinamentos úteis para a vida. Sua origem e nome parece ter sido a semelhança ou comparação (tal o sentido primitivo da palavra "masal"; exemplos: 26,1-2), passada, portanto, para o sentido de comparação ou semelhança abreviada (p. ex., 25,25-26) para a antítese (10,1-5) e, enfim, para o dito sentencioso em geral. Na sua expressão mais pura, consta de duas frases ou hemistíquios paralelos, o segundo dos quais corresponde ao primeiro numa das diversas maneiras de paralelismo poético. É a forma com que se expressava comumente a filosofia elementar e prática dos hebreus, conhecida com o nome de "Sabedoria". Os escritos em que foi consignada formam a literatura propriamente sapiencial, que podemos chamar de poesia gnómica. Composto em grande parte desses ditos, em forma de masal, é deles que toma nome o presente livro dos Provérbios. O argumento e a finalidade estão claramente expostos nos versos iniciais (1,1-6).

Observando-se com atenção, notar-se-á sem dificuldade que o fundo ou corpo do livro é formado por duas coleções de sentenças salomônicas (10,1-22, 16 e 25-29), às quais os capítulos 1-9 servem de introdução e que as outras coleções menores constituem, às vezes, como que apêndices. Esta a razão por que o livro, tomando o nome do autor principal, é chamado, no título (1,1), e com ele na linguagem eclesiástica, Provérbios (ou sentenças) de Salomão. Este breve esboço pode dar uma idéia da riqueza e da variedade que este livro apresenta sob o duplo aspecto da matéria e da forma. Pode-se dizer que à vida toda da antiga sociedade israelita é passada revista, analisada, julgada segundo uma moral toda impregnada de bom senso e praticidade. As fontes desta moral são a experiência e a religião. Da experiência, mestra da vida, o autor sagrado tira lições práticas, ou recolhe simplesmente os fatos (20,4). A religião, ainda que não seja sistematicamente exposta, quer nos seus fundamentos dogmáticos, quer nas suas práticas cultuais (em geral os Provérbios não querem ser uma exposição sistemática da moral, mas sim ditames práticos), todavia é sempre pressuposta, ou, é posta como base de toda a moral (1,7;9,10; 14,2 etc.) e declarada fonte de toda a verdadeira felicidade (14,26-27; 15,16). Muitas e muitas vezes são inculcados nesta obra

Page 52: BIBLIA AVE MARIA

os grandes fundamentos de uma moral íntima, forte e convicta, como, p. ex., a de que Deus tudo vê (5,21; 15,3-11), tudo toma em consideração até os mais recônditos sentimentos do coração (16,2; 17,3), tudo governa (20,12-24;22,2;29,13) e tudo pode (19,21;21, 30); que longe de Deus não pode haver bem (15,29), que entregar-se a ele é encontrar a força, a sabedoria, a alegria (3,5; 16,20; 18,10 etc). Quanta eficácia na simplicidade da expressão do motivo tão freqüentemente repetido para afastar do vício: "desagrada a Deus, Deus o abomina" (3,32; 11,1-20; 12,22;24,18 etc.)! É com razão, portanto, que a Igreja considera os Provérbios uma pérola entre os livros inspirados por Deus. Evidentemente, não podemos esperar encontrar nos ditos do Sábio toda a sublime elevação da moral evangélica, mas são-lhe uma boa preparação, e não raro muito se lhe aproximam. Razão por que freqüentemente os apóstolos e o próprio Jesus Cristo repetiram formalmente os Provérbios (Jo 7,38; Rom 12, 20; Tg 4,6) ou os seus ensinamentos (cf. Lc 14,10 com Prov 25,7; 1Pdr 4,8 e Tg 5,20 com Prov 10,12).

Page 53: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO ECLESIASTES

Singular entre todos os livros do Antigo Testamento é, sob diversos aspectos, o presente. Seu título, Eclesiastes, é a tradução grega do nome hebraico, que no próprio texto designa-lhe o nome, isto é, Cohelet, particípio (feminino) do verbo "cahal", cujo significado é "reunir, convocar". É porque em grego "ecclesiastes" significa também "orador que fala na assembléia", certo tempo acreditou-se que esse livro fosse um discurso, um sermão feito ao povo israelita em assembléia pública. Mas, na realidade, o presente opúsculo nada tem de oratório, e deve ser incluído no gênero de filosofia fragmentária, que, com o título de "Pensamentos", é conhecida também nas literaturas profanas, antigas e modernas. Dada essa índole geral do livro, não causará maravilha o fato de não se encontrar nele uma ordem estritamente lógica no desenvolvimento das idéias. Os intérpretes também discordam entre si na divisão das diversas matérias. O Eclesiastes é misto de reflexões em prosa e de sentenças em versos. São seis ordens de reflexões intercaladas por cinco grupos de sentenças, com um prólogo que precede o corpo da obra e um epílogo que o encerra. O argumento geral da reflexão é a vaidade das coisas humanas; a insensatez da excessiva solicitude pelos bens terrestres, marcadamente as riquezas e os prazeres; a moderação em todas as coisas, quer na busca do bem-estar e da própria virtude, quer na fruição das alegrias que Deus difundiu na vida presente. O livro todo é matizado de suave colorido de serena melancolia e profunda compaixão pelos sofrimentos humanos, o que o torna poderosamente simpático. Sua doutrina valeu-lhe a tacha de cético e epicureu, mas não passa de julgamento superficial e errôneo. Não obstante Cohelet deplore em muitos pontos a ignorância humana, causa de não poucas aflições, e a impotência da razão para solucionar os mais cruciantes problemas da vida e para dar a felicidade plena, não nega, todavia, a possibilidade de chegar a certo conhecimento de muitas coisas, e, sobretudo, tem uma fé inabalável em Deus e na sua ação no universo e na sociedade humana. Convidando-nos a gozar dos bens desta vida com a devida moderação, honestidade e gratidão para com o Doador, bem longe está de pôr o fim da existência no prazer, e ensina também uma virtude, se bem que nem toda a virtude. Sua moral não é perfeita, como tampouco o era a lei antiga (Hebr 7,19), mas ê sadia e proporcionada aos tempos do autor. Ainda hoje ela é capaz de inspirar magnânimos propósitos a um coração cristão. A linguagem e o estilo do Eclesiastes distinguem-se entre todas as páginas do Antigo Testamento pelos vocábulos e construções de uma era bastante tardia, e formam como que a transição entre o hebraico da era clássica e o do Talmude (sêc. II-V d.C). Muito se discutiu sobre quem seja o autor. Pode-se ao certo, dizer que foi um mestre de sabedoria popular (12,9), e que Cohelet foi seu nome literário ou acadêmico, e não próprio. Outra questão ainda debatida é se na composição do livro além de Cohelet tenham tomado parte outras mãos (unidade ou pluralidade de autores). Pode-se facilmente conceder que o epílogo (12,9-14) tenha sido acrescentado pelo editor do livro, presumivelmente um discípulo do próprio Cohelet. Mas será necessário, para explicar a variedade e às vezes o choque de sentimentos que se notam em todo o livro (cf. p. ex., 2,15-17 com 7,19-24;3,6-19;7,2-4 com 2,2 e 8,15;8,10-13;11,9), supor, como o fazem alguns modernos, que no opúsculo, radicalmente pessimista e deleitoso de Cohelet, outros, como, p. ex., um sábio ou piedoso fiel, tenham inserido sentenças morais, a fim de temperar-lhe a crueza? Não parece; o gênero literário dos "Pensamentos" e o humor pessoal de Cohelet, levado a refletir sobre os vários aspectos das coisas humanas e a passar de um a outro afeto, bastam para dar uma explicação adequada aos vários matizes que no Eclesiastes se alternam ou temperam, aumentando-lhe o valor e a atração. Ademais um mesmo é o estilo, tão característico no livro inteiro; mesmo é o Espírito, que lhe garante cada palavra.

Page 54: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO CÂNTICO DOS CÂNTICOS

O Cântico, ou, como de costume se traduz literalmente do hebraico, o Cântico dos Cânticos, apresenta-se-nos na estrutura de pequeno poema, entre o lírico e o dramático, no colorido de um idílio e com o teor de um cântico de amor, qualidades essas que lhe conferem um lugar todo particular nas Sagradas Escrituras, ao passo que pela elegância literária deve ser posto entre as mais preciosas páginas da pura poesia hebraica. Se, porém, cantasse propriamente amores profanos, não teria sido por certo jamais inserido entre os livros inspirados das Escrituras. Foi, portanto, tradição constante e unânime da Sinagoga judaica, como o é da Igreja cristã, que no Cântico, sob a alegoria de amores profanos, celebrase o amor mútuo entre Deus e seu povo, entre Deus e o fiel piedoso. Somente o racionalismo moderno tentou despojá-lo dessa auréola divina, reduzindo-o a um eco de simples amores profanos. Com essa atitude, porém, ele levantou para si uma barreira que lhe impede a reta compreensão do livro. A alegoria, admitida comumente por cristãos e judeus, não foi, porém, interpretada de igual maneira, e há muitos e diversos sistemas de interpretação. Destas, a que se segue parece, a um só tempo, a mais simples e a que melhor corresponde aos dados intrínsecos do livro e às condições históricas do antigo Israel. A ação do Cântico é uma parábola e um contraste: uma parábola de fundo idílico, e um contraste entre duas vidas, entre dois amores. Uma ingênua pastorinha, alcunhada a Sulamita (6,12; 7,1), ama intensa e ternamente um jovem pastor, seu coetâneo e conterrâneo, pelo qual é cordialmente correspondida no amor: os dois protagonistas são chamados, no texto, "amado" e "amiga" respectivamente (só em 4,8-9, "irmã" ou "esposa"), mas pelo uso comum também "esposo" e "esposa". O afeto mútuo ê estreitado pelo arroubo comum diante da vida inocente dos campos e ante o encanto da natureza virgem. Ê o idílio. Com esta vida simples e pura, contrasta a vida da cidade com suas comodidades, a corte com suas seduções, um rei potentado (simbolizado aqui e ali por Salomão, o mais rico e faustoso monarca que a história de Israel conheceu), o qual desejaria atrair a jovem pastora ao seu amor, à honra de ser sua consorte. Mas a generosa donzela recusa desdenhosamente as ofertas do rico soberano e sente-se satisfeita com a vida simples dos campos, desejando permanecer para sempre fiel ao seu pastor, único objeto dos seus castos amores. Isso tudo entremostra a alma de Israel posta em risco entre a fidelidade à sua religião austera e os deslumbrantes esplendores da civilização pagã; entremostra toda alma fiel, atraída pelos amores antagônicos de Deus e do mundo. De fato, embora o povo de Israel, pela sua doutrina religiosa e moral, superasse incomparavelmente qualquer outro povo da antigüidade, é, todavia, inegável que, na civilização material e em poderio político, ficava muito aquém dos poderosos impérios vizinhos do Egito, da Assíria, da Grécia, com os quais a sua história o colocou num contato quase contínuo. Essa esmagadora superioridade das nações pagãs podia ser um escândalo para as almas fracas, podia, pelo menos, perturbar as almas piedosas, e debilitar, se não abalar, o seu apego a Deus, à religião avita. Dão--no-lo a entender não poucas páginas da Sagrada Escritura, como Dt 17,14-20; 2Rs 18,17-37; Jer 2,18; Bar 6; IMac 1,12-15. O próprio Salomão, que promoveu mais do que qualquer outro a cultura civil em Israel e imitou o fausto e a moleza das cortes orientais (lRs 10, 14-11,13), e foi, sem dúvida, um sério perigo para a religião. A fim de fortalecer os espíritos no amor ao culto severo dos antepassados, e para precavê-los contra a sedução da deslumbrante civilização pagã, o Cântico descreve, nos seus castos e jucundos amores da Sulamita para com seu amado, a felicidade do povo eleito na fidelidade ao seu Deus.

Page 55: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO À SABEDORIA Entre todos os livros didáticos do Antigo Testamento, o presente traz por excelência o título de Sabedoria porque canta mais longamente e com acentos mais sublimes do que qualquer outro o elogio da verdadeira sabedoria, que tem por objeto a verdadeira religião e a virtude, mas o seu princípio no próprio Deus. Este conceito liga, como fio de ouro, numa maravilhosa unidade, as variedades notáveis das cinco partes, sensivelmente iguais, que compõem o livro.

1- Admoestação a praticar a justiça e a religião, e como motivo para assim agir, a oposição entre a sorte final dos bons e dos maus, prêmio dos justos e castigo dos ímpios na vida futura (1-5).

2- Elogio da Sabedoria pelas suas qualidades intrínsecas e pelos bens que proporciona ao espírito humano. Fala Salomão (6-9).

3- Qualidades da Sabedoria patenteadas na história sagrada; bens que a Sabedoria trouxe aos patriarcas desde Adão até Moisés (10-12).

4- Origem, insensatez e imoralidade da idolatria (13-15): animismo (13,1--9); fetichismo (13,10-14,11); divinização de homens (14,12-20); corrupção profunda (14,21-31); a religião de Israel e o politeísmo egípcio (15). Ao tomar e desenvolver o seu argumento, o autor sagrado teve por finalidade imediata confirmar na fé e na prática da santa religião os judeus do Egito, sustentá-los nas opressões, que por causa dela deviam sofrer, e preservá-los da sedução, que sobre eles podia exercer a brilhante civilização pagã sob a dinastia grega dos Ptolomeus.

Com efeito, não pode haver dúvidas de que o livro foi escrito primitivamente em grego, idioma usado pelos judeus do Egito, especialmente em Alexandria, nos últimos séculos que precedem a era vulgar. Nota-se nele não só o colorido grego da língua e do estilo, mas também o reflexo das escolas filosóficas e dos costumes da douta Grécia pagã. Estes reflexos indicam aproximadamente a época em que viveu o autor, fá que no seu tempo (como se releva de 2,10-3,4; 5,1) os judeus tinham que sofrer bastante, quer da parte dos pagãos, quer dos seus correligionários apóstatas, podemos precisar esta época um pouco melhor. Ê historicamente fundado o fato de que nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.) tiveram lugar no Egito sublevações populares contra os judeus. O livro, portanto, deve ter sido escrito entre os anos 100 e 50 a, C. Autores houve que pretenderam baixar a idade até à época romana (30 a. C.) e na antigüidade algum escritor, segundo S. Jerônimo (Praef. aos liv. de Salom.), atribuiu-o a Fílon hebreu (cerca de 20 a. C. — 40 d. C.). Mas o livro da Sabedoria versa com demasiada insistência e predileção sobre fatos e costumes especificamente egípcios, para se poder referi-los a povos e soberanos cuja sede não se achava no Egito. Além disso não se pode afirmar que os romanos houvessem "tiranizado o povo de Deus" (15,14) antes de Vespasiano e de Tito (70 d. C.). Também as doutrinas e o estilo diferem notavelmente dos de Fílon. Pode-se, isto sim, colocar o autor do presente livro entre os primeiros e mais ilustres mestres daquela escola judaica de Alexandria, da qual Fílon foi mais tarde o astro mais luminoso. Verdade é que nos cc. 7-9 o autor fala e escreve como se fora Salomão, rei de Israel, que reinou em Jerusalém no séc. X a. C. (cf. lRs 3,5-12) e por isso nos códices gregos o livro tem ordinariamente o título de Sabedoria de Salomão. Mas isto é um inócuo artifício literário empregado nas antigas literaturas, uma espécie de prosopopéia, visando a dar ao discurso maior atração e eficácia, tomando para tanto o tom de insigne personagem antiga. Este artifício humano nada tira à autoridade divina do livro, isto é, à sua inspiração, que é assegurada não só pelo magistério da Igreja, mas também pelo uso que do presente livro fizeram os autores do Novo Testamento, os quais, se o não citaram nominalmente, apropriaram-se de pensamentos e construções que lhe são próprios. Confrontem-se por exemplo, principalmente, Sab 12. 12-22 com Rom 9,19-23; Sab 9,15 com 2Cor 5,4; Sab 3,5-6 com lPdr 1,6-7; Sab 7,25-26 com Hebr 1,3; Sab 7 em geral com Jo 1.

Page 56: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO ECLESIÁSTICO

O presente livro, que na Igreja latina, desde o fim dos primórdios (por exemplo, desde S. Cipriano até ao séc. III) passou a chamar-se o Eclesiástico por excelência, porque o mais notável dos livros lidos nas igrejas para instrução dos catecúmenos ou dos neocristãos, é o mais extenso e o mais rico de ensinamentos entre os livros do Antigo Testamento. Entre os gregos tem o nome de Sabedoria de Jesus, filho de Sirac, ou simplesmente Sirac, do nome de seu autor. No texto original hebraico, segundo testemunho de S. Jerônimo (Prefácio aos livros de Salomão), confirmado por citações de rabinos, chamava-se como o correspondente livro de Salomão, Provérbios do filho de Sirac (cf. 50,27). Mas entre os hebreus era também conhecido, como na versão siríaca, sob o titulo de Sabedoria, comum entre os gregos. Efetivamente, o Eclesiástico (como o chamaremos, segundo o nosso uso) toma o argumento e a divisão da Sabedoria. Distinguem-se nele dez partes, começando todas com o elogio da Sabedoria ou com um hino a Deus, autor de toda a sabedoria; seguem-se dois pequenos apêndices. No fim da 10a parte (50,27), como pós-escrito, o autor dá-nos o seu nome: Jesus, filho de Eleazar, filho de Sirac. O tradutor grego, que certamente andava bem informado, acrescentou-lhe a terra natal: jerosolimitano. Sirá (em grego "Sirac” ) parece mais o sobrenome de família do que de avô; daí o dizer-se muitas vezes sirácida. O tempo em que viveu nos é indicado por duas datas aproximativas. No próprio livro (c. 50), Sirac nos descreve Simão, filho de Onias, o sumo sacerdote, com cores tais, que demonstra muito bem tê-lo visto e admirado ocularmente no exercício de suas sagradas funções. Dos dois sumos pontífices que trouxeram este nome, o primeiro dos quais viveu por volta do ano 300 a.C, e o segundo um século mais tarde, deve-se por certo entender o segundo. Com efeito, o tradutor grego, que no prólogo à sua tradução declara-se neto do autor, informa-nos ter ido ao Egito por volta do ano 38 do reinado do Ptolomeu Evérgetes. Ora, visto que dos dois Ptolomeus que tiveram o nome de Evérgetes (I, 247-222; II, 171-117 a.C.) só o II alcançou e superou o ano trigésimo oitavo de reinado (iniciado em 171 a.C.), assim aquela data leva-nos ao ano 132 a.C. Entre este e a época de Simão II (219-199 a.C.) passam-se exatamente duas gerações, que são as que intercorrem entre avô e neto. Jesus, filho de Sirac, viveu, portanto, entre os séc. III e II a.C, e deve ter escrito o seu livro entre os anos 200 e 180 a.C. Escreveu em hebraico, mas o texto original, visto por S. Jerônimo (Prefação acima mencionada) e muitas vezes citado por escritores judeus da Idade Média, havia séculos estava perdido, até que entre 1896 e 1900 foram encontrados cerca de dois terços do mesmo (3,8--16, 26;30-33;35-fim, além de poucos trechos intermediários) num escaninho de uma velha sinagoga no Cairo em fragmentos de cinco manuscritos diversos. Porém encontra-se num estado formal bem menos satisfatório do que o texto hebraico dos livros protocanônicos. Amanuenses e recenseadores permitiram-se muito mais liberdade ou negligência com o livro de Sirac do que com as Escrituras do cânone hebraico. Por isso maior valor do que de ordinário têm também as duas antigas versões independentes, a grega e a siríaca, especialmente a primeira. O livro foi traduzido para o grego pelo neto do próprio autor, pelo fim do séc. II a.C, como, aliás, ele mesmo nos informa no prólogo da sua versão. Este prólogo é importante, não só porque nos oferece as datas da composição e da tradução do livro, mas ainda porque nos mostra como no séc. II a.C. os livros sagrados do Antigo Testamento já se distinguiam, entre os judeus, nas três ordens que passaram a ser depois tradicionais: lei (Pentateuco), profetas e escritos, e como cada uma dessas ordens estava traduzida, ao menos em boa parte, para o grego. Da versão grega do Eclesiástico, além do texto comum e mais castiço, que se encontra no códice Vaticano 1209 (B), publicado por ordem de Sixto V (1587), eram correntes também, códices dos quais ainda restam, com não poucas edições da primeira parte (1-26). Com base num desses códices foi feita a tradução latina da Vulgata. Bíblia Vulgata Ed. 36.

Page 57: BIBLIA AVE MARIA

O PROFETISMO

Com os profetas, o Antigo Testamento alcança o ápice, seja como valor espiritual absoluto, seja como preparação para o Novo Testamento. Os profetas eram homens que Deus investia diretamente do seu espírito para uma missão espiritual no seio do seu povo, em tempos de perigo ou de necessidade religiosa e moral. Tornavam-se assim, guias espirituais do povo de Israel, pelo mesmo título com que outrora os juízes suscitados por Deus, eram os chefes políticos e militares, os libertadores no tempo de aflição. Embora tenha havido pessoas dotadas de espírito profético desde as origens do povo hebreu (cf. Gên 20,7; Núm 11,25-26; Dt 34,10), contudo, somente a partir de Samuel esses homens inspirados por Deus e por ele enviados ao povo sucedem-se com tal freqüência, que chegam a formar uma cadeia ininterrupta durante cerca de seis séculos (aproximadamente desde 1050 a 450 a.C). Cf. 1Sam 3,1. Considerando o exercício do ministério profético, este longo intervalo de tempo divide-se em dois períodos sensivelmente iguais. Nos três primeiros séculos, isto é, até por volta de 750 a.C. temos os profetas de ação, como, por exemplo, Elias (1Rs—2Rs 2), que pregam energicamente, mas não escrevem, ao passo que os profetas escritores viveram todos nos séculos seguintes: são os profetas cujos vaticínios ou mensagens nos foram transmitidos por escrito. Estes últimos costuma-se dividi-los, com base na extensão de seus escritos, em duas categorias: Profetas Maiores e Menores. Os primeiros são, por ordem cronológica, Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel (sobre este último, porém, confronte-se a introdução ao seu livro. Os Menores, em número de doze, foram por algum tempo reunidos num só volume, em ordem aproximadamente cronológica, ou, ao menos, na que era julgada tal. Objeto da pregação tanto dos profetas de ação como dos escritores, era defender a pureza do monoteísmo ¡avista contra as contaminações ou infiltrações idolátricas, concitar o povo à santidade dos costumes, exigida pela lei divina, combater as desordens sociais, principalmente a opressão dos humildes, opor-se ao formalismo religioso, inculcando o primado do espírito interior sobre os ritos externos, anunciar a cada cidadão e a toda a nação os tremendos castigos de Deus, em conseqüência das culpas cometidas, como também oferecer a perspectiva de um futuro melhor, fruto do arrependimento, porvir radioso, o mais das vezes compendiado em termos esperançosos e genéricos de paz e de salvação. Nesta ordem de idéias, própria dos profetas escritores, apresenta-se-nos a majestosa e cativante figura de um descendente de Davi, mediante o qual se realizarão as venturosas promessas. Ele é o Salvador dos povos, o restaurador da religião e da justiça, o soberano de um reino eterno de paz. Os profetas designam-no com diversos nomes ou títulos: Emanuel, Servo de Javé, Rebento de Davi, Davi por antonomásia, Germe divino etc. Somente uma vez (Dan 9,26) é denominado com o apelativo de Masiahf ou Messias, que mais tarde se tornará termo técnico e pessoal. Compreende-se, assim, como os apóstolos citem freqüentemente no Novo Testamento os vaticínios dos profetas para provar aos judeus que o Messias que eles preanunciaram é o seu Mestre, Jesus de Nazaré. Esse prenúncio constitui o ponto alto da missão dos profetas. Mas não se limita a isso, como, tampouco, à predição do futuro em geral, se limitaria a missão própria dos profetas, como erroneamente poder-se-ia deduzir deste vocábulo vernáculo, derivado do grego. Em hebraico, o termo correspondente é "nabi", que, propriamente, significa um arauto (da divindade), um mensageiro. Os profetas eram, pois os porta-vozes de Javé, que transmitiam ao povo aquilo que Deus lhes ordenava transmitir; eram os pregoeiros da mensagem divina à nação ou aos indivíduos. O termo mais comum para indicar a mensagem divina era também o mais amplo: "a palavra de Javé", que no seu objeto desconhece limites. Deus, portanto, falava aos profetas, os quais, por sua vez, transmitiam sua palavra aos homens. De que maneira e por quais caminhos chegava a palavra divina a esses espíritos de eleição, é um segredo da mística sobrenatural. Em muitos casos, porém, eles mesmos no-lo revelam em seus escritos. Assim, descrevem-nos as visões com que foram favorecidos (Is 6; Jer 1,11-19; Ez 1-6; Am 7-8; Zac 1-6), mediante uma ação sobrenatural, exercida quer sobre os sentidos exteriores, quer sobre a imaginação e as faculdades interiores. Outras vezes era uma voz que lhes falava, de maneira semelhante, seja sensivelmente, seja mediante uma ação interior. O objeto da revelação podia apresentar-se-lhes na sua realidade direta, como em Is 6, ou por meio de símbolos, como em Am 7-8. Outras vezes a lição era sugerida pela observação de um fato sensível, como em Jer 18. Na maioria das vezes, porém, havia uma iluminação direta da mente do profeta. Sempre, porém, este percebia que Deus lhe falava, e era da indesmoronável convicção da origem divina do seu mandato que hauria uma força sobre-humana, capaz de vencer qualquer obstáculo (cf. Is 50,4-8; Jer 1,17-19;20,7-12; Ez 3,8-9; Am 3,7-8;7, 12-17). A mensagem divina era comunicada, em geral, mediante a pregação (cf. Jer 7,1-15); outras vezes, mediante uma ação simbólica, realizada publicamente, com a finalidade de causar maior impressão sobre o povo (Is 20; Jer 13; 19; Ez 4-5). Já no segundo período, as mensagens proféticas passavam mui freqüentemente da pregação viva para o escrito (cf. Jer 36) e então assumiam facilmente forma mais literária, geralmente mais concisa e muitas vezes eram exaradas ou refundidas em formas poéticas mais apuradas, que juntavam à fascinação da beleza poética a vantagem de imprimir mais facilmente a palavra divina na memória. Ê até provável que, unindo ao verso a melodia, muitos desses poemas fossem cantados pelas praças e ruas, por zelosos discípulos dos profetas, para fins de propaganda.

Page 58: BIBLIA AVE MARIA

Ao passarem, pois, da pregação oral para a escrita, esses "homens de Deus" (título honroso, reservado por antonomásia aos profetas; cf. 1Sam 2,27;9,6; 1Rs 13,1; 17,18; 2Rs 4,7 etc.) recebiam um carisma especial de inspiração, que conferia a seus escritos o valor de livros sagrados, dignos de ser inseridos no cânon das Escrituras divinas. Essa inspiração recebe esse caráter específico do seu termo, a escrita, que faz com que a palavra seja fixa, duradoura e imutável, o que a expressão oral não é. Na sua natureza de oráculo divino não difere, porém, da inspiração profética comum. É por isso que os teólogos, como Sto. Tomás de Aquino (Suma Teológica, 2?-2?, q. 171-178) costumavam tratar da inspiração bíblica juntamente com o carisma profético, e os antigos Padres chamavam freqüentemente "profeta" a qualquer escritor bíblico, porque inspirado.

O profetismo ergue-se, portanto, paralelo à lei e, juntamente com ela, sustém o edifício sagrado da religião hebraica, quer em função social no seio do povo de Israel, quer como monumento literário no Livro divino, a Bíblia. Daí a razão por que em linguagem bíblica, de modo especial no Novo Testamento, é de uso corrente o binômio "Lei e Profetas" para indicar todo o Antigo Testamento (cf. Is 2,3; 2Mac 15,9; Mt 11,13; Lc 24, 27 etc.)

O profetismo era uma instituição divina em Israel, prevista e aprovada pela lei (Dt 18,15-20). O profeta, porém, recebia diretamente de Deus a investidura de sua missão, independente da aprovação da autoridade civil ou do sacerdócio (cf. 1Rs 18,16-18; Jer 1,17-19; Am 7,10-17). Testemunha de que Deus lhe tinha falado e de que o enviava, era o profeta mesmo, e devia ser acreditado na sua palavra. Garantia suficiente da sua sinceridade e da sua vocação divina, era sua pureza de vida e de doutrina, ou, em alguns casos, a realização de seu vaticínio (Dt 13,1-3; 18,21-22). Foi assim que já no limiar do Novo Testamento apresentaram-se às turbas de Israel, João Batista e Jesus de Nazaré. Continuação e coroamento da antiga mensagem profética foi a mensagem evangélica.

Bíblia Vulgata Ed.36

Page 59: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A ISAÍAS

Nas Bíblias de língua hebraica e latina, o livro de Isaías costuma figurar em primeiro lugar na série dos livros profé-ticos. Não tanto por ser o mais antigo entre os Profetas Maiores ou por ser o livro ao qual empresta o nome um dos mais extensos, mas sobretudo porque excede a todos os outros pela quantidade e grandiosidade dos vaticínios messiânicos.

Julga-se que o profeta Isaías tenha nascido em Jerusalém, de família nobre, pois encontramo-lo continuamente em contato com a corte e com pessoas influentes do reino. Era casado e tinha pelo menos dois filhos, aos quais deu nomes proféticos (7,3;8,3), como, aliás, era o seu próprio nome, cujo significado é "Javé salva". No ano 738 foi chamado ao ministério profético mediante uma célebre visão (cap. 6), que teve imensa repercussão na teologia e na liturgia. A partir de então vemo-lo ao lado dos reis de Judá, Acaz e Ezequias, animando-os na dura crise que atra-vessava a nação, assegurando-lhes a proteção divina em virtude das promessas feitas a Davi. Após o ano 700 perde-mo-lo de vista.

Relativamente às condições políticas, morais e religiosas de Jerusalém e de Judá nos tempos de Isaías, temos notícias abundantes em 2Rs 15-20 e 2Crôn 26-32, além das reflexões do presente livro. O longo e benéfico reinado de Azarias ou Ozias (cf. 2Rs 15,1), que tão grandemente favoreceu a agricultura e o comércio no reino, trouxe com a prosperidade também o luxo e a despreocupação, fatores de corrupção e conseqüentes desventuras. As baixas ca-madas populacionais eram descuidadas, oprimidas pelos ricos e potentados. A prática da religião exteriorizava-se em numerosos atos públicos de culto, em funções litúrgicas, mas era destituída de sincero sentimento interior e de vida moral correspondente. Pior ainda, ao lado da legítima religião monoteísta, do javismo puro, vicejavam práticas abo-minadas pela lei, e até mesmo atos de idolatria, especialmente depois que o crescente poderio assírio prestigiou os cultos babilônicos, favorecendo-lhes a penetração entre as populações palestinenses. O reinado de Ezequias promo-veu uma ação enérgica e salutar contra essas aberrações. Mas as suas sábias reformas não tiveram grande duração nem penetraram totalmente na sociedade judaica. Durante o reinado de seu degenerado filho e sucessor, Manasses, grassou mais do que nunca a corrupção na religião e nos costumes. À propagação do mal opôs-se em vão a voz enér-gica dos profetas; não eram atendidos. Chaga tão maligna só podia ser curada com um tratamento radical. E eis os profetas, especialmente Isaías, a anunciar os castigos divinos, que se sucederiam implacáveis, até quase o aniquila* mento da nação culpada. Mas do terrível cadinho sairá um pequeno resto, completamente purificado, germe sagrado de um povo novo. E a nação ressurgida e transformada gozará de paz sem fim e de bem-estar invejável. Esta, em linhas gerais, a mensagem do profeta.

Instrumento da catástrofe, humanamente tão terrível, mas ao mesmo tempo, por disposição divina, tão salutar, devia ser o poderoso monarca do vizinho setentrião, primeiro o assírio, depois o babilônico. Contra a ameaçadora arrancada do temível colosso ergue-se o Egito, seja para defender a própria independência, seja pela saudosa ambição de dominar, como outrora, a Palestina e parte da Síria. Espremidos entre os dois poderosos contendores, os pequenos estados do Oriente Próximo viam-se na contingência de se arranjarem como podiam. Daí a formação, particularmente em Jerusalém, de dois partidos opostos, um propenso a negociar com a Assíria, outro a formar com a oposição encabeçada pelo Egito. Isaías, em nome de Deus, pregava a neutralidade, combatia toda a esperança fundamentada nos homens e incitava a pôr toda a confiança em Javé, fundador e protetor da nação. A esta política, ao mesmo tempo prudente e corajosa naquelas circunstâncias, o profeta animava o rei Ezequias, mesmo depois que, com a queda do reino de Efraim (queda da Samaria em 721 a.C.) o perigo para o reino de Judá, menor e mais fraco, apresentava-se mais ameaçador. Graças a essa política, o pequeno reino saiu ainda incólume da tempestade (701 a.C), naufragando em novo embate somente após mais de um século (587). Bíblia Vulgata Ed.36

Page 60: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A JEREMIAS

Jeremias é o mais simpático dos profetas e também aquele de quem possuímos notícias mais abundantes, quase todas transmitidas por seu próprio livro.

Nascido por volta do ano 646 a.C, em Anatot, nas proximidades de Jerusalém, de família sacerdotal e já predestinado ao ministério profético (Jer 1,5), no décimo terceiro ano do reinado de Josias (626 a.C.) foi chamado por Deus e por ele enviado a levar a sua mensagem aos reinos e às nações, mensagem em que predominam as ameaças e as ruínas, mas que é rica também de promessas de restauração (1,9-10). Apesar da relutância por parte de sua índole bonachona e um pouco tímida, o jovem Jeremias respondeu ao apelo divino com generoso espírito de sacrifício, acrescido em face das oposições que lhe foram preditas (1,17-19) e do celibato que lhe foi imposto por expressa ordem divina.

Sua atividade desenvolveu-se nos momentos mais críticos da nação judaica, num período dos mais convulsionados do antigo Oriente semítico. Conheceu o colapso do poderio assírio e o nascimento do segundo império babilônico, que cedo iria destruir a bruxuleante chama da independência de Israel. No interior da nação, as condições religiosas e sociais não eram menos inquietantes. Ao iniciar Jeremias o seu ministério, perduravam ainda os péssimos efeitos do nefando reinado de Manasses, que abrira tas portas às infiltrações idolátricas na prática religiosa do povo de Israel (2Rs 21,2-6). Foi contra essas aberrações e contra o formalismo religioso que o profeta teve de bradar, principalmente nos primeiros anos de sua pregação (Jer 1-6), e não apenas nesses anos. Realmente, embora o piedoso rei Josias tivesse iniciado, a partir do ano 621, com zelo enérgico a purificação do país de todo o vestígio de idolatria, repristinando, com a concentração do culto no templo de Jerusalém, a observância da lei mosaica em todo o seu vigor, todavia, a morte trágica e prematura do próprio Josias (609 a.C.) decretou um fim rápido para essa rígida reforma. Durante este decênio, satisfeito com secundar a ação governativa, Jeremias parece conservar-se por detrás dos bastidores (nenhum discurso seu deste tempo nos foi transmitido); depois, deplorada a morte do rei com elegias que infelizmente não chegaram até nós (2Crôn 35« 25), ele entra de novo em cena com energia ainda mais vibrante, profligando os vícios renascentes sob os sucessores de Josias, não poupando sequer os poderosos, os sacerdotes, os profetas mendazes, aduladores do povo ou de partidos. Muitos males trouxe-lhe esta pregação desassombrada, porque os poderosos alvejados por ele não lhe pouparam violências, perseguições, vilipêndios, cárceres (Jer 20,1-3 J;26,7-24;32,l--2;37;38).

No plano político, encontrou-se Jeremias em idêntica posição à de Isaías (cf. p. 796). Renovava-se o contraste entre o Egito e o império oriental, nas mãos dos babilônios ou caldeus. Ante a avançada ameaçadora destes, Jeremias recomenda, em nome de Deus, a aceitação e a submissão aos novos senhores. Mas o forte partido da oposição incitava à resistência, apoiando-se novamente no Egito, e quis abafar a voz do profeta já malvisto, lançando-o numa escura prisão (Jer 37;38), donde foi libertado, após a tomada da cidade, pelos caldeus, que, conhecedores dos seus sentimentos, tomaram-no sob a sua proteção (40,1-6). Nem mesmo isto, entretanto, lhe valeu algo contra o cego furor dos egiptófilos, que, conseguindo escapar dos caldeus, asilaram-se no Egito, arrastando consigo, à força, o desditoso profeta (43,1-7). Também ali, fiel à ordem divina, Jeremias continuou a missão de corrigir costumes e pacificar os espíritos entre seus compatriotas (44).

Jeremias possuía um coração extremamente sensível, e o patético, quer do amor quer do sofrimento, atinge às vezes o ápice no seu livro. A ternura de Deus para com o seu povo e a mágoa de se ver por ele incorrespondido, o esmagamento do profeta ante a ruína moral e política de sua amada nação, as alegrias pela reconciliação e o feliz reflorir, fazem vibrar as cordas mais íntimas do seu coração. A alma comovida de Jeremias irrompe então em calorosas estrofes de lirismo sublime e comovedor. Se em grandiosidade de imagens, vôos de fantasia e esplendor de fraseado cede o lugar a Isaías, no que tange à espontaneidade e à intensidade de afeto, Jeremias supera a todos os poetas hebraicos. Bíblia Vulgata Ed.36

Page 61: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO ÀS LAMENTAÇÕES

A tomada de Jerusalém, com o séquito de todas as suas dolorosas conseqüências, predita e depois descrita no livro de Jeremias, não deixou de produzir no coração dos judeus piedosos a mais viva dor e o mais acerbo pranto. Os sentimentos excitados por esse terrível golpe na parte mais eleita da nação estão refletidos nas Lamentações, chamadas também em grego "Trenos" ( = cantos fúnebres), pequeno livro que, pela afinidade de matéria, nas Bíblias cristãs se acha unido ao livro de Jeremias.

Compõe-se de cinco carmes elegíacos, usualmente considerados e citados como outros tantos capítulos duma só obra literária. Além da matéria, têm em comum uma estrutura poética peculiar. No hebraico são todos alfabéticos, isto é, regulados pela ordem e pelo número das letras do alfabeto, mas de maneira diversa. Os quatro primeiros são também acrósticos. As iniciais de cada verso poético formam um alfabeto completo e ordenado, como em diversos salmos e na última seção dos Provérbios (Prov. 31,10-31).

Essa estrutura artificial, que não se percebe na nossa tradução, limita todos os carmes e influi no andamento do pensamento. Inútil, portanto, esperar um desenvolvimento lógico do tema; o poeta desafoga os seus afetos segundo lhe são sugeridos pelo coração dominado pela comoção, ou conforme o alfabeto lhe desperta uma idéia. Inexiste, entretanto, de carme para carme, ou no mesmo carme, aquela desordem por muitos lamentada. Não raro uma interpretação mais exata ou uma leitura correta do texto remove a causa de queixas. Os cinco carmes — ou elegias, como os chamaremos, com termo apropriado, — deploram a tremenda catástrofe nacional, cada uma sob um aspecto diferente. Na primeira, o motivo principal ê a perda dos bens morais: independência, glória, poderio, e o aviltamento da nação; na segunda, pranteiam-se as ruínas materiais e o massacre de vidas humanas na tomada da cidade; na terceira, põe-se e se resolve o problema religioso: como permitiu Deus tão grande esfacelamento? que mais esperar dele? como a salvação pode estar num sincero arrependimento e na reforma dos costumes?; na quarta deploram-se os males sofridos por todas as classes da sociedade judaica e as culpas dos principais responsáveis; a quinta, enfim, é um súplica que descreve a escravidão que se seguiu à derrota, e se destina a mover o Senhor à compaixão, e conclui com um suspiro de confiança no porvir. Também na estrutura de cada elegia não falta certa ordem e harmonia entre as diversas partes.

As cinco elegias são dum só autor? Quem foi ele? A questão é muito discutida e tem sido resolvida em diversos sentidos pelos autores modernos. A antigüidade, quer cristã quer judaica, atribui-as todas a Jeremias de quem nos é formalmente atestado que compôs lamentações ou cantos fúnebres por ocasião da morte de Josias, que não devem, entretanto, ser confundidas com estas elegias. Teríamos aqui uma coletânea de carmes independentes entre si, embora semelhantes, análoga à dos salmos graduais no Saltério (SI 120-134).

Podemos aceitar, portanto, que as Lamentações tenham autores diferentes e desconhecidos. Todas, porém, devem ser reconhecidas como igualmente inspiradas por Deus, porque fizeram sempre e sem contestação, parte do cânon das Sagradas Escrituras, tanto na Sinagoga judaica, como na Igreja cristã, embora nas listas dos Livros sagrados, como também no decreto do Concílio Tridentino, na maioria das vezes não sejam especificadamente nomeadas, porque subentendidas e compreendidas com o livro de Jeremias. Esta sua qualidade eminente de Escritura inspirada faz com que a nossa ignorância acerca dos seus autores humanos nada tolha ao seu valor religioso, como palavra de Deus que ê, do mesmo modo que nada tolhe à sua beleza poética, ao seu valor literário, que não é de forma alguma comum. Bíblia Vulgata Ed.36

Page 62: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A BARUC

A respeito de Baruc, associado ao ministério de Jeremias, temos notícias seguras no livro deste profeta, especialmente nos cc. 36,43,45. Sabemos daqui que foi arrastado à viva força pelos judeus rebeldes, juntamente com Jeremias, para o Egito (Jer 43,5-7), mas do confronto de Jer 44,28 com 45,5 podemos deduzir que mais tarde retornou à Judéia, donde pôde ir à Babilônia para consolar os exilados. Ali, efetivamente, o encontramos no início do pequeno livro que traz o seu nome.

Este compõe-se de três partes, nitidamente distintas:

1ª Prece pública, em prosa ritual (1, 1-3,8): a nação em peso reconhece ter merecido tantas desgraças e o próprio exílio, por causa dos pecados pessoais e dos antepassados; pede misericórdia e a cessação de tantos males.

2ª Elogio da sabedoria, em elevado estilo poético (3,9-4,4): na lei divina, que é concretamente a mais elevada sabedoria, está a verdadeira glória e felicidade de Israel; o exílio foi causado pelo abandono da mesma; cumpre voltar à perfeita observância da lei.

3ª Deplorada a amargura do exílio, anuncia-se a alegria do repatriamento (4,5-5,9), em prosa cadenciada, que, pelo fundo, recorda Is 40-66 e, pela forma, o estilo de Jeremias, oscilando, freqüentemente entre a poesia e a prosa.

Como se vê, as três partes acham-se ligadas entre si pelo fundo histórico do argumento e sucedem-se em certa ordem lógica. No tocante à qualidade literária e à composição diferenciam-se, entretanto, notavelmente, de sorte que o exame intrínseco não oferece razões decisivas que abonem a unidade de autoria de todo o livro. O testemunho extrínseco, dado no texto 1,1, para a atribuição a Baruc, vale somente para a primeira parte, a qual está tão impregnada do fracasso de Jeremias, que, negá-la ao secretário do profeta, é o que de mais irrazoável possa haver. Menos rica, mas não isenta de contatos com o livro de Jeremias, é a terceira parte. Nada nos diz a respeito o belo poemeto central. Todas as três partes foram originariamente escritas em hebraico, entre 582 e 540 a.C, aproximadamente. Provam--no as numerosas alusões ao exílio babilônico e os diversos equívocos das antigas versões, explicáveis unicamente por uma leitura ou interpretação incorreta de uma palavra hebraica, coisa que se nota igualmente em todas essas versões. O texto hebraico original, porém, foi perdido. Para nós, toma-lhe o lugar a versão grega dos LXX. Em segundo lugar vem a Pessitta siríaca, que também deriva do hebraico. Na Vulgata temos uma antiga tradução latina feita à base do grego e não retocada por S. Jerônimo. Os judeus da Palestina excluíram Baruc do rol dos livros sagrados, e nisso foram seguidos também por alguns Padres da Igreja, na antigüidade, e por todos os protestantes. Acolheram-no, ao invés, os judeus da diáspora, anexando-o ao livro de Jeremias no volume dos profetas maiores. Desta crença e costume tornou-se herdeira a Igreja cristã, razão por que vemos, desde o fim do séc. II, os Padres Atenágoras, Irineu, Clemente Alexandrino, citarem as palavras de Baruc com o nome de Jeremias. Nos cânones bíblicos das Igrejas do Oriente e do Ocidente, nos séculos seguintes, o mais das vezes Baruc não é especificado (como também as Lamentações), justamente porque compreendido com Jeremias. O cânon do Tridentino nomeia-o expressamente: "Jeremias com Baruc". Destarte elimina-se qualquer dúvida acerca do caráter divinamente inspirado deste opúsculo, tão breve quão rico de doutrina, não lhe faltando mesmo algumas raras belezas literárias.

Page 63: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A EZEQUIEL

Ezequiel, pertencente à linhagem sacerdotal, viveu, como Jeremias, no período mais tormentoso da história hebraica.

Em 598/97 a.C, antes de ter completado 30 anos, foi deportado de Jerusalém para a Caldeia, juntamente com a rei Joiakim (ou Jeconias) e mais dez mil pessoas entre nobres, guerreiros e artesãos. Permaneceu no exílio até à morte, ocorrida entre os anos 571 a 561 a.C.

Jerusalém não fora ainda destruída, porque o rei Joiakim, tendo sucedido a seu pai Joiaquim (talvez assassinado quando o exército de Nabucodonosor se aproximava da cidade santa), rendera-se ao cabo de três meses de assédio.

Todavia, a deportação da corte e do escol da população enfraqueceu-a sobremaneira, constituindo uma lição tremenda, mas infelizmente inútil. Entre a população deixada no país, sob o governo de Sedecias, nutriam-se veleidades de independência, que explodiram , em aberta rebelião no ano 588, causando finalmente a tomada e a destruição de Jerusalém e do seu templo (Jer 37-39 e 52).

Todas as visões do profeta exilado, como as de Jeremias, que permaneceu na pátria, vendo e vivendo o trágico destino da cidade santa, vinculam-se intimamente a esses acontecimentos. Ambos os profetas vêem e anunciam continuamente, em todas as formas, o futuro imediato, imersos na angústia de ver um povo que não lhes presta ouvidos e se atira ao báratro.

A própria morte da esposa de Ezequiel, lembrada pelo profeta, tornou-se um símbolo da ruína de Jerusalém e do templo, ocorrida na mesma época. Não faltam, porém, alguns clarões que permitem visões longínquas, as quais se multiplicam e até se tornam constantes, quando aos primeiros deportados se juntou a avalanche dos novos, trazendo gravados no espírito os horrores do cerco, do morticínio e da deportação.

Ao contrário de Jeremias, que tem páginas patéticas, transbordantes de extrema sensibilidade, Ezequiel é, muitas vezes, áspero, duro, quase desapiedado. Mas as suas predições e ações simbólicas, bem como as suas mortificações voluntárias, para inclinar, se possível fora, Israel a uma conduta de fidelidade para com Deus e a uma sabedoria política, são inspiradas por um coração magnânimo e forte ao mesmo tempo, baseado na fé, na dedicação ao seu povo e no amor à pátria.

Em seu estilo abundam as ações simbólicas, originais e mudas, apresentadas como narrações. As partes poéticas são raras e encontram-se quase exclusivamente nas profecias contra as nações. Ezequiel é minucioso nas descrições, preciso e até cansativo às vezes. O projeto da divisão da Terra Prometida, o desenho do novo templo e a indicação das leis ao mesmo atinentes, parecem mais obra de técnico do que de profeta.

Profecias nitidamente messiânicas são os trechos: 17,22-24;34,11-16;47;48. Mas toda a terceira parte, do c. 33 em diante, é concebida em termos de expectação messiânica.

Ezequiel é o primeiro representante dum novo gênero literário de mensagem profética, muito desenvolvido, em seguida, na literatura judaica do séc. II a.C. Trata-se do gênero apocalíptico. No Novo Testamento, ele figura no livro do Apocalipse (termo grego que significa "revelação"). O próprio S. João deu ao seu livro o nome de f<profecia" (Apoc 1,3), termo não muito apropriado ao caráter da obra.

Eis as características principais do gênero apocalíptico:

1. A mensagem profética limita-se à predição do futuro, especialmente à era messiânica e ao fim do mundo.

2. Esse futuro, ora radiante, ora pavoroso, aparece ao vidente sob a forma de cenas simbólicas em que atuam seres humanos e sobre-humanos, animais e astros, quais outras tantas figuras dos acontecimentos vindouros.

3. A intervenção freqüente de anjos, como guias e intérpretes dos cenários contemplados pelo profeta.

4. Os eventos relacionados com o fim dos tempos, quer messiânicos, quer cósmicos, revestem-se dum colorido empolgante de convulsões cósmicas e telúricas, e isso, de tal maneira, que este motivo, embora acessório, é considerado comumente como propriedade prevalente do estilo apocalíptico.

Page 64: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A DANIEL

A respeito de Daniel nada mais sabemos além do que nos diz este livro, pois não traz nenhuma novidade a única menção dele, feita no Antigo Testamento (IMac 2,60) e a igualmente única do Novo Testamento (Mt 24,15). Descendente de nobre família do reino de Judá, muito jovem ainda (13,45), teria sido deportado cerca do ano 605 a.C. para Babilônia e agregado aos pajens da corte do rei Nabucodonosor, com o nome de Baltasar (1,7). Desde os primeiros atos (cf. 13,45-62) revela-se senhor daquela sabedoria que constitui o fundo de sua figura moral. Modelo e mártir da fidelidade à lei divina, foi enriquecido por Deus com um dom extraordinário de penetração nos mistérios contidos nas visões e nos sonhos proféticos que Deus envia a ele e a algumas personagens daquela época (2,17-35;4,2;5,13-16). Em virtude dessas suas capacidades, fez carreira entre os soberanos babilônios, desde Nabucodonosor até Ciro, que o honraram, confiando-lhe cargos. De dois anos destes soberanos são datadas as revelações que ele teve, a última das quais (10,1) se deu no terceiro ano de Ciro. Além dessa data, nada mais sabemos dele. Nas Bíblias hebraicas o livro de Daniel tem menor extensão do que nas cristãs, e dentre estas, as latinas têm ordem um tanto diversa daquela das gregas. Em hebraico compõe-se de 12 capítulos e de 357 versículos; nas versões gregas e latinas são inseridos (no c. 3) 67 versículos, que constituem a primeira das três partes ditas deuterocanônicas deste livro. Além disso, acrescentaram-se outras partes em dois capítulos distintos, que em grego se acham, o mais das vezes, um no início e outro no fim; nas versões latinas sempre no fim. No livro a idéia central que predomina, é aquela do reino de Deus, isto é, do supremo domínio de Deus sobre a natureza e sobre os eventos humanos, que culmina no estabelecimento do "reino dos santos" (os adoradores do verdadeiro Deus) sobre as ruínas dos mais poderosos impérios humanos.

As observações críticas, porém, não diminuem o valor do ensinamento religioso e moral do livro. Reduz-se ele a pontos de importância capital. Jamais se lê o nome divino "]avé", mas sempre El ou Eloim (também Eloah, no singular) ou uma circunlocução "Deus do céu" (8 vezes), "o Altíssimo Deus" (5 vezes). A tendência de todas as narrações é a de exaltar o Deus de Israel, donde resulta que somente ele é que tudo pode e tudo sabe; lê nas mentes humanas e vê os acontecimentos futuros; dele é que vem todo o saber humano e em suas mãos estão os destinos dos indivíduos e dos impérios. A ele somente se deve adoração e culto, e para não transgredir sua santa lei, devemos estar prontos mesmo a morrer, se necessário.

O messianismo de Daniel é sumário, de poucos elementos, mas de relevância extraordinária. É um messianismo quase exclusivamente coletivo, isto é, visando antes a sociedade religiosa do que o seu chefe; suas características são todas de origem espiritual: cessação do pecado, triunfo da justiça, inauguração de uma eminente santidade (9,24); o reino anunciado será o "reino dos santos", que se poderia traduzir também por "reino de Deus", tal como foi depois anunciado na primeira pregação do Evangelho (Mc 1,14). Particularidade de Daniel é que ele anuncia a vinda desse reino, isto é, o seu início, indicando datas e números cerca de 500 anos depois da queda de Jerusalém (9,24); daí o lugar de primeira ordem que ocupa este vaticínio na demonstração da doutrina cristã.

O que ele diz sobre a vida futura ou sobre a escatológica é pouco, mas este pouco assinala um progresso da revelação nessa matéria. É ele o primeiro a insinuar um despertar dos mortos no fim dos tempos, um despertar para uma nova existência que será para uns a vida eterna e para outros a eterna condenação. Entre os primeiros, os que tiverem demonstrado zelo pela santificação própria e a dos outros gozarão de esplendor especial (12,2-3).

Page 65: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS PROFETAS MENORES

OSÉIAS

O profeta Oséias era natural do reino de Israel ou Efraim, como se costuma chamar. Profetizou sob o reinado de Jeroboão II e de seu sucessor, a partir da queda de Samaria e de todo o reino (721 a.C).

Os três primeiros capítulos do livro de Oséias formam um conjunto todo especial. Sob a forma de drama simbólico é-nos posta diante dos olhos a infidelidade do povo de Israel para com o seu Deus, representada, figuradamente, na infidelidade duma esposa para com seu legítimo marido; anuncia-se o seu castigo, mas também o seu arrependimento, a sua reconciliação e, enfim, sua vida renovada e mais feliz (2,16-24; cf. 2,1-2; 3,5).

Nos capítulos restantes (4-14) voltam os mesmos motivos, a saber: a culpa de Israel, principalmente as práticas idolátricas, o culto do bezerro de Betei, as alianças com os poderosos pagãos, a Assíria e o Egito, a falta de confiança e de apelo ao único Deus; daí os castigos proporcionados às culpas. Nem faltam vislumbres dum retorno a Deus e dum futuro melhor. Nesta sucessão de quadros, o mais das vezes obscuros, pode-se notar certo progresso. No c. 1 os acontecimentos políticos que, entre 745 e 725 a.C. elevaram tantos reis ao trono e outros tantos derrubaram dele, aparecem como fatos já passados; no c. 13 o castigo do povo ingrato é anunciado já como sentença irrevogável de uma destruição total do reino, e no último, o 14, com cores mais ricas e suaves promete-se a salvação definitiva.

No estilo de Oséias sucedem-se, em breves sentenças, pinceladas rápidas, imagens ousadas, passagens bruscas e como por saltos. Seu vocabulário ê rico, e seu estilo característico, devido, talvez, às particularidades do dialeto de sua região. Por estas mesmas razões o seu texto, maltratado pelos copistas, conservou-se num estado assaz deplorável. Desse complexo de causas origina-se a obscuridade desmesurada deste livro. Escrito no reino de Israel, foi-nos conservado e transmitido por mãos judaicas, através das quais é verossímil que tenha sofrido retoques lingüísticos e talvez também algum acréscimo, como a menção do reino de Judá nalguns contextos onde menos se esperariam (cf. 5,5;6, 11).

Das páginas de Oséias transparece um caráter impressionante, ardente e patético a um só tempo, mas sensível sobretudo às ternuras e às fogosidades do amor. Sob este aspecto é um precursor de Jeremias. Particularmente suas são as muitas reminiscências da antiga história do povo de Israel, sobretudo do patriarca Jacó, que tornam duplamente precioso o seu livro, cuja extensão supera, em três ou quatro partes a maioria dos doze profetas menores.

O método de Oséias se destaca peta descrição das relações entre Deus e Israel propostas sob a figura do amor conjugal. Ele é o primeiro profeta que recorre a esta comparação tão fecunda e repetida pelos profetas seguintes. A bem dizer, ele insiste mais no aspecto negativo do matrimônio, nas infidelidades e nas rupturas, do que no amor propriamente dito. A descrição deste amor será reservada ao Cântico dos Cânticos. A Oséias, pelo contrário, Deus faz sentir as suas amarguras de esposo traído, ameaçando e executando os duros castigos que o caso reclama. Tudo termina com a expectativa da reconciliação dos esposos a da restauração.

JOEL

O nome de Joel (hebr. Jõ'el = Javé é Deus) ocorre umas quinze vezes no Antigo Testamento. Discute-se até agora a respeito da época em que teria vivido o profeta Joel; mas pouco nos adianta examinarmos sua vida, pois chegaremos às mais desencontradas conclusões. Com maior atenção devemos, por isso, entregar-nos à leitura do próprio texto.

Distingue-se Joel pela amplitude e vivacidade das descrições, que constituem quase toda a matéria do seu livro. Ao contrário dos grandes profetas, Joel jamais especifica as faltas censuradas por ele; contenta-se com a exortação geral: "Voltai a Deus de todo o coração" (2, 12). Além disso, jamais menciona rei ou reino. Isso induziu a maior parte dos modernos a situar o profeta numa época posterior ao exílio, à qual parecem convir melhor as condições sociais e históricas próprias de sua mensagem. Joel conhece a dispersão do povo de Israel entre as nações e descreve sumariamente os seus horrores (3,1-6). Na sua mensagem já não se dirige aos reis, mas somente aos anciãos (1,2) e aos sacerdotes (1, 13). São indícios que mostram que a organização prê-exílica acabou, e, que, portanto, o livro não é dessa época.

Page 66: BIBLIA AVE MARIA

Importante ê o (<Dia de Javé" (em nossa tradução "Dia do Senhor",), na primeira parte, referência a um castigo grave, mas transitório. Na segunda parte, com cores sombrias e insistência, refere-se ao castigo definitivo dos infiéis.

AMOS

Os críticos modernos consideram Amós, e com razão, como o primeiro dos profetas escritores (cf. Am 1,1 com Os 1,1 e Is 1,1). O seu livro, por raros méritos de estilo e de substância, é realmente digno de abrir a inestimável literatura profética de Israel. Acrescentam valor às suas mensagens as humildes origens do profeta e sua vocação, na qual brilha tanto mais intensamente a força do seu espírito sobre-humano.

O profeta Amós é distinto de Amós, pai do profeta Isaías (Is 1,1: os dois nomes são de grafia diferente no hebraico). O livro fornece-nos bastante pormenores sobre sua vida. Natural de Técua, aldeia situada a uns 8 km ao sul de Belém, tirava o seu sustento do pastoreio de rebanhos e do cultivo de sicómoros, cujos frutos constituíam o alimento da gente pobre (Am 1,1;7,14). Corriam os tempos dos longos e prósperos reinados de Ozias, em Judá (cf. 2Rs 15,2.5) e de Jeroboão II, em Israel (783-743 a.C), que davam à nação poder e riqueza de que há muito tempo não gozava. Daí que a própria religião auferia vantagens, pela abundância das vítimas imoladas nos altares e pela pompa dos ritos. Mas ficaram prejudicadas a moral e a piedade sincera, os costumes pioravam, e os israelitas, deslumbrados pela prosperidade, caminhavam alegres e inconscientes para a ruína. Crescia, para infelicidade deles, o poderio assírio. Nesta altura, o humilde pastor de Técua sente-se chamado a pregar o arrependimento aos desavisados, revelando aos culpados os castigos iminentes. E ei-lo a percorrer, vaticinando, as cidades de Israel Enfrentou corajosamente a oposição dos sacerdotes de Betel, o principal santuário do reino (Am 7,10-17); depois, não se sabe qual tenha sido o seu fim. Uma tradição conservada pelo ignoto autor das "Vidas dos profetas" e acolhida no Martirológio Romano a 31 de março, narra que, ferido na têmpora com uma maçã, pelo filho do sacerdote Amasias, foi levado agonizante à própria aldeia, onde morreu pouco depois.

O livro de Amós nos apresenta, mais do que qualquer outro dos profetas, uma disposição clara e uma bela ordem das mensagens.

O estilo simples e não obstante cheio de dignidade, a forma escorreita, a pureza e o vigor da linguagem fazem do livro de Amós um modelo de literatura hebraica. Para torná-lo mais atraente, acrescenta-se a feliz circunstância de que o texto geralmente foi bem conservado como poucos outros.

Acima dos méritos literários, porém, estão a elevação de pensamento, a doutrina moral e religiosa. O monoteísmo ético puro atinge o auge. O Deus de Israel não é somente o único verdadeiro Deus, criador e governador de todo o Universo, mas por sua santidade essencial é também o autor e guarda zeloso de uma lei moral, cuja observância ele exige de todos os povos, e pune o delito onde quer que sua onisciência o descubra. A escolha especial e gratuita do povo de Israel não é nenhum privilégio sob este aspecto (3,2;9,7-10). Para lhe tributar as honras a que tem direito, é necessária antes de mais nada a santidade de costumes, sem a qual nada valem os atos dum culto cerimonioso e os sacrifícios de numerosas vítimas (5, 21-24). Amós condena a moleza, o luxo, a ambição (6,4-6;8,5-7), e também, com mais energia e maior freqüência, a injustiça e a crueldade para com o próximo, seja ele quem for, a opressão dos pobres.

ABDIAS

Com o nome de Abdias, que quer dizer "Servo de Javé", temos o mais breve escrito do Antigo Testamento: consta de um só e não longo capítulo de 21 versículos.

Ê todo ele uma mensagem dirigida contra os edomitas ou idumeus, dos quais se recriminam:

1. O orgulho e a ousada confiança que depositam na posição geográfica, defendida pelos fortes baluartes naturais de seu país (vv. 2-9).

2. Sua cumplicidade e alegria feroz a quando da desgraça dos hebreus (vv. 10-15).

3. O castigo até o aniquilamento, em contraste com a restauração de Israel em suas possessões e até no predomínio deste sobre a Iduméia (vv. 16-21).

Muito se tem discutido sobre a desgraça nacional de Israel a que se alude nos vv. 10,14; comparando-se esta passagem com SI 136,7; Ez 25,12;35,5 e Jer 49,7-18, não resta dúvida de que se trata da queda de Jerusalém nas mãos dos caldeus em 587 a.C.

Page 67: BIBLIA AVE MARIA

Com isso temos a época aproximada em que o autor viveu. Escreveu talvez quando os acontecimentos aos quais alude eram ainda recentes, isto é, na primeira metade do séc. VI a.C. Era, portanto, um contemporâneo de Jeremias e de Ezequiel. Não se pode, pois, identificá-lo, como fizeram outrora judeus e cristãos, com Abdias, mordomo do rei Acab, que tanto se esforçou em favor dos profetas.

JONAS

Um "profeta Jonas, filho de Hamitai, nascido em Gad-Heber" (na Galiléia, cf. Jos 19,13), é mencionado em 2Rs 14,25, referindo-se a uma predição verificada sob o reinado de Jeroboão II de Israel (783-743 a.C). Esse profeta deve ter vivido no início do séc VIII a.C, e trata-se, sem dúvida, do Jonas do presente livro.

Com isso não está ainda afirmado que o próprio Jonas tenha escrito o livro que traz seu nome. Diferentemente de todos os demais livros proféticos, o presente tem a singularidade de ser apenas uma narração, e seu objeto não é a transmissão de uma mensagem profética, e sim apresenta, na prática, na narração do acontecimento, uma elevada lição de doutrina religiosa. Propriamente, pertence ao gênero narrativo.

Duas coisas ressaltam nesta narração: a mesquinhez do espírito humano (nos temores e nas iras do profeta) e a infinita bondade e clemência de Deus. Não menos importante é, porém, o universalismo religioso. Temos o caso único de um profeta de Israel ser enviado a pregar a gentios, e vemos o Deus de Israel dispensar tanto cuidado a uma nação idólatra. Pressentimos já o conceito universalista do cristianismo (Rom 3,29-30; Col 3,11). Largueza de espírito e de coração da segunda parte.

Outro aspecto de grande alcance na história religiosa apresenta-nos a primeira parte. No episódio de Jonas saindo vivo do ventre do peixe, depois de passar três dias ali, Jesus viu uma figura de sua ressurreição dos mortos, prova máxima da sua divindade (Mt 12,38-40). Daí também o renome de Jonas na literatura e na arte cristã. O mesmo divino Mestre intima os ninivitas convertidos pela pregação de Jonas, a deporem contra os judeus que não acreditam na palavra dele, que é muito mais que Jonas (Mt 12, 41; Lc 11,52). Sem dúvida não é necessário mais do que isso para compreender a importância religiosa deste livro.

Bastaria isto também para provar-lhe o caráter histórico? Notamos que a sua finalidade é dar uma lição moral quanto à largueza de espírito e à bondade de coração. Ora, um ensinamento pode ser dado também, e não em último lugar, com uma construção imaginária. O próprio divino Mestre disso nos deu o mais ilustre exemplo com as suas parábolas. Seria, portanto — pode-se perguntar — o livro de Jonas uma parábola, e não o relato de fatos realmente ocorridos? É o que pensam hoje muitos, fora da Igreja católica e também alguns de seus membros. Mas não se apresentam razões decisivas para essa afirmação. Aquilo que a obra nos conta de maravilhoso, não constitui dificuldade para quem admite, como se deve admitir, a possibilidade do milagre. O fim didático funda a possibilidade, não a necessidade de uma ficção literária. Os fatos reais têm igualmente força para instruir a mente e maior eficácia para mover a vontade. Estando assim neste ponto as conclusões, não é de prudência cristã duvidar da realidade histórica dos fatos, levada em conta pelo próprio Jesus.

MIQUÉIAS

Miquéias profetizou sob os mesmos monarcas que Isaías, exceto sob o primeiro, Osias, em cujo último ano de reinado e de vida Isaías foi chamado ao ministério profético. Miquéias era, portanto, contemporâneo de Isaías, florescendo entre 738 e 700 a.C, mais ou menos. A idade, a terra natal, o livro de Miquéias nos são confirmados (felicidade única para um escritor bíblico) pela citação pública dum célebre vaticínio seu (3,12), feita apenas um século depois (608 a.C.) e conservada no livro canônico de Jeremias (Jer 26,18). Nasceu o profeta numa obscura aldeia a sudoeste da Judeia, a atual Bet-Gibrin e parece que na mesma região tenha desenvolvido o seu ministério profético (cf. 1,10-12) com feliz resultado, como se pode deduzir do que lemos em Jer 26,19. Mais do que isso não sabemos a respeito dele. O autor das Vidas dos profetas, que o dá como martirizado sob o reinado de "Jorão, filho de Acab", mostra tê-lo confundido com outro profeta homônimo, filho de Jemla, mais antigo, pelo menos de um século (1Rs 22,9-28), e por isso não merece fé.

O livro de Miquéias, ainda que lhe falte a bela ordem de Amós, e se aproxime antes do estilo patético de Oséias, apresenta, todavia, seções bastante nítidas.

O argumento dos vaticínios de Miquéias é, portanto, semelhante aos de Isaías, especialmente Is cc. 1-12. Os dois profetas têm até mesmo em comum um dos mais belos vaticínios messiânicos (Is 2,2-4 = Miq 4,1-3).

Page 68: BIBLIA AVE MARIA

Em Miquéias, porém, o lado positivo da mensagem, isto é, a promessa de um futuro melhor, ocupa um lugar relativamente mais amplo. Notável é também que entre as culpas exprobradas por Miquéias aos hebreus de seu tempo, têm grande prevalência as faltas de justiça e de humanitarismo para com o próximo, os crimes contra a boa ordem social. Redunda em honra singular para o profeta e o seu livro o fato de que duas das suas mais insignes predições sejam expressamente citadas à letra, quer pelo Antigo Testamento (3,12: em Jer 26, como já foi dito), quer pelo Novo (5,1: em Mt 2,5-6; cf. Jo 7,42), e que o próprio Jesus, na instrução aos seus apóstolos, expressou um ponto do seu programa (Mt 10,35-36) com as palavras de Miquéias (7,6).

NAUM

O livro do profeta Naum é a única fonte que a ele se refere. Dá-nos a conhecer tão somente a terra natal do profeta, Elcos, lugar jamais citado em outra passagem da Bíblia. Os informantes judeus de S. Jerônimo (Prefação ao seu comentário) o situam na Galiléia. Outra tradição, menos antiga, e acolhida pelo autor das Vidas dos Profetas, localizava-o na Judéia, próximo de Eleuterópolis ou Bet-Gibrin. A época de Naum deve ser posta entre a queda de Tebas, no Egito, sob as armas do assírio Assurbanípal, em 663 a.C, e a queda de Nínive, sob os golpes conjugados dos babilônios e dos persas, em 612. A primeira é recontada no seu livro (3,8-10) como acontecimento passado; a segunda constitui o objeto quase único de sua mensagem profética.

Em confronto com os demais profetas menores, o conteúdo ideal de Naum não é novo, mas a todos supera em lances líricos e na expressão. Infelizmente, o texto em muitos lugares está corrompido, deixando por vezes o sentido incerto.

HABACUC

Na Bíblia hebraica o nome Habacuc (Habaqquq encontra-se somente nos títulos dos cc. 1 e 3 deste livro a ele atribuído, o qual, outra notícia expressa não nos oferece, além daquela que se refere ao nome pessoal do profeta. Resta-nos unicamente o conteúdo para deduzirmos a época em que viveu e o espírito que o animava.

O livro versa todo sobre um ponto crucial da doutrina religiosa: o problema de saber se há uma justiça que governa o mundo e por que os bons são domina-nados pelos maus. O tema é desenvolvido em três seções: duas queixais em forma de diálogo e um canto final à maneira de contemplação.

A mensagem de Habacuc tem em comum com a de Jeremias, o fato de pôr em discussão o problema moral da prosperidade dos maus (Jer 12,1-3), e com a de Isaías o pensamento de que Deus se serve das ambições humanas, da tirania estrangeira, para castigar os pecados do seu povo, sem, porém, deixar impunes os excessos dos tiranos (10,3-19). Especial em Habacuc é o grande princípio, promulgado com insólita solenidade (2,4), de que a fonte da vida é a fé em Deus, que são Paulo fará um dos pontos básicos da sua doutrina religiosa.

Na Bíblia grega o nome deste profeta é "Ambacum", e da mesma maneira está grafado o nome daquele "profeta na Judéia", que, agarrado pelos cabelos por um anjo, levou a refeição a Daniel na cova dos leões, em Babilônia (Dan 14,33-39). Por razões cronológicas, quando não por outras, as duas personagens são consideradas distintas.

SOFONIAS

De oito dos dezesseis profetas escritores não conhecemos sequer o nome do pai, ao qual se restringe na maior parte a genealogia dos outros (Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Joel, Jonas). De Zacarias, além do pai, cita-se também o avô. Sofonias, singular entre todos, prolonga a cadeia ascendente até ao trisavô, chamado Ezequias (cf. 1,1, nota) . Pensou-se que este Ezequias se identificasse com o conhecido rei de Judá, filho de Acaz, que reinou de 720 a 690 a.C, mais ou menos. Visto que Sofonias profetizou durante o reinado de Josias, o terceiro sucessor e bisneto de Ezequias (ib.), a cronologia não opõe dificuldades insuperáveis a essa opinião. O silêncio, porém, quer da história» quer do próprio profeta em torno dessa sua relação com a dinastia régia, torna-a de todo improvável. Além disso, esse nome não é raro na Bíblia.

O tempo em que vaticinou Sofonias pode ser deduzido da sua mensagem. Pregando sob Josias e entre outras coisas acusando os jerosolimitanos de perversões idólatras e práticas gentilicias em religião (1,4-6), isso deve ter acontecido antes da célebre reforma religiosa de Josias, que se iniciou em 621 a.C. (cf. 2Rs

Page 69: BIBLIA AVE MARIA

22,3-23,20). Diremos, portanto, que Sofonias exercitou o seu ministério profético pelo ano 625 a.C, quando surgiu também o profeta Jeremias no mesmo ministério.

AGEU

Afora o que nos refere o seu breve escrito, que ocupa o décimo lugar na série canônica dos profetas menores, a respeito do profeta Ageu sabemos apenas que foi contemporâneo do profeta Zacarias, com o qual compartilhou a missão de assistir os repatriados na obra de construção do templo.

A atividade do profeta Ageu desenvolveu-se durante poucos meses, no segundo ano de Dario I (cf. Ag 1,1;2,11), rei da Pérsia, de 521 a 485 a.C

Sem valor especial quanto ao estilo ou à poesia, o escrito de Ageu recebe sua eficácia e interesse da grande paixão do profeta pelo templo. Animada pela recordação do esplendor do antigo templo, contemplado talvez numa juventude muito remota, esta paixão é alimentada sobretudo pela certeza de que a reconstrução do templo é a premissa indispensável para um renascimento seguro da vida nacional. A isso acrescenta-se a visão sobrenatural daquilo que o novo templo é destinado a simbolizar e como que a preludiar: a gloriosa construção espiritual do futuro reino messiânico. Certo deste destino, o profeta encontra palavras inflamadas para sacudir o povo de seu letargo, torna-se ousado diante dos tímidos representantes oficiais da nação e arrasta todos a um grande fervor.

ZACARIAS

Do profeta Zacarias (em hebr. "]avé se recordou") fala também Esdr 5,1 ;6, 14. Era filho de Baraquias (Zac 1,1.7) e neto de Ado (Zac 1,1.7; Esdr 5,1 ;6, 14), provavelmente o mesmo

citado entre o$ sacerdotes que voltaram de Babilônia com Zorobabel, no ano 537 (cf. Ne 12,4). Isso pareceria confirmado também pela indicação de Ne 12,16, segundo a qual um certo Zacarias era chefe da família sacerdotal de Ado, no tempo do sumo sacerdote Jesus, contemporâneo de Zorobabel (cf. Zac 4, 14; Ag 1,1; Esdr 3,2).

Como a Ageu, coube também a Zacarias a missão de apoiar os repatriados na obra de reconstrução do templo.

Zacarias iniciou a sua atividade profética alguns meses depois de Ageu (cf. Ag 1,1 e Zac 1,1.7), no mesmo segundo ano do rei persa Dario I (520 a.C.), mas a estendeu por mais tempo. Ao menos, pelo que se narra nos oito primeiros capítulos do seu livro, alcançou-se o quarto ano do reinado do mesmo soberano (cf. Zac 7,1).

Pertence o livro por inteiro ao profeta do qual traz o nome? A maioria dos críticos estima a segunda parte como uma compilação, feita em época mais recente, de escritos de autores diversos e desconhecidos. Segundo alguns, os escritos seriam de origem helenista (séc. IV a.C); segundo outros, do tempo da revolta dos Macabeus (175-161 a.C.) ou de ambas as épocas.

Não obstante as múltiplas diferenças de argumentos, de perspectiva, de gênero literário e de estilo entre a primeira e a segunda parte, os católicos geralmente aderem hoje também à opinião tradicional que atribui todo o livro ao profeta Zacarias.

O livro inteiro é perpassado por uma profunda espiritualidade. Ressalta nele a doutrina sobre os anjos, que velam pela sorte do reino de Deus e desempenham, cuidadosos, a missão de intermediários entre o céu e a terra. Expondo os diversos motivos sobre o Messias e o seu reino futuro, Zacarias realça o elemento interior da santidade e o da luta contínua contra o mal até o surgimento de seu último estádio, glorioso e sem fim.

MALAQUIAS

O último escrito profético traz na Bíblia grega o título, mais comum entre nós, de Malaquias, que em hebraico quer dizer "Anjo [ou mensageiro] de Javé", e como nome próprio se encontra alhures no texto bíblico. A Bíblia hebraica intitula-o de Malaqui, que pode ser forma abreviada do precedente, ou significar, por si, "Anjo [mensageiro] meu".

Para determinar a época da atividade profética de Malaquias, não estamos melhor informados; devemos contentar-nos exclusivamente com os dados fornecidos pela análise interna do seu escrito. A semelhança, e às vezes a identidade, entre os abusos que Malaquias repreende e aqueles contra os quais

Page 70: BIBLIA AVE MARIA

tiveram de lutar freqüentemente Esdras e Neemias, nos levam a supor, com bastante fundamento, que também o presente profeta viveu durante o período persa, numa época mais ou menos próxima da dos dois grandes reformadores do séc. V.

Page 71: BIBLIA AVE MARIA

NOVO TESTAMENTO

Passando do Antigo para o Novo Testamento, principalmente se o lermos na ordem tradicional do texto, não teremos a sensação de mudar de ambiente. Sua primeira página (Mt 1,1) apresenta-nos um quadro genealógico à maneira dos que, tão freqüentemente, encontramos nos livros históricos do Antigo Testamento. Uma genealogia que começa com Abraão, antepassado-cabeça do povo hebreu. Logo depois (Lc 3,23-38), outra cadeia genealógica se nos apresenta, a qual nos faz remontar até ao primeiro homem, esse Adão sobre o qual um capítulo inicial do Antigo Testamento chamou a nossa atenção. Teatro dos acontecimentos são as regiões, cidades e campos da Palestina. Vive-se num mundo judaico, entre instituições e recordações da lei antiga. As personagens dessa nova história falam-nos numa linguagem característica, à qual nos haviam habituado as páginas dos livros sagrados precedentes. Não mudou o ambiente, mas outro é o ar que se respira. O espetáculo dum povo, duma nação singular, que no Antigo Testamento concentrava a atenção e o interesse do leitor, alarga-se aqui e restringe-se a um só tempo, sob aspectos diversos. De um lado, o objeto das promessas divinas, a salvação que nelas se anuncia, uma vez derrubadas todas as barreiras entre os povos, já não se restringe a uma pequena parte da humanidade, mas estende-se a todas as nações da terra. Por outro lado, a mensagem divina dirige-se diretamente a todos os povos, e cada qual, por si mesmo, aproximasse da nova aliança, assume-Ihe pessoalmente as obrigações e usufrui-lhe os privilégios. A lei divina já não é escrita em tábuas de pedra, mas é impressa no coração do homem e, deste modo, torna-se ao mesmo tempo, mais humana, mais suave e mais eficaz. Ê um arauto da antiga aliança que, nestes termos, nos delineia a essência e nos dita, por primeiro, o nome do "Novo Testamento" ("Nova Aliança": Jer 31, 31-34). A religião torna-se, assim, mais íntima, mais espiritual. No Novo Testamento já não ouvimos falar de conquistas e de reinos terrenos, mas anuncia-se-nos um reino de Deus que está dentro de nós (Lc 17,21; Rom 14,17). No Antigo Testamento, o horizonte humano restringia-se ao círculo da existência terrena e da vida ultraterrena não temos senão raras e vagas notícias. No Novo, ao invés, o espírito alça-se continuamente para o céu, e as promessas melhores e as mais fortes aspirações têm por objeto a vida futura. Na vida terrena, com o salmista (SI 38,13), o hebreu piedoso professava ser "adventício (hóspede) junto de Deus" e, por afeição ao seu Deus, pedia para ficar aí o mais possível. Os crentes do Novo Testamento sentem-se "exilados do Senhor" e anelam por "exilar-se do corpo" e chegar à pátria (2Cor 5, 6-8), para dar o eterno abraço ao Pai celeste. Característico é o título, que Deus tem, de "Adonai" (Senhor) no Antigo Testamento, e de "Pai" no Novo, onde a primeira e mais comum oração inicia-se com a suave invocação: "Pai nosso, que estás nos céus" (Mt 6,9).

Respira-se um ar mais puro, mais suave, porque somos levados mais para o alto, para o cimo do monte sagrado. O valor do homem está inteiramente nas virtudes morais, e para as próprias virtudes é proposto o ideal mais sublime (Mt 5,21-48). Temos no Novo Testamento a plenitude da revelação e a perfeição da moral. Tangível, sem dúvida, no Antigo Testamento um progresso da doutrina revelada, uma purificação da espiritualidade religiosa, um melhoramento correspondente dos costumes. Esta linha de elevação progressiva, realizada por especial providência de Deus, sobretudo por meio dos profetas, alcança o seu termo, tocando o vértice, no Novo Testamento. Sazonou aqui o fruto que se vinha preparando na florescência esplêndida das antigas Escrituras, o que vem dar ao Novo Testamento, com relação ao Antigo, uma superioridade de valor, para a nossa formação espiritual, que está em razão inversa da respectiva extensão do texto escrito e dos tempos abrangidos. O Novo Testamento compõe-se, no cânon completo e definitivo de 27 escritos distintos: 5 livros históricos (os quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos), 21 Epístolas de diversos apóstolos e 1 livro de índole profética, o Apocalipse. Tomados em conjunto, formam, em extensão, um quinto de toda a Bíblia e um quarto apenas do Antigo Testamento. Como espaço de tempo abrangem, quando muito, cerca de um século: desde o nascimento de Jesus Nazareno (5 a.C.) até à morte do seu mais novo amado discípulo (cerca do ano 100 d.C.). Era o primeiro e o mais feliz dos séculos daquela longa pax romana, que, irmanando sob o cetro de um único monarca a imensa bacia mediterrânea, facilitava providencialmente a

Page 72: BIBLIA AVE MARIA

propagação da Boa-nova, pregada, primeiramente, num canto das fronteiras orientais do vastíssimo império. Nesse variado organismo de tão numerosos povos de origens e línguas diversas, uma língua sobressaía-se sobre as demais como a língua da cultura e ainda como a mais conhecida e difundida nas relações comerciais: a língua grega. E foi precisamente nessa língua universal que foram escritos e transmitidos até nós todos os livros do Novo Testamento (exceção apenas do Evangelho de S. Mateus).

É um grego fácil, claro, temperado pelo uso da linguagem falada, adequado à inteligência até das camadas mais humildes da sociedade, às quais era dirigida, com certa predileção, a nova mensagem da salvação evangélica. Nessa roupagem popular, os escritos neotestamentários difundiram-se rapidamente pelo Oriente inteiro, bem como pelo Ocidente, o mais das vezes escritos em papiros (cf. 2Jo 12), matéria vulgar e de baixo preço, que facilmente se rasgava e muito depressa se estragava. Por esta razão, somente fragmentos nos chegaram das cópias dos três primeiros séculos, preciosos, sem dúvida, como testemunhos da autenticidade daquelas veneráveis páginas. Do IV século em diante (antigüidade esta que, no caso, é de grande valor), generalizando-se o uso do pergaminho ou pele de carneiro, matéria muito mais sólida e resistente, chegaram até nós cópias inteiras, não só de cada um dos escritos, mas também do Novo Testamento inteiro.

Com a difusão e a multiplicação das cópias, o texto, como acontece com as coisas humanas, sofreu, pelas mãos dos copistas, alterações de diversas espécies, que lhe ofuscaram a pureza primitiva, sem, todavia, prejudicar-lhe a substância. Surgiram, assim, tipos diversos de texto, com discrepâncias de códices, como lamentava, já no seu tempo (pelo ano 383), S. Jerônimo, o qual, emendando a antiga versão latina, com o auxílio de bons e antigos manuscritos gregos, reproduziu, na sua Vulgata, especialmente nos Evangelhos, o texto sagrado até bem próximo da pureza original, e nesse estado passou ao uso da Igreja latina. No império bizantino, prevaleceu, na idade média, um tipo de texto, no qual a união de leituras diversas, a conformação dos textos paralelos, o amaciamento das asperezas ou dificuldades, o brilho da língua fundiram-se numa composição temperada e descolorida, capaz de satisfazer as exigências de um público ávido de um alimento espiritual fácil, de preferência à precisão exegética. Dos manuscritos tardios dessa época esse texto obscuro passou à imprensa do século XIV e dominou durante três séculos nos estudos bíblicos, contrapondo-se ao teor mais vetusto e austero da Vulgata latina. Daquele texto traduziram-se os Livros Sagrados nas línguas modernas com as versões do século XVI, de protestantes e de católicos. Conhecendo, depois, os doutos os manuscritos mais antigos, sobretudo o Vaticano 1209 (B), apareceu logo a superioridade do texto aí contido, e o texto bizantino, já pomposamente proclamado "texto aceito por todos" (textus ab omnibus receptus), começou a perder o crédito, até que na segunda metade do século XIX foi definitivamente afastado não só das edições críticas, como também das manuais e escolásticas. Críticos de grande renome, depois de longos e severos estudos, seguindo vias diversas, concordaram em aprovar um texto sensivelmente igual, tanto próximo dos mais antigos manuscritos e da Vulgata, distante do texto outrora em vigor. Graças aos progressos da crítica moderna, podemos dar hoje o texto genuíno dos Evangelhos e dos escritos apostólicos, e não somente quanto à substância, como também quanto aos pormenores.

Cronologia

Os escritos neotestamentários abrangem, como foi dito, um século apenas. Embora seja tão breve o espaço, a cronologia dos fatos nos apresenta, por falta de dados suficientes e precisos, dificuldades e incertezas. Daí a grande variedade de opiniões entre os estudiosos. As datas que, para utilidade dos leitores, apresentamos, são as mais comumente admitidas, tendo, porém, valor apenas aproximativo. Como ponto de partida, no uso da era vulgar ou cristã, enquanto o ano 1 deveria ser o do nascimento de Jesus, cumpre dizer, de fato, que, por causa de um erro inicial de cálculo cometido pelo primeiro que introduziu essa era no cômputo das datas (o monge Dionísio, o Pequeno, no ano 525; cf. MIGNE, Patrologia latina, 67, 497-502), deve-se transportar aquele memorável e fundamental acontecimento para alguns anos atrás. Com efeito, consta, com certeza, do Evangelho (Mt 2,1-15; Lc 1,5), que Jesus nasceu antes da morte de Herodes, o Grande, que caiu (como podemos deduzir por vários fios da história profana) no início de abril do ano 750 de Roma, que corresponde ao 4º antes da era vulgar. Colocamos o nascimento de Jesus

Page 73: BIBLIA AVE MARIA

Cristo no ano anterior (assinalado — 5), embora permanecendo incerto quantos meses se passaram desde o seu nascimento até à morte do tirano. Outro caso grave de incerteza é a duração da vida pública de Jesus. A opinião que mais respeita os dados do texto evangélico é a que a fixa em dois anos e alguns meses. A esta atemo-nos, também nós, no seguinte quadro:

ANO

- 5. Nascimento de Jesus Cristo (Mt 2,1; Lc 2,1-7). + 8. Jesus perdido e encontrado no templo aos 12 anos (Lc 2,41-51). 28. Pregação de S. João Batista (Lc 3,1-3). Batismo de Jesus e início de sua vida pública (Mt 3,13-4, 17 e paralelos). 30. Paixão, morte e ressurreição de Jesus; com a descida do Espírito Santo começa a pregação dos apóstolos e constitui-se a Igreja primitiva. 34. Martírio de Sto. Estêvão. Conversão de Saulo (S. Paulo). 37. S. Paulo, fugindo de Damasco, faz sua primeira visita a Jerusalém, hóspede de S. Pedro (At 9,23-28; Gál 1,18). S. Pedro evangeliza a Judéia e a Samaria; acolhe na Igreja os gentios convertidos (At 9,31-11,18). Cristandade de Antioquia. 43. Martírio de S. Tiago. S. Pedro, libertado do cárcere, "dirige-se para outro lugar (At 12,1-17), provavelmente para Roma. Dispersão dos apóstolos por toda a terra. 45. Primeira viagem apostólica de S. Paulo (At 13,1-14,25). 50. Concílio dos apóstolos em Jerusalém; decreto para os convertidos do gentilismo (At 15,1-31). 50-52. Segunda viagem apostólica de S. Paulo, através da Ásia Menor, pela Acaia da Macedônia e da Grécia (At 15,36-18,22). Suas Epístolas aos fiéis de Tessalônica. 53-57. Terceira viagem apostólica de S. Paulo, pela Ásia Menor e pela Macedônia (At 18,23-21,2). As grandes Epístolas aos coríntios e aos romanos. 57-59. S. Paulo prisioneiro em Cesaréia da Palestina (At 21,17-26,32). 60-62. S. Paulo preso em Roma (At 27,1-28,30); Epístolas do cativeiro (Col, Ef, Flp, Fim). S. Tiago, o Menor, é morto em Jerusalém. 63-66. Últimas viagens apostólicas de S. Paulo. Epístolas pastorais. 67. Martírio de S. Pedro e de S. Paulo em Roma. c. 90. S. João evangelista é exilado, por causa da fé, para a ilha de Patmos, onde escreve o Apocalipse (Apoc 1,9-11). c. 100. S. João morre em Éfeso, depois de escrever o seu Evangelho e suas três Epístolas canônicas. Encerramento da idade apostólica e dos tempos bíblicos.

Page 74: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS

Evangelho, do grego evangelion, que significa "alegre notícia", "boa-nova", é como foi chamada, com vocábulo adequado, a mensagem de salvação e de redenção que Jesus Cristo trouxe ao mundo. Depois, por extensão, o mesmo vocábulo passou a designar o livro portador da narração dessa mensagem.

Jesus, o verdadeiro autor, sob qualquer aspecto, do Evangelho, pregou, e não escreveu, mas a primeira origem do Evangelho escrito data, pode-se dizer, do primeiro dia em que o Mestre divino foi arrebatado ao céu. Ao pregarem, os apóstolos, instruindo os novos fiéis, contavam os fatos e as palavras de Jesus. Essas instruções, tão freqüentemente repetidas, tomaram, com o tempo, uma forma que diríamos estereotipada; imprimiram-se na memória dos fiéis, que as transmitiam nas reuniões públicas ou nas conversas particulares. Nasceu, deste modo, o primeiro regato que concorreu para formar os Evangelhos, a tradição que remonta aos apóstolos. Com efeito, não tardou muito a se sentir a necessidade ou, ao menos, a utilidade de se fixar e, mais largamente, propagar, com a escrita, a mensagem evangélica. S. Lucas (1,1) fala de "muitos" que antes dele (pelo ano 60 d.C.) haviam resolvido escrever uma narração do "que Jesus fez e ensinou" (At 1,1). Nesse "muitos" ou "vários" estão, ao certo, incluídos alguns a mais do que os nossos dois primeiros evangelistas (Mateus e Marcos), anteriores a Lucas; mas é pelo menos duvidoso que aqueles lógia (palavras de Jesus não contidas nos Evangelhos canônicos), que o Egito, recentemente, restituiu à luz com os seus papiros, sejam fragmentos ou restos de alguns dos escritos visados aqui pelo evangelista. Podem, porém, remontar àqueles primeiros tempos, pelo menos quanto ao núcleo, alguns evangelhos, como o chamado dos hebreus, dos ebionitas, dos doze ou dos egípcios, dos quais os Padres da Igreja, principalmente S. Jerônimo e Sto. Epifânio, nos transmitiram alguns trechos. Não assim outros evangelhos, dos quais nos chegaram quase que só os nomes (e precisamente nomes de apóstolos: de Pedro, de Tomé, de Bartolomeu etc.) os quais são todos de origem posterior (séculos II ou III d. C; cf. ALTANER, Patrologia, § 9). De toda essa floração de evangelhos, quatro somente a Igreja reconheceu como inspirados por Deus e dignos de serem equiparados, por autoridade inigualável, aos livros sagrados do Antigo Testamento. São os Evangelhos que, por cadeia ininterrupta de testemunhos, a qual, de elo em elo, remonta aos discípulos imediatos dos apóstolos, nos são atestados como obras dos apóstolos Mateus e João e dos discípulos Marcos e Lucas.

De fato, Papias, bispo de Hierápolis na Frigia, que viveu nos primeiros decênios do II século, nos cinco livros de Esclarecimentos (ou Explicações), lembrando com quanto cuidado, na juventude, ele procurava interrogar os discípulos dos apóstolos sobre o que tinham dito aqueles anciãos, afirma que "Marcos, intérprete de Pedro, escreveu cuidadosamente tudo o que recordava das suas instruções", que "Mateus compôs em língua hebraica os discursos (tá lógia) *, que "o Evangelho de João foi publicado e comunicado às Igrejas pelo próprio João, ainda vivo". Destarte três dos nossos Evangelhos recebem já um testemunho explícito. Irineu, bispo de Lião, de uma geração apenas posterior a Papias, no terceiro dos livros Contra as heresias (c. 9-11), acrescentando-lhes Lucas, dá-lhes a série completa e, com energia, adverte expressamente que, nem mais nem menos de quatro são ou podem ser os Evangelhos (ib. 11). Ou melhor, com mais exatidão, tendo em conta que a "boa-nova" é propriamente uma: a mensagem de Jesus Cristo, e que esses quatro livros são redações ou aspectos diversos daquele Evangelho único (donde o uso constante, na Igreja, de dizer "Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus, segundo Marcos" etc), criou a feliz e expressiva locução de "Evangelho tetramorfo", isto é, "quadriforme".

Pelo tempo de Irineu, como revelam estudos recentes (veja Revue bénédictine, 1928, pp. 193-214), um católico desconhecido, provavelmente romano, compôs, contra a serpeteante heresia de Marcião, os mais antigos prólogos aos Evangelhos com notícias inéditas sobre cada um dos evangelistas. Dentro ainda do mesmo II século, narra-nos o chamado Cânon muratoriano, fragmento de um escrito a nos atestar a crença comum da Igreja romana, a origem e difusão dos quatro Evangelhos e precisamente na ordem tradicional e comuníssima de Mateus, Marcos, Lucas e João. Taciano, na Síria, por volta do ano 180, funde os Evangelhos numa narração única e intitulada "diatessáron", isto é, resultante de quatro, professando deste modo, no próprio nome da obra, o número fixo quaternário dos verdadeiros Evangelhos. O mesmo afirmam, em seus escritos, pelo mesmo tempo, no Egito, Clemente Alexandrino e, em Cartago, Tertuliano. No século seguinte, o III, com os escritores Origines, Hipólito, Cipriano, Vitório de Petau, com as versões latinas, coptas, siríacas, com o número crescente dos manuscritos do texto, é o coro de todas as Igrejas do Oriente

Page 75: BIBLIA AVE MARIA

e do Ocidente que se forma e proclama unanimemente os quatro Evangelhos segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas e segundo João, sem se erguer uma voz sequer em contrário até ao século XIX. Que outro escrito da antigüidade pode ostentar aprovação tão abundante, tão variada e tão próxima das origens?

Os próprios Evangelhos, apenas consultados e examinados, apresentam um testemunho concorde com a tradição. O de Mateus (para tocar aqui somente alguns passos mais notáveis) apresenta-se dirigido aos judeus, para os persuadir, com as contínuas chamadas às profecias do Antigo Testamento, de que Jesus de Nazaré é verdadeiramente o Messias prometido à nação escolhida. O de Marcos, reflexo das instruções de S. Pedro aos fiéis de Roma, é o mais entremeado de vocábulos e construções latinas, e a respeito de S. Pedro, mesmo omitindo certos fatos que mais o honram (caminhar sobre as águas, o primado, a taxa paga juntamente com a de Jesus), sabe dizer-nos mais do que os outros evangelistas. Em Lucas, além da maior pureza da língua e do estilo gregos, encontramos idéias, frases, relatórios (por exemplo, sobre a instituição da Eucaristia, cf. Lc 22,19-20 e 1Cor 11,24-25), que se conformaram com os de S. Paulo, de quem foi, durante anos, companheiro fiel. O quarto Evangelho mostra-se-nos claramente escrito por um dos doze que mais perto estiveram de Jesus, por alguém que sempre se acha presente nos acontecimentos, mas que nunca se nomeia e oculta-se sob a circunlocução "aquele discípulo que Jesus amava". Posto em confronto com os outros Evangelhos, deduz-se, por exclusão, que aquele "discípulo que Jesus amava" só pode ser João. Além disso, em muitos pontos da sua estrutura, esse Evangelho supõe claramente a narração dos três outros, e está inteiramente preocupado em apresentar as provas da divindade de Jesus, posta em dúvida ou negada pelas heresias, que germinaram na Ásia Menor, como sabemos pela História Eclesiástica. São precisamente as circunstâncias e os motivos aduzidos ou supostos pelos testemunhos acima citados. Atestações externas e qualidades intrínsecas confirmam-se, portanto, e sustentam-se reciprocamente para escoimar de qualquer dúvida ponderável a autenticidade dos quatro Evangelhos canônicos.

Por que quatro, e não mais? E por que precisamente esses e não outros são os Evangelhos reconhecidos e aceitos pela Igreja? A razão verdadeira e essencial é que só esses, e não outros, foram compostos por inspiração divina e foram comunicados à Igreja como palavra de Deus escrita. Esse é o sentido claro dos testemunhos antiquíssimos acima citados. A origem apostólica, isto é, o terem por autores apóstolos (Mateus e João) ou discípulos dependentes dos apóstolos (Marcos e Lucas) era uma garantia para eles, mas não constituía o seu motivo próprio e adequado. Estabelecido, porém, o fato da inspiração divina e, por isso, da canonicidade desses quatro somente, nada impede que descubramos, para esse número, outras razões de conveniência, como já fêz Sto. Irineu, no lugar acima citado (III, 11), e entrevermos algum símbolo nas próprias Escrituras divinas do Antigo e do Novo Testamento. Entre todos, célebre é um que teve imensa ressonância na literatura e nas artes: os quatro seres das quatro faces ou rostos, de homem, de leão, de touro e de águia, que sustentavam e puxavam o carro divino visto por Ezequiel (Ez 1,4-10) e pelo evangelista S. João, em êxtase (Apc 4,2-7). Encontram-se, outrossim, interessantes analogias e comparações entre cada um desses animais e um dos nossos Evangelhos, de modo que o homem se tornou símbolo de Mateus; o leão, de Marcos; o touro, de Lucas e a águia, de João. Pode-se afirmar que as suas figuras são reproduzidas em todas as igrejas cristãs e em cada exemplar ilustrado da Bíblia.

Literariamente, os Evangelhos pertencem ao gênero histórico. Não são propriamente uma história, pois concentram toda a atenção sobre uma única pessoa: Jesus de Nazaré. Não são, tampouco, apenas uma biografia propriamente dita, pois não pretendem narrar toda a vida e atividade de seu herói, com o intuito de informação. Têm por objetivo narrar a mensagem da renovação moral e religiosa que Jesus trouxe ao mundo, e mostrar a sua obra redentora em atuação. Fazem, por isso, uma seleção entre o muito que podiam dizer e aproximam-se, destarte, do gênero dos "fatos e ditos memoráveis", mas com referência específica à finalidade mencionada.

Seja qual for, porém, o modo com que se queira determinar ou não o gênero próprio dos Evangelhos, o certo é que, do gênero histórico, eles possuem o que constitui o seu supremo e primeiro valor, a finalidade própria e suprema: a veracidade da relação e a realidade objetiva dos fatos registrados. Do historiador verdadeiro e perfeito, os evangelistas possuem o amor da verdade na indagação, e a sinceridade e imparcialidade no referir. Não foram paixões políticas, nem preconceitos ideais, nem interesses pessoais que os moveram e sustentaram ao escrever. Não há vestígios desses sentimentos, que poderiam ofuscar o juízo sereno do escritor, em sua prosa límpida e serena. Simples e desataviado, claro e popular é o seu

Page 76: BIBLIA AVE MARIA

estilo. Pessoalmente, quanto eles amam o divino Mestre, mostrá-lo-ão mais tarde ao darem por ele o sangue e a vida. Ao escrever, porém, essa chama eles a conservam encerrada no coração, não permitindo que se exteriorize e lhe inflame a pena. Narram os milagres do Nazareno sem se admirarem com eles. Referem os aplausos e o entusiasmo populares, mas não compartilham das aclamações; registram, apenas, fatos, Não silenciam os insucessos do Mestre e a nenhum período de sua vida narram com tanta difusão como sua dolorosa e humilhante paixão. Entre tantas amarguras e ultrajes, porém, que relatam pormenorizadamente, não lhes foge um só gemido de compaixão pelo inocente torturado, nem um grito sequer de indignação contra os seus cruéis crucificadores. Dir-se-ia que são impassíveis, mas é a impassibilidade do historiador integral. E como é próprio do historiador narrar o que vê e o que ouve, o que cai sob a esfera dos seus sentidos e pode ser afirmado, os evangelistas, em seus depoimentos, jamais ultrapassam o limite dos fatos sensíveis e como tais atestados. Da própria ressurreição de Jesus, fato da maior importância por numerosas razões, eles não nos dizem quando nem como se deu, porque nenhum deles esteve presente. Falam do sepulcro aberto encontrado vazio, porque assim o viram os discípulos e as piedosas mulheres, falam das aparições de Jesus redivivo, porque as pessoas favorecidas com tais aparições afirmaram concorde e repetidamente que o tinham visto, tinham falado com ele, tinham comido e bebido em sua companhia, depois da sua ressurreição (At 10,41). Não se poderia desejar atitude mais objetiva e mais própria num puro historiador. Nada falta aos evangelistas daquilo que se pode referir aos fatos que narram, nem que se relaciona com a imparcialidade e exatidão em os referir como haviam chegado ao seu conhecimento. Somente isto, mesmo prescindindo da assistência do Espírito Santo que os animava, confere à narração toda a garantia da verdade. Não é sem razão que o próprio termo "evangelho" tornou-se, no uso, sinônimo de verdade evidente. Nossa fé, que tem suas raízes no Evangelho, também humanamente falando, apóia-se sobre as mais sólidas bases. Intenção sinceramente desejosa de verdade e coração dócil para a abraçar tal qual ela é, são as disposições mais adequadas para a leitura proveitosa do Evangelho.

Page 77: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A MATEUS

Mateus (nome talvez abreviado de Matadas) exercia, antes de seu chamamento ao apostolado, a profissão de cobrador de impostos, profissão, já de per si, detestada por todos, que se tornava ainda mais antipática ao povo judeu por favorecer, tal cobrança, a dominação romana. Os publicanos, os cobradores de impostos, eram considerados como pecadores públicos.

Mateus estava sentado à sua banca de trabalho quando foi chamado por Jesus. Levantou-se logo e o seguiu, dando adeus ao mundo com um banquete oferecido a Jesus e aos próprios colegas de profissão, "publicanos e pecadores" (Mt 9,9-10). Nas passagens paralelas de Marcos (2,14) e Lucas (2,27), por delicada consideração, é ele chamado Levi, outro nome seu, segundo um costume freqüente entre os hebreus. A partir de então entra a fazer parte do colégio dos doze, sem que nada de importante o pusesse em evidência. No catálogo dos apóstolos é colocado invariavelmente junto a Tomé, ao qual, por sentimento de humildade, se pospõe no seu Evangelho, lembrando o seu ofício de publicano.

Depois da ascensão de Jesus, ficou algum tempo na Palestina, evangelizando seus compatriotas. A que regiões tenha depois levado a luz da fé, que ele confirma com seu sangue (se a Arábia, a Etiópia, a Pérsia ou a região dos partos), não nos foi transmitido com certeza.

Em ordem cronológica, S. Mateus é o primeiro evangelista, conforme resulta da tradição. Pelo testemunho de Papias (95,165), bispo de Hierápolis na Frigia, sabe-se que escreveu em aramaico "ta lógia kyriaká", mas esta expressão, segundo o pensamento do próprio Papias, quando fala do Evangelho de S. Marcos, compreende não só os discursos, como também os fatos da vida de Jesus. Mateus não escreveu, portanto, uma simples coletânea dos discursos de Jesus, como afirmam, sem razão, alguns críticos, mas escreveu o "Evangelho do Senhor".

O texto aramaico não chegou até nós, pois perdeu-se, quiçá, nas agitações e destruições devidas à guerra do ano 70. Cedo, porém, desde os primeiros anos do cristianismo, fêz-se a redação, ou melhor, a versão grega do Evangelho deMateus, sem, contudo, podermos saber qual o seu autor; talvez o próprio apóstolo. Com efeito, a tradição atribui-lhe também unanimemente o texto grego; pelo menos quanto à essência, é plenamente idêntico ao texto aramaico. Os Padres apostólicos citam-no sempre, desde o início, como texto sagrado e inspirado, à semelhança das outras Escrituras, e foi unicamente sobre ele que se fizeram todas as versões.

Pelo que se deduz da tradição e do exame interno, Mateus escreveu o seu Evangelho na Palestina, destinando-o aos judeus convertidos e em geral aos seus compatriotas. A tese que visa a demonstrar é que Jesus é o filho de Davi, prometido e esperado, o Messias, ou melhor, o verdadeiro Filho de Deus. Provar a messianidade, a divindade de Jesus Cristo, constitui, portanto, a finalidade do primeiro evangelista. E o faz não tanto referindo os milagres de Jesus, quanto fazendo notar nele a realização das antigas profecias e insistindo nas provas que Jesus deu de sua divindade.

Não se pode estabelecer com certeza a data da composição do primeiro Evangelho. Pode-se, sem temor algum de errar, estabelecer o termo inferior, abaixo do qual certamente não foi escrito. De fato, conforme o testemunho unânime e constante da tradição (não faz exceção a voz ambígua de Clemente Alexandrino) o Evangelho de Mateus deve ter sido o primeiro a ser escrito, por isso, antes do de Lucas, cuja composição, como se verá, não pode nem deve ser posposta ao ano 63 d. C. Quanto ao termo superior, as opiniões são divergentes: muitos dão--Ihe por data de composição o ano 50 ou mesmo antes. Deve-se, contudo, dizer que é falsa a afirmação dos racionalistas, segundo os quais teria sido escrito após o ano 70.

O quadro seguinte do Evangelho de S. Mateus colocará sob nossas vistas toda a sua estrutura.

Page 78: BIBLIA AVE MARIA

I parte - História da infância de Jesus Cristo. (1-2).

Genealogia de Jesus (1,1-17). Seu nascimento virginal (1,18-25). Adoração dos magos (2,1-12). Fuga para o Egito (2,13-18). Volta a Nazaré (2,19-23).

II parte - Vida pública de Jesus Cristo (3-25).

1. Preparação para a vida pública (3,1-4,11). Pregação de João Batista (3,1-12). Batismo de Jesus (3,13-17). Tentação no deserto (4,1-11).

2. Ministério de Jesus na Galileia (4,12-18,35). Jesus doutor e promul-gador da nova lei (4,12-7,29). Jesus operador de milagres (8,1-9,34). Jesus mestre dos apóstolos (9,35-10,42). Jesus recrimina os fariseus (11-12). Expõe, com parábolas, o reino de Deus (13). Confirma a fé dos discípulos com novos milagres e fustiga a inveja dos fariseus (14,1-16,12). Promete a Pedro o primado (16,13-20), prediz sua paixão (16,21-28), transfigura-se no monte (17, 1,13) e dá instruções diversas aos apóstolos (17,14-18,35).

3. Ministério na Judeia (19,25). Viagem a Jerusalém (19-20). Entrada triunfal na cidade santa e purificação do templo (21,1-17). Jesus manifesta e censura os vícios dos fariseus e dos saduceus (21,18-23.39). Prediz a destruição de Jerusalém e o fim do mundo (24-25).

III parte - Vida dolorosa e vida gloriosa (26-28).

Preparação para a paixão (26,1-46). Paixão e morte de Jesus (26,47-27,66). Ressurreição, aparição de Jesus ressuscitado, missão dos apóstolos (28).

Aqui vem, no entanto, a propósito notarmos alguma coisa sobre a chamada "questão sinótica". Os três primeiros Evangelhos assemelham-se mais entre si e distinguemse do quarto, segundo João, na narração da vida pública de Jesus, principalmente de três modos: estendem-se mais difusamente sobre o ministério na Galileia e regiões limítrofes; para eles Jesus vai a Jerusalém uma só vez, pouco antes da paixão; referem os fatos e os discursos de Jesus em proporções quase iguais. Em João, ao contrário, predomina o ministério exercido em Jerusalém, para onde se vê Jesus dirigir-se pelo menos cinco vezes, e os discursos preponderam sobre os fatos. Além disso, os três primeiros nos referem muitas vezes os mesmos fatos na mesma ordem e até mesmo com idênticas palavras. Esta particularidade mereceu-lhes dos críticos a denominação de "Evangelhos sinóticos". A tamanha semelhança correspondem, porém, de outra parte, divergências assaz notáveis, que dão a cada um dos Evangelhos a fisionomia própria. De tudo isso o leitor encontrará confirmação com uma leitura atenta e comparativa dos sinóticos ou mesmo depois que com eles se familiarizar. Trata-se agora de explicar, ao mesmo tempo, semelhanças e disse-melhanças com uma sentença harmônica sobre a origem dos Evangelhos e relações mútuas. Ê a chamada "questão sinótica". Há dois séculos apresentaram-se várias e discordantes soluções, sem ter-se chegado a uma sentença comumente aceita. A seguinte, que leva em conta todos os dados do problema, inclusive os testemunhos históricos dos santos Padres, vai-se firmando sempre mais nos meios católicos.

Ao Evangelho escrito precedeu o Evangelho pregado, por um período de cerca de vinte anos, durante os quais a vida de Jesus, exposta nas instruções ou catequeses dos apóstolos, foi assumindo, pela escolha e organização do material, um esquema determinado e uniformemente repetido. Formou-se deste modo uma tradição oral, que serviu de base aos escritores. Com essa tradição, confirmada, enriquecida pela própria experiência pessoal, Mateus compôs o seu Evangelho em aramaico. Transplantado para Roma por S. Pedro, que já na Palestina fora o seu mais eficaz formador, esse esquema de catequese oral foi literalmente consignado por S. Marcos, em língua grega. Nessa mesma Roma, pelos anos 60-61, senão antes, S. Lucas deve ter conhecido bem esse Evangelho grego, e serviu-se dele para escrever o seu elaborado, para o qual consultou fontes orais e escritas (Lc 1,1-4). Tendo-se propagado not Oriente de língua grega o Evangelho de S. Marcos, dele se serviu também aquele que, qualquer que tenha sido (veja acima), traduziu para o grego o Evangelho aramaico de S. Mateus, dando-nos, deste modo, o texto canónico do primeiro de nossos Evangelhos. Resta explicar, para dar uma razão de todos os acordos e desacordos, as coincidências, mesmo verbais, entre Mateus e Lucas, nas passagens em que Marcos nada tem que lhes corresponda. Para essas, não parecendo verossímil que Lucas tenha conhecido Mateus em grego (pense-se, por exemplo, na história da infância e na genealogia de Jesus, tão diversas nos respectivos Evangelhos), autores católicos são inclinados a postular uma fonte comum escrita.

Page 79: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A MARCOS

O autor do segundo Evangelho é Marcos. Unânime é o acordo sobre este ponto, não havendo notas discordantes nem mesmo da parte dos críticos mais radicais. Tão claro e unânime é o sufrágio da tradição, que remonta, com os mais autorizados testemunhos das Igrejas em peso, até aos últimos anos do século I, à primeira geração cristã pós--apostólica.

Outro ponto certo e admitido por todos: assim como Marcos foi colaborador de Pedro na pregação do Evangelho, foi também o porta-voz e o intérprete autorizado na elaboração do Evangelho e transmitiu-nos, por meio desse texto, a catequese do príncipe dos apóstolos, tal qual ele a ensinava aos primeiros cristãos, principalmente da Igreja de Roma. Sobre isso também temos o testemunho claro e preciso da tradição.

Um fragmento de Papias, bispo de Hierápolis, na Frigia, pelos anos 110--130, conservado por Eusébio na sua História Eclesiástica (liv. III, fim), afirma expressamente, referindo-se às declarações do presbítero João: "Eis o que dizia o presbítero: — Marcos, tendo sido intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, não, porém, de modo ordenado, tudo o que recordava das coisas que o Senhor disse ou fez". O primeiro elo da tradição não é, portanto, Papias, e sim o presbítero João, que, segundo os melhores críticos, deve-se identificar com o apóstolo S. João. Outros elos dessa tradição temo-los nos testemunhos de Irineu, Justino, Clemente Alexandrino, Tertuliano, Origines etc., que nos relatam o pensamento autêntico das Igrejas dos primeiros séculos.

Nos Atos dos Apóstolos o futuro evangelista é chamado ora João Marcos (12, 12-25; 15,37), ora João (13,5.13), ora simplesmente Marcos (15,39), pois nessas passagens trata-se sempre da mesma pessoa, a qual, segundo um costume então em voga na Palestina, tinha, além do nome judaico, um nome greco-romano, como, por exemplo, o grande Apóstolo dos gentios, que se chamava Saulo e Paulo.

Marcos devia pertencer a família bastante rica e de grande ascendente na comunidade cristã de Jerusalém. Com efeito, em sua casa "onde várias pessoas se haviam reunido para orar" (At 12, 12), refugiou-se o apóstolo Pedro quando o anjo o libertou do cárcere de Herodes. Pretendem alguns deduzir disso que a casa de Marcos deve-se identificar com o cenáculo.

Marcos era primo de Barnabé (Col 4,10), levita, natural de Chipre e, quando este, juntamente com Paulo, foi designado pelos irmãos da comunidade de Antioquia para levar as esmolas à Igreja de Jerusalém, na volta levou consigo Marcos, para lhe servir de auxiliar (At 13,5) no labor da evangelização. Efetivamente, Paulo e Barnabé o levaram como colaborador na primeira viagem apostólica. Mas ao chegarem a Perga, na Panfília, Marcos separou-se dos dois missionários e achou melhor voltar a Jerusalém. Esta fraqueza e inconstância de caráter não agradaram a Paulo, que se recusou a levar Marcos como companheiro na segunda viagem missionária, pelo que o próprio Barnabé, separando-se de Paulo, foi com Marcos para a ilha de Chipre, enquanto Paulo e Silas rumaram primeiro para a Síria e para a Cilicia e depois para a Grécia. Deste modo, por disposição providencial de Deus, a boa-nova difundiu-se mais largamente.

Aquela nuvem passageira não diminuiu e muito menos rompeu as relações fraternas entre os dois apóstolos. Com efeito, Marcos foi depois colaborador fiel de Pedro e de Paulo. Este escrevia, de Roma, onde se achava prisioneiro, aos fiéis de Colossas (4,10): "Saúda-vos Marcos, primo de Barnabé"; e a Filemon: "Saúda-te Marcos, meu colaborador" (v. 24). Estava, pois, Marcos, nessa época, por volta do ano 61-62, com Paulo. Alguns anos mais tarde, pelo ano 63-64, ele cuidava da evangelização juntamente com Pedro, o qual escrevia de Babilônia (' — Roma) na sua primeira carta (5,13): "Saúda-vos meu filho Marcos", palavras que nos deixam crer que Marcos recebeu de Pedro o batismo.

Deve ter deixado Roma antes da perseguição de Nero} no ano 64, pois quando Paulo aí esteve para a segunda prisão, Marcos não estava. De fato, na sua segunda epístola a Timóteo (4,11) Paulo pede-lhe que venha a Roma e traga Marcos consigo.

Antigas tradições muito autorizadas atestam que nos anos seguintes Marcos evangelizou o Egito e fundou a Igreja de Alexandria, onde morreu mártir por Jesus Cristo.

Em Roma, Marcos escreveu o Evangelho, como no-lo confirma a tradição representada por Papias, Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano e outros, não para os judeus, e sim para os cristãos da Igreja romana, convertidos do paganismo. Segundo Clemente de Alexandria, ele escreveu a pedido de muitos cristãos que tinham ouvido a pregação de Pedro (cf. EUSÉBIO, História Eclesiástica, Vl, 14,6). Essa notícia encontra confirmação evidente em não poucas indicações, resultantes do exame interno do segundo Evangelho. Efetivamente, Marcos propõe-se como fim demonstrar que Jesus é verdadeiro Filho de Deus, e o faz especialmente com a narração de muitos milagres que ele operou, sinais evidentes de que é o senhor

Page 80: BIBLIA AVE MARIA

supremo da natureza, dos elementos, da vida, que tem poder para ler nos corações e no livro do futuro. Não insiste sobre o seu caráter de Messias, nem cita as antigas profecias que em Jesus tiveram a sua realização, com exceção de uma só vez (1,2-3). Não relata longos discursos de Jesus nem suas discussões com os fariseus, nem as questões relativas ao valor da lei e ao espírito dos fariseus, coisas essas todas que não teriam impressionado o espírito dos seus leitores. Usa, porém, freqüentemente, de grecismos e traduz algumas expressões aramaicas; explica aos destinatários do seu Evangelho algumas indicações geográficas da Palestina, usos e costumes próprios dos judeus. Entre os evangelistas é ele o único a lembrar que Simão de Cirene era pai de Alexandre e de Rufo, membros da comunidade cristã de Roma (cf. Rom 16,13). Indícios todos estes bastante persuasivos de que o segundo Evangelho foi escrito, como afirma a tradição, em Roma, com referência particular aos cristãos romanos convertidos do paganismo.

A composição do segundo Evangelho deve ser colocada antes do ano 70, ou melhor, antes do ano 63, época em que já tinha sido publicado o Evangelho de Lucas, o qual, como já admitem também os críticos acatólicos, depende de S. Marcos. Ora, sabemos pela tradição, como foi dito ao falarmos do Evangelho de S. Mateus, que, em ordem cronológica, este Evangelho ocupa o primeiro lugar, e que teria sido escrito, provavelmente, entre os anos 50 e 54. Podemos, portanto, afirmar que Marcos escreveu o seu Evangelho depois do ano 54 e antes do ano 61, no período em que ele devia encontrar-se em Roma, junto com o apóstolo Pedro, como seu auxiliar na fundação da Igreja de Roma.

Eis um resumo esquemático do Evangelho de Marcos:

Introdução. Preparação para a vida pública de Jesus (1,1-13). Pregação de João Batista (1,1-8); batismo de Jesus; tentação no deserto (1,9-13).

I parte - Ministério público de Jesus (1,14-10,52).

1. Ministério na Galiléia. Inauguração da pregação de Jesus (1,14-45). Conflitos com os escribas e os fariseus (2,1-3,6). Milagres de Jesus; escolha dos apóstolos; parábolas (3,7-4,43). Outros milagres e episódios do ministério de Jesus na Galiléia (4,35-7,23).

2. Viagens de Jesus fora da Galiléia. À região de Tiro e de Sidônia (7,24-30); à Decápole (7,31-8,26); à região de Cesaréia de Filipe (8,27-9,29); volta à Galiléia e viagem a Jerusalém 9,30-10,52).

II parte - Paixão e glorificação de Jesus (11,1-16,20).

Ingresso triunfal de Jesus em Jerusalém (11,1-11). Conflitos com os fariseus (11,12-12,44). Predição da destruição de Jerusalém, e do juízo final (13). Paixão e morte (14,1-15,47). Glorificação de Jesus (16).

Por este sumário pode-se notar uma característica do segundo Evangelho: a brevidade.

Além disso, outra característica do Evangelho de Marcos ê a vivacidade intuitiva da narração. Seu vocabulário é mais pobre e restrito; o estilo, monótono e descuidado, reflete o modo de pensar e de expressar-se próprios de um oriental simples e rude, bem longe da riqueza de linguagem e da perfeição do período elaborado do grego clássico. A narração, entretanto, ê viva, colorida, pitoresca até nos mínimos particulares e faz os acontecimentos reviverem ante os olhos do leitor, quais os tinha tantas vezes ouvido o próprio Marcos dos lábios do apóstolo Pedro. Nisto está a explicação da característica do segundo Evangelho. Marcos apenas reproduz e retrata a partir do natural a história evangélica, revivida e descrita por uma testemunha ocular, que tomou parte nela e que a tinha sempre presente.

Page 81: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A LUCAS

O Evangelho de S. Lucas ocupa o terceiro lugar entre os Evangelhos canônicos, e isso em ordem de lugar e de tempo também, segundo a tradição mais certa. As poucas notícias que dizem respeito à vida deste evangelista tiram-se sobretudo dos Atos dos Apóstolos, escritos por ele.

Nascido em Antioquia, segundo uma antiga e autorizada tradição recolhida por Eusébio (Hist. Ecles., III, 4-6), de família pagã, grego de estirpe e por educação, possuía, além do domínio da língua grega que aprendera na infância, também uma boa cultura, como se pode ver pelos seus escritos, dedicando-se à profissão de médico, como no-lo atesta S. Paulo (Col 4,14). Conheceu e abraçou a religião de Cristo, talvez por obra dos primeiros pregadores do Evangelho em Antioquia (At 11,19-24).

Com S. Paulo, que jamais diz tê-lo gerado para Cristo, encontramo-lo, pela primeira vez, em Trôade, na segunda viagem missionária do grande Apóstolo, que então (pelo ano 50 d. C.) estava para fazer a travessia da Ásia, com destino à Grécia. Daí por diante, esteve quase continuamente ao seu lado (executando, nas várias ausências, missões confiadas pelo próprio Paulo), qual discípulo afeiçoado e colaborador zeloso no ministério sagrado da palavra. "Somente Lucas está comigo", escreve tristemente o Apóstolo, prisioneiro pela segunda vez, em Roma, na 2? Epístola a Timóteo (4,11) que é como que o seu testamento espiritual. Não se sabe pois com certeza onde nem até quando o evangelista viveu depois do martírio de S. Paulo.

O próprio Lucas diz-nos (1,3) ter realizado indagações e ter recolhido informações a respeito dos atos e das palavras de Jesus, justo dos que os haviam presenciado. Dentre esses informantes, sobretudo nos primeiros capítulos do seu Evangelho, pode-se ouvir ainda a voz suave da própria mãe de Jesus. Mas o Evangelho de S. Lucas recebeu de S. Paulo, senão o primeiro impulso, certamente sua característica: a universalidade da salvação, as portas da salvação abertas aos gentios, a inexaurível misericórdia divina, o perdão dos pecados, a oração e a perseverança são os temas que de mais relevância se revestem neste Evangelho, que, pela suavidade de afetos de que ê impregnado e péla graça da expressão, é de todos o mais atraente.

É também sua especialidade o prólogo de sabor clássico, com a dedicatória a um ótimo cristão de nome Teófilo e a disposição peculiar da matéria, como se pode ver pelo sumário abaixo, no qual nos estão indicados, em caracteres normandos, as partes peculiares de Lucas.

Prólogo. - Motivo, modo e finalidade que o levaram a escrever o Evangelho (1,1-4).

I parte - Infância e vida privada de Jesus (1,5-2,52).

Um anjo anuncia o próximo nascimento do Precursor (1,5-25). O anjo anuncia a Maria o nascimento do Salvador, Jesus (1,26-38). Maria vai visitar Isabel (1,39-56). Nasce o Precursor e recebe o nome de João (1,57-80). Nasce e é circuncidado o Salvador (2,1-21). Jesus é oferecido no templo na purificação de Maria (2,22-39). Jesus fica perdido e é encontrado no templo (2,40-50). Sua vida oculta em Nazaré (2,51-52).

II parte - Vida pública de Jesus (3,21). A preparação (3,1-4,3): João, o Precursor, prega o batismo de penitência (3,1-19). Jesus (sua genealogia, 3,23-28) é batizado por João, retira-se para o deserto e é tentado pelo demônio (3, 21-4,13).

O ministério: pregação e milagres (4, 14-21,38) em três regiões distintas:

1. Na Galiléia (4,14-9,50), em três fases:

A) Até à escolha dos apóstolos (4,14--6,11). Sermão infrutífero e perigo que corre em Nazaré (4,14-30); pregação e curas de doentes em Cafarnaum (4,31--44); pregação feita de dentro da barca de Pedro e pesca milagrosa (5,1-11); cura do leproso (5,12-16) e do paralítico (5,17-26); o chamamento do publicano (Levi-Mateus), nova vida e novos costumes (5,27-39); observância do sábado (6,1-11).

B) Até à missão dos apóstolos (6,12--8,56). Jesus escolhe doze e chama-os de apóstolos (6,12-16); profere-lhes o sermão ou discurso do monte (6,17-49); cura do servo do centurião (7,1-10); ressuscita o filho da viúva de Naim (7, 11-17); recebe os discípulos de João, do qual faz o elogio (7,18-35); recebe e louva a pecadora arrependida (7,36-50); as piedosas mulheres que o seguem (8,1-3); parábola do semeador (8,4-18); os parentes de Jesus (8,19-21); a tempestade acalmada (8,22-25); curas de endemoninhados (8,26-39), da hemorroíssa (8,40-48); ressuscita a filha de Jairo (8,49-56).

Page 82: BIBLIA AVE MARIA

C) Até à partida da Galiléia (9,1-50). Jesus envia os apóstolos a pregar e a curar os doentes (9,1-9); com poucos pães sacia 5000 pessoas (9,10-17); responde a Pedro, (que o reconhece como Messias) predizendo a própria paixão e recomendando a abnegação de si mesmo (9,18-27); transfigura-se no monte (9, 28-36); cura um menino possesso (9,37-42); dá lição de humildade e de moderação (9,43-50).

2. Em viagem para Jerusalém, na Peréia (9,51-19,28). Jesus envia os discípulos na frente e dá-lhes diversas instruções (9,51-10,24); parábola do bom samaritano (10,25-37); em casa de Marta e Maria (10,38-42); força da oração (11,1-13); o poder de expulsar demônios (11,14-26); a verdadeira bem-aventu-rança (11,27-28); o sinal de Jonas (11, 29-36); censura os fariseus e os escribas (11,37-54); advertências às turbas contra a vanglória, o respeito humano, a avareza, a solicitude excessiva dos bens temporais (12,1-34); vigilância (12,35-48); sinais e tempo para fazer penitência (12,49-13,9); curas em dia de sábado, o reino de Deus e sua obtenção (13, 10-14,24); disposições para seguir a Jesus (14,25-35); alegria por um pecador convertido (15,1-10); parábola do filho pródigo (15,11-32); do feitor infiel (16,1-18); do rico glutão (16,19-31), outros avisos (17,1-10); cura dos dez leprosos (17,11-19); preparação para a vinda do reino de Deus (17,20-37); parábolas do juiz e da viúva (18,1-8); do fariseu e do publicano (18,9-14); condições para entrar no reino de Deus (18,15-30); Jesus em Jericó prediz sua paixão (18,31-34); cura um cego (18,35-43); entra em casa do publicano Zaqueu e converte-o (19, 1-10); parábola dos servos e das dez minas (19,11-28).

3. Em Jerusalém (19,29-21,28). Jesus entra festivamente em Jerusalém (19, 2940) e chora sobre sua sorte (19,41-44); expulsa os mercadores do templo (19,45-48); responde às queixas dos invejosos (20,1-8); parábolas dos maus vinhateiros (20,9-19); o tributo a César (20,20-26); e ressurreição dos mortos (20,27-40); Davi e Cristo (20,21-44); contra a vanglória (20,45-47); o óbolo da viúva (21,1-4); Jesus prediz a destruição do templo e de Jerusalém (21,5- I 24) e, aludindo ao fim do mundo (21, 25-28), exorta à vigilância (21,29-38).

III parte - Paixão e ressurreição de Jesus (22-24).

Nesta parte são especiais a Lucas: a primeira distribuição do cálice na ceia pascal (22,15-17); a discussão entre os apóstolos por causa da promessa e da missão confiada a Pedro (22,24-32); as duas espadas (22,35-38); o suor de sangue no horto (22,43-44); o olhar de Jesus a Pedro (22,61); o conciliábulo da manhã (22,66-71); Jesus no tribunal de Herodes (23,6-12); suas palavras às piedosas mulheres (23,27-31); o bom ladrão (23,39-43); aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos de Emaús (24,13--35); a ascensão de Jesus ao céu (24, 44-53).

Que o médico Lucas, companheiro de S. Paulo, seja o autor deste Evangelho, não pode haver dúvida nenhuma, pelo testemunho constante e unânime de todos os antigos, quer aqueles dos manuscritos ou versões do texto, quer os dos escritores de todos os quilates, tanto hereges (como Marcião) quanto católicos, testemunhos estes confirmados pelo exame intrínseco deste Evangelho. De fato, como obra de um grego de nascimento, ele não contêm (caso único entre os Evangelhos) nenhuma palavra aramaica, nem mesmo o comuníssimo "rabi", e entre todos os escritos do Novo Testamento (exceção feita da Epístola aos Hebreus) é o que tem a locução mais conforme ao gênio da língua grega.

Escreveu Lucas o seu Evangelho antes dos Atos dos Apóstolos, que são como que a continuação daquele (At 1, 1) e, por isso, provavelmente não só antes da morte de S. Paulo (ano 67), que nos Atos é ignorada, mas também antes do fim da prisão do Apóstolo (ano 63), com a qual se encerra esse último livro. Em suma, por volta do ano 60.

Page 83: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO A JOÃO

O quarto Evangelho, pela feição particular que o caracteriza, afasta-se dos Evangelhos sinóticos. Seu fim principal, como o nota o próprio autor (20,31), é fazer ressaltar a divindade de Cristo, e para tal fim convergem tanto a elevação dos discursos, reproduzidos com os mesmos milagres narrados e o prólogo admirável, que se refere ao "Verbo que se fez carne, e nós vimos a sua glória como de filho unigênito do Par (1,14).

Por causa desse caráter transcendente que o reveste, os antigos Padres chamaram o quarto Evangelho com um termo próprio: Evangelho espiritual; os gregos, por sua vez, deram a João o título de Teólogo.

Não é que a figura de Jesus nele delineada seja diferente da que dele traçam os sinóticos, pois, ainda que o quarto Evangelho realce mais o aspecto divino, não se descuida do seu aspecto humano e aquele seu Jesus combina perfeitamente em tudo com o dos sinóticos.

Da leitura de muitas de suas páginas, como, por exemplo, de alguns milagres como a cura do cego de nascença, a ressurreição de Lázaro etc., escritas com tão admirável simplicidade e vivacidade de colorido, que revelam a testemunha ocular, surge bela, eloqüente a figura humano-divina de Jesus, todo bondade e misericórdia, como o dos sinóticos. Aí encontramos identificada a doutrina com as mesmas verdades e os mesmos preceitos, ainda que mais desenvolvida e mais elevada. Ê que cada um dos evangelistas escolheu e narrou o que da vida e dos ensinamentos do Mestre interessava ao seu objetivo, sem pretender esgotá-lo sob todos os aspectos.

Compare-se o seguinte quadro do quarto Evangelho com os que apresentamos nos três precedentes estudos.

Prólogo. O Verbo divino que se faz carne (1,1-18).

1-parte - Jesus manifesta sua divindade e é reconhecido pelos homens de boa vontade (1,19-4,54).

Pregação de S. João Batista e seu testemunho a respeito de Jesus (1,19-35); primeiros discípulos de Jesus (1,36-51).

Primeiro milagre de Jesus nas bodas de Caná (2,1-12). Em Jerusalém, Jesus purifica o templo (2,13-22); faz milagres e muitos crêem nele (2,2325); instrui Nicodemos (3,1-21). Na Judéia com os discípulos, que batizam; novo testemunho de João Batista (3,22-36).

Colóquio com a samaritana (4,1-42) e volta à Galiléia; cura o filho de um oficial (4,43-54).

II-parte - Oposição dos judeus à pregação de Jesus (5-12).

Em Jerusalém: cura do paralítico (5, 1-9); os judeus são pela observância do sábado (5,10-16). As ações de Jesus, Filho do Pai (Deus) e tríplice testemunho em seu favor (5,17-47).

Na Galiléia, Jesus multiplica uns poucos pães para 5.000 homens (6,1-15) e em Cafarnaum profere um sermão às turbas sobre o pão que desce do céu (promessa da eucaristia; 6,16-60); defecção de muitos de seus discípulos (6, 61-7,1).

Em Jerusalém, na festa dos Tabernáculos; pregação no templo e hostilidade dos judeus (7,2-52); acusação e absolvição da mulher adúltera (7,53-8,11). Jesus é a luz do mundo (8,12-20), o Salvador e Filho de Deus (8,21-59). Cura do cego de nascença e irritação da oposição (9). O bom pastor (10,1-18). Dissensões entre os judeus (10,19-21).

Em Jerusalém, na festa da Dedicação (10,22-39). Na Peréia (10,40-42), Jesus ressuscita Lázaro (11,1-46); os judeus deliberam fazê-lo morrer (11,47-57). A ceia em Betânia, seis dias antes da Páscoa (12,1-11). Ingresso triunfal em Jerusalém (os Ramos: 12,12-19); pressentimento da paixão (12,20-28); último apelo à fé (12,29-36). Causas da incredulidade dos judeus (12,37-50).

III-parte - Paixão, morte e ressurreição de Jesus (13-21).

Ultima ceia: Lava-pés (13,1-20); saída de Judas (13,21-32); longo sermão após a ceia (13,33-16,33); oração de Jesus ao Pai (17).

No horto, Jesus é capturado (18,1-12), levado a Anás e depois a Caifás, é negado por Pedro (18,13-27). Jesus no pretório de Pilatos; primeiro interrogatório, flagelação e coroação de espinhos (18. 28-19,3). Segundo interrogatório e condenação (19,4-16).

No Calvário: crucifixão e morte (19, 17-30); golpe de lança no lado de Jesus e sepultura (19,31-41); aparições de Jesus ressuscitado: à Madalena (20,1-

Page 84: BIBLIA AVE MARIA

18); aos discípulos, na ausência de Tomé (20,19-23); ainda aos discípulos, com Tomé (20,24-31); às sete pessoas perto do lago de Tiberíades (21,1-14). Confirmação do primado a Pedro (21,15-19). Destino e veracidade do evangelista (21, 20-25).

Procurou o autor conservar-se anônimo, mas ocultou seu nome sob um véu tênue e transparente, que se intui com toda a facilidade. Com efeito, por um exame atento resulta que o autor é judeu, que conhece, até mesmo nos mínimos particulares, as instituições judaicas e os acidentes topográficos da Palestina e de Jerusalém, no tempo de Cristo.

Desse exame resulta ainda ser o escritor um judeu de origem, que, escrevendo em grego vulgar, revela-se judeu no estilo, no desenrolar dos períodos, em muitas locuções próprias das línguas semíticas, no paralelismo que usa quando se lhe apresenta a ocasião e na modalidade mesma dos conceitos. Essas características — cumpre notá-lo — oferecem-nos valioso argumento para afirmar a unidade do quarto Evangelho, sem eruditos acréscimos de vários elementos hauridos de fontes diversas e também sem descontinuidade de pensamento e de finalidade, como pretenderam certos críticos, guiados por seus preconceitos apriorísticos.

Resulta outrossim ser o autor um judeu que afirma com insistência, para garantir a verdade do que narra, ter sido testemunha ocular dos fatos (1,14; 19, 35), como o afirma também o autor da primeira epístola atribuída a S. João, a qual é como que a introdução e o complemento do seu Evangelho (cf. 1Jo 1, 1-3).

Resulta, além disso, que o autor é um discípulo de João Batista, que se tornou um dos primeiros discípulos de Jesus; que pertence ao colégio apostólico e que foi o discípulo predileto de Jesus. Coisa estranha: ele jamais fala dos dois filhos de Zebedeu, Tiago e João. Ora, dos três discípulos que Jesus amava mais, o autor do quarto Evangelho não pode ser Pedro, pois mais de uma vez se percebe que é distinto dele. Tiago, irmão de João, também não pode ser, pois foi condenado à morte por Herodes Agripa (no ano 43).

Todos os dados apresentados verificam-se com exatidão no apóstolo S. João, confirmando plenamente a voz autorizada da tradição. Aos testemunhos implícitos, isto é, às citações anônimas do quarto Evangelho, que se encontram nalguns Padres apostólicos e que remontam aos primeiros decênios do século II, poucos anos após ter sido escrito, unem-se os testemunhos explícitos das várias Igrejas do Oriente e do Ocidente, representadas por nomes e documentos autorizados, como Papias, Polícrates, Irineu, Justino, Teófilo de Antioquia, o Fragmento muratoriano, para falarmos somente dos mais antigos.

Esse conjunto de testemunhos implícitos e explícitos ê unânime em afirmar que o quarto Evangelho foi escrito pelo apóstolo João, o discípulo predileto de Jesus.

Pela leitura do quarto Evangelho vemos que João já supõe conhecida pelos seus leitores a vida de Jesus, antes narrada pelos sinóticos e que ele quer completar o que aqueles escreveram. Quando o escreveu, o cristianismo já se achava amplamente difundido, de modo especial no império romano, e o clima religioso da Igreja bastante mudado em relação ao tempo em que os evangelistas escreveram os sinóticos.

Na Ásia Menor tinham começado a pulular os multiformes erros do gnosticismo, que negavam a divindade de Cristo e sob o rótulo aparente de ciência superior, tentavam insinuar-se nas comunidades cristãs. Para combater esses erros sedutores e estabelecer as bases irrefragáveis da divindade de Jesus Cristo, João escreve então o seu Evangelho. Com essa finalidade, ele narra muitos discursos de Jesus e alguns milagres que projetam mais luz sobre a divindade do Salvador. Não nos deve causar admiração o fato de Jesus ter dirigido discursos mais elevados aos escribas e aos fariseus do que os que dirigiu às turbas da Galiléia, e que esses discursos — não referidos pelos sinóticos por não se enquadrarem com o seu escopo — proferidos à maneira de perguntas e respostas, com sentenças curtas e pejadas de conceitos, como era então costume fazer-se entre os rabinos, tenham ficado indelevelmente impressos na mente de João, que os meditava diariamente e repetia com freqüência, em suas catequeses aos primeiros cristãos. Reproduziu-os, por isso, fielmente no seu Evangelho, pelo menos quanto à substância, e o mais das vezes também com as próprias palavras que o Mestre pronunciou.

Page 85: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AOS ATOS DOS APÓSTOLOS

O título que este livro de Atos (sem artigo) dos Apóstolos (de todos os apóstolos, em geral) tem nos manuscritos do texto original exprime, se bem examinado, exatamente o seu conteúdo. Seus protagonistas são os dois príncipes dos apóstolos: Pedro, nos primeiros doze capítulos, e Paulo, nos dezesseis restantes. Contudo, quer nos primeiros, quer nos segundos, entrelaçam-se também ações de outros apóstolos e tanto Pedro como Paulo (embora este menos visivelmente) agem, mais do que à primeira vista pode parecer, em função do colégio apostólico, um como cabeça, outro, como pioneiro.

Para melhor esclarecimento, será de muita utilidade o sumário seguinte, que apresenta a unidade orgânica compacta do livro e o concatenamento das partes entre si, convergindo para o objeto indicado no título, e que correspondem às fases da propagação do Evangelho.

Introdução (1,1-26). Proêmio em que o autor se reporta ao seu Evangelho como para continuá-lo (1-3). Jesus dá às últimas instruções aos apóstolos e sobe ao céu (4-11); estes retiram-se com os outros fiéis para o cenáculo à espera do Espírito Santo (12-14); elegem Matias em substituição a Judas (15-26).

1a parte (2,1-8,3). A mensagem evangélica em Jerusalém.

1. Descida do Espírito Santo e inícios da Igreja (2,1-47).

2. Cura do paralítico, lutas de Pedro e dos apóstolos contra o Sinédrio e primeira perseguição (3,1-4,31).

3. Progresso e vida interna da Igreja, como efeito da obra e dos prodígios dos apóstolos. Ananias e Safira. Segunda perseguição (4,32-5,42).

4. Eleição dos diáconos helenistas; missão de Estêvão e seu martírio; terceira perseguição com a conseqüente dispersão dos fiéis (6,1-8,3).

II parte (8,4-12,25). A mensagem evangélica na Judéia e na Galiléia, na Samaria e entre os -gentios, até Antioquia.

1. Missão de Filipe (confirmada por Pedro) entre os samaritanos e com o eunuco etíope (8,4-40).

3. Missão de Pedro na Judéia e entre os gentios, em Cesaréia (9,31-11,18).

4. A Igreja entre os gentios na Fenícia, Síria e Antioquia (11,19-30).

5. Quarta perseguição, morte de Tiago, prisão e libertação de Pedro, morte do perseguidor (12,1-25).

III parte (13,1-28,31). A mensagem evangélica no mundo greco-romano.

1. Primeira viagem apostólica de Paulo: na Ásia Menor (13,1-14,27).

2. Concílio de Jerusalém, que sanciona a independência em face da lei para os gentios (15,1-34).

3. Segunda viagem apostólica de Paulo: na Macedônia e na Grécia (15, 35-18,22).

4. Terceira viagem apostólica de Paulo: na Ásia Proconsular, na Grécia e na Macedônia, até ao Epiro (18,23--21,16).

5. Prisão de Paulo em Jerusalém e mensagem ao Sinédrio (21,17-23,11).

6. Prisão em Cesaréia e mensagem para Félix, Festo e Agripa (23,12-26,32).

7. Viagem até Roma, prisão e mensagem aos judeus e aos gentios (27,1-28,31).

Importância histórica e apologética

Grande é, sem dúvida, a importância do livro dos Atos na história primitiva das origens cristãs, como transparece já do sumário acima. Traça Lucas um esboço compendioso, é certo, mas completo no seu gênero, da Igreja primordial na sua hierarquia e na vida do dogma, da disciplina e do culto, como se desenrolava na primeira geração cristã, ainda repleta da recordação imediata dos ensinamentos, das obras e dos preceitos do Mestre divino. Temos assim, na vida e no pensamento dos primeiros seguidores de Jesus, o mais precioso reflexo e como que a contraprova da vida e do pensamento dele e de sua mensagem de salvação, qual foi ouvida de sua boca e vivida pelos seus discípulos imediatos. Ê, portanto, decisivo o valor apologético dessas resultantes históricas, confrontando-se as duas interpretações contrárias, a católica e a racionalista, sobre a vida e o ensino de Jesus. Se o retrato que S. Lucas nos apresenta da primeira geração cristã na vida da Igreja é autêntico, então são insustentáveis as posições negativas da crítica racionalista contra o sobrenatural que se manifesta nos Evangelhos e nos Atos, e as suas pretensas afirmações sobre uma longa evolução da primeira tradição cristã, em sucessivas fases e formas. Não resta outra solução senão afirmar que essa tradição continua

Page 86: BIBLIA AVE MARIA

viva e imutável na duas vezes milenar tradição católica. Ê daí que surgem os acirrados ataques lançados pela corrente adversária contra a autenticidade e a veracidade histórica do livro dos Atos.

Autor, valor histórico, finalidade e data do livro

As questões atinentes ao autor e ao valor histórico do presente livro acham-se interligadas de modo especial.

Quanto ao autor, por ser, evidentemente, o mesmo que o do terceiro Evangelho (cf. Lc 1,1-4 e At 1,1), valem as mesmas razões já aduzidas na introdução àquele Evangelho, para identificá-lo com S. Lucas. Acrescentamos, porém, aqui uma ainda mais direta e de autoridade maior. A certa altura (15,10), o próprio autor entra em cena, narrando os fatos com um "nós", que o caracteriza como testemunha ocular e participante dos acontecimentos. E, deste modo, com verbos ou pronomes na primeira pessoa se nos apresenta, de vez em quando, até ao fim. São as chamadas "seções do nós" (16,10-17;20,5-15;21,1--18;27,1;28,16), tão discutidas entre os críticos, seções nas quais, como o restante do livro, apresentam idênticas particularidades de vocabulário, de estilo, de composição, de expressões características, muitas vezes únicas no Novo Testamento. O autor da obra deve ser procurado entre os companheiros de S. Paulo, mencionados como tais nos Atos (por exemplo: 20,4) ou nas Epístolas do Apóstolo, entre os quais está Lucas (Col 4,14; 2Tim 4,11; Fim 24). Excluem-se, no entanto, todos os outros por se acharem ausentes dos acontecimentos narrados em algumas dessas "seções do nós", e porque de nenhum outro se sabe que tenha escrito a narração da vida inteira de Jesus como fez o autor dos Atos (1,1), dedicando-a, além disso, a um mesmo "Teófilo".

Lucas busca, portanto, os fatos que narra nos Atos, na própria experiência pessoal ou segundo o seu programa traçado (Lc 1,2), nos atores e espectadores dos fatos, fontes de primeira ordem e de credibilidade insuperável. Do mesmo valor são também alguns documentos que ele insere textualmente na narração, como o "decreto apostólico" (15, 23-29) e a carta de Lísias (23-26-30) que são uma confirmação do seu escrupuloso cuidado com a exatidão. Essa rigorosa exatidão é confirmada pelas inscrições recentemente trazidas à luz, até nos mínimos particulares, como quanto à nomenclatura das autoridades municipais (asiarcas, em Éfeso, 19,31; politarcas, em Tessalônica, 17,6; estrategistas, em Filipos, 16,20; o "primeiro", em Malta, 28,7).

A finalidade que Lucas se propõe aparece já, como foi indicado anteriormente no título da obra, mas ainda mais nas palavras de Jesus: "E me sereis testemunhas. . . até as extremidades da terra" (1,8). Narra Lucas, nos limites consentidos por um livro destinado ao uso da época, a propagação da Igreja e suas fases sucessivas até sua extensão à capital do império romano, através da obra daqueles que foram em todas as fases os seus principais artífices: os apóstolos Pedro e Paulo e seus colaboradores. Em nada revela-se Lucas tendencioso em seu modo de falar. Simples, ágil e compreensivo, deixa aos próprios fatos a incumbência de indicarem as conseqüências deles resultantes. De cada uma das páginas de sua narração transparece que a finalidade é simplesmente a de relatar os acontecimentos relacionados com a vida da Igreja e informar sobre a realização das disposições de Jesus a respeito da mesma Igreja, tudo a título de edificação e de instrução religiosa, conforme o que o próprio Lucas afirma ao se dirigir ao Teófilo do seu outro livro, o terceiro Evangelho. Finalidade idêntica para destinatário idêntico. Fixa-se como data da composição dos Atos antes do fim da prisão de dois anos que S. Paulo sofreu em Roma, como se evidencia pela conclusão mesma do livro (28,30-31), isto é, nos anos 61-63.

Page 87: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO ÀS EPÍSTOLAS DE SÃO PAULO

A parte mais importante e mais conspícua dos escritos apostólicos são as epístolas de S. Paulo, inclusive pelo volume do texto, pois, sozinhas, constituem mais da metade desses escritos, mas sobretudo pela profundeza e vastidão de doutrina teológica e pela abundância de ensinamentos morais de que estão repletas.

São escritos ocasionais, como costumam ser precisamente as cartas; nasceram da necessidade que o Apóstolo sentiu de intervir com a pena onde não podia chegar com a voz, a fim de apaziguar litígios, dissipar dúvidas, aconselhar, aplicar remédio a inconvenientes, dirigir e iniciar ao bem, segundo as situações originadas pela vida interna das Igrejas por ele fundadas ou dependentes, de alguma maneira, da sua pregação. Mas nessas contingências é tão grande a variedade de casos e sobretudo a abundância de pensamentos e de afetos que afluem à mente e ao coração de Paulo, que se pode afirmar que nas páginas inspiradas do Apóstolo se expande toda a substância da doutrina e da moral cristã.

Conforme o uso dos antigos escritores, S. Paulo não escrevia de próprio punho as suas cartas, mas ditava-as a algum amanuense profissional de sua confiança. Pelo menos de uma (Rom 16,22) conhecemos o nome de quem a escreveu. Paulo punha, no fim, de seu próprio punho, a assinatura, com algumas palavras de saudação ou bênção. Em toda a antiguidade oriental, as cartas começavam sempre com a fórmula estereotipada: "Fulano [remetente] e beltrano [destinatário] saudações" (temos exemplo disso em At 23,26). O Apóstolo seguiu o uso corrente, mas em lugar da saudação ordinária introduziu o augúrio cristão: "graça e paz", repetido também no fecho, em lugar do vulgar ";Passe bem", e de ordinário adornado com o nome de Jesus Cristo.

Do uso de ditar as cartas, que tomava tempo à reflexão, costumavam derivar defeitos de composição de que um estilista como S. Jerônimo tão freqüentemente se desculpa. Esta é a causa, pelo menos parcial, da aspereza não rara do estilo de S. Paulo, não obstante saiba ele manejar egregiamente a língua grega do tempo. A maior parte, porém, dessa aspereza (anacolutos, elipses, hipérbatos etc.) deve-se ao turbilhão das idéias que lhe afluíam à mente e à profundidade e novidade dos pensamentos que buscavam uma expressão própria. Nem sempre ê fácil a leitura dos escritos do grande Apóstolo, mas com o estudo paciente, ruminando-os demoradamente, tira-se-lhes em abundância o suco mais substancioso e ao mesmo tempo mais delicado.

As cartas de S. Paulo são dirigidas, em primeiro lugar, às Igrejas ou pessoas segundo as quais são intituladas, mas ele próprio, o grande Apóstolo, já convidava à comunicação dessas suas cartas de uma Igreja para outra (Col 4,16). As trocas deviam ser freqüentes entre aquelas comunidades fervorosas que ele fundara. Destarte foram-se formando várias coleções das epístolas paulinas, que acabaram confluindo no epistolário paulino admitido no cânon de todas as Igrejas e que chegou até nós. Esse cânon não compreende a totalidade das cartas que se originam do Apóstolo. Na 1Cor 5,9 há notícias de uma epístola anterior, cujos vestígios se perderam totalmente; entre a primeira e a segunda carta aos mesmos coríntios, intercalou-se, como opinam autores de renome, outra ainda. Além disso, a epístola aos laodicenses, mencionada em Col 4,16 não se identifica com a dos efésios (veja Introdução a esta), deve-se dizer que também essa se perdeu.

Page 88: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO À EPÍSTOLA AOS ROMANOS

Entre todas as epístolas que nos restam do apóstolo Paulo, esta, escrita aos romanos, ocupa no consenso universal, o lugar mais eminente. Com ampla visão, com vigor de pensamento, de estilo, ele expõe nesta epístola o Evangelho de Cristo, que, já por longos anos, vem pregando em suas viagens missionárias pelo mundo greco-romano: o fiel, seja pagão seja judeu, com a fé no Evangelho participa da justiça de Deus, justiça que nele vai crescendo sem cessar, tornando-se sempre mais perfeita (cf. 1,16). Desenvolve o Apóstolo a sua tese com demonstração progressiva e bem concatenada, na qual não procede à maneira de mestre especulativo, frio e sistemático, e sim, na própria exposição doutrinal, revela o seu caráter ardente, a sua aguda sensibilidade, o seu coração que vibra de entusiasmo por Cristo, a sua inteligência exuberante de idéias que fluem numa seqüência rápida e como que a se atropelarem. Nada há de mais pessoal do que as epístolas de S. Paulo. Na Epístola aos Romanos não trava polêmicas, nem pretende refutar algum erro em particular ou combater os costumeiros judaizantes, que lhe criavam obstáculos à pregação. Parte notável da comunidade cristã de Roma compunha-se de cristãos oriundos do paganismo. Muitos dentre eles, escravos ou libertos, eram de condição servil. Alguns pertenciam a classes mais elevadas. Havia, outrossim, certo número de judeus convertidos. Paulo dirige-se, por esse motivo, de modo especial aos fiéis de proveniência judaica, mas com facilidade passa de um a outro grupo. Dispôs a Providência que Paulo, quando prisioneiro, apelasse para César, na presença do governador Festo (At 25,12), razão por que foi remetido para Roma, algemado, onde permaneceu durante dois anos completos, dando testemunho de Cristo (At 28,30-31). Dessa forma, teve ele, juntamente com S. Pedro, a honra de ser fundador da Igreja de Roma. A Epístola aos romanos foi escrita em Corinto, como se pode concluir de muitos indícios, mesmo que se não tome em conta o c. 16. Dirigira-se o Apóstolo para essa cidade, passando pela Macedônia, depois do levante provocado contra ele pelos ourives efésios (At 19,21--20,1). Encontrava-se, nesse tempo, já em preparativos para seguir a Jerusalém, a fim de levar as esmolas coletadas pelas Igrejas da Acaia e pelas da Macedônia, que se destinavam aos pobres daquela comunidade cristã. Deve-se, portanto, fixar como data para essa carta o fim da terceira missão apostólica e, com toda a probabilidade, os primeiros meses do ano 57, antes da Páscoa. Não obstante haja sido negada por alguns hiper críticos, a autenticidade manifesta da Epístola aos Romanos já não comporta discussão, pois os argumentos extrínsecos, e intrínsecos são tantos, que sua demonstração alcança plena evidência.

Sumário

Introdução (1,1-17). Cabeçalho (1, 1-7). Paulo e a Igreja de Roma (1,8-15). Tema da epístola: a salvação para todos consiste em ter fé no Evangelho (1, 16-17).

I parte, dogmática (1,18-11,36).

I. NECESSIDADE DO EVANGELHO PARA A JUSTIFICAÇÃO (1,18-4,25).

1. Sem fé em Jesus Cristo não há salvação (1,18-3,20). Os pagãos, privados da fé, descambaram, por própria culpa, para as mais abomináveis aberrações (1,18-32). Mas os judeus, ainda que se gloriem da lei, são pecadores como os pagãos (2,1-16); transgridem a lei e não têm o espírito da circuncisão (2,17-29). Conseqüentemente, todos os homens, tanto pagãos como judeus, são pecadores (3,1-20).

2. A justificação por meio da fé em Jesus Cristo (3,21-4-25). Quem crê, é justificado gratuitamente, sem as obras da lei (3,21-31). Essa verdade foi ensinada pela lei e pelos profetas. Exemplo de Abraão, justificado por meio da fé, e não mediante a lei, nem pela circuncisão (4,1-25).

II. FRUTOS DA JUSTIFICAÇÃO (CC. 5-8),

1. Paz e reconciliação com Deus e esperança certa da glória futura (5,1-11), Adão, com sua desobediência, foi causa de pecado para todos (5,12-21). 2. Libertação da escravidão do pecado mediante o batismo. Mortos para o pecado, devemos viver para Deus (c 6). 3. Libertação da escravidão da lei, que era ocasião de pecado para o homem privado da graça, pois ela levava a conhecer o mal, sem que proporcionasse a força para o evitar (c. 7). 4. Filiação adotiva concedida por Deus e herança certa da vida eterna (8,1-30). Hino final ao amor de Cristo (8,31-39).

III. PROBLEMA DA INCREDULIDADE DOS JUDEUS (CC. 9,11) .

1. Tristeza do Apóstolo (9,1-5). Deus não falhou em suas promessas, nem pode ser acusado de injustiça (9,6-18). Há um mistério em sua maneira de agir, mistério que para nós é impenetrável. Deus é senhor de seus dons (9,19-29). 2. Os judeus são responsáveis por sua reprovação, porque não quiseram compreender que a salvação está na fé em Jesus Cristo, anunciado através do Evangelho (9,30-10,21). 3. A reprovação dos judeus é parcial e temporária (11,1-24); também eles hão de se converter, quando tiver chegado a seu termo a conversão dos pagãos (11, 25-32). Hino à sabedoria, bondade e onipotência de Deus (11,33-36).

II parte, moral (cc. 12,1-15,13).

1. Deveres dos cristãos em suas relações recíprocas, fundadas sobre a vontade de Deus e reguladas por ele (c. 12). 2. Deveres para com as autoridades (13,1-7). O mandamento da caridade, resumo de todos os deveres sociais (13, 8-10). Exortação à vigilância (13,11-14). 3. Deveres para com os cristãos fracos na fé (14,1-15,13). Epílogo: Intenção de Paulo (15,14--33). Recomendações e saudações (16, 1-24). Doxologia final (16,25-27).

Page 89: BIBLIA AVE MARIA

PRIMEIRA EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS

Como hábil general, o Apóstolo procura os pontos mais estratégicos de onde, como de centros, se pudesse irradiar a luz do Evangelho. Por isso, na sua segunda viagem missionária deixa Atenas, onde a vã e soberba sabedoria humana era refratária à pregação do cristianismo, e parte para Corinto.

Corinto era a capital da província romana da Acaia. Isso devido à sua admirável posição, dominadora de dois mares, às letras e às artes, e sobretudo ao comércio e às riquezas que para lá afluíram da Itália e da Ásia. Era cidade muito florescente e importantíssima, freqüentada, especialmente por causa do comércio, por gente de todos os países, de todas as raças e de todas as camadas sociais. Havia também numerosos judeus que tinham aí também, como em outras cidades, pelo menos uma sinagoga. Corinto era proverbialmente conhecida por sua corrupção moral. Na Acro corinto, ao lado do culto de Isis e de Serápis, praticava-se o culto de Vênus Afrodite, que tinha aí o seu templo. Mil jovens sacerdotisas, cortesãs complacentes, eram adidas ao serviço da deusa do prazer.

No meio dessa grande população tão variada, constituída sobretudo de escravos e da plebe, Paulo deu início à sua pregação, como costumava fazer, na sinagoga dos judeus, mas entrando em graves dissensões com eles, dirigiu-se aos gentios (At 18,6). Sua pregação foi coroada de grande êxito.

Na terceira viagem missionária, o Apóstolo fixou sua residência particularmente em Éfeso, capital da província romana da Ásia. Mas, como um pai solícito pelas comunidades cristãs que fundara, mantinha-se sempre informado a respeito do seu estado, procurando ir ao encontro das suas dificuldades e mantê-las no fervor primitivo. Haviam surgido divisões entre os cristãos de Corinto: partidos mais inclinados a um do que a outro pregador do Evangelho.

Entretanto, uma delegação da mesma comunidade de Corinto, composta de Estéfanas, Fortunato e Acaio, foi a Éfeso, a fim de pedir a Paulo a solução de vários casos de consciência (cf. 16,17, nota).

Foi esse conjunto de circunstâncias que motivou a primeira Epístola aos coríntios.

Nela Paulo trata dos mais variados argumentos, começando, na primeira parte, por corrigir os abusos, para, na segunda, responder aos quesitos que lhe foram propostos. Mas como sempre costuma fazer, eleva-se de questões particulares a princípios e motivos gerais e sublimes, aos fundamentos da religião, ou melhor, pode-se dizer que une quase todas as questões, embora tão disparatadas, com o fio de ouro da doutrina do corpo místico, do qual Jesus é a cabeça e os cristãos são os membros.

A esta epístola conferem um interesse todo particular as preciosas notícias que nos oferece acerca da vida da Igreja apostólica a respeito da celebração do ágape e dos mistérios sagrados e a respeito dos dons carismáticos. Foi escrita em Éfeso, pouco depois das festas pascais (5,7), na primavera do ano 56, ou mais provavelmente do ano 57, poucos meses antes de o Apóstolo deixar a cidade (cf. 16,8).

Sumário

Saudação augurai (1,1-3) e agradecimento a Deus pelos benefícios que lhes concedeu (1,4-9).

I parte - reprovação dos abusos (1, 10-6,20).

1. Partidos que se formaram com relação aos diversos pregadores do Evangelho (1,10-17). Paulo pregou a doutrina da cruz com simplicidade, em oposição à sabedoria humana, que é contrária à sabedoria divina (1,18-2,11); ele a anuncia aos perfeitos e aos espirituais, e não aos carnais (2,12-3,4). Os pregadores são colaboradores de Deus, dispensadores dos seus mistérios, sujeitos ao juízo divino (3,5-4,5). Exorta a corresponder generosamente às fadigas dos apóstolos e ao afeto paterno dele, Paulo (4,6-13), e anuncia o envio de Timóteo e a sua própria ida (4,14-21).

2. A tolerância para com o incestuoso: censura por esse procedimento e excomunhão do escandaloso (5,1-8); como proceder com os pecadores públicos (5,9-13).

3. Os litígios entre os cristãos e o recurso aos tribunais pagãos (6,1-11).

4. O vício impuro (6,12-20).

Page 90: BIBLIA AVE MARIA

II parte - resposta â diversas questões (cc.7-15).

1. Matrimônio e celibato: legitimidade do matrimônio e direitos dos esposos (7,1-11); indissolubilidade do vínculo conjugal (7,1-14); caso de dissolução (7,15-17); circuncisão e escravidão (7,18-24); virgindade e viuvez (7,25-40). 2. As carnes imoladas aos ídolos: normas a serem seguidas, tendo-se em conta os fracos na fé, para evitar todo o escândalo (c. 8); é preciso saber renunciar às coisas lícitas, às quais se tem direito (c. 9), e evitar atos idolátricos (10,1-13); casos práticos (10,14-11,1). 3. Ordem nas assembléias litúrgicas: as mulheres usem o véu (11,2-16); abusos a se evitarem na celebração

do ágape e dos mistérios sagrados (11,17-22); a instituição da eucaristia (11,23-34). 4. Os carismas e seu uso: noções gerais sobre os carismas (12,1-30); a caridade é superior a eles (12,31-13,13); deve-se preferir o dom da profecia ao da glossolalia (14,1-25); regras que se devem seguir (14,26-40). 5. A ressurreição dos mortos: certeza da ressurreição de Cristo, à qual está ligada indissoluvelmente a nossa ressurreição (15,1-34); o modo da ressurreição explicado com analogias tomadas das coisas materiais (15,35-49); a transformação dos corpos não é só possível, mas necessária (15,50-58).

Epílogo: o Apóstolo lembra a coleta pelos pobres de Jerusalém (16,1-4); anuncia seu projeto de uma viagem à Macedônia e à Grécia (16,5-12); recomendações particulares (16,13-18); saudações (16,19-20); assinatura autografa e votos (16,21-24).

Page 91: BIBLIA AVE MARIA

SEGUNDA EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS

Cerca de seis meses após a primeira Epístola aos coríntios seguiu esta segunda, ocasionada pela mudança de condições na Igreja de Corinto. Como transparece de um exame atento dos textos das duas epístolas, os acontecimentos ter-se-iam desenrolado, com toda a probabilidade, da seguinte maneira:

Tendo aparecido em Corinto inovadores judaizantes, contrários ao Apóstolo, lançam a agitação no seio dessa comunidade, e Paulo vai a Corinto, numa breve visita, a fim de restabelecer a paz (12,14; 13,1-2); essa visita deixa-lhe a alma amargurada por uma ofensa que um cristão faz à sua própria pessoa (2,5;7,12).

Voltando a Éfeso, ele escreve aos coríntios (2,3-4.9;7,8.12) uma carta enérgica e severa, que se perdeu (não é a 1Cor, que é calma e tranqüila).

Entrementes, envia Tito com a missão de restabelecer a paz na Igreja de Corinto e conseguir um relatório fiel do seu estado e dos sentimentos dos cristãos para com ele. Sobrevindo inesperadamente o violento tumulto dos ourives de Éfeso contra ele (At 19,23-40), Paulo parte e, antes do tempo que ele mesmo havia estabelecido, dirige-se para Trôade, onde marcara encontro com Tito. Não o tendo encontrado aí, passa para a Macedônia, onde, finalmente, encontra Tito, que lhe transmite as mais consoladoras notícias. Assim consolado, o Apóstolo reenvia Tito a Corinto, com a finalidade de organizar a coleta em favor dos pobres de Jerusalém. Entrementes escreve, talvez de Filipos, no fim de sua terceira viagem missionária, no ano de 57, a primeira e a segunda parte da segunda epístola, que possuímos.

Serenara o céu em Corinto, mas ainda havia nuvens escuras, cheias de tempestade: os judaizantes, depois da partida de Tito, haviam retomado a sua campanha de acusações e de calúnias contra Paulo, a fim de o enxovalhar e tolher-lhe a autoridade. O Apóstolo foi informado prontamente a esse respeito; retoma sua epístola e, numa terceira parte, ataca os seus adversários, os falsos apóstolos, os ministros de satanás, como ele os chama, com o máximo vigor.

Esta segunda epístola aos coríntios é a mais pessoal dentre as epístolas paulinas. Nela sente-se vibrar mais intensamente os diversos sentimentos que agitam o espírito tão sensível de Paulo. "Paulo não escreveu nada de mais eloqüente, nada de mais comovente, de mais apaixonado do que esta epístola. A tristeza e alegria, o temor e a esperança, a ternura e o desdém vibram nela com a mesma energia" (F. PRAT).

Já na primeira parte encontram-se algumas amostras polêmicas contra seus adversários, aos quais ataca depois com todas as forças, na terceira parte, talvez por causa das notícias que recebera de Corinto enquanto ditava a carta, trabalho esse que devia durar muitos dias ou mesmo várias semanas.

Não existem, pois, razões bastante plausíveis para pôr em dúvida a sua integridade, como querem alguns críticos modernos, e fazer da segunda Epístola aos coríntios um mosaico variegado, formado de várias cartas escritas pelo Apóstolo.

A primeira Epístola aos coríntios faz--nos reviver grande parte da vida cristã da Igreja primitiva; a segunda é uma expressão prática da vida do Apóstolo, inteiramente consagrada à causa de Jesus Cristo e ao bem dos seus fiéis, e movido unicamente por motivos sobrenaturais.

Sumário

Cabeçalho e saudação (1,1-2). Ação de graças a Deus pelas consolações que lhe concedeu, para poder consolar também os outros (1,3-11).

I parte - Apologia do próprio ministério (1,12-7,16).

1. Paulo defende-se da acusação de mutabilidade e de inconstância, e de habilidade demasiado humana (1,12-2,17). 2. Defende-se da acusação de arrogância e de orgulho, com a glorificação do ministério apostólico (3,1-6,10). 3. Exorta a corresponder ao seu amor, a evitar os vícios dos gentios (6, 11-7,16).

II parte - Disposições para a coleta (8,1-9,15).

1. Motivos para se mostrarem generosos (8,1-15). 2. Recomenda Tito e os demais delegados (8,16-24). 3. Grandes benefícios provenientes da esmola (9,1-15).

III parte - Defende-se de seus adversários (10,1-13,10).

1. Responde à acusação de debilidade (10,1-11). 2. Responde à acusação de ambição (10,12-18). 3. Depois de ter pedido desculpas, vê-se constrangido a enumerar os seus títulos de glória (11,1-12,18). 4. Apreensões e inquietações (12, 19-13,10).

Epílogo: Recomendações, saudações, votos finais (13,11-13).

Page 92: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLA AOS GÁLATAS

Quem são os gálatas? Quando foi escrita a Epístola aos gálatas? São duas questões conexas, discutidas ainda em nossos dias, sem que se lhes possa dar uma solução plena e evidente.

No tempo de Paulo, a palavra Galácia tinha dois sentidos: 1º etnográfico, significando a Galácia propriamente dita, habitada pelos descendentes dos gauleses que na segunda metade do século III a.C. foram levados, na sua migração, até à Ásia Menor e haviam fixado a sua sede nas regiões sitas entre a Capadócia e o Ponto; 2° administrativo, significando a província romana da Galácia que, além da Galácia propriamente dita, compreendia também várias regiões da Ásia Menor, ao norte da Paflagônia, e parte do Ponto, ao sul da Pisídia, a Licaônia e parte da Frigia.

Quem são, portanto, os destinatários da carta aos gálatas? Os gálatas propriamente ditos? Ou os gálatas da província romana da Galácia? Ou ainda exclusivamente os da parte meridional?

É certo que estes últimos, os meridionais, foram evangelizados por S. Paulo na sua primeira viagem apostólica, narrada com certa amplitude em At 13, 13-14,25, mas sem alusão alguma à enfermidade a que se refere o próprio Paulo nesta epístola (Gál 4,13). Nas narrações da segunda e da terceira viagem (At 15,35-21,15), não se diz sobre a Galácia, senão que Paulo "atravessou [ou percorreu; cf. 15,41] a Frigia e a região galática" (16,6; 18,23). Qualquer seja a amplitude ou restrição que se queira emprestar a essa expressão geográfica, nem por isso fica claro que nessa "travessia" o Apóstolo haja fundado aí novas

Igrejas. Apesar disso, a maioria dos intérpretes modernos pensa que os gálatas da presente epístola sejam os setentrionais da Galácia estritamente dita. Menos numerosos, mas não de menor autoridade, são os que se decidem pela parte meridional da Galácia romana. Cf. Gál 2,1-2.

O motivo da carta foi o seguinte: Alguns cristãos vindos do judaísmo e muito apegados às práticas legais, introduziram-se nas Igrejas da Galácia, sustentando que a circuncisão e outras práticas da lei eram necessárias a todos para se salvarem e serem herdeiros das promessas messiânicas (cf. At 15,1). Era distorção do genuíno Evangelho de Cristo que Paulo pregava. Aqueles turbulentos, para insinuarem com mais segurança os seus erros, afirmavam que Paulo não era verdadeiro apóstolo, por não ter recebido a missão diretamente de Cristo; que estava em desacordo com os verdadeiros apóstolos e que era um oportunista que andava à procura unicamente de favores dos homens.

Sob os embates dessa violenta tempestade, a fé daquela jovem cristandade corria o perigo de naufragar miseravelmente. Paulo não tardou a vir em auxílio dos seus queridos gálatas, para sustentá-los na fé, escrevendo a epístola na qual refuta as acusações que levantaram contra ele e expõe a verdadeira doutrina.

O ponto fundamental dessa epístola, a inutilidade da lei para a justificação e salvação cristã, é também o objeto da primeira parte da epístola aos romanos (cc. 1-4) e, portanto, a epístola aos gálatas está bem colocada antes e junto da dos romanos, sem prejuízo da distância de tempo existente entre uma e outra: um ano no máximo, se a presente epístola foi dirigida à Galácia setentrional; de cerca de seis ou sete na opinião contrária mencionada acima.

A autenticidade da Epístola aos gálatas, impugnada apenas por alguns críticos racionalistas radicais, não pode ser razoavelmente posta em dúvida, tantos são os argumentos internos e os documentos que a comprovam.

Sumário

Cabeçalho e saudações (1,1-5); o Evangelho pregado aos gálatas é o verdadeiro Evangelho de Cristo (1,6-10).

I parte - apologética: Paulo reivindica a sua autoridade apostólica (1,11-2,21).

1. Recebeu a sua missão diretamente de Cristo (1,11-12). 2. O seu Evangelho foi aprovado por Pedro (2,1-10). 3. O incidente de Antioquia: Paulo defende a sua doutrina perante Pedro (2,11-21).

II parte - dogmática: a justificação obtém-se mediante a fé e não mediante as obras (3-4).

Paulo demonstra essa verdade:

1. pela experiência dos gálatas (3, 1-5); 2. pela Sagrada Escritura: o exemplo de Abraão (3,6-14); 3. pela natureza da lei e da promessa (3,15-18); 4. pelo fim da lei que era como um pedagogo para conduzir os homens a Jesus Cristo (3,19-4,11). Exortação com efusão do coração (4,12-20).

5. Inutilidade da lei (4,21-31).

III parte - moral: (5,1-6,10).

1. Deve-se conservar a liberdade que Jesus Cristo nos deu (5,1-12).

2, Os fiéis devem praticar a virtude, a abnegação, a caridade, a beneficência (5,13-6,10).

Page 93: BIBLIA AVE MARIA

Epílogo: Paulo retoma de próprio punho a parte polêmica e moral (6,11-16); saudações e bênção (6,17-18).

Page 94: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLA AOS EFÉSIOS

A Carta aos efésios não possui o desenvolvimento e o tom de uma carta íntima e familiar, como aquela aos Filipenses, nem o Apóstolo combate, com o vigor e o arrojo que lhe são próprios, alguns erros particulares, como nas cartas aos gálatas e aos coríntios. Excetuando-se algumas fórmulas convencionais, faltam a essa carta as costumeiras saudações a pessoas particulares e as notícias pessoais do Apóstolo, encontradas nas demais cartas e que não deveriam faltar numa carta dirigida à comunidade de Éfeso, onde Paulo havia trabalhado e sofrido diversos anos. Ao que parece (cf. 1,15;3,2), ela foi escrita a cristãos que o Apóstolo não conhecia pessoalmente. Por outro lado, podemos assiná-la com certeza a um determinado período da vida de S. Paulo, isto é, ao período do primeiro cativeiro romano, quando escreveu a Carta aos Colossenses. Efetivamente, possui muitos pontos de contato e grandes analogias com esta última, quer pelo tema tratado, quer pelo estilo e pelo vocabulário. Col, nalguns pontos de doutrina, é o esboço de Ef. Querendo oferecer um quadro completo de doutrina em torno de Cristo, o Apóstolo, depois de indicar (1,10,21-22) o primado de Jesus Cristo, assunto já desenvolvido em Col 1,15-24, retoma e desenvolve amplamente dois temas tratados brevemente em Col: antes de mais nada "o arcano", isto é, a universalidade da salvação, não reservada exclusivamente aos judeus, mas oferecida também aos gentios, em Cristo Jesus, e a seguir a verdade da Igreja, corpo místico de Cristo, do qual ele é a cabeça. Destas verdades, o Apóstolo deduz conseqüências práticas de ordem moral.

Evidentemente, as duas cartas foram ditadas por Paulo com breve intervalo de tempo e foram confiadas ao mesmo portador, Tíquico (cf. 6,21-22; Col 4, 7,9).

Cumpre, portanto, concluir que a Carta aos efésios nada mais é do que uma carta pastoral encíclica, destinada às comunidades cristãs da província da Ásia, com o objetivo de instruí-las sobre pontos importantes de doutrina. Ela deve ter tomado o nome de "Carta aos efésios" da igreja-mãe e mais ilustre, talvez porque foi entregue a esta em primeiro lugar por Tíquico. Alguns críticos modernos pretendem ver nesta a carta que Paulo diz (em Col 4,16) ter enviado à Igreja de Laodicéia. Mas, em tal hipótese, o Apóstolo, como fez em Col, teria dado suas notícias pessoais aos laodicenses e não teria deixado de acrescentar as saudações de praxe. Ademais, como explicar o título de uma carta "aos efésios", afirmado por documentos antigos, ao passo que somente o herege Marcião, segundo expressão de Tertuliano (Adv. Mare, v, 7), diz que foi escrita aos laodicenses? A carta foi escrita em Roma, pelos fins da primeira prisão romana, e não durante a primeira detenção em Cesaréia, como sustentam alguns críticos modernos.

A autenticidade de Ef, negada por alguns críticos acatólicos, é resolutamente mantida e defendida por numerosos outros críticos, também não católicos. Tem a seu favor o peso unânime dos testemunhos da antigüidade cristã inteira. Igualmente o estilo, o vocabulário, próprios do Apóstolo e, acima de tudo, a doutrina do corpo místico, a qual já emerge em cartas precedentes e é magistralmente desenvolvida em Ef, oferecem-nos a marca inconfundível de S. Paulo. Ê mister repelir decididamente a hipótese, avançada por alguns, de que Ef seja um mosaico marchetado de textos autênticos do Apóstolo e de observações de estranhos. Basta examinar o nexo lógico do pensamento, que se desenvolve progressivamente conforme o plano estabelecido, e o estilo inteiramente próprio do Apóstolo.

Sumário

Cabeçalho e saudação aos destinatários (1,1-2).

I parte, dogmática: o divino arcano da nossa união com Cristo (1,3-3,21).

1. Arcano decretado por Deus desde a eternidade. Ê a nossa filiação adotiva para com Deus pela nossa união em Cristo (1,3-6); Jesus Cristo nos mereceu esta filiação com o seu sangue (1,7-8); vocação dos judeus e chamada dos gentios, que o Espírito Santo confirma com seus dons (1,9-14). 2. Arcano realizado na Igreja. Jesus Cristo é a cabeça da Igreja, que é o complemento dele (1,15-23); chamada dos gentios e dos judeus à salvação por meio de Cristo, que os reconcilia num só corpo e os reúne num só edifício espiritual (2,1-22).

3. Arcano revelado. Paulo recebeu a missão de anunciar a universalidade da salvação em Jesus Cristo (3,1-13) e suplica a Deus que os fiéis possam compreender a sua imensa caridade (3, 14-19). Doxologia (3,20-21).

II parte, moral (4,1-6,20).

1. Virtude principal da vida cristã: caridade na unidade, pureza de vida (4,1-24). 2. Advertências gerais a todos os cristãos (4,25-5,20). 3. Deveres dos membros da família cristã (5,21-6,9). 4. A armadura do cristão (6,10-20).

Epílogo: missão de Tíquico (6,21-22); saudação (23-24).

Page 95: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLA AOS FILIPENSES

S. Paulo levou a luz do Evangelho a Filipos na sua segunda viagem missionária (anos 50-53). Depois de ter confirmado na fé as Igrejas fundadas na sua primeira missão, Paulo nutria o desejo de passar para a Bitínia, juntamente com Silas e Timóteo; mas uma revelação divina conduziu-o a Trôade, onde, em visão, lhe foi mostrado um macedônio implorando o seu auxílio (At 16,9). Deus chamava-o a um novo e vasto campo de apostolado no continente europeu.

Aportou em Neápolis, hoje Kavala, de onde seguiu para Filipos, acompanhado pelos seus colaboradores, aos quais se unira também Lucas (At 16,10). Este último, testemunha ocular, narrados com cores vivas a pregação apostólica, os frutos das conversões, os incidentes extraordinários ocorridos, a prisão de Paulo e Silas, seus sofrimentos e a libertação milagrosa.

A Igreja de Filipos perseverou sempre firme na fé afeiçoada a Paulo, e ocupou o primeiro lugar no seu coração de pai. Visitou-a outras vezes, mais provavelmente quando, depois dos tumultos de Éfeso, passou para a Macedônia com destino à Grécia e, depois, no seu retorno (At 20,1-6), e quase certamente após a sua primeira prisão em Roma (1Tim 1,3). Paulo, que jamais aceitou ajuda das outras Igrejas, abriu uma exceção para a Igreja de Filipos, aceitando suas ofertas (4,16; 2Cor 11, 8-9). Assim quiseram proceder os Filipenses quando tiveram notícia de que o Apóstolo se encontrava preso por Cristo, e lhe envia um representante, Epafrodito, para levar-lhe os seus presentes e assisti-lo no cárcere. Recuperando-se Epafrodito de uma grave enfermidade e devendo retornar a Filipos, Paulo fê-lo portador de uma carta para essa comunidade cristã.

Essa Carta aos Filipenses foge ao ciclo das demais cartas paulinas e possui uma fisionomia inconfundível. Nela, Paulo não é tanto o doutor e o mestre, quanto o pai, a entreter-se afavelmente com seus caros neófitos; comunica-lhes suas notícias, exorta-os à virtude, propondo-lhes o exemplo de Jesus Cristo, previne-os contra os falsos irmãos e agradece-lhes a afetuosa generosidade. É a leitura da alegria cristã a transbordar do coração de Paulo prisioneiro, desejoso de transfundi-la no coração dos seus cristãos.

A autenticidade da Carta aos Filipenses é hoje admitida pela totalidade dos críticos, comprovada por todos os testemunhos extrínsecos e, acima de tudo, pelos caracteres paulinos intrínsecos, in-controvertíveis, que tornam impossível a hipótese de uma falsificação.

Foi escrita durante a primeira prisão romana, conforme a opinião tradicional, e inexistem razões plausíveis para afastar-se dela a fim de atribuí-la a uma suposta prisão em Éfeso. As alusões ao "pretório" (1,14) e à "casa de César" (4,22) entendem-se perfeitamente dentro da opinião tradicional. De resto (e isso parece decisivo), os Atos, que se estendem amplamente sobre os acontecimentos de Éfeso, não aludem sequer longinquamente à pretensa prisão de Paulo, que, ademais, deveria ter sido prolongada, como se depreende da nossa carta.

Filipenses tem grande valor apologético, levando-nos a apalpar o poder transcendente da mensagem de Cristo, anunciada pelos apóstolos, que em tão breve tempo transformou aqueles pagãos e os uniu a Cristo e entre si com um vínculo indissolúvel de caridade; leva-nos a conhecer o fervor daquela comunidade, que tem por fundamento a fé em Cristo Jesus e por norma constante de vida os seus ensinamentos e os seus exemplos.

Page 96: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLA AOS COLOSSENSES

Colossas, cidade da Frigia, situada no vale do Lico, floresceu bastante antes de Cristo; depois decaiu por causa da prevalência das duas cidades vizinhas: Hierápolis e Laodicéia; atualmente restam apenas poucas ruínas e, quiçá, ter-se-ia até olvidado o seu nome, se a epístola de S. Paulo não a houvesse celebrizado.

A Igreja de Colossas não foi fundada nem visitada pelo Apóstolo (1,4-9; 2,1). Fundou-a Epafras, "um dos vossos", um gentio convertido à fé pelo Apóstolo (cf. 4,12 em oposição a 11), quando se encontrava em Éfeso, no decurso de sua terceira viagem apostólica.

A comunidade de Colossas era formada, em grande parte, por étnico-cristãos, se bem que não faltassem convertidos entre os hebreus, numerosos no vale do Lico. Era uma comunidade fervorosa e bem instruída na fé, como resulta claramente desta carta; mas rondava-a um grande perigo proveniente de algumas doutrinas errôneas, que começavam a serpear entre os cristãos, disseminadas por falsos doutores. Paulo, informado da situação de Igreja de Colossas por Epafras, que viera visitá-lo na prisão, escreveu aos Colossenses, subordinados à sua jurisdição e muito afeiçoados a ele, com o objetivo de precavê-los contra os erros então incipientes: culto de seres espirituais intermediários entre

Sumário

Cabeçalho (1,1-2) e ação de graças a Deus pelos benefícios concedidos aos Filipenses (1,3-11).

Corpo da carta (1,12-4,9).

1. Notícias pessoais: a prisão de Paulo e a pregação do Evangelho (1,12-17); seus sentimentos (1,18-26). 2. Exortação à caridade e à humildade (1,27-2,4), a exemplo de Jesus Cristo (2,5-11), e ao fervor (2,12-18). 3. Missão de Timóteo e de Epafrodito (2,19-30). 4. Advertências contra os judaizantes (3,1-11) e exortação à perfeição (3, 124,1) e à paz (4,2-9).

Epílogo: Agradecimento pelos presentes recebidos (4,10-18) e saudações finais (4,19-23).

Deus e o homem, que Paulo chama de "anjos" (2,18), como se Jesus não fora o único mediador; restrições nas comidas e nas bebidas; observância de festas anuais, de novilúnios e de sábados. Paulo alude ainda à circuncisão, talvez recomendada pelos inovadores, embora não imposta.

É assaz difícil determinar a natureza desses erros combatidos por S. Paulo, mas pode-se afirmar, com toda a probabilidade, que são derivações do judaísmo. Inexistem razões para recorrer aos germes do gnosticismo, desenvolvido mais tarde, no século II, para encontrar a origem de tais erros. Existiam, efetivamente, então, seitas judaicas fortemente propensas a um ascetismo rígido e a idéias errôneas sobre as hierarquias angélicas; seitas que facilmente encontraram adeptos também na Frigia, cujos habitantes eram inclinados a cultos mistéricos. A tais erros, o Apóstolo opõe um esplêndido quadro sintético de Jesus Cristo e da sua obra, não apenas sob o aspecto soteriológico, mas também cósmico. Jesus detém o primado sobre a criação inteira, da qual é a causa eficiente, exemplar e final, e com a redenção por ele efetuada restaura no universo a ordem querida pelo Criador.

É uma das mais belas páginas do epistolário paulino, brotada do seu coração pleno de amor pelo seu Mestre: e é ainda o ponto culminante do seu pensamento em torno da obra salvífica de Jesus Cristo.

A carta, segundo opinião tradicional, foi escrita em Roma por volta do fim da primeira prisão romana (ano 63), juntamente com

a Carta aos efésios e o bilhete a Filêmon, e, confiada a Tíquico, o "ministro fiel" (4,7), encarregado de fazê-la chegar aos destinatários. Deve ser descartada sem hesitação a hipótese de ter sido redigida durante uma suposta prisão em Éfeso, à qual os Atos não fazem a mínima referência. Tampouco são suficientes as razões de alguns críticos protestantes, ao lado de alguns católicos, para atribuí-la ao tempo da prisão em Cesaréia (anos 57-59).

A autenticidade da Carta aos Colossenses é hoje admitida pela quase totalidade dos críticos, inclusive protestantes e racionalistas. Ela tem, para aboná-la, o peso de toda a tradição cristã, e o próprio exame da carta, no que tange do vocabulário e ao estilo, atesta sua origem paulina. Algumas particularidades explicam-se facilmente pela diversidade do argumento e dos conceitos a exprimir.

Sumário

Introdução (1,1-14), cabeçalho (1,1--2), ação de graças a Deus pelo progresso dos Colossenses (1,3-8) e oração para o porvir (1,9-14).

I parte, dogmático-polêmica (1,15-2, 23):

1. Preeminência de Jesus Cristo, filho de Deus, cabeça do universo criado, cabeça da Igreja (1,15-20). Ele nos reconciliou com Deus mediante o seu sangue (1,21-24). 2. Paulo é o Apóstolo dos gentios e cumpre o seu ministério também para as igrejas da Ásia (1,25-2,5). 3. Contra os falsos doutores: em Cristo habita a plenitude da divindade e dele somente vem a salvação em tudo (2,6-15); conseqüências práticas para os Colossenses (2,16-23).

Page 97: BIBLIA AVE MARIA

II parte, moral (3,1-4,6).

1. Os cristãos, unidos e incorporados em Cristo, devem levar uma vida de virtude e de santidade (3,1-17). 2. Deveres mútuos dos esposos, dos pais e dos filhos, dos escravos e dos patrões (3,18-4,1). 3. Deveres de oração, especialmente por Paulo, e de apostolado (4,2-6).

Epílogo: missão confiada a Tíquico (4,7-9), saudações (4,8-15), recomendações (4,16-17), assinatura autografa (4, 18).

Page 98: BIBLIA AVE MARIA

PRIMEIRA EPÍSTOLA AOS TESSALONICENSES

Com as marcas de sangue e os vergões nos membros, produzidos pelos açoites que receberam em Filipos, Paulo e Silas, libertados do cárcere e rogados pelos magistrados a abandonarem a cidade, refugiaram-se em Tessalônica (At 16, 22-24).

Tessalônica, hoje Salonica, era, por causa da posição que ocupava, importante centro comercial. Paulo pensou em fazer dela um centro de irradiação de apostolado. Seus habitantes eram na maioria gentios, mas não faltavam também judeus, atraídos pelo comércio e pelo desejo de lucro. Paulo, de acordo com o seu costume, dirigiu-se primeiro aos seus concidadãos, que na intenção divina deviam ser as primícias do Evangelho, e por três sábados consecutivos anunciou-lhes Jesus Cristo na sinagoga, demonstrando pelas Sagradas Escrituras que Jesus era o Messias prometido e o Filho de Deus (At 17,2-3). O fruto, não proporcional ao trabalho, foi escasso; poucos judeus abraçaram o cristianismo, mas em compensação, graças à pregação que Paulo e Silas continuaram por alguns meses, bom número de pagãos converteu-se à nova religião, entre eles muitos prosélitos e algumas mulheres da nobreza (At 17,14). Os judeus mais recalcitrantes, cheios de inveja, atiçaram os elementos mais irrequietos da plebe e encenaram uma sedição contra Paulo e Silas, os quais, por esse motivo, houveram por bem abandonar a cidade. A nova comunidade cristã, constituída sobretudo de gentios, estava, portanto, exposta a graves perseguições e a perigos na fé.

Paulo, depois de chegar a Beréia e a Atenas, imensamente ansioso por seus caros neófitos tessalonicenses, enviou-lhes Timóteo, a fim de os sustentar e confirmar no espírito de união com Cristo: Ele, entretanto, tendo deixado Atenas, passara-se para Corinto que devia tornar-se o principal campo de apostolado da sua segunda viagem apostólica. Aí alcançou Timóteo, já de regresso de sua missão, trazendo ao Apóstolo as mais consoladoras notícias. Os cristãos, afeiçoados a Paulo, eram fervorosos e fortes na fé, mesmo no meio das perseguições. Havia, porém, alguma leve nuvem, resíduos da vida pagã antecedente, em questões de moral, em alguns cristãos, dúvidas a respeito da sorte dos falecidos, na parusia. Paulo, não podendo, como era seu desejo, ir pessoalmente ter com os seus tessalonicenses, escreveu-lhes sua primeira epístola. Ela abre condignamente o epistolário paulino e talvez seja o primeiro escrito inspirado do Novo Testamento, se é que o Evangelho de S. Mateus já não estava escrito e publicado, pois coincidências surpreendentes de vocabulário e de idéias encontradas entre as partes apocalípticas das epístolas aos tessalonicenses e o assim chamado "apocalipse" de S. Mateus (Mt cc. 24-25) fazem-no supor com razão.

A carta foi escrita de Corinto, provavelmente no ano 51, ou o mais tardar no início de 52, quando Timóteo se encontrava com Paulo. De fato, como se infere da inscrição de Delfos, publicada em 1905, Galião, a cujo tribunal foi levado Paulo (At 18,11-13), chegou a Corinto como procônsul da Acaia provavelmente na primavera de 52, quando Paulo já se encontrava aí havia dezoito meses.

Sumário Cabeçalho e saudação (1,1).

I parte (1,2-3,13): Paulo agradece ao Senhor pelo modo com que os tessalonicenses receberam o Evangelho, a ponto de servirem de exemplo às outras Igrejas (1,2-10); recorda o seu trabalho apostólico no meio deles, as suas fadigas para não ser pesado a ninguém, a sua ternura materna para com eles (2,1-16); manifesta o desejo de revê-los, alegrando-se com as boas notícias que recebeu por meio de Timóteo (2,17-3,13).

II parte (4-5): exortação a evitar alguns vícios (4,1-12); fala da condição dos que já faleceram, à segunda vinda de Cristo (4,13-18); diz que o tempo da parusia é desconhecido e por isso é necessário conservar-se prontos (5,1-11) e conclui com alguns preceitos morais (5,12-22).

Conclusão: votos e saudações, com a recomendação de fazer com que a carta seja lida "a todos os irmãos (5,23-28).

Page 99: BIBLIA AVE MARIA

SEGUNDA EPÍSTOLA AOS TESSALONICENSES

A primeira epístola de S. Paulo à comunidade nascente de Tessalonica atingira o seu objetivo de iluminar e consolar os cristãos acerca da sorte dos falecidos, por ocasião da vinda gloriosa de Cristo. O Apóstolo havia integrado, com autorizada precisão e clareza, os ensinamentos de sua catequese oral sobre esse ponto de doutrina. Bem depressa, porém, novas nuvens surgiram no horizonte, ofuscando-o e perturbando as almas. Alguns cristãos, mais enfatuados e entusiastas da proximidade da parusia, difundiam essa persuasão entre os outros, procurando convidá-los, seja com algumas frases mal interpretadas da epístola de S. Paulo, seja com pretensas declarações de carismáticos, que preanunciavam a iminência da vinda gloriosa do Senhor, e também com supostas epístolas do Apóstolo (2Tes 2, 1-2). Conseqüência do estado de alma que se determinara em muitos era uma plena ociosidade, abstenção do trabalho e desinteresse pelas coisas materiais, na expectativa do grande dia. Dominava, portanto, entre os cristãos de Tessalonica um erro teórico e prático, grandemente funesto. Paulo, que se mantinha constantemente informado do estado de sua amada cristandade, intervém 'com outra epístola, a fim de instruir esses neófitos e pô-los de sobreaviso contra os semeadores de falsas doutrinas.

Sumário

Cabeçalho e saudação (1,1-2).

1. Ação de graças a Deus pela caridade e constância na fé dos tessalonicenses (1,3-5); justo juízo de Deus, que dará a cada um segundo os seus méritos (1,6-12).

2. O tempo da parusia é incerto, não é iminente e será precedido de sinais precursores: a apostasia e a vinda do anticristo (2,1-4). Os tessalonicenses conhecem o obstáculo que o retém. Tirado este, manifestar-se-á o homem do pecado, que será destruído por Jesus Cristo (2,5-12). Exortação a permanecerem firmes na fé (2,13-17). 3. Preceitos morais, conseqüências práticas da parte doutrinal (3,1-15).

Conclusão: votos (3,16), assinatura autografa de reconhecimento (3,17), saudação final (3,18).

Infelizmente, devido à falta de alguns elementos da catequese oral de Paulo, permanecemos no escuro a respeito de alguns pontos de sua doutrina escatológica, que permanecerão sempre um enigma insolúvel: quem é o anticristo, qual o obstáculo que o retém etc. Completa o Apóstolo, com sua epístola, os ensinamentos do Evangelho e do Apocalipse no que diz respeito aos últimos acontecimentos do gênero humano e à segunda vinda de Cristo.

Page 100: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLAS A TITO E A TIMÓTEO

As epístolas que se seguem, uma a Tito e duas a Timóteo, inter-relacionam-se estreitamente pelo assunto, pela data e pelas

características formais de que se revestem. Daí o uso moderno de apresentá-las sempre enfeixadas, com a denominação geral de "epístolas pastorais", por versarem sobre as qualidades requeridas nos pastores da Igreja, bem como sobre os deveres que lhes incumbem no governo das comunidades cristãs que lhes são confiadas.

Muitos críticos protestantes, liberais e racionalistas, puseram em dúvida, desde o início do século XIX até aos nossos dias, a autenticidade do Apóstolo dos gentios das referidas cartas. Numa modalidade um tanto diversa, críticos recentes quiseram ver nelas

uma espécie de florilégio, formado com fragmentos autênticos compilados de cartas de S, Paulo. Encontram-se, todavia, citações dessas cartas e alusões a elas, já nos escritos dos Padres Apostólicos, a partir do fim do século I e do início do século II. Daí por diante a sua autenticidade aparece claramente afirmada pelos santos Padres, pelos escritores e pelos documentos eclesiásticos. Tudo isso evidencia a tradição constante da Igreja.

Examinando-as com atenção, verifica-se que tudo quanto está escrito nelas concorda exatamente com o que consta, por outras

fontes acerca da vida de S. Paulo, de Timóteo e de Tito e com as condições das comunidades cristãs nos últimos anos da vida do Apóstolo.

Paulo encontra em Listra, por ocasião de sua primeira viagem apostólica, a Timóteo e o converte. Por ser ele filho de pai pagão e de mãe judia convertida ao cristianismo, e sendo, por conseguinte, considerado judeu, ele o submeteu, no decorrer de sua segunda viagem, à circuncisão e o leva consigo através da Ásia Menor à Macedônia (At 16,1-4), e ainda, com toda a probabilidade, a Filipos e a Tessalonica. Deixa-o em Beréia (At 17,14), donde Timóteo parte para se encontrar com ele em Atenas. Envia-o em missão a Tessalonica (1Tes 3,2), e ao seu regresso, o recebe em Corinto (At 18,5). Na terceira viagem apostólica encontramos Timóteo em companhia do Apóstolo em Éfeso (At 19,22) e na Macedônia (2Cor 1,1). Sabemos ainda que acompanhou Paulo a Trôade, na Ásia Menor (At 20,4). Reencontramo-lo em Roma, durante a primeira prisão de S. Paulo (Col 1,1; Flp 1,1; Fim 1). Finalmente, ei-lo radicado em Éfeso (ITim 1,3), onde recebe duas cartas do Apóstolo.

Quanto a Tito, grego de origem (Gál 2,3), foi também convertido por S. Paulo, de quem veio a ser fiel colaborador. Acompanhou-o

na viagem a Jerusalém, por ocasião do Concílio Apostólico (Gál 2,1). Na terceira viagem missionária acompanhou o Apóstolo a Éfeso. Foi enviado a Corinto, com a incumbência de amainar as discórdias e restabelecer a paz naquela Igreja, e, com toda a probabilidade, foi ele o portador de uma severa epístola de S. Paulo, que se perdeu. Foi encontrar-se com Paulo na Macedônia, onde consolou o Apóstolo com as boas notícias que trazia de Corinto (2Cor 2,13). Foi enviado novamente a essa cidade, a fim de fazer a coleta destinada aos pobres de Jerusalém (2Cor 8,16). Notícias posteriores a seu respeito não as possuímos, até que o vamos encontrar em Creta, como destinatário da epístola de Paulo.

Note-se que essas indicações relativas a Timóteo e a Tito são confirmadas nas cartas pastorais. O mesmo pode-se dizer de outras informações de pessoas que já conhecemos através dos Atos dos Apóstolos e das demais epístolas de S. Paulo. Além disso, as condições da Igreja descritas nas cartas pastorais, coincidem com as normas que os apóstolos observavam. Se bem que Timóteo e Tito houvessem recebido a sagração episcopal, não eram, contudo, bispos, respectivamente, da Igreja de Éfeso e da de Creta, no sentido atual do vocábulo "bispo" e sim, delegados dos apóstolos, com a missão de supervisionar as referidas Igrejas por um certo período de tempo. Tudo isso é reflexo do estado ainda fluido da organização e da terminologia eclesiástica, que foi lembrado a propósito dos Atos. Aparece em 1Tim 3,8.12 o termo "diácono" para indicar os adidos à administração e à beneficência (cf. At 6,1-6), mas o mesmo termo encontra-se já em Flp 1,1.

O conjunto das observações precedentes constitui um poderoso sustentáculo da autenticidade das "epístolas pastorais", negadas,

em geral, hoje em dia, por heterodoxos, pelo fato de apresentarem, como alegam, linguagem e estilo diversos dos escritos autênticos de S. Paulo. Observam, por exemplo, que nelas ocorrem cerca de 300 vocábulos não empregados nas epístolas do Apóstolo. Todavia, devemos lembrar que a diversidade de tema e outras circunstâncias trazem naturalmente consigo variações de vocabulário e aqui entra, além disso, a liberdade do autor, que não está obrigado a lançar mão sempre dos mesmos termos. Ademais, o estilo e o temperamento podem modificar-se com a idade, sendo que Paulo escreveu as pastorais, especialmente a 2Tim, quando já era velho, estando próximo à morte, pela qual deu testemunho de Cristo. O estilo das pastorais é simples e familiar, dada a índole das questões tratadas, que não são dogmáticas nem polêmicas, pelo que se assemelha ao estilo da parte moral das outras cartas de S. Paulo.

Emprega-se ainda como objeção a referência (1Tim 6,20; 2Tim 2,16) a erros e conversas fúteis, próprios do gnosticismo, que surgiram no século II. Entretanto, esses erros não são peculiares dos gnósticos do século II, pois já haviam sido difundidos pelos judeus ou judaizantes, que preludiaram o gnosticismo. Tais erros consistem em fábulas judaicas, proibição de alimentos, hostilidade ao matrimônio com o fim de adquirir ciência superior.

Feita essa introdução geral, só nos resta antepor a cada uma das três epístolas o respectivo sumário.

Page 101: BIBLIA AVE MARIA

PRIMEIRA EPÍSTOLA A TIMÓTEO

Cabeçalho e saudação (1,1-2).

Corpo da Epístola (1,3-6,19): ordens e conselhos para a boa administração da Igreja.

1. Luta contra as falsas doutrinas e vãs especulações, a fim de conservar íntegra e pura a doutrina e a moral de Jesus Cristo (1,3-20).

2. Regulamento para a oração pública: deve-se orar por todos os homens, a fim de que todos obtenham a salvação (2,1-7); como se deve orar (2,8); traje feminino e atitude das senhoras em família e na sociedade (2,9-15).

3. Virtudes e predicados exigidos nos ministros sagrados, quer os de grau superior (3,1-7), quer os de grau subalterno

(3,8-13). Grandeza admirável da Igreja (3,14-16).

4. Erros contra os quais é preciso preparar-se para lhes dar combate (4,1-10). Timóteo deve mostrar-se modelo de virtude (4,11-16).

5. Como devem ser tratados os homens idosos e os jovens (5,1-2); solicitude especial para com as viúvas (5,3--16); desvelos devidos aos presbíteros (5,17-22); solicitude pelas enfermidades do próprio Timóteo (5,23-25); deveres dos servos (6,1-2).

6. Alerta contra novidades doutrinais e contra o perigo das riquezas; bom uso dessas últimas (6,3-19).

Epílogo: Guarda ciosa do depósito sagrado da fé (6,20-21).

SEGUNDA EPÍSTOLA A TIMÓTEO

Cabeçalho e saudação (1,1-2); agradecimento a Deus, com elogio a Timóteo (1,3-5).

Corpo da Epístola (1,6-4,18).

1. Exortação à coragem e à constância. Timóteo deve professar a fé com generosidade (1,6-8), recordando os benefícios recebidos (1,9-10), o exemplo de Paulo (1,11-12) e o modelo, que é Cristo (1,13-14), e deve defender a fé contra os adversários (1,15-2,13).

2. Como se deve proceder em face dos inovadores: pregar corretamente a verdade, evitando questões inúteis (2,14-26), prevenir-

se contra os futuros disseminadores de escândalos (3,1-9), desmantelar o erro com o exemplo de vida santa e cumprir o próprio dever solicitamente até o fim (3,10-4,8).

Epílogo: diversas recomendações e notícias (4,9-18); saudações e bênção (4,19-22).

EPÍSTOLA A TITO

Cabeçalho, com a afirmação de sua autoridade, como apóstolo de Jesus Cristo, para a salvação dos homens (1,1-4).

Corpo da epístola (1,5-3,11).

1. Qualidades dos presbíteros: dotes que se requerem para os que vão ser sacerdotes e vícios de que devem estar isentos (1,5-16).

2. Reforma dos costumes: deveres peculiares a serem inculcados aos homens de idade, às senhoras idosas, aos jovens esposos, aos moços e aos escravos (c. 2).

3. Deveres gerais dos cristãos: a submissão às autoridades constituídas, a caridade para com o próximo, a prática das boas obras; exortação para prevenir os cristãos contra as novidades vãs e contra os mestres do erro (3,1-11).

Epílogo (3,12-15): recomendações, avisos (3,12-14), saudações e augúrio final (3,15).

Page 102: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLA DE SÃO PAULO AOS HEBREUS

Entre as catorze cartas do epistolado paulino, a que se costuma intitular “aos hebreus” é a mais singular de todas. Falta-lhe o habitual cabeçalho "Paulo apóstolo etc."; tem assunto e tom de carta somente no último capítulo (13), no qual o remetente fala de si próprio em primeira pessoa, mas sem mencionar nome algum (v. 22; cf. 2Tes 3,17; 1Cor 16,21; Fim 19). No restante, ora apresenta desenvolvimento dialético de um tratado, ora o estilo oratório de uma homilia; usa, ademais, uma linguagem e um estilo todo próprio, o mais aproximado do grego clássico, entre os escritores do Novo Testamento.

Também na tradição esta Carta seguiu um roteiro todo particular. Como nenhuma outra, possui a mais antiga atestação, que vem do século I e se encontra na Carta de S. Clemente Romano aos coríntios, não porém mediante citações expressas ou menção do nome do autor, mas por identidade de pensamento ou através de frases extraídas sem modificação nenhuma, às vezes misturadas com outras da Bíblia, e sem qualquer distinção. Ela é admitida pelos mais antigos escritores da escola alexandrina entre os escritos inspirados no Novo Testamento, mas no que concerne ao autor, manifestam-se dúvidas e flutuações. Julga-se que tenha sido concebida por S. Paulo, mas redigida por outro, como, por exemplo, S. Lucas, ou até mesmo o já citado Clemente Romano; ou ainda que, escrita por S. Paulo em hebraico (ou aramaico), haja sido depois traduzida por um especialista grego (EUSÉBIO, História Eclesiástica, III, 38; VI, 14,25). Orígenes, o maior escritor sobre a Bíblia, da idade antiga, depois de expor os vários elementos e juízos sobre a questão, concluiu: "para expressar o meu parecer, diria que os pensamentos são do Apóstolo [Paulo], mas.. . quem a redigiu, só Deus o sabe" (Apud Eusébio no último lugar citado).

Há muitas outras sombras na Igreja latina. Dir-se-ia que depois do citado Clemente Romano a presente epístola caiu no esquecimento. O cânon de Muratori e Vitorino de Petau (+304) fazem o elenco das epístolas de são Paulo, silenciando sobre essa aos hebreus e observam que são apenas sete as que o Apóstolo dirige às igrejas inteiras (não a pessoas particulares), e assim, implicitamente, excluem-na dos Livros Sagrados. Santo Irineu, Bispo de Lião, e S. Cipriano, de Cartago, jamais a citam em seus escritos. Tertuliano (séc. III) e Gregório de Elvira (séc. IV, fim) conhecem-na e citam-na com o nome de S. Barnabé. Finalmente, S. Jerônimo, ainda no séc. V, escreve que "o costume dos latinos não admite a Epístola aos hebreus entre as canônicas" (Carta, 129,3; Com. a Is 6,2).

Todavia, entre os gregos chegou-se logo à unanimidade em considerar a Epístola aos hebreus como escrito canônico e de S. Paulo, e, por influência dos Padres gregos, também os latinos, na segunda metade do século IV e na primeira do V, convieram, bem como os sírios e outros orientais, na mesma opinião. As vicissitudes transcorridas, porém, e a natureza do assunto apresentam ainda aos modernos várias questões, das quais falaremos depois de termos tomado conhecimento geral da epístola, na seguinte exposição esquemática de sua finalidade, argumento e divisão.

A Epístola aos hebreus é definida pelo seu próprio autor como "um discurso de exortação" (13,22). Exortar os seus destinatários a perseverarem firmemente na fé cristã, a não se deixarem vencer pela tentação de regressarem à fé do judaísmo incrédulo de que haviam saído; confortá-los nas dificuldades que deviam enfrentar e nas vexações que suportavam da parte de seus antigos correligionários; encorajá-los na luta pela aquisição dos bens que Jesus Cristo prometeu aos fiéis: tal é a finalidade que se propõe o remetente e que estabelece o argumento de seu escrito.

Page 103: BIBLIA AVE MARIA

A fim de conseguir o escopo que se propôs, o autor apresenta aos leitores, na parte mais ampla e substancial da epístola (1,1-10.18), um único tema, grandioso: a excelência da religião cristã sobre a judaica. Demonstra-a em três pontos: o fundador, o sacerdócio, o rito sacrificai, isto é, a pessoa de Jesus Cristo, a sua dignidade sacerdotal, o seu sacerdócio.

Dessa demonstração, ou em conexão com ela, inferem-se, na segunda partem (10,19-12,28), vários motivos complementares de perseverança na fé cristã.

O último capítulo (13) contém recomendações de caráter particular.

A doutrina dessa carta, como se vê, é cristocêntrica, isto é, gravita em torno da pessoa de Jesus Cristo e dela se irradia. Está, além disso, totalmente fundada no Antigo Testamento, interpretado à luz da revelação cristã. Tem muita analogia com a doutrina de S. Paulo. O leitor atento notará aí a ocorrência freqüente de idéias, muitas vezes mesmo de expressões, já encontradas nas epístolas precedentes do Apóstolo. Mas não lhe passarão despercebidas também diferenças de relevo ou quanto ao modo de apresentar as mesmas idéias.

Por exemplo, na presente epístola (cc. 1-2) os espíritos inferiores a Jesus não têm senão um nome, um mesmo grau: "os anjos". S. Paulo distingue os principados, as potestades, as dominações, os tronos (Col 1,16; Ef 1,21). Para S. Paulo a "ressurreição" ou o "ressuscitar" de Jesus ocupa o primeiro lugar em freqüência e em importância na economia da salvação. Em Hebreus é mencionada uma única vez com um vocábulo diferente (13,20).

Especial nessa epístola é, entre todos os escritos neotestamentários, a figura dominante de Jesus sacerdote e vítima (4,14-10,18), tema central, amplamente desenvolvido. As outras epístolas paulinas possuem a • esse respeito apenas duas lacônicas frases: "Cristo ê o cordeiro pascal imolado por nós" (1Cor 5,7) e "se entregou a si mesmo por nós a Deus, como oferenda e hóstia de suave odor" (Ef 5,2), e nem sequer uma vez traz a palavra "sacerdote" e "sacerdócio". Mais próxima da concepção de Hebr 9,11-12,24 é a visão do cordeiro de pé no céu "como imolado", em Apoc 5,6-13.

Do que vimos expondo a respeito dessa epístola surgem quatro questões: 1? Ê inspirada e parte integrante da Sagrada Escritura? (canonicidade). — 2? Quem é seu autor? (autenticidade). — 3- Quem são os "hebreus" aos quais ele se dirige? (destinatários). — 4? Quando foi escrita? (data).

1. Quanto à canonicidade ou inspiração da epístola, nenhuma dúvida podia subsistir depois do reconhecimento unânime que alcançou em tempo relativamente breve na antiga Igreja. Em todo o caso, foi ela solenemente ratificada pelo sagrado Concílio de Trento (sessão IV, decreto de 8 de abril de 1546), que coloca nominalmente "ad Hebraeos" entre as "Escrituras canônicas" do Novo Testamento.

2. No que concerne ao autor, a atribuição constante a S. Paulo na tradição oriental e o exame interno da própria epístola dão-nos a certeza de que de algum modo ela promana do Apóstolo, e neste sentido o Tridentino coloca-a, como última, entre as "14 epístolas de Paulo Apóstolo". Com isso, porém, não se diz que ela deva ser considerada "não só concebida e inspirada, mas também redigida por S. Paulo na forma que chegou até nós". Assim sentenciou a Pontifícia Comissão Bíblica na Resposta de 24 de junho de 1914, no III. Pode-se, pois, atribuir a redação dela a algum dos colaboradores de Paulo no apostolado.

Page 104: BIBLIA AVE MARIA

3. Os destinatários eram cristãos oriundos do judaísmo, pois a carta, inteiramente impregnada de citações e de alusões aos Livros Sagrados do Antigo Testamento, supõe que eles tenham um perfeito conhecimento do mesmo, como não podiam ter os fiéis convertidos do gentilismo. Pelas alusões que o autor faz ao passado deles (2,3-4;6,9-10;32-34), infere-se que esses cristãos haviam pertencido à primitiva comunidade de Jerusalém. Todavia, a língua em que a epístola foi redigida leva-nos longe de uma região como a Judéia, na qual falava-se o aramaico (At 21,40). Provavelmente eram aqueles judeu-cristãos que por causa da perseguição movida à Igreja nascente (At 8,1) de Jerusalém, emigraram "até a Fenícia, Chipre e Antioquia" (ibid., 11,19), estabelecendo-se nalgumas cidades helenísticas da costa mediterrânea.

4. A epístola foi escrita quando existia ainda o templo de Jerusalém e aí se celebravam regularmente os ritos que a lei mosaica prescrevia (9,6-10), pois não apresenta indício algum a respeito da destruição que lhe foi infligida por Tito e a cessação conseqüente de todo o sacrifício, a não ser um vago pressentimento de que estaria próxima a acontecer (10,25). Foi, portanto, composta antes do ano 70.

Page 105: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO ÀS EPÍSTOLAS CATÓLICAS

Ao lado do grande epistolado paulino, outras sete epístolas de apóstolos (uma de Tiago,

duas de Pedro, três de João e uma de Judas) constituem grupo à parte no cânon do Novo Testamento. Desde os primeiros séculos, foram denominadas, tanto em grupo como individualmente, católicas, isto é, "universais" provavelmente porque não são dirigidas, como as de S. Paulo, a Igrejas particulares, mas a muitas ao mesmo tempo, ou aos fiéis cristãos em geral. Fazem exceção a segunda e a terceira de S. João, porém são tão breves que se podem considerar como apêndices da irmã maior.

Entre os latinos, foram também chamadas epístolas "canônicas", talvez como protesto da fé no seu caráter de livros sagrados, que à maior parte delas foi reconhecido em era muito tardia. De fato, somente a primeira de Pedro e a primeira de João foram, desde o princípio, consideradas sem contestações nas Igrejas como inspiradas e, portanto, canônicas. Todas as outras, umas mais outras menos, encontraram oposição em diversos tempos e lugares (EUSÉBIO, História Ecles., III, 25, 1-3). No Ocidente, o grupo encontra-se já constituído em sua integridade e autoridade canônica, no princípio do século V (Concílio Plenário da África, 393; Papa Inocêncio I, 405). Nas Igrejas orientais, não antes dos séculos VI e VIL

No seio do grupo, a ordem das epístolas varia muito nos manuscritos e documentos

antigos. A mais comum, já indicada acima, põe em primeiro lugar Tiago e em último, Judas. Pelo seu caráter arcaico, ainda muito próximo à literatura sapiencial do Antigo Testamento, Tiago fica muito bem à testa do grupo. Parece-nos bem não separar Judas da segunda de Pedro, com a qual tem inúmeros pontos em comum, como se verá adiante. Desta forma, as três de João vêm a encontrar-se em contato imediato com o Apocalipse, do mesmo autor. É a ordem que parece mais lógica e que melhor favorece uma leitura ordenada destes escritos apostólicos.

Pelo seu conteúdo prevalentemente prático, essas epístolas traçam-nos as linhas mestras de uma vida profundamente cristã. Não estão ausentes delas os ensinamentos dogmáticos, lavrados em fórmulas breves e incisivas. Em Tg 5,14 lemos a mais importante alusão bíblica ao Sacramento da Unção dos Enfermos. Um dos artigos do Símbolo apostólico, a descida de Jesus Cristo ao limbo, onde se achavam os santos patriarcas, encontra o mais claro e formal testemunho da Escritura em 1Pdr 3,18--19. O mesmo Apóstolo declara-nos que a graça é uma íntima participação da natureza divina (2Pdr 1,4). São João lança o brado sublime: "Deus é amor" (1Jo 4,8) e replica com a mesma sublimidade: "E nós cremos no amor" (ibid., 16). Ê ele ainda que nos dá a idéia

mais exata da felicidade eterna dos eleitos: "Veremos a Deus como ele é" (ibid., 3,2). Eis um pequeno ensaio que nos exorta a pesar cada palavra destes veneráveis escritos.

Page 106: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLA DE SÃO TIAGO

A Epístola de Tiago distingue-se entre todas as outras epístolas apostólicas por três

características: 1° Sendo essencialmente moral, tem pouco de especificamente cristão e, pelo conteúdo e pela forma, marca como que a passagem do Antigo para o Novo Testamento. 2° Manuseia, porém, a língua grega com raro bom gosto e mestria. 3?

De estilo epistolar, tem quase somente a saudação inicial; falta-lhe a conclusão e na maior parte usa de um tom exortativo semelhante ao dos livros sapienciais, especialmente os Provérbios e o Eclesiástico.

Como para estes livros, também da Epístola presente não se deve pretender uma ordem rigorosa. As reflexões ou lições morais sucedem-se como lhas sugeria ao autor o seu zelo impetuoso. Podem-se, todavia, reduzir a três argumentos gerais: a verdadeira alegria (1,2-25), a verdadeira religião (1,26-3,12), a verdadeira sabedoria (3,13-5,12). Fecham--nas algumas recomendações para com o próximo. Dividi-la-emos, pois, em três partes e um apêndice.

I parte: A verdadeira alegria consiste em suportar as tribulações e tentações

(1,2-8.12-18), a pobreza (1,9-11), e na prática do bem (1,19-25).

II parte: A verdadeira religião consiste concretamente em evitar a ambição mundana (2,1-13); nas boas obras (2, 14-26); em refrear a língua (3,1-12).

III parte: A verdadeira sabedoria consiste em refrear as paixões (3,13-4, 12); em desprezar as riquezas (4,14-5, 6); na paciência (5,7-12).

Apêndice: Ministério de assistência aos enfermos (5,13-15), de oração (5, 16-18), de correção fraterna (5,19-20).

Tanto do endereço (1,1) como do conteúdo, pejado de frases e de idéias do Antigo

Testamento, transparece de modo claro que a epístola é dirigida aos judeu-cristãos disseminados entre as populações de língua grega.

O autor, que a si mesmo se denomina (1,1) "Tiago, servo de Deus e de nosso Senhor

Jesus Cristo" e que evidentemente goza de autoridade no seio da comunidade israelita, ê com toda a probabilidade o mesmo Tiago que conhecemos através dos Atos e das epístolas de S. Paulo, distinto do apóstolo homônimo, filho de Zebedeu (At 12,2;17), e personagem influente da cristandade de Jerusalém (ibid., 15,13; Gál 2,9). Ê também "irmão do Senhor" (Gál 1,19), isto é, primo de Jesus Cristo (cf. Mt 12,46-49, nota). Pela história eclesiástica, sabemos que foi bispo de Jerusalém (EUSÉBIO, Hist. Ecl., II, 1,2-3) e que foi morto pelos judeus, por ódio contra a fé, no ano 62 (FLÁVIO JOSEFO, Antigüidades, XX, 9,1; HEGESIPO, apud. EUSÉBIO, Hist. Ecl., II, 23).

Questão bem distinta e de solução menos fácil, mas também de menor importância para

o estudo da nossa epístola, é a de determinar se o seu autor deve ser identificado com aquele "Tiago, filho de Alfeu", que em todas as listas dos doze apóstolos do Senhor (Mt 10,3 e paralelos; At 1,13) é colocado em nono lugar. A maior parte dos exegetas católicos toma partido por essa identificação.

No entanto, no mencionado ano do martírio do nosso autor, temos a época mais recente

em que se pode colocar a composição da epístola. Mas o caráter arcaico que frisamos e a ausência de qualquer alusão à questão agitada no Concílio de Jerusalém, no ano 50 (At 15,1-29), aconselham-nos a remontar a uma época bem anterior, mais ou menos ao

Page 107: BIBLIA AVE MARIA

ano 48 ou 49. Seria, portanto, esta Epístola um dos primeiros escritos canônicos do Novo Testamento. A dificuldade mais forte que se costuma opor a data tão remota, — isto é, a de que o passo de 2,14-26 seja uma polêmica direta contra uma falsa interpretação da doutrina exarada por S. Paulo em Rom 4,2-5 e que, portanto, a epístola de Tiago é posterior à Epístola aos Romanos (escrita no ano 57 aproximadamente), — repousa sobre um confronto superficial e sobre uma compreensão inexata dos dois textos.

Page 108: BIBLIA AVE MARIA

PRIMEIRA EPÍSTOLA DE SÃO PEDRO

Das muitas alusões aos sofrimentos a que eram submetidos os cristãos, pode-se deduzir

que esta Epístola foi escrita em tempo de perseguição, com o fito de confortar os fiéis e incitá-los a permanecerem firmes na fé. A esta, que é a principal finalidade da epístola, juntam-se muitas recomendações e exortações a uma vida santa, digna da condição de cristãos.

Introdução (1,1-12): Saudações (1, 1-2) e louvor a Deus pelas grandezas da fé e da salvação cristã (1,3-12).

I parte: exortação geral a uma vida santa, digna da condição de cristãos (1,13,2,10), e em particular à caridade fraterna (1,22-25).

II parte: como proceder com relação aos pagãos, especialmente para com os

perseguidores (2,11-4,6): às autoridades (2,11-17); aos patrões (2.18-25); ao cônjuge (3,1,17); ao próximo em geral (3,8--12); paciência, nas perseguições (3,13--22); fuga dos vícios peculiares aos gentios (4,1-6).

III parte: vida interna da comunidade em vista do juízo divino (4,7-5,11): amor e auxílio mútuo (4,7-11); coragem nas perseguições (4,12-19); deveres do presbítero para com os fiéis e vice-versa (5,1-7); vigilância para todos (5,8-11).

Conclusão: saudações e votos (5. 12-14).

Como destinatários da Epístola são indicados, no cabeçalho, os fiéis dispersos nas regiões

situadas no centro e ao norte da Ásia Menor e convertidos da gentilidade, em grande parte por obra de S. Paulo. Os cristãos eram aí mais numerosos do que em outros lugares e tinham mais que sofrer, tanto da parte do povo como dos magistrados pagãos. Os vários indícios convergem para os tempos que precederam ou se seguiram imediatamente à perseguição de Nero, isto é, por volta do ano 64 d. C.

O autor da epístola é, sem dúvida, S. Pedro, o príncipe dos apóstolos, que então se

encontrava em Roma, e daí (cf. 5,13) escreveu aos longínquos fiéis da Ásia, embora não tenham sido convertidos por ele (2Pdr 3,2), servindo-se de Silvano (cf. 5,12), como escrivão, e talvez também como redator da epístola, notável não só pela força do pensamento, como também porque exarada em excelente grego.

Desde que se formou o cânon escriturístico do Novo Testamento, a presente Epístola foi

incluída nele. Nenhuma dúvida, portanto, foi levantada contra a sua divina inspiração e conseqüente canonicidade. O mesmo se deve dizer a respeito da sua autenticidade, isto ê,,se teve como autor Pedro, cujo nome figura no seu cabeçalho. Não se opõe, a tal autenticidade, o concurso subsidiário de um amanuense ou redator, como foi mencionado acima com relação a Silvano.

Serve, ao invés, para confirmar tal autenticidade o confronto desta epístola com os

discursos de S. Pedro, relatados nos At 2,14-36;3,12-26; 10,34-42. A doutrina é a mesma, idênticos são os conceitos, expressos até mesmo em raras e características locuções, sobre a pessoa de Jesus, a sua obra redentora, o seu soberano poder e a universalidade da salvação que ele veio trazer à terra. O autor da Epístola haure da fonte dos seus conhecimentos pessoais. Alguém notou que nela se encontram mais reminiscências dos Evangelhos, do que em todas as epístolas paulinas juntas. A nossa tem de comum tão somente a noção das ordens angélicas dos principados e potestades (3,22), mas, ao que parece, sem dependência direta. (cf. Col 1,16-17).

Page 109: BIBLIA AVE MARIA

SEGUNDA EPÍSTOLA DE SÃO PEDRO

Os fiéis aos quais é dirigida esta segunda Epístola do príncipe dos apóstolos são os

mesmos a que foi dirigida a primeira (cf. 3,1). Aliás, ao passo que na primeira o seu intento era encorajá-los nas perseguições desencadeadas contra eles pelos pagãos, com esta quer chamar-lhes a atenção para os inimigos internos, para erros perniciosos que, infelizmente, começavam a infiltrar-se nas comunidades cristãs. O Apóstolo, prevendo próxima a sua morte (1;13), apressa-se a prevenir os fiéis do perigo, enviando-lhes, como última recordação (1,12,15), este afetuoso escrito. Os três capítulos, em que se divide, tratam de três argumentos distintos.

C. 1. Saudação e votos (1-2); santidade de vida (3-11); firmeza na fé (12-21), que deve ser ornato do cristão.

C. 2. Os falsos mestres: insinuam doutrinas perniciosas, atraindo sobre si a perdição (1-

3); antigos exemplos de pecadores terrivelmente punidos por Deus (4-9); aplicação àqueles falsos doutores (10-16); o mal que fazem e sua condenação (17-21).

C. 3. Refutação do erro a respeito da proximidade da parusia ou vinda do Senhor (1-3);

ocasião do erro (1-4). Refutação: as três fases do mundo (5-7); o tempo ante a eternidade de Deus (8-9); aquele dia virá, mas de improviso (10); conseqüências práticas (11-13).

Conclusão: estejamos preparados (14); advertência sobre as epístolas de S. Paulo (15-16); votos e doxologia (17-18).

Digno de nota é o c. 2 (mais 3,1-3), porque corre paralelo com a Epístola de Judas:

mesmo argumento, exposto na mesma ordem, muitas idéias iguais, freqüentemente expressas com as mesmas palavras. A dependência direta de uma epístola para com a outra parece inegável. Menos fácil é determinar quem é que depende do outro, e as opiniões dos doutos não são unânimes. Considerando aquilo que Pedro apresenta a mais (por exemplo, Noé e o dilúvio, 2,5; cf. 1Pdr 3,20), e o que não apresenta em confronto com Judas (por exemplo, Jud 9,14) e outras particularidades de estilo, devemos dizer (como opina a maior parte dos autores) que a 2Pdr é mais extensa e melhorada e, portanto, posterior à de Judas. Isto possui uma certa importância para as questões da canonicidade, autenticidade e data da presente epístola.

Nos séculos II e III, a 2Pdr era pouco conhecida, ao menos fora do Egito, e a sua canonicidade, ou caráter sagrado, era posta em dúvida, quando não negada. Mas no século IV começou a ser mais bem conhecida no Ocidente e, simultaneamente, foram-se desvanecendo as dúvidas a respeito do seu valor de livro sagrado. Entre o IV e o V

século ocupou um lugar definitivo no cânon das Igrejas da Europa e da África, enquanto que na Síria continuou a ser ignorada por mais alguns séculos.

O mesmo não se deu com o reconhecimento da sua autenticidade, isto é, de que S.

Pedro é verdadeiramente o seu autor. S. Jerônimo não registrava senão os fatos quando afirmava, no ano 392, que Pedro "escreveu duas epístolas denominadas católicas, a segunda das quais muitos afirmam não ser de sua autoria, porque lavrada em estilo diferente da primeira (De viris 111. c. 1). Partilhando da opinião de que ambas eram genuínas, ele explica as diversidades de linguagem e de estilo pelo fato de S. Pedro as ter ditado a dois tradutores ou redatores gregos diversos (Carta 120, a Edibia, c. 9). É uma hipótese provável, que agrada ainda hoje a muitos dos que sustentam a genuinidade da 2Pdr, como o fazem a grande maioria dos católicos e alguns protestantes. Os que a negam, exageram demasiadamente as diferenças entre as duas

Page 110: BIBLIA AVE MARIA

epístolas e não consideram, como deveriam, a influência das fontes e das circunstâncias. O c. 2, por exemplo, sendo modelado, como ficou dito acima, sobre a epístola de Judas, é óbvio que não pode assemelhar-se à 1Pdr. Afora isso e poucas outras coisas, no resto da 2Pdr encontrar-se-á uma semelhança tal com 1Pdr e com os discursos de S. Pedro nos Atos, como não se encontra em nenhum outro escrito do Novo Testamento.

Por outra parte, não é necessário ir, como se pretende, além do ano 70 d.C, para situar,

na história da Igreja, os aberrantes doutores de que se fala no c. 2 ou os novos sentimentos em relação à "parusia" (3,4), ou a alusão às cartas de S. Paulo (3,15-16). Em poucas palavras, pode-se sustentar muito bem, até mesmo com argumentos internos, que a 2Pdr foi mesmo ditada pelo príncipe dos apóstolos, cujo nome ela traz.

Dado que o autor anuncia, também por revelação divina, como próximo o fim da sua

existência terrena (1,14), a composição da epístola pode ser colocada aproximadamente no ano 67, cerca de três anos após a 1Pdr. O lugar em que foi escrita não é referido expressamente. A única hipótese provável é que tenha sido escrita em Roma, como a primeira, pois aí S. Pedro pôs fecho, com um nobre martírio, ao seu glorioso apostolado.

Page 111: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLAS DE SÃO JOÃO

Das três epístolas seguintes, somente a segunda e a terceira apresentam as

características do gênero epistolar: saudações no início e no fim e alusões pessoais no meio. A primeira parece mais uma alocução a discípulos, ou melhor, uma circular a leitores amigos. Mas a afinidade evidente e estreita de idéias, de estilo e de linguagem, que se encontra nelas, une-as todas num grupo homogêneo.

PRIMEIRA

À semelhança do quarto Evangelho, esta epístola do apóstolo predileto de Jesus pode-se

dizer que é toda espiritual e teológica. Nela S. João fala de Deus com as expressões mais tocantes e dos seus atributos deduz os nossos deveres morais. Combate, ao mesmo tempo, os erros que então começavam a pulular a respeito da pessoa de Jesus Cristo, ao qual presta também entusiástico testemunho. O curso do pensamento ê deixado ao sabor da exaltação do sentimento místico. Podem-se, porém, distinguir, além da introdução e da conclusão, três partes ou etapas, compostas, cada uma, de três elementos: teológico, moral e cristológico.

Introdução (1,1-4): apoiado em sua própria experiência, atesta a verdade a respeito da pessoa e da obra de Jesus Cristo.

I parte:

1. Verdade teológica: Deus é luz- (1,5).

2. Conseqüência prática: devemos "andar na luz", isto é, viver uma vida de luz espiritual, que consiste na comunhão dos santos (1,6-7) e compreende a fuga ao pecado (1,8-2,2), a observância dos mandamentos (2,3-11), a fuga ao mundo (2,12-17).

3. Verdade cristológica: Jesus é o verdadeiro Messias (2,18-28).

II parte:

1. Verdade teológica: Deus é justo (2,29).

2. Conseqüência prática: dado que somos filhos de Deus, devemos praticar a justiça, evitando o pecado (3,1-10) e amando o nosso próximo (3,10-24).

3. Verdade cristológica: Jesus é verdadeiro homem (4,1-6).

III parte:

1. Verdade teológica: Deus ê amor (4,7).

2. Conseqüência prática: devemos amar-nos reciprocamente, a fim de encontrarmos no exercício da caridade a Deus e observar os seus mandamentos (5,1-4).

3. Verdade cristológica: Jesus é verdadeiro Deus (5,5-12).

Conclusão: oração e perseverança (5, 13-21).

Page 112: BIBLIA AVE MARIA

Todo o pensamento e o estilo, tão característicos, dessa Epístola são tão semelhantes aos do quarto Evangelho, que se devem atribuir, sem hesitações, ao mesmo autor, como, aliás, o garante a própria tradição. Ê até provável (cf. 1,3; 2,14) que a epístola tenha sido escrita para acompanhar e como que apresentar o Evangelho que o autor enviou às Igrejas e às famílias cristãs.

Se essa hipótese for verdadeira, fica desde já determinado, aproximativamente, o tempo e o lugar em que foi escrita a epístola, a saber: pelos fins do séc. I e em Éfeso.

SEGUNDA

Após as costumeiras saudações de introdução (1-3), exorta a caminhar sempre na verdade e no amor (4-6) e põe de sobreaviso contra os que disseminam erros cristológicos (7-11). Compendia, deste modo, a substância da primeira epístola. Seguem o anúncio de uma próxima visita e as saudações finais (12-13).

Discute-se a respeito dos destinatários da carta: trata-se de pessoa particular ou de uma comunidade de fiéis? A segunda hipótese é mais provável.

Não obstante o autor se oculte sob o nome indeterminado de "presbítero" (ou "sacerdote", revela-se, todavia, pela doutrina e pelo estilo. Toda a carta deixa transparecer a mente e o coração de S. João evangelista. Todavia, em razão de sua brevidade, demorou um pouco a tomar o seu lugar no cânon de todas as Igrejas.

A dificuldade aumenta quando se trata de determinar quando e onde foi escrita. Visto,

porém, que nela se combate (v. 7) o mesmo erro cristológico da primeira (1Jo 4,2), pode-se situá-la mais ou menos na mesma época e no mesmo lugar.

TERCEIRA

É ainda mais pessoal do que a segunda. Dirigida a certo "Gaio", aliás, desconhecido, tece, após as saudações (1), louvores à sua virtude, especialmente à caridade, e recomenda-lhe os portadores do bilhete (2-8). Reprova o proceder de Diótrefes (9-10) e elogia largamente Demétrio (11-12). Anuncia uma visita para breve e encerra com as saudações (13-15).

Devido ao tom familiar, particularmente no início e no fim, essa terceira epístola revela-se irmã da segunda, cujas vicissitudes na tradição e na crítica também compartilhou.

Foi escrita em favor dos missionários volantes que corriam de Igreja em Igreja, levando o conforto da sua palavra e da sua ação apostólica e conservando viva a comunhão entre as Igrejas.

A epístola deve, pois ter sido escrita na década final do século I, como as suas duas irmãs.

Page 113: BIBLIA AVE MARIA

EPÍSTOLA DE SÃO JUDAS

Estrutura simples e finalidade única encontram-se nesta breve epístola: acautelar os fiéis

contra os falsos mestres, os semeadores de doutrinas corruptas, de que fala também a segunda de S. Pedro, no c. 2. Tem um só capítulo, assim dividido, segundo o argumento:

Introdução: Saudações (1-2) e motivo da epístola: os mestres ímpios (3-4).

Corpo:

1. Castigos divinos já infligidos aos ímpios: aos israelitas incrédulos no deserto (5); aos anjos rebeldes (6); aos sodomitas (7).

2. Descrição dos Ímpios mestres, que, chafurdando-se na carne, ultrajam os espíritos angélicos (8-10); êmulos de Caim, Balaão e Coré, atiram-se a todos os vícios (11-13); espera-os, porém, um juízo terrível, já predito por Henoc (14-16).

3. Admoestação a que se guardem desses tais, e como devem comportar-se com os demais (17-23).

Conclusão: glória a Deus, autor da salvação.

Esta curta epístola encontrava-se, já no século II, segundo o testemunho do cânon Muratoriano (linha 68), incluída no cânon escriturístico da Igreja de Roma. Não faltou, já então, e mais ainda depois, quem pusesse em dúvida ou negasse principalmente sua canonicidade, como atesta S. Jerônimo (De vir. ill., IV), por causa da citação do livro apócrifo de Henoc (vv. 14-15). Prevaleceu, porém, o uso antigo e a autoridade da

Igreja, segundo testemunho do mesmo S. Jerônimo, e bem cedo as oposições cessaram no Ocidente e mais tarde também no Oriente.

O autor, Judas, nome muito comum, distingue-se dos homônimos contemporâneos,

qualificando-se "irmão de Tiago". Quem haveria de ser esse Tiago, senão o autor da primeira epístola católica e bispo de Jerusalém, de quem se falou à p. 1318? Por conseguinte, também o Judas da presente epístola era "irmão do Senhor", mencionado com os outros em Mt 13,55; Mc 6,3 (no sentido já explicado em Mt 12,46-49).

Assim como a respeito de Tiago, existe também a respeito de Judas, por motivos diferentes, porém, a questão de saber se ele era também apóstolo, um dos doze, identificado com "Judas, filho de Tiago" de Lc 6,16; At 1,13. Sobre esse ponto também os modernos exegetas católicos não se acham de acordo.

Admitida, como mais provável, a dependência de 2Pdr em relação a Judas (p. 1320),

esta epístola deve ter sido escrita alguns anos antes daquela. Pode-se situar a sua composição no ano 65, aproximadamente.

Os destinatários da Epístola são saudados (v. 1) em termos tão gerais, que se podem

aplicar a todos os cristãos. Mas arguindo do uso que o autor faz do Antigo Testamento e de tradições judaicas (vv. 9-14), pode-se deduzir que ele se dirige a fiéis vindos do judaísmo, a comunidades judeu-cristãs, provavelmente da Ásia Menor. A segunda de Pedro é dirigida a um público inteiramente diverso (cf. pp. 1320 e 1321). Podemos reconstituir os fatos assim: Os erros combatidos por Judas surgiram e propagaram-se primeiramente no sudoeste da Ásia Menor (v. 4, tempo passado). Vindo a conhecê-los através da Epístola de Judas, e temendo que tão perniciosa propaganda se estendesse também ao centro e ao norte da Ásia Menor, onde residiam os destinatários da sua

Page 114: BIBLIA AVE MARIA

primeira epístola, Pedro, na segunda epístola, adverte-os contra uma provável difusão próxima de tais erros no país deles (2Pdr 2,1, tempos futuros). Harmoniza-se e confirma-se deste modo tudo o que dizíamos acerca da relação genética entre as duas epístolas. Não se pode saber com certeza de onde foi enviada a epístola de Judas: provavelmente da Palestina e, talvez, até mesmo de Jerusalém.

Page 115: BIBLIA AVE MARIA

INTRODUÇÃO AO APOCALIPSE

Ficou explicado anteriormente que este vocábulo grego, com que o próprio autor intitulou o seu livro, o último da Bíblia (segundo a ordem do cânon), significa "revelação", forma particular de "profecia" ou escrito profético. No lugar citado acima foram expostas as características principais deste gênero literário em grau eminente no livro ora apresentado.

A natureza mesma das duas primeiras características — 1º o tema do "fim dos tempos" ou escatologia, com a sua subdivisão em duas espécies, messiânica e cósmica, nem sempre claramente distintas entre si, e 2

o a linguagem simbólica, que dá azo a diversas

interpretações, — criou dificuldades aos exegetas, dando origem a grande número de opiniões diversas e, por conseguinte, à falsa reputação de que o Apocalipse é o livro mais obscuro e mais difícil da Bíblia. Para não nos perdermos neste emaranhado, fixemos alguns pontos que são mais ou menos certos, graças ao próprio tema ou à estrutura literária do livro.

1º O intento do autor é animar os cristãos à constância na fé, malgrado os assaltos e as insídias de satanás e do mundo, pondo-lhes ante os olhos a certeza da vitória e do prêmio.

2° Dirige ele a sua mensagem (como os profetas, seus predecessores) sobretudo à geração contemporânea e às imediatamente sucessivas, e descreve o mundo de então, o paganismo dominante, com a abjeção ignominável das honras divinas prestadas aos imperadores romanos. Sem deixar de constituir alimento vital para todas as gerações vindouras, contudo, é principalmente contra tal politeísmo que arremete a veemência de suas palavras.

3º A linguagem é simbólica, pelo que não se deve atribuir a cada pormenor uma correspondência na realidade. Isto é próprio da alegoria. No símbolo, o que importa é a substância, a generalidade.

4º O predomínio do número 7 é evidente em todo o livro. É um número consagrado desde a primeira página da Bíblia, com a criação: 7 Igrejas e 7 espíritos (14), 7 candelabros (1,12), 7 estrelas (1,16), 7 lâmpadas (4,5), 7 selos (5,1), 7 chifres e 1 olhos (5,6), 7 anjos e 1 trombetas (8,6), 7 trovões (10, 3), 7 taças e 1 pragas (15,5-7) etc.

Cumpre, porém, evitar dois exageros: o de atribuir a esse número, todas as vezes que ele ocorre, um valor particular, presente na realidade e o de, pela análise, ver números setenários que não vêm expressos.

5o Três desses setenários encadeiam-se, na segunda parte do livro — que é também a

mais extensa — e inserem-se uns nos outros: à ruptura dos 7 selos, aparecem sete trombetas (8,1-2) e o toque da sétima trombeta encerra um ciclo de visões e abre outro semelhante (11,19-12,1), que culmina com o derramamento das sete taças da ira de

Page 116: BIBLIA AVE MARIA

Deus (16,1). É muito provável que todos os três ciclos se refiram ao mesmo período da história da Igreja. Mas não é igualmente justificável concluir, apenas pela semelhança de cenas e expressões, que duas visões distanciadas anunciem os mesmos acontecimentos.

Com essas premissas, parece impor-se aqui, como a mais coerente e a menos espinhosa, a divisão do Apocalipse em cinco partes, desiguais em extensão, mas de igual importância substancial, precedidas de uma breve introdução e seguidas de longo epílogo. Para se chegar a uma compreensão mais perfeita, consultem-se também as notas do texto.

Sumário

Exórdio: título e convite à leitura (1,1-3).

I parte: mensagens às sete Igrejas da Ásia (1,413,22).

Prólogo comum a todas (1,4-20), mensagem à Igreja de Éfeso (2,1-7), à de Esmirna (2,8-11), à de Pérgamo (2,12-17), à de Tiatira (2,18-19), à de Sardes (3,1-6), à de Filadélfia (3,7-13), à de Laodicéia (3,14-22). Seguem todas o mesmo esquema: Jesus Cristo ê apresentado cada vez sob um título diferente (esses títulos reaparecerão depois na segunda parte); descreve as condições morais da Igreja ou do seu chefe: repreende e encoraja. Promete o prêmio eterno aos que permanecerem constantes na fé, aos vencedores na batalha, e promete-o sob símbolos diversos, que reaparecerão também na última parte.

II parte: vitória do monoteísmo cristão sobre o politeísmo pagão (cc. 4-19) ou, mais concretamente, da Igreja sobre o império romano perseguidor.

Esta vitória é apresentada numa série de visões que, na sua maior parte, mostram as graves calamidades que deverão abater-se sobre a terra, para provação dos cristãos fiéis e punição dos inimigos do nome de Cristo. O restante manifesta as atividades nefastas das forças do mal e sua derrota e destruição, seguida pelo canto triunfal dos vencedores: Jesus Cristo e os seus fiéis seguidores. Tais calamidades são apresentadas sob a forma de símbolos nos quais predomina o número 7. Dir-se-ia que no conjunto, constituem uma profecia "da morte dos perseguidores", como o estilista Lactando denominou a sua relação histórico-apologética.

Visão de abertura: o cenário celeste (c. 4). O livro fechado por sete selos (c. 5). À abertura de cada um dos quatro primeiros selos sai um cavalo de cor diferente, com um cavaleiro portador de males para os habitantes da terra (6, 1-8). Ao se abrirem o 5- e o 7- selos, vêem-se as primeiras vítimas da perseguição e lúgubres sinais do drama já em ação (6,9-17).

Interlúdio: os 144.000 assinalados (7, 1-8) e o repouso eterno dos justos (7, 9-17).

Page 117: BIBLIA AVE MARIA

Rompido o 7° selo, saem sete trombetas empunhadas por sete anjos. Ao soar das quatro primeiras trombetas, derrama-se igual número de desgraças sobre a terra (8,1-12); as outras três trombetas preanunciam três grandes ais! 1- ai!, invasão de gafanhotos mortíferos (8,13-9,12); 2º ai!, um exército de cavalaria que mata a terça parte da humanidade (9,13-20).

Interlúdio: o anúncio do 3º ai! (última e decisiva fase da luta horrível) está escrito num livro aberto, que o vidente é obrigado a devorar (c. 10); as duas testemunhas de Deus pregam durante 1.200 dias, são mortas, ressuscitam e sobem ao céu (11,1-12).

Com o soar da sétima trombeta, chega o tempo do 3º ai! (11,13-19). Antes, porém, aparecem sinais terrificantes: satanás, sob a figura de enorme dragão, arrastando consigo a terça parte das estrelas (anjos), combate, no céu, contra os anjos bons, chefiados por S. Miguel. Satanás é derrotado, expulso do céu e lançado sobre a terra, onde começa a fazer guerra aos seguidores de Cristo (c. 12). Sai do mar uma besta de 1 cabeças (13,1-10), e da terra surge outra besta com chifres (13,11-18). Ambas, sob a dependência do dragão (satanás), combatem a religião de Cristo e procuram induzir os homens a adorarem as criaturas (o dragão e a primeira besta) contra o verdadeiro Deus.

Interlúdio: a falange de 144.000 virgens que acompanham o Cordeiro divino no céu (14,1-5; cf. 7,1-8). Três anjos anunciam a iminência e o resultado da luta e do juízo divino entre bons e maus (14,6-13); outros três anjos, anunciam, sob a figura da ceifa, o final já próximo do drama (14,14-20).

Prepara-se a realização do 3º ai! com a entrega a 1 anjos de 7 pragas, encerradas em 7 taças "cheias da ira de Deus" (c. 15). A uma ordem, os 7 anjos derramam sobre a terra, uma após outra, as sete taças, causando grande mortandade entre os pagãos que se obstinam na sua impiedade (c. 16).

Descrição do centro e baluarte do paganismo: uma grande cidade, chamada pelo nome simbólico de Babilônia, ou, por causa de seu crasso politeísmo, a grande meretriz. Reconhece-se facilmente nessa cidade a Roma imperial dos três primeiros séculos (c. 17). Queda, abandono e punição da ímpia cidade (18,1-8); pranto de seus amigos e cúmplices (18,9-19); gesto simbólico, que representa o seu desaparecimento definitivo (18,20-24). Festa no céu pelo castigo da "grande meretriz" (19,1-9).

As duas bestas, aliadas do dragão na luta contra os seguidores de Cristo, são mergulhadas vivas no fogo eterno; os homens, seus cúmplices, são mortos e atirados como alimento aos abutres (19, 11-21).

III parte: o dragão é atado durante 1000 anos; Jesus Cristo reina na sociedade humana que ele mesmo transformou (20,1-6).

IV parte: depois dos mil anos, satanás, livre dos grilhões, desencadeia seus últimos e furiosos ataques contra a Igreja de Cristo. Mas é vencido e precipitado no fogo eterno,

Page 118: BIBLIA AVE MARIA

juntamente com as duas bestas (20,7-10). Os mortos ressuscitam, são julgados todos segundo as suas ações e ouvem o próprio destino eterno (20,11-14). É o fim deste mundo.

V parte: sorte oposta dos justos é a dos maus, por toda a eternidade (21, 1-8); felicidade eterna dos justos, representada em dois quadros: primeiro quadro: a cidade, a Jerusalém celeste de estrutura perfeita, com os mais preciosos materiais, iluminada e cumulada pessoalmente por Deus de toda a sorte de bens (21,9-27); segundo quadro: um jardim cheio de árvores que produzem continuamente o fruto da vida, onde se gozará da visão de Deus (22,1-5).

Conclusão de toda a série das visões e testemunho do autor, João (22,6-11).

Epílogo: Jesus mesmo, compendiando em poucas palavras a substância do livro, atesta que foi escrito por sua ordem expressa e promete vir muito em breve; invocação e saudação (22,12-21).

Segundo essa interpretação, a maior parte do livro (cc. 9-19) descreve as perseguições romanas até à paz que Constantino concedeu à Igreja. Deve isto causar-nos admiração? É um fato que, pelos fins do séc. IV, que fora iniciado com a mais feroz das perseguições, o império romano já se tornara sinônimo de cristandade, terra dos cristãos, evento esse realmente digno de ser preanunciado por uma profecia, como foi mais tarde celebrado pela eloqüência dos oradores. Vêm mesmo a pelo estas belas palavras de S. Leão Magno: "Enquanto esta cidade [Roma] dominava sobre todos os povos, era escrava dos erros de todos eles, e tinha em conta de grande religiosidade o não recusar nenhuma falsidade. Por essa razão, sendo grande a afoiteza com que o diabo a mantinha vinculada, tornou mais admirável o fato de a ter Cristo libertado" (Sermão I na festa de S. Pedro e S. Paulo). Nenhum outro exemplo de triunfo tão vasto e radical como esse da fé cristã conhece a história mundial.

Dos outros sistemas de interpretação, mencionaremos apenas os dois mais célebres: o histórico, já fora de moda, que vê representadas nas cenas do Apocalipse as personagens e os fatos da história eclesiástica no volver dos séculos; e o escatológico, hoje o mais seguido, segundo o qual todas as visões e predições se referem aos últimos tempos da história humana, ao fim do mundo. Roma imperial, significada muito claramente nos cc. 17-18, seria apenas um tipo ou figura do perseguidor da Igreja, o Anticristo.

Quanto à composição do livro, convém frisar} sobretudo isto: que do início ao fim (especialmente nas visões) vêm à tona símbolos, cenas e locuções tomadas de vários livros do Antigo Testamento, principalmente de Ezequiel e de Daniel. Poder-se-ia comparar o Apocalipse a um grandioso mosaico, cujas pedrinhas provêm do vasto repertório dos antigos autores bíblicos, mas reordenadas e dispostas segundo um harmonioso projeto, absolutamente novo e original. Esse fato, além de nos dissuadir de procurar outras fontes fora da Bíblia para o Apocalipse; ê também um modo indireto de

Page 119: BIBLIA AVE MARIA

insinuar que nos acontecimentos anunciados se realizarão decisiva e plenamente as profecias do Antigo Testamento.

Quem é o autor do Apocalipse? Ele mesmo se identifica no texto, quatro vezes pelo menos: duas na terceira pessoa (1,1-4) e duas na primeira: "Eu, João" (1,9;22,8). Seria o mesmo autor do quarto Evangelho? Ao contrário do autor do Apocalipse, o evangelista jamais declina o próprio nome, mas oculta-se sempre sob a circunlocução "discípulo predileto de Jesus".

Existe uma diferença, talvez mais notável ainda: o Evangelho de João é o menos judaico dos livros do Novo Testamento. Pelo menos no sentido em que "judeus" designa aí quase sempre os inimigos de Jesus. O Apocalipse, pelo contrário, pode ser chamado o mais judaico porque, como ficou dito acima, é quase inteiramente uma trama de idéias, de imagens, de frases tomadas da Bíblia hebraica. Também a linguagem e o estilo de João são notavelmente melhores do que os do Apocalipse. Por essas razões, desde a antigüidade, alguns autores, encabeçados por S. Dionísio de Alexandria (séc. III), atribuíram o Apocalipse a outro João, que não ao apóstolo evangelista. Mas nas idéias e na linguagem teológica existem semelhanças tais e tão pessoais entre João e o Apocalipse, que nos levam a optar pela identidade do autor. Mencionemos as principais: Os títulos "Verbo de Deus" (Jo 1,1; Apoc 19,13) e "Cordeiro" (Jo 1,29; Apoc 5,6 e mais vinte outras vezes) atribuídos a Jesus Cristo; "verdadeiro" como atributo de Deus (Jo 17,3; Apoc 3,7); "testemunho" no campo da religião (Jo 17,19; Apoc í] 2.9); "água viva" para designar os dons (graça e glória) de Jesus Cristo (Jo 4,10; 7,38- Apoc 7,17;21,6).