Bicameralismo na Constituição de 1988

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O BICAMERALISMO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Caetano Ernesto Pereira de Araujo * 1. Introdução O art. 44 da Constituição Federal estabelece, em duas declarações simples, a organização bicameral do Legislativo no Brasil: esse Poder é exercido pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. As pesquisas a respeito do funcionamento do legislativo brasileiro nos últimos vinte anos, contudo, têm-se concentrado no funcionamento da Câmara dos Deputados. Essa escolha, amplamente majoritária, revela uma situação de subestimação, tácita ou explícita, do papel do Senado Federal na operação do sistema político nacional. O objetivo do presente trabalho é a revisão da escassa literatura existente de maneira a avançar na discussão de duas questões que nela aparecem como centrais: qual a extensão real dos poderes do Senado e quais as razões desses poderes, ou seja, qual o significado de uma segunda Câmara no ordenamento político do País. Os debates sobre o funcionamento do Senado e seu desempenho no rol de competências que a Constituição lhe atribui serão recuperados de forma subsidiária, na medida em que contribuem para o objetivo mencionado. A discussão tem início com a recapitulação de algumas das funções atribuídas pela literatura às segundas Câmaras no mundo. Prossegue com um histórico breve do bicameralismo no Brasil e a análise dos poderes conferidos ao Senado pela Constituição de 1988. Essa relação de poderes é submetida à comparação internacional, de modo a avaliar o poder relativo do Senado brasileiro face às demais segundas Câmaras no mundo. Finalmente, as duas principais hipóteses concorrentes na literatura sobre o papel do Senado são analisadas: aquela que vincula o Senado e seus poderes à estrutura dos sistemas presidencialistas e a tradicional hipótese federativa. 2. Razões do bicameralismo Llanos (2002) relaciona quatro funções reservadas pela teoria ao bicameralismo: a representação de interesses diferenciados, o reforço dos controles sobre o Poder Executivo e * CAETANO ERNESTO PEREIRA DE ARAUJO é Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). É Consultor Legislativo do Senado Federal e Professor colaborador do Departamento de Sociologia da UnB.

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O texto elaborado pelo especialista Ernesto Caetano, analisa o papel da 2ª Camâra na oraganização do Estado brasileiro. O trabalho também contempla as características das 2ªs Camâras no mundo, a relação deste com o federalismo e a solidez dos Estados democráticos.

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  • O BICAMERALISMO NA CONSTITUIO DE 1988

    Caetano Ernesto Pereira de Araujo*

    1. Introduo

    O art. 44 da Constituio Federal estabelece, em duas declaraes simples, a

    organizao bicameral do Legislativo no Brasil: esse Poder exercido pelo Congresso

    Nacional, composto pela Cmara dos Deputados e pelo Senado Federal. As pesquisas a

    respeito do funcionamento do legislativo brasileiro nos ltimos vinte anos, contudo, tm-se

    concentrado no funcionamento da Cmara dos Deputados. Essa escolha, amplamente

    majoritria, revela uma situao de subestimao, tcita ou explcita, do papel do Senado

    Federal na operao do sistema poltico nacional. O objetivo do presente trabalho a reviso

    da escassa literatura existente de maneira a avanar na discusso de duas questes que nela

    aparecem como centrais: qual a extenso real dos poderes do Senado e quais as razes desses

    poderes, ou seja, qual o significado de uma segunda Cmara no ordenamento poltico do Pas.

    Os debates sobre o funcionamento do Senado e seu desempenho no rol de competncias

    que a Constituio lhe atribui sero recuperados de forma subsidiria, na medida em que

    contribuem para o objetivo mencionado. A discusso tem incio com a recapitulao de

    algumas das funes atribudas pela literatura s segundas Cmaras no mundo. Prossegue com

    um histrico breve do bicameralismo no Brasil e a anlise dos poderes conferidos ao Senado

    pela Constituio de 1988. Essa relao de poderes submetida comparao internacional,

    de modo a avaliar o poder relativo do Senado brasileiro face s demais segundas Cmaras no

    mundo. Finalmente, as duas principais hipteses concorrentes na literatura sobre o papel do

    Senado so analisadas: aquela que vincula o Senado e seus poderes estrutura dos sistemas

    presidencialistas e a tradicional hiptese federativa.

    2. Razes do bicameralismo

    Llanos (2002) relaciona quatro funes reservadas pela teoria ao bicameralismo: a

    representao de interesses diferenciados, o reforo dos controles sobre o Poder Executivo e

    * CAETANO ERNESTO PEREIRA DE ARAUJO Doutor em Sociologia pela Universidade de Braslia (UnB).

    Consultor Legislativo do Senado Federal e Professor colaborador do Departamento de Sociologia da UnB.

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    da preveno da tirania da maioria, o incremento da qualidade da produo legislativa e a

    estabilidade maior da legislao.

    Historicamente, as segundas Cmaras surgiram como representao estamental da

    nobreza e da Igreja. Esse modelo de representao sobrevive hoje na Cmara dos Lordes

    britnica e em poucos outros Senados do mundo. Senados hoje tendem a representar

    interesses diferenciados segundo critrios territoriais ou clivagens outras, significativas para a

    diviso da populao em grupos majoritrios e minoritrios.

    O controle do Poder Executivo e a preveno da tirania da maioria so perseguidos,

    frequentemente, por meio da representao isonmica ou simplesmente desproporcional, com

    o poder de veto decorrente, das diversas unidades subnacionais.

    A qualidade maior da legislao resultante da passagem por duas Cmaras vinculada

    expectativa da reviso na segunda Casa. A estabilidade, por sua vez, proviria da dificuldade

    maior na aprovao de nova legislao.

    Lijphart (2003), por sua vez, distingue dois tipos de democracia: a democracia

    majoritria, definida pela vigncia do princpio da maioria, e a democracia consensual,

    definida pela busca do apoio do maior nmero possvel de cidados. Institucionalmente, a

    democracia consensual abriga uma srie de mecanismos contramajoritrios, que tem o

    objetivo de provocar a negociao e o acordo. O bicameralismo associado pelo autor a este

    segundo tipo de democracia.

    Na anlise que dedica ao bicameralismo, Lijphart distingue duas dimenses teis na

    comparao entre diferentes legislativos bicamerais: a simetria de poderes e a congruncia da

    formao. A simetria de poderes definida pela distribuio formal das competncias e pela

    eleio direta da segunda Cmara. Competncias semelhantes e eleies diretas tornariam os

    Senados simtricos em relao s Cmaras. A congruncia dada pelo grau de aproximao

    das regras de eleio em cada Casa.

    Finalmente, cabe mencionar os dados fornecidos pela World Encyclopedia of

    Parliaments and Legislatures, na sua edio de 1998. Conforme a Enciclopdia,

    aproximadamente um tero dos cerca de 170 pases do mundo so bicamerais. O

    bicameralismo est associado positivamente rea dos pases, ao tamanho de sua populao

    e, mais importante, solidez e longevidade da democracia. Por outro lado, est associado

    negativamente aos regimes autoritrios e homogeneidade da populao. Em suma, os dados

    parecem indicar a prevalncia do bicameralismo em situaes de democracia e

    heterogeneidade da populao. A heterogeneidade demandaria a relativizao do princpio da

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    maioria, sob pena, em ltimo caso, de secesso. A operao da democracia possibilitaria, por

    sua vez, o atendimento dessa demanda por meio de reformas institucionais.

    3. Histrico do bicameralismo brasileiro

    A Constituio Poltica do Imprio, de 1824, estabelecia a composio da Assembleia

    Geral em duas Cmaras: Cmara de Deputados e Senado. Ao contrrio dos Deputados,

    Senadores eram vitalcios, escolhidos pelo Imperador a partir de listas trplices resultantes de

    eleies realizadas conforme as mesmas regras vlidas para a eleio de Deputados.

    O nmero de Senadores por Provncia era metade do nmero de cadeiras de Deputado.

    O Imprio era um estado unitrio, que no necessitava, por essa razo, da representao

    isonmica das Provncias no Senado.

    A existncia do Senado no obedecia razo federativa. Tratava-se, principalmente, de

    uma Casa destinada a moderar os impulsos da Cmara dos Deputados, vinculada,

    perigosamente, do ponto de vista da poca, ao voto popular. A moderao, ou sabedoria,

    conforme os defensores da regra, resultaria da operao conjunta dos critrios de idade

    (candidatos maiores de 40 anos), de vitaliciedade e, principalmente, da escolha final por parte

    do Imperador.

    A primeira Constituio Republicana manteve o bicameralismo, reformulado pela

    influncia do modelo norte-americano. Assim os Senadores, trs por Estado, com mandato de

    nove anos, eram eleitos pelas mesmas regras que vigoravam na eleio dos Deputados, com

    renovao de um tero a cada trinio. Inaugurava-se, portanto, a isonomia da representao

    dos Estados, e, com ela, a justificao federativa do Senado.

    A Constituio de 1934 reduziu a dois o nmero de senadores por Estado, com

    renovao pela metade a cada eleio. Foi inovadora em relao s competncias do Senado.

    Atribuiu-lhe papel de colaborao no exerccio do Poder Legislativo, cuja responsabilidade

    maior cabia Cmara dos Deputados. Ao Senado, por sua vez, competia a coordenao dos

    poderes federais, a manuteno da continuidade administrativa, a guarda da Constituio e s

    ento a colaborao na feitura das leis. Aparecem pela primeira vez entre suas competncias a

    aprovao de magistrados, embaixadores e do Procurador-Geral da Repblica; a autorizao

    da interveno federal e dos emprstimos externos de Estados, do Distrito federal e dos

    Municpios; a iniciativa das leis sobre interveno federal e de interesse dos Estados; a

    suspenso de regulamentos considerados ilegais do Poder Executivo; a suspenso da execuo

    de leis declaradas inconstitucionais; e a organizao, com a colaborao de Conselhos

    Tcnicos, de planos de soluo dos problemas nacionais. Ou seja, ao lado de um importante

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    papel da operao do princpio federativo, com poderes exclusivos de iniciativa legislativa, o

    Senado acumulava funes de controle do Poder Executivo, de coordenao dos poderes e,

    inclusive de planejamento estratgico.

    A Constituio de 1946 retornou ao nmero de trs senadores por Estado, eleitos pelo

    voto proporcional, segundo o princpio majoritrio. Instituiu a figura do suplente eleito e

    reservou ao Vice- Presidente da Repblica a presidncia do Senado, com voto de qualidade.

    No que se refere s competncias privativas, enumerou os casos de processo e julgamento por

    crime de responsabilidade, a aprovao de magistrados, embaixadores, Ministros do Tribunal

    de Contas, do prefeito do Distrito Federal e dos membros do Conselho Nacional de

    Economia.

    4. O Senado Federal na Constituio de 1988

    A nova Carta manteve, no que respeita composio do Senado, a frmula vigente

    desde 1946: trs representantes por Estado e pelo Distrito Federal, eleitos pelo voto

    majoritrio, com dois suplentes, com mandato de oito anos, com renovao de um e dois

    teros a cada quatro anos.

    As competncias privativas relacionadas, dizem respeito, fundamentalmente, ao

    processo e julgamento de autoridades; a aprovao, aps arguio, pblica ou secreta, de

    autoridades; ao endividamento da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios; e

    a suspenso de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

    Alm das competncias privativas, o Senado exerce, os mesmos poderes que a Cmara

    do que respeita produo legislativa. No incidem sobre ele limitaes temticas.

    A Constituio diz apenas que o projeto de lei aprovado por uma Casa ser revisto pela outra,

    com trs alternativas possveis: aprovao e encaminhamento sano presidencial; rejeio e

    arquivamento; e aprovao com modificaes, caso em que o projeto retorna Casa de

    origem para apreciao das alteraes.

    primeira vista, portanto, seria possvel postular uma ligeira predominncia do Senado

    no bicameralismo brasileiro. Afinal, as funes legislativas das duas Casas so formalmente

    simtricas e as competncias privativas do Senado excedem em muito aquelas reservadas

    Cmara. Backes (2008), no entanto, contesta a simetria formal das competncias legislativas

    das duas Casas e limita com maior preciso os poderes efetivos do Senado.

    Conforme seu argumento, a regra que preside as atividades da Casa revisora clara:

    todas as emendas efetuadas por ela retornam apreciao da Casa de origem, que detm a

    palavra final sobre elas. H, portanto, uma clara prevalncia da Casa iniciadora, exceto nos

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    casos de rejeio simples do projeto. Por outro lado, como a Constituio determina que os

    projetos de iniciativa do Presidente da Repblica, do Supremo Tribunal Federal e dos

    Tribunais Superiores tero incio na Cmara dos Deputados, e parte importante da legislao

    aprovada tem origem no Executivo, a Cmara dispe da palavra final sobre eles. Haveria, por

    conseguinte, certa preponderncia da Cmara sobre o Senado nesse aspecto.

    Essa preponderncia, contudo, no deveria ser superestimada. A autora aponta as

    circunstncias em que se manifesta o poderio legislativo do Senado: nas propostas de sua

    iniciativa, que contam com a Cmara como Casa revisora; na deliberao sobre leis aprovadas

    em sesso conjunta, basicamente as leis oramentrias; e, no exerccio da funo revisora, da

    possibilidade de rejeitar em bloco as propostas da Cmara dos Deputados.

    O nmero das propostas do Senado que se tornaram lei , para a autora, significativo:

    87, entre 1988 e 1997. As sesses conjuntas deliberavam sobre as Medidas Provisrias at

    2001. A mudana na tramitao ocorrida naquele ano, que estendeu s Medidas Provisrias a

    tramitao dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da Repblica, deu Cmara a

    palavra final nesses casos e teria retirado do Senado poderes significativos sobre parte

    importante da legislao. O poder de veto, por sua vez, partilhado por muito poucas

    segundas Cmaras no mundo: Alemanha, Sua, Bolvia, Mxico e a extinta Repblica da

    Iugoslvia. Na maior parte dos casos, as divergncias entre as duas Cmaras so resolvidas

    em comisses mistas ou pela palavra final da Cmara.

    No que toca s competncias privativas, Neiva (2008) relacionou 27 prerrogativas das

    segundas Cmaras, presentes em ao menos 5% dos 51 pases democrticos bicamerais,

    classificou-as em quatro grupos, atribuiu a cada grupo um peso e construiu dessa forma um

    ndice de poder dos Senados do mundo. Na classificao resultante, o Senado brasileiro ocupa

    a segunda posio, superado apenas pelo da Bolvia. Na verdade, segundo o autor, o ndice

    obtido subestima o poder do Senado brasileiro, que detm uma competncia no considerada

    na construo do ndice por ser exclusiva: o controle do endividamento dos governos nacional

    e subnacionais.

    Ressalta, na anlise dos argumentos de ambos os autores, a constatao de importantes

    poderes concentrados no Senado Federal por obra da Constituio de 1988. Resta debater o

    significado desses poderes: quais as razes de concentr-los numa segunda Cmara com

    representao isonmica das unidades da Federao, na qual minorias expressivas tm poder

    terico de veto sobre decises dos representantes da maioria?

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    5. A hiptese presidencialista

    O mencionado trabalho de Neiva correlaciona os dados por ele elaborados e conclui

    pela forte relao entre federalismo e bicameralismo. No entanto, a fora ou debilidade do

    Senado aparece associada com o sistema de governo. Pases presidencialistas tendem a manter

    Senados fortes, enquanto nos pases parlamentaristas, as segundas Cmaras tm papel de

    menor relevncia.

    Llanos (2005), por sua vez, argumenta na mesma direo ao discutir o caso especfico

    dos Senados na Amrica Latina. Na regio, vigora o bicameralismo em nove pases:

    Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Colmbia, Mxico, Paraguai, Repblica Dominicana e

    Uruguai. Por outro lado, os seis pases da Amrica Central, alm de Equador, Peru e

    Venezuela so unicamerais. Os Senados latino-americanos so fortes, na comparao

    internacional, com poderes legislativos semelhantes aos das Cmaras e integrados por

    senadores eleitos diretamente. So menos associados dimenso federativa: apenas trs dos

    pases bicamerais (Brasil, Argentina e Mxico) so federaes. O dado sugere a prevalncia

    da dimenso presidencialista na adoo do bicameralismo na regio. Na Europa, por outro

    lado, h um nico caso de Senado forte num pas unitrio, o da Itlia.

    A associao entre Senados poderosos e presidencialismo vincula a existncia do

    Senado necessidade de controlar o Presidente da Repblica, ator central desse sistema de

    governo. Esse controle pode ocorrer, teoricamente, de duas maneiras. Em primeiro lugar, a

    duplicao do Legislativo em duas Casas aumentaria as oportunidades de vigilncia sobre ele,

    ou seja, aumentaria a possibilidade de incidncia de instrumentos de controle como audincias

    pblicas e pedidos de informao. Por outro lado, a durao do mandato dos senadores e sua

    renovao escalonada exporiam o Presidente interao com senadores representantes de

    maiorias existentes em momentos anteriores a sua eleio. A possibilidade de convivncia de

    maiorias discrepantes seria maior, atingindo seu ponto culminante no caso de o Presidente ser

    eleito simultaneamente com a renovao de um tero do Senado. Nesse caso, dois teros

    representariam a maioria formada na eleio anterior.

    A verificao dessa hiptese demandaria a anlise do comportamento dos Senados face

    s iniciativas presidenciais.

    No caso brasileiro, os poucos estudos disponveis contrariam, aparentemente, essa ideia.

    Branco (2008) demonstra de maneira convincente o papel cooperativo do Senado no processo

    de ajuste fiscal efetuado no decorrer da dcada de 1990. Em todas as votaes relativas ao

    Fundo Social de Emergncia, ao Fundo de Estabilizao Fiscal, em suas duas verses, e

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    Desvinculao das Receitas da Unio, a maioria conseguida pelo governo no Senado foi

    superior verificada na Cmara. Trata-se, verdade, de um estudo de caso, mas o caso de

    grande significao, uma vez que estava em jogo a reteno, no mbito da Unio, de parcela dos

    recursos transferveis a Estados e municpios. Mais significativo ainda foi o comportamento dos

    senadores das regies Norte, Nordeste e Centro-Oeste, regies mais prejudicadas pela medida,

    que optaram por no exercer seu poder de veto em benefcio do governo.

    Na mesma direo, Loureiro (2008) aponta a tendncia de o Senado brasileiro atuar, ao

    longo da dcada de 1990, no sentido de restringir progressivamente as possibilidades de

    endividamento pblico. O marco nessa direo foi a Resoluo n 78, de 1998, que, entre outras

    regras, transferiu para o Tesouro Nacional a deciso sobre solicitaes de endividamento

    discrepantes dos critrios exigidos. Segundo a autora, o Senado colaborou ativamente com o

    processo de ajuste proposto pelo Executivo, chegando ao ponto de delegar parte de suas

    competncias a uma agncia tcnica desse Poder. Tudo em detrimento dos interesses imediatos

    dos governadores que, premidos pela escassez de recursos, trabalhavam em prol do aumento da

    dvida pblica de seus Estados. O Senado teria demonstrado sensibilidade para repercutir

    interesses nacionais de longo prazo e no interesses locais ou regionais de curto prazo.

    Ou seja, o veto da minoria a decises apoiadas pela maioria, possibilidade presente na

    regra de formao do Senado brasileiro, no se efetivaria, aparentemente, na prtica.

    Qual o controle, ento, do Senado, sobre os Presidentes, qual o elo entre

    presidencialismo e bicameralismo? Neiva, no trabalho citado, levanta a hiptese curiosa de

    que o Senado com representao isonmica dos entes subnacionais no funcionaria como uma

    Casa dos Estados, ou seja, no agiria na perspectiva de impor seu veto a decises da maioria

    que contrariassem interesses dos Estados menores. Ao invs disso, Senados seriam barreiras

    de conteno da influncia dos estados mais ricos e populosos sobre a Unio. Em regimes

    unicamerais, nada obstaria o monoplio das regies mais ricas sobre o Executivo. O poder de

    veto de regies pobres e pouco povoadas constituiria uma regra preventiva que nortearia o

    Executivo no rumo dos interesses nacionais, no dos regionais. Esse argumento abonaria, no

    caso de vir a ser confirmado por estudos posteriores, os achados de Branco e Loureiro.

    No entanto, essa concluso embute um resultado paradoxal. Opera, certo, uma

    inverso dos plos, atribuindo s minorias com poder de veto a manuteno do Poder

    Executivo da Unio na trilha do interesse nacional. Retorna, por outra via, contudo, ao

    argumento federativo. Afinal, a garantia contra o predomnio dos Estados ricos e populosos

    constitui a essncia da questo federativa. Retornamos, portanto, pela via da hiptese

    presidencialista, hiptese federativa.

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    6. A hiptese federativa

    Contra a hiptese federativa normalmente levantada a indistino temtica das

    matrias aprovadas no Senado e na Cmara. Arajo (2008) e Ricci (2008) mostram a

    inclinao semelhante entre Senado e Cmara pela aprovao de projetos de temtica

    nacional. No se verifica inclinao alguma do Senado para projetos de interesse ou alcance

    local ou regional. A constatao no de surpreender, considerados os poderes formalmente

    simtricos em relao iniciativa legislativa.

    Vimos, por outro lado, que o Senado votou com o governo e contra os interesses

    imediatos dos estados em diversos momentos do ajuste fiscal efetuado na dcada de 1990.

    Ou seja, parece suficientemente demonstrado que a relao do Senado com a dimenso

    federativa no passa pela utilizao do poder de veto de que dispe para bloqueio de decises

    majoritrias, originadas do Presidente e aprovadas pela Cmara.

    Na verdade, a anlise da relao do Senado com a questo federativa no pode ser

    isolada da discusso de outras repercusses institucionais da questo que subjaz ao pacto

    federativo, a representao de minorias, representao que pode exigir poder de veto por meio

    do Senado, mas que pode, em outros casos, demandar solues diferenciadas.

    Ou seja, a questo das minorias e, entre elas, a dos Estados minoritrios passa por outros

    mecanismos institucionais, alm do Senado, como a organizao federativa, o poder de veto

    sobre propostas de alterao da Constituio, e a diviso de poderes entre governo central e

    governos locais. Em suma, nessa linha de argumentao, a questo da adequao ou no dos

    poderes do Senado, da legitimidade ou no do veto das minorias nele representadas, depende

    fundamentalmente de dois fatores: a intensidade que assume a questo federativa ou, em

    termos mais gerais, da questo das minorias; e a operao simultnea de instrumentos outros

    para lidar com o problema.

    Numa situao simples, por exemplo, de um Estado organizado na forma de federao,

    com alto grau de consenso em relao regra de partio de poderes entre a Unio e os

    Estados, a demanda por um Senado poderoso ser to maior quanto mais urgente for a

    questo das minorias. O caso exemplar a Blgica, pas no qual o agravamento da questo

    nacional exigiu a instituio da federao, em 1993, a reformulao do Senado para incluir a

    representao das duas comunidades lingusticas, alm das divises territoriais e a

    implantao do poder de veto de cada comunidade sobre a alterao das regras relativas ao

    equilbrio assim alcanado. Mesmo assim, a partio do pas ainda est em pauta.

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    Na Bolvia, por outro lado, o poderoso Senado no aparece como garantia contra a

    ameaa separatista, simplesmente porque esse Senado poderoso opera numa estrutura unitria

    de governo. Os departamentos descontentes reivindicam mudana nas relaes entre poder

    central e poderes departamentais, reivindicao que, atendida, pode redundar na constituio

    de uma repblica federativa.

    O Canad oferece um terceiro exemplo instrutivo. A reivindicao de autonomia do

    Quebec no pode ser acomodada em nenhum formato de Senado, uma vez que a confluncia

    entre comunidade lingustica e unidade territorial torna insatisfatria, do ponto de vista

    quebequense, qualquer tentativa de solucionar o impasse mediante aumento do poder do

    Senado. Sua reivindicao pela adoo de um federalismo assimtrico, que reconhea a

    especificidade lingustica e cultural de uma e apenas uma das unidades subnacionais.

    Nos trs casos mencionados constatamos o agravamento da questo das diferenas

    intranacionais, com o fortalecimento paralelo das demandas por alterao nas regras de modo a

    contemplar essas diferenas. Nos trs casos a alternativa apresentada a secesso. Em apenas um

    deles, no entanto, a mudana na composio e funes do Senado chegou a ser implementada.

    O exame do caso brasileiro luz desses exemplos sugere que a avaliao a respeito da

    concentrao de poderes no Senado deve considerar a existncia ou no de marcas, no

    desenho institucional, da questo federativa. Ou seja, alm do papel reservado ao Senado, h

    outros mecanismos que mantenham ou ampliem o poder de veto das unidades federadas?

    A literatura aponta a desproporcionalidade na representao dos Estados na Cmara dos

    Deputados. O problema remonta primeira Constituio republicana, ocasio em que o tema

    foi amplamente debatido. A desproporcionalidade em favor dos Estados menos populosos foi ali

    iniciada e retomada por todas as Constituies democrticas posteriores, at a Carta de 1988.

    O mecanismo opera pela definio de limites mnimos e mximos para o tamanho das

    bancadas estaduais, hoje definidos entre 8 e 70 cadeiras. Com isso, aqueles Estados com

    populao suficiente para preencher um nmero maior de cadeiras tornam-se sub-

    representados, em benefcio da sobre-representao dos Estados com populao insuficiente

    para atingir o mnimo de 8 cadeiras.

    Oliveira (2004), utilizando dados do Censo de 2000, demonstrou que, contrariamente ao

    senso comum que aloca a sobre-representao nas regies Norte, Nordeste e Centro-Oeste,

    em detrimento do Sul e do Sudeste, o problema restringe-se, na prtica, a So Paulo, de um

    lado, que deveria contar com 42 deputados a mais, e Sergipe e os Estados mais recentes da

    regio Norte (Roraima, Amap, Acre, Tocantins e Rondnia), cuja bancada conjunta excede

    em 27 cadeiras o nmero devido na aplicao integral do critrio da proporcionalidade.

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    Ou seja, a representao do Par e do Amazonas atende proporcionalidade, assim como a das regies Nordeste, Sul e do Sudeste, com exceo de So Paulo. O Centro-Oeste encontrava-se ligeiramente sobre-representado, mas sua populao crescia a ritmo muito superior ao da mdia nacional, de modo que a situao de proporcionalidade seria alcanada em poucos anos.

    Chama a ateno a longevidade da desproporcionalidade vigente. Vigora desde 1891 e sobreviveu aos debates de trs Assembleias Constituintes. igualmente significativo que, nos anos recentes, o tema tenha escapado a todas as propostas estruturadas de reforma poltica e convertido-se em clusula quase ptrea da Constituio por deciso do Tribunal Superior Eleitoral, que considerou de validade permanente o 2 do art. 4 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, que assegura a irredutibilidade da atual representao dos Estados e do Distrito Federal na Cmara dos Deputados (Oliveira).

    Tudo indica que o efeito da regra dos limites das bancadas na desproporcionalidade da representao dos Estados na Cmara consciente, assim como sua manuteno. Se acompanharmos Oliveira na sua concluso, apenas sete unidades da Federao estariam diretamente afetadas por essa situao e a grande maioria dos Estados e dos Deputados no seria diretamente prejudicado por uma alterao na regra no sentido de caminhar para uma nova regra que aumente a proporcionalidade. O consentimento da maioria desproporcionalidade pode ser compreendido, nesse caso, como a demanda por novos pontos de veto, como uma percepo de insuficincia das garantias oferecidas pelo Senado. Os poderes de veto de Estados menos populosos, que do ponto de vista da democracia majoritria, na terminologia de Lijphart, so dificilmente compreensveis, so considerados tmidos pela maioria dos atores polticos. Se o Senado insuficiente, a desproporcionalidade precisa ser reconstruda e reforada na Cmara dos Deputados.

    Se esta hiptese correta, temos um caso no previsto nas dimenses de classificao do bicameralismo elaboradas por Lijphart. A dimenso da congruncia entre uma e outra Cmara partia de uma situao considerada normal de representao do povo na Cmara dos Deputados. Senados incongruentes afastar-se-iam desse modelo pela operao de uma srie de regras de eleio. A situao de congruncia seria dada pela aproximao do Senado s regras de formao da Cmara. Temos aqui a situao inversa: congruncia pela aproximao da Cmara s regras consideradas legtimas para o caso do Senado.

    A manuteno dessa regra nas Constituies democrticas da histria brasileira s pode ser atribuda intencionalidade sucessiva dos Constituintes de 1891, 1946 e 1988. Nesse sentido, a hiptese lanada por Neiva impe-se considerao: alm do Senado, a Cmara desproporcional aparece, aos olhos dos atores, como instrumento de preservao da Unio contra o predomnio de uma pequena coalizo de Estados mais ricos e populosos.

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