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Cariru, zona rural do Paranoá

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62 63Biblioteca da Família: mutirão salvou os livros

durante temporal que destelhou a escola

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Biblioteca da FamíliaEscola Classe Cariru

O que é melhor, o computador ou o livro? “Ah, é o livro!”, responde

rapidamente Stefanie. “O livro você pega, lê, relê, pode até mudar a história”[ ]

dúvida sem fim imortalizada com tanta graça pela escritora Cecília Meireles em um dos seus poemas mais declamados passa longe do sorriso de Stefanie Martins dos Santos, dez anos de idade, quando ouve a repentina pergunta: “O que é melhor, o computador ou o livro?”

Muito à vontade entre as prateleiras coloridas abarrotadas de livros da Biblioteca da Família, enquanto aproveita o intervalo das aulas para procurar novidades no espaço mais concorrido da Escola Classe Cariru, uma simpá-tica construção encravada na área rural de uma das regiões mais bonitas do Distrito Federal – o Paranoá –, a menina não titubeia.

“Ah, é o livro!”, responde rapidamente Stefanie. “Faz muita diferença poder pegar, sentir. Na tela do computador isso não acontece”, continua, gesticulando como se virasse as páginas de uma publicação imaginária para ilustrar a explicação. “O livro você pega, lê, relê, pode até mudar a história. Do jeito que acontece em O velho pássaro da lua”, compara.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo.../E vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo,/se saio correndo ou fico tranquilo. Mas não consegui entender ainda/qual é melhor: se é isto ou aquilo.

(Ou isto ou aquilo, Cecília Meireles)

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Pegar, sentir,

A

reinventar,

Livros infantis: garantia de um conteúdo diferenciado

na rotina das aulas

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O livro foi o que mais empolgou os seus colegas de turma naquele semestre. Nele, o premiado escritor e cronista mineiro Antonio Barreto traz a história de uma criança muito pobre, que um belo dia ganhou um livro de uma professora.

“Aquele menino nunca teve nada, nenhum livro. Ele ficou tão feliz que começou a ler e quando acabou, leu de novo, e todos os dias lia mais um pouco”, conta Stefanie. “E releu tanto que as folhas foram se gastan-do com o tempo. Ele guardava o livro debaixo do travesseiro, mas a casa tinha goteiras, e quando chovia costumava molhar as páginas. Então as letras foram se apagando.” Mas o menino que amava tanto aquele presente e sonhava ser escritor não queria perder o seu tesouro, e a história não podia mesmo acabar assim.

“Ele deu um jeito muito engraçado. Começou a escrever em cima das letras apagadas, mas como não dava para enxergar e copiar o que tinha an-tes ele foi mudando tudo, inventou uma nova história”, prossegue Stefanie, ansiosa para contar o desfecho. “O livro mudou a vida dele. Acabou virando um grande escritor, e esse era mesmo o maior sonho dele.”

O final feliz do livro que chegou às crianças do Cariru pelas mãos ge-nerosas de doadores anônimos que mantêm sempre renovado o acervo da biblioteca não acontece à toa. Engenheiro famoso pela experiência em projetar estradas, viadutos e ferrovias, o escritor Antonio Barreto constrói uma delicada ponte entre a imaginação e o conhecimento para mostrar, em O velho pássaro da lua, como o livro pode transformar a vida das pes-soas. O talento que faz a história conquistar o interesse das crianças e se multiplicar em uma série de atividades associadas às outras disciplinas ensinadas nas salas de aula permite aliar o prazer da leitura ao reforço na aprendizagem dos temas que entram nos currículos.

É a esse e a muitos outros livros do acervo caprichosamente organizado pela professora Cláudia Fernanda de Oliveira Wagner no amplo espaço inaugurado pela equipe do projeto Bibliotecas do Saber, em 27 de outubro de 2008, que todos recorrem para garantir um conteúdo diferenciado na rotina de estudos das crianças. Da evolução das habilidades motoras à construção de valores ou à compreensão de questões matemáticas, por exemplo, tudo ganha uma ferramenta extra quando o livro entra em cena. E para isso nem é preciso que os pequenos já tenham aprendido a ler e escrever.

Com um diploma recém-conquistado de capacitação para atender alunos especiais, mas sem recursos pedagógicos suficientes nem local disponível para começar a desenvolver o trabalho com a turma, Cláudia pegou emprestado o novo espaço da biblioteca para conseguir por mãos à obra. Passeou o olhar aguçado pelas estantes e descobriu que ali estavam os autores que precisava transportar para a realidade das crianças do nú-cleo rural. “Foi um processo bastante inusitado”, avalia. “Não havia sala nem material. A biblioteca, então, me acolheu. Olhei o montão de livros e pensei: é aqui; o recurso são os livros. Os meninos não sabiam ler e decidi partir para a poesia.”

Cláudia ousou na escolha. Estreou com requintado estilo usando poemas do consagrado escritor português Fernando Pessoa, que criou os heterôni-mos Alberto Caiero, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, além de Bernardo Soares, para dar vazão a estilos de personalidades diferentes. A viagem literária a terras lusitanas para desenvolver a expressão oral e o controle motor dos pequenos superou as expectativas. Com a ajuda do autor que nasceu em 1888 e nos seus curtos 47 anos de vida encantou o mundo com seus versos e textos, o avanço no processo de memorização foi compensa-dor. “As crianças decoravam os textos, treinando por vários dias. Depois, fiz uma série de vídeos com elas, que assim podiam acompanhar o próprio progresso, que foi muito expressivo”, explica a professora.

Stefanie: à vontade junto

aos livros e empolgada com

as histórias

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Para o vigilante Anderson Cardoso dos Santos, que diariamente percorre os dez quilômetros que separam a sua casa, no Núcleo Rural Capão Seco, da Escola Classe Cariru, onde trabalha há três anos, a possibilidade de fazer pesquisas sem precisar se deslocar para locais distantes fez da biblioteca um “presente valioso” para a comunidade. “Isso foi fundamental para os meninos”, reconhece. Acostumado a acompanhar o vaivém dos alunos, ele acredita que o novo espaço provocou mudanças importantes. “É maravi-lhoso, a criançada começou a ler muito”, observa.

O “presente valioso” chegou 37 anos depois que os moradores se mo-bilizaram para conseguir a instalação da escola classe, que abriu as portas pela primeira vez, em julho de 1971, para receber 45 alunos do ensino fun-damental. O núcleo, batizado Cariru para homenagear a planta nutritiva e fácil de cultivar, rica em ferro e em propriedades medicinais e fartamente encontrada na região, é povoado por produtores familiares de hortaliças, suínos e galinhas e por trabalhadores das fazendas de soja, feijão, milho e criação de animais das áreas mais próximas. Quando criou as primei-ras turmas de educação infantil, em 2006, a escola já havia começado a receber crianças dos núcleos vizinhos de Quebrada dos Guimarães, Três Conquistas e Café sem Troco, triplicando o número inicial de alunos.

O sonho da educação integral e do ônibus escolar para garantir o trans-porte dos alunos só começou a virar realidade em 2010. Era o resultado de uma luta da escola e da comunidade para evitar que as crianças abandonas-sem os estudos, um risco permanente alimentado pela situação econômica precária das famílias e pelos longos percursos entre a casa e a sala de aula. Um levantamento da escola mostra que 10% das famílias sobrevivem com apenas R$ 260 por mês, enquanto cerca de 45% estão numa faixa de ren-dimentos que varia entre R$ 260 e R$ 1.300.

O tempo integral na escola faz parte da proposta de aumentar a auto-nomia dos alunos frente à realidade que enfrentam, explica a diretora, Edilene Ferreira de Oliveira. A implantação da biblioteca como espaço organizado era o instrumento que faltava para garantir o sucesso da tran-sição de horário. “Mudou tudo”, avalia Edilene. “É bem perceptível a situ-ação da escola antes e depois da inauguração. A biblioteca não trouxe só a leitura, o encantamento pelos livros. Ela virou uma referência e permitiu agregar benefícios, como abrir o conhecimento para toda a comunidade.”

O espaço reforçou o vínculo entre a escola, as famílias e os alunos, e deu possibilidades de trabalhar atitudes, valores e noções de responsabilidade e respeito a partir da leitura e dos cuidados com os livros, reconhece a vi-

Para alcançar outro objetivo da lista de prioridades do ano letivo – a integração das crianças especiais com os outros alunos da escola – Cláudia também recorre ao poder inesgotável dos livros, que ela descobriu pelo próprio esforço quando ainda frequentava os bancos de uma escola clas-se na área rural de Planaltina. A infância da professora, que desde 1986 se dedica à tarefa de transformar a vida dos pequenos alunos do Cariru, lembra a do menino de O velho pássaro da lua. Criada na área rural, até chegar à sétima série ela conhecia somente um livro – As aventuras de Pedro Malazartes. Sem estímulo algum para tomar gosto pela leitura, viu tudo mudar quando pôs as mãos em O menino do dedo verde.

O livro que anos mais tarde ela pegaria na Biblioteca da Família para estimular a memória dos alunos especiais transformou a vida da menina que sonhava ser professora. “Tenho um amor muito especial por esse livro, porque foi com ele que aprendi a gostar de ler”, conta Cláudia. O aprendizado exigiu uma perseverança que até então ela desconhecia. “Quando peguei O menino do dedo verde, tive que ler três vezes o primeiro capítulo, até entender. Mas depois não parei mais. Fui lendo e relendo muitas vezes, porque queria entender tudo e, quando consegui, acabei chorando. Percebi o valor de um livro”, emociona-se.

Com a diversidade de títulos de qualidade ao alcance das mãos desde que a biblioteca foi instalada, a professora sente esse gosto se renovar sempre que vê as crianças “viajando” por outros tempos e lugares como passageiros privilegiados da imaginação dos escritores. “Os livros ajudam os pequenos a compreender o mundo em que vivem, como aconteceu quando leram Os miseráveis”, relata Cláudia. Na reedição adaptada para a infância pelo escritor Walcir Carrasco, a obra clássica de Victor Hugo levou a Revolução Francesa para os campos de cerrado do Cariru. Os alunos enriqueceram o vocabulário, construíram dicionários e vestiram trajes característicos da época para encenar a história, que os professores contextualizaram, comparando com as manifestações de rua e outros movimentos de reivindicação por uma vida melhor e mais justa no Brasil.

A riqueza do acervo também contribui para ampliar o horizonte dos professores na elaboração de projetos pedagógicos. Com a possibilidade de aprofundar as fontes de pesquisa, a escola conquistou o primeiro lugar, entre as escolas públicas da região do Paranoá, do projeto Os insetos e eu. “O livro é uma ferramenta excepcional”, comemora Cláudia, que já traba-lhou o sistema monetário com a ajuda do livro Menino bom de negócios e sempre recorre aos poemas de Cecília Meireles e a histórias como A Arca de Noé para trabalhar sentimentos como compaixão, paz e solidariedade. “Chegamos até a refletir sobre a tragédia de Hiroshima”, conta.

Os livros ajudam os pequenos a compreender o mundo em que vivem, como quando leram Os miseráveis, relata Cláudia. A obra clássica levou a Revolução Francesa para os campos de cerrado do Cariru”

Reforço na aprendizagem

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ce-diretora Semíramis Melo de Lima. Para ela, o conceito de biblioteca faz toda a diferença no processo educativo. “Quando os livros foram para as prateleiras as crianças começaram a ter noção de acervo, a ver a dimensão do que uma biblioteca lhes permite acessar como ferramenta de pesquisa e de estudo”, afirma. “A organização permitiu que eles visualizassem isso, tornou o espaço meio sagrado, merecedor de um cuidado especial. Já es-tamos com uma geração que vivenciou essa transformação dos alunos em leitores”, comemora Semíramis.

A Biblioteca da Família também construiu, junto à comunidade, uma forte noção de pertencimento. O sentimento ficou evidente após um temporal que em poucos minutos arrancou o telhado da sala que abrigava o acervo. O mutirão que se formou em seguida mostrou que o nome esco-lhido em votação para batizar a biblioteca não poderia mesmo ser outro. Famílias inteiras chegaram lá rapidamente. “Todos correram para tirar os livros, preocupados em não deixar perder tudo aquilo. Naquele momento, percebemos o tamanho do valor daquele espaço”, relembra a diretora.

No dia seguinte, os professores se depararam com crianças que chora-vam ao ver os livros estragados pela chuva. Com a ajuda dos alunos, eles fizeram um varal para pendurar os livros encharcados e tentaram salvar tudo o que o temporal havia arrastado. “Vê-se a importância que a biblio-teca ganhou. Nem se cogita, na comunidade, abrir mão desse espaço para garantir mais uma sala de aula. Ele é uma porta que ficará aberta sempre”, garante Edilene. E não é para menos: na área rural, essa é a única porta para o conhecimento e a cultura.

Quem não sonha o azul do vôoPerde o seu poder de pássaro.A realidade da relvaCresce em sonho no serenoPara ser não relva apenas,Mas a relva que se sonha.

(Thiago de Mello)

Nem se cogita, na comunidade, abrir mão da biblioteca para garantir mais uma sala de aula. Ela é uma porta que ficará aberta sempre”, afirma a diretora EdileneFerreira Oliveira

Crianças do Cariru: autonomia, noção de

responsabilidade e de pertencimento

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“Certa vez, ao remexer velhos livros, encontrei uma folha toda amarelada pelo tempo, vi o título ‘Um sonho para um sonhador’ e veio à tona a ocasião em que o escrevi, no começo da profissão. As lembranças da escola precária, da falta de material, das carroças e cavalos estacionados em frente, do canal de água que abastecia a comunidade, da relação de carinho das crianças com uma rosa na mão para me oferecer, dos trabalhos pedagógicos, dos colegas de trabalho, foram se misturando às memórias da minha infância.

Assim como eu, meus alunos também passavam por dificuldades. Crian-ças da roça, cheias de sonhos, vinham também carregando os sonhos dos pais de oferecer uma vida melhor para seus filhos. Sonho de ver o filho aprender a ler e escrever, pois muitos pais não sabiam decifrar as letras, por falta de acesso à escola e de recursos.

E me vi no mesmo sonho! Aprendendo a ensinar crianças a ler e a arte de encantar. Encantar pela imaginação... Com uma certa timidez as histórias foram surgindo em minha prática, até que se fortaleceram; fui aprendendo a usá-las e ainda estou aprendendo, pois sonhos são exigentes, requerem inovação, recursos, disposição, comprometimento...

E foi em um momento inesperado que um sonho sonhado, de nome co-nhecido, chegou à escola, trazendo muitos livros: nossa biblioteca, fábrica de sonhos. E tive a certeza de que ensinar a sonhar é a nossa obrigação.”

Assim como eu, meus alunos tam-bém passavam por dificuldades. Crianças da roça, vinham também carregando os so-nhos dos pais de oferecer uma vida melhor para seus filhos. Sonho de ver o filho aprender a ler e escrever”

“Depoimento – Cláudia Fernanda de Oliveira Wagner, professora

“A nossa fábrica de sonhos”

Cláudia: “As histórias foram surgindo em minha prática, até que se fortaleceram”

Realidade rural: carroças e cavalos

“estacionados” perto da escola

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Cotidiano: horário integral implantado em 2010 ajuda a evitar a evasão escolar

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76 77Crescimento: escola criada em 1971 com 45 alunos hoje atende também três núcleos

rurais vizinhos