Biografia de uma investigação — a propósito de um livro ... · tem respeitar uma ontologia...

28
Projeto de um artigo para um dossiê sobre eme dos Arquivos de filosofia coordenado por Bruno Karsenti Biografia de uma investigação — a propósito de um livro sobre modos de existência Bruno Latour

Transcript of Biografia de uma investigação — a propósito de um livro ... · tem respeitar uma ontologia...

Projeto de um artigo para um dossiê sobre eme dos Arquivos de filosofia coordenado por Bruno Karsenti

Biografia de uma investigação — a propósito de um livro sobre modos de existência

Bruno Latour

EDITORA 34

Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000São Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br

Copyright © Bruno Latour, 2012

A fotocópia de qualquer folha deste livreto é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

Tradução: Marcela Vieira

Para uma filosofia empírica, e não simples-mente empirista, a pesquisa oferece o único mo-do de desenterrar seus conceitos e de em seguida experimentá-los, antes de propor-lhes uma ver-são que possa ser submetida à crítica de seus pa-res. Entretanto, ainda que o gênero da pesquisa se beneficie, na filosofia, de um prestígio notório e intimidador, é muito raro que um autor queira organizá-lo com a participação de seus leitores. Mas é exatamente isso o que pretendo fazer ao publicar o livro Enquête sur les modes d’existence – une anthropolo gie des Modernes,1 baseado em um site virtual que possibilita aos visitantes – que nesse meio-tempo tornaram-se copesquisadores – examinar-lhe os argumentos antes de sugerir ou-tros campos, outras provas, outros relatórios. Por meio desse dispositivo, proponho aos pesquisa-dores ajudarem-me a encontrar o fio da experiên-cia, ficando atentos a vários regimes de verdades que eu chamo de modos de existência, de acordo com o peculiar livro epônimo de Etienne Souriau, recentemente reeditado.2 É o desdobramento des-ses métodos que me permite propor aos Moder-nos – a abrangência deste termo deve ser, eviden-temente, esclarecida – uma descrição mais realista do que aquela que apresenta o advento da Razão ocidental, ou aquela autorizada por sua crítica. Minha hipótese é a de que nas áreas empíricas que até agora venho rastreando, cada um desses métodos permite respeitar uma certa tonalidade da experiên cia, da condição particular de felici-dade e de infelicidade em cada caso, e, sobretudo

1 Bruno Latour, Enquête sur les modes d’existence, une anthropologie des Modernes. Pa-ris: La Découverte, 2012.

2 Etienne Souriau, Les différents mo-des d’existence. Se-guido de “L’Œuvre a faire” (com uma introdução intitu-lada “Le sphinx de l’œuvre”, de Isabelle Stengers e Bruno Latour). Paris: PUF, 2009 (1a ed., 1943).

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

– e é aí que as coisas se complicam –, eles permi-tem respeitar uma ontologia específica. Na reali-dade, cada método exige que encontremos seres distintos, aos quais é preciso se dirigir em suas próprias línguas. A clássica questão da filosofia “qual é o ser da técnica, da ciência, da religião, etc?” tornar-se-á, então: “quais são os seres da técnica, da ciência, da religião, e de que manei-ra os Modernos tentaram abordá-los?”. Porém, como justificar a multiplicação desses métodos, quando a civilização que se pretende estudar pen-sa a si mesma a partir de duas únicas categorias apenas, objeto e sujeito (é verdade que com mil combinações diferentes)?

Quando meus leitores dizem que não enten-dem por que continuei a trocar de campo, e que não veem a lógica do conjunto de meus estudos – o que os leva a procurarem meus livros em dife-rentes prateleiras nas livrarias (e isso quando eles os encontram, ou melhor, se é que os procuram!) –, o comentário me faz rir porque não conheço nenhum outro autor que tenha seguido de forma tão obstinada um mesmo projeto de pesquisa, dia após dia, durante vinte e cinco anos, preenchendo o mesmo questionário e respondendo às mesmas perguntas. É aí que pode ser útil esclarecer como cheguei até essa inusitada forma de antropologia filosófica: não para contar minha vida – se um sistema é sólido, não há necessidade de se preocu-par com o seu autor –, mas principalmente para traçar a biografia desse argumento, baseando-o em sua história. Ninguém se surpreenderia com o nascimento empírico de uma filosofia empíri-ca. Neste artigo, eu gostaria de entregar-me ao exercício contraditório de narrar a caótica apa-rição de um argumento sistemático cuja persis-tência por quase trinta anos deixa a mim mesmo admirado.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

Se eu voltar ao passado, ao passado conscien-te – e irei poupar o leitor das tribulações de meu inconsciente –, deveria começar pela convergência entre Charles Péguy e Rudolf Bultmann. Nos me-ses de setembro, apesar das importantes colheitas para o comércio de vinho, meus pais me levavam em peregrinação a Orléans, às “jornadas Péguy”. Se fui tão profundamente influenciado pela leitu-ra de Clio é porque fusionei as lições desse grande hermeneuta, Clio, a musa, com a exegese bíbli-ca, em que descobri com grande paixão uma me-ticulosa, devota e fértil erudição.3 Por sorte, eu, que naquela época era um militante católico, tive como professor de filosofia, na Univer sidade de Dijon, de 1966 a 1973, André Malet, pastor pro-testante e tradutor de Bultmann.4 Em suas mãos, que eram tão brilhantes quanto o pergaminho, o texto bíblico ficou finalmente compreensível, re-velando-se como um longo processo de transfor-mações, invenções, glosas, racionalizações diver-sas, cujo conjunto tramava uma malha de inter-pretações que, cada uma a seu modo, tratavam novamente – e esse é o ponto essencial – a questão da fidelidade ou da traição: invenção falsa ou fiel, repetição ímpia ou surpreendente redescoberta? Passávamos muito tempo fora da universidade, comparando, por exemplo, as variadas narrati-vas de ressurreição: elas deveriam ser lidas como narrativas informativas – de fato, o túmulo está vazio – ou como narrativas de transformação – o anjo com o dedo em riste ensina, por meio des-sa narrativa, como as Escrituras devem ser lidas, como se o que elas dissessem pudesse ressuscitar aquele a quem elas eram dirigidas?

Porque escaparam de uma forma inexplicá-vel da transcendência e da imobilidade, porque se tornaram localizados, históricos, situados, artifi-ciais, sim, inventados e constantemente reinven-

3 Charles Péguy, Œuvres en prose 1909-1914. Paris: Gallimard, La Pléïade, 1961.

4 Rudolf Bult-mann, L’histoire de la tradition synop-tique (traduzida por André Malet). Paris: Seuil, 1971.

tigubarcelos
Highlight

tados a cada novo turno, levantando a questão de suas veracidades, esses textos se tornaram ativos e acessíveis. A essa opressiva responsabilidade do leitor, evocada de forma tão maravilhosa em Clio, Bultmann oferecia uma descrição científica. Curiosamente, do meu ponto de vista, a descons-trução sistemática, pela exegese, de todas as cer-tezas dogmáticas, longe de enfraquecer o valor de verdade que as sucessivas glosas não paravam de retomar, tornaram possível, por fim, que se ques-tionasse a verdade religiosa; mas apenas com a condição de que se aceitasse a existência de um percurso de veridicção com suas próprias condi-ções de felicidade, um percurso cujos traços per-manecem na exegese e do qual Péguy, com seu es-tilo repetitivo, havia tentado recuperar a pertur-badora tonalidade na virada do século xx.

Em uma tese defendida em 1975 e logo en-tregue à crítica afiada dos ratos, inferi esse argu-mento na análise do evangelho de São Marcos e do “santo” Charles Péguy (acrescentei ainda outro santo, o poeta Saint John Perse, por ra-zões que, confesso, hoje escapam-me completa-mente...). Um pouco de Derrida, de Lévi-Strauss e muito de Deleuze ajudava a conferir a esse ar-gumento um brilho da época que nem Péguy nem Bultmann poderiam, evidentemente, proporcio-nar. Em minha análise, se os textos no túmulo vazio não transmitiam informação, eles faziam muito mais ao indicar a possibilidade de outros regimes de vozes verídicas e verificáveis.5 O que é certo é que eu saía desse período de formação armado de uma enorme mas muito paradoxal certeza no fato de que, quanto mais uma malha de textos fosse interpretada, transformada, arti-ficial, retomada, recosturada, repetida e reforma-da, e a cada vez de forma diferente, mais chan-ce ela teria em manifestar sua verdade intrínseca,

5 Bruno Latour, “La répétition de Charles Péguy”, em Péguy écrivain. Colloque du centenaire. Paris: Klincksieck, 1977, pp. 75-100.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

com a condição – e é isso o que eu ia reservar para mais tarde – de que se saiba distinguir de outro modo a verdade, a informação pura e per-feita (que eu ainda não chamava de informação Duplo Clique, já que naquela época os mouses dos computadores ainda não faziam coçar nossas mãos)... Um longo combate contra a erradicação das mediações ia começar.

Como ainda era possível escapar do serviço militar cumprindo “sua colaboração”, troquei a escola Gray, em Haute Saône, pela escola técnica de Abidjan. Pode-se imaginar a lavagem cerebral por que passaria um graduado em filosofia, pro-vinciano, católico e burguês, que se vê transpor-tado para o caldeirão da África neocolonial – e, além disso, acompanhado de mulher e filho? No Abidijan dos anos 1973-1975, descubro ao mes-mo tempo as práticas mais predadoras do capita-lismo, os métodos da etnografia e os enigmas da antropologia. Esta última, particularmente, não me abandonaria nunca mais: por que se utiliza a ideia de modernidade, de frente de modernização, de contraste entre o moderno e o pré-moderno, antes mesmo de se ter aplicado aos que se dizem civilizadores os próprios métodos de pesquisa aplicados aos “outros” – os quais se pretende se-não civilizar completamente, pelo menos moder-nizar em certo grau?

Por sorte, o campo proposto por meus colegas do orstom (hoje ird, Institut de Recherche pour le Développement [Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento]) refere-se justamente às usinas da Costa do Marfim e à inviável questão da mar-finização dos administradores: por que os patrões expatriados não providenciam administradores africanos competentes o bastante para substituí--los? Imediatamente, sinto que se para responder a essa pergunta eu tivesse utilizado o esquema de

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

uma disputa entre a modernização e o arcaísmo, eu nada teria entendido. Mas também percebo a ausência de um esquema alternativo, pois não se sabe descrever etnograficamente os significados dos adjetivos “racional”, “eficaz”, “competen-te”, “rentável”, todas essas qualidades – segundo o que me atestam, com a desdenhosa confiança dos expatriados – que parecem faltar aos admi-nistradores marfinianos. Percebo que tais adjeti-vos de combate e de conquista não resultam de qualquer descrição independente, são palavras de ordem ou gritos de guerra. Se se apressa em invo-car as dimensões culturais, os limites cognitivos, as “almas negras” e as “mentalidades africanas”, é para não se ter o trabalho de refletir sobre uma definição que seja suficientemente material e con-creta. Existe aí uma flagrante assimetria: os bran-cos antropologizam os negros – sim, e com mui-ta eficiência –, mas eles mesmos não se deixam antropologizar. Ou então eles o fazem de modo falsamente distante, “exótico”, prendendo-se aos aspectos mais arcaicos de suas próprias socieda-des – as festas municipais, a crença na astrologia, as refeições de primeira comunhão –, e não ao que me salta aos olhos (olhos que, na verdade, foram educados pela leitura coletiva do Anti-Édi-po):6 as técnicas industriais, a economia, o “de-senvolvimento”, a razão científica, etc., ou seja, tudo o que constitui o coro estrutural dos impé-rios em vias de expansão.

Daí veio a ideia de aplicar os métodos das ciên cias sociais – principalmente a etnografia – às práticas mais modernas. Em 1975, a Califórnia parecia ser o centro mais avançado da humani-dade, chamavam-na até mesmo de “cabeça pes-quisadora”. Um amigo cientista de Dijon, Roger Guillemin (antigamente, menino de coro de um querido tio padre!), propôs que eu me juntasse

6 Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’Anti-Œdipe: capitalisme et schizofrénie. Paris: Minuit, 1972. Edição brasileira: O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, tra dução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2011, 2a edição.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

a ele em São Diego, no Instituto Salk, que aca-bava de ser inaugurado, caso eu conseguisse um financiamento. Eu precisava apenas de algumas páginas e poucas linhas para escrever o projeto de uma antropologia que iria oferecer aos que se dizem modernos e racionais uma descrição que fosse, fi nalmente, etnograficamente estruturada. Lembro-me até hoje do ar estupefato do agente consular encarregado de instruir-me sobre meu pedido de bolsa Fulbright, diante da confiança com que eu pretendia tornar a antropologia enfim simétrica! Eu achava completamente normal en-raizar a antropologia comparada em uma trajetó-ria que ia de Abidjan a São Diego, passando pelas velhas ruas pavimentadas de Baune, e percorren-do três dos mais diferentes tipos de modernida-de. Direção: Estados Unidos; campo: laboratório científico. Em um desses cadernos guardados des-de os treze anos, escrevi em algumas linhas o pro-jeto de comparar os modos de verdade, primeiro indício de um livro que só viria a ser publicado quase quarenta anos mais tarde...

Pode-se imaginar minha surpresa ao desco-brir, no laboratório Guillemin, em 1975, naquele magnífico prédio de Louis Kahn com vista para o Pacífico, que, curiosamente, o trabalho científi-co assemelha-se à exegese que eu abandonara na Borgonha... Como bom etnógrafo, eu sabia que precisava desconfiar das ideias que flutuavam no ar, mas eu não acreditava que a sequência dos “re-gistros” de toda essa ideografia de instrumentos imprimisse nessas famosas ideias uma força tão fértil.7 E, no entanto, naquela misteriosa fábri ca de acontecimentos, tudo se esclareceria subita-mente caso eu aceitasse acompanhar passo a pas-so as transformações dos documentos aos quais os pesquisadores vestidos de branco destinavam um interesse ao mesmo tempo obsessivo e com-

7 Bruno Latour e Jocelyn de Noblet (orgs.), Les “vues” de l’esprit. Visualiation et connaissance scientifique. Paris: Culture Technique, 1985.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

pletamente descontraído. As coisas aconteciam como se houvesse a possibilidade de incorporar as ciências às frágeis e aparentemente impalpáveis tecnologias intelectuais. É verdade que eu recebia ajuda, não só de Derrida, mas também de Fran-çois Dagognet, de quem o pequeno livro Écriture et iconographie8 oferecia ao cão de caça que eu era a pista que ele farejava com todo seu fôlego.

Como foi que essa forma de materialidade pôde desaparecer tão completamente da episto-logia, assim como a exegese bíblica da predica-ção dos dogmas católicos? Como explicar que, mais uma vez, o apelo a uma abusiva transcen-dência tenha conseguido dissimular a malha de textos, de documentos, cujos reparos constantes só poderiam produzir a verdade que se tentava, inutilmente, consolidar em um fundamento mais sólido? Como a veridicção científica poderia es-tar tão afastada da informação Duplo Clique, do mesmo modo que esta da verdade religiosa – no caso de nos depararmos com três tipos de veri-dicção, cada uma totalmente distinta da outra, e legítimas, a seu gênero e a seu modo?

Como eu passava doze horas por dia no labo-ratório, costumava convidar todos os intelectuais de São Diego, para apresentar à sabedoria deles o enigma de uma antropologia científica que eu não sabia como decifrar. Por sorte, enquanto eu me colocava essas perguntas tão difíceis, descobri a semiótica, graças a Paolo Fabbri, e a etnome-todologia, graças aos amigos da universidade, e, posteriormente, a Steve Woolgar.

Ainda me lembro da minha admiração quan-do Fabbri, com seu adorável sotaque italiano e sua voz alta e aguda, apropriando-se de um texto que saía da maquinaria do laboratório – um texto cheio de diagramas e de fórmulas químicas sobre a descoberta de um neuropeptídio, que logo se tor-

8 François Dagog-net, Ecriture et ico-nographie. Paris: Vrin, 1974.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

9 Bruno Latour e Paolo Fabbri, “Pouvoir et devoir dans un article de science exacte”, Actes de la Recher-che en Sciences Sociales, 1977, pp. 81-99.

naria o célebre trf9 –, dedicou-se, muito tranqui-

lamente, a analisá-lo ao modo greimasiano, como se se tratasse de um conto de fadas... Nas hábeis mãos de Paolo, a variada atuação dos atores não deveria mais ser confundida com a percepção de base dos actantes. Então eu logo compreendi que os personagens não humanos também tinham aventuras que poderíamos acompanhar se aban-donássemos a ilusão de que eles eram ontologica-mente diferentes dos seres humanos. O que vale é apenas a agency, suas capacidades de atuação e os diversos papéis que lhes foram atribuídos.

Um mundo então se revelava, enquanto eu ainda não tinha terminado a investigação, e pres-tava-se – admiravelmente, deve-se reconhecer – aos princípios de uma antropologia comparada: os coletivos – eu ainda não utilizava essa defini-ção – diferem-se pela atuação que eles atribuem aos actantes, pelos testes que eles destinam a seus personagens, mas nunca porque uns fossem rea-listas, racionais, reais, e os outros simbólicos, ima-ginários ou míticos. O poder da semiótica deri-vava, justamente, de sua sublime e radical indife-rença ao realismo aparente dos sujeitos e dos ato-res sociais: essa era a condição ideal para seguir a originalidade das ciências que foram aniquiladas pela tarefa de imitar o mundo, corrompidas por serem tantas vezes confundidas com a informa-ção sobre lamentáveis “matters of fact” isolados de qualquer questão. Somente a semiótica dos es-critos e das inscrições científicas, livre do realismo comum, poderia implantar esse modo totalmente original de referência.

Não é difícil compreender o motivo da minha excitação: eu sabia que esse fenômeno da circu-lação da verdade científica ao longo das cadeias das inscrições teria dificuldade em encontrar um lugar na filosofia, apesar do imenso prestígio atri-

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

buído à Ciência. Na verdade, o caminho das ins-crições ignorava ao mesmo tempo o sujeito conhe-cedor e o objeto conhecido; o modo de existência do conhecimento científico parecia merecer um habitat melhor do que o no man’s land entre as palavras e as coisas. Eu não imaginava que seria necessário mover céu e terra para dar-lhe o lugar que ele merecia, e que quarenta anos depois eu ainda estaria nessa mesma missão, armado de pá e picareta...

A paixão pela semiótica – cujas garras, aliás, foram afiadas tanto nos textos bíblicos quanto na literatura de ficção – teria levado-me a uma sim-ples “textualização” da atividade científica, ca-so eu não tivesse descoberto, paralelamente, nas pesquisas de Garfinkel, uma forma muito distin-ta de romper com o realismo social tão comum na sociologia.10 O estranho Gênio do jargão da etnometodologia vem da descoberta de que todo curso de ação, incluindo o mais comum, é cons-tantemente interrompido por um minúsculo hia-tus que requer, de tempos em tempos, a retomada inventiva do ator munido de seus próprios micro-métodos. O desajeitado laboratorista que eu era multiplicava sem querer as experiências de “brea-ching” que revelavam, por contraste, a competên-cia que meus colegas de laboratório adquiriram com muita dificuldade. Eu me sentia desencora-jado pelo estilo de Garfinkel, mas compreendia que sua proposta era fazer para todos os relató-rios (os accounts) o que eu já havia identificado na exegese religiosa e o que eu estava descobrindo na bancada do laboratório na exegese de textos científicos: nenhuma continuidade de um curso de ação pode acontecer sem uma repetição inven-tiva que fornecesse ao ator social as capacidades reflexivas, as fontes de inovação, e até mesmo as sociologias e ontologias cujo desdobramento ul-

10 Harold Gar-finkel, Studies in Ethnomethodo-logy. New Jersey: Prentice Hall, 1967.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

trapassavam em muito as capacidades do etnó-logo. O pesquisado sempre sabe mais do que o pesquisador.

É por isso, aliás, que a filosofia de minha juven tude me parecia tão indispensável: só ela foi selvagem o suficiente para conseguir acompanhar, sem grande espanto, as elucubrações dos agentes. Era através da metafísica que se pretendia tornar--se um bom etnógrafo. A ideia de que o ator não fosse mais considerado um “idiota cultural” (“a cul tural do pe”) ressoava maravilhosamente com o actante explorado pela semiótica. Felizmente, protegido pela minha ignorância brutal da socio-logia, eu não poderia saber que Garfinkel seria tão radicalmente inassimilável pelas ciências so-ciais, assim como Greimas pela epistemologia. Nada então me impedia de utilizar os termos “so-cial” e até “construção social” para descrever as aventuras dos seres não humanos que passavam a povoar os coletivos.11 Eu não poderia saber que seria preciso um quarto de século para livrar-me do mal-entendido criado pelo uso da palavra “so-cial” e de todas as complicações dele decorrentes, para meu grande susto.12 Embora desde minha feliz infância em Beaune eu não houvesse tirado sequer um pé do mais sólido realismo, e apesar de eu ter sido um dos primeiros a finalmente des-crever com precisão a materialidade das ciências, vi-me de repente acusado de um crime aparen-temente abominável e que eu teria cometido por pura inadvertência: o questionamento da objeti-vidade científica pelo “relativismo”.

Em 1977, de volta à França à procura de cole-gas, fui parar na dgrst, na Rue de Varenne, com o resumo de um contrato para estudar a evolução da química biomolecular em que o autor, um cer-to Michel Callon da Escola das Minas, explica-va friamen te que não iria submeter minha análise

11 Bruno Latour e Steve Woolgar, Laboratory Life. The Construc-tion os Scientific Facts. Princeton: Princeton Univer-sityPress, 1986 (1a edição, 1979).

12 Bruno Latour, Rassembling the Social. An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press, 2005.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

à supervisão preliminar dos químicos, já que ele pretendia explo rar uma abordagem que fosse in-dependente da autoridade científica. Ah! Eu tinha que conhecer o mais rápido possível aquele co-lega audacioso, intencionado em falar da ciência com uma tal liberdade! Esse encontro vai ofere-cer-me uma sorte extraordinária, permitindo-me trabalhar durante um quarto de século na calma do csi, o Centro de Sociologia e de Inovação.

Graças a Michel Callon, eu seria apresentado aos estudos de campos industriais. Ora, os dis po-sitivos técnicos que tivemos de traçar pelo viés das inovações (a inovação estava em voga naquela épo-ca, e havia muito dinheiro destinado a estudar su as origens), apresentava-nos uma forma de realismo que as noções de eficiência ou de rentabilida de não poderiam esgotar. No decurso de nossas pesquisas, reconstruímos o modo como os engenheiros deve-riam ter desenhado todo um mundo para conse-guir sustentar suas inovações mais arriscadas por um pouco mais de tempo. Aí, novamente, eu me deparava com um curso de ação que nenhuma continuidade, nenhuma grande necessidade, ne-nhuma causalidade um pouco sólida poderiam ex-plicar. Mas o hiatus peculiar às novas técnicas – por definição, é sempre uma questão de romper com as práticas já existentes através da inovação – foi surpreendente na medida em que, no final, quando tudo estava no lugar e o dispositivo estava finalmente funcionando, houve um desvio por in-termédio de um objeto com um status de fato mui-to estranho, o objeto técnico cujo “modo de exis-tência” – e era a primeira vez que eu ouvia aquela expressão – fora proposto por Gilbert Simondon.13

Assim como as ciências compreendidas em sua prática não podiam ser mantidas no estrei-to âmbito da epistemologia, as técnicas, sobre-tudo as mais modernas, não podiam ser manti-

13 Gilbert Simon-don, Du Mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1958.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

das na simples ideia de uma ação eficaz sobre a matéria: elas tinham a ver com a magia, com a religião, com a filosofia; elas tinham seu próprio mundo; eram cheias de métodos, artimanhas, cál-culos, metafísica, e até mesmo moral; e, descons-truindo as fronteiras com os temas humanos, re-presentavam um imenso desafio para a descrição etnográfica ou sociológica.14 Mas, além disso, de uma forma ainda mais radical, elas povoaram o coletivo com atores não humanos que, por um tipo de delegação, eram relevantes aos atores hu-manos pela quantidade vertiginosa de habilidades imprevistas. Na minha opinião e na de Callon, a armadura técnica era o que havia de mais “so-cial” em uma sociedade, uma vez que se voltasse à etimologia do adjetivo e se permitisse seguir to-das as associações necessárias à extensão de uma rede. Principalmente se a ela forem acrescentadas as técnicas intelectuais que se aprendeu a seguir a partir das pesquisas de laboratórios, e que aca-baram misturando-se em toda parte com as orga-nizações técnicas.15 Às máquinas, devia-se acres-centar os escritórios; às engrenagens, as técnicas contáveis; à resistência dos materiais, as agências de padronização.

E, no entanto, aos olhos de nossos colegas das ciências legitimamente chamadas “sociais”, o so-cial não parecia capaz de absorver essas múltiplas e lábeis conexões que tínhamos designado “tra-dução” por um empréstimo deliberado de Michel Serres.16 Seguíamos o curso de Serres todos os sá-bados, no esfumaçado anfiteatro – praticamente um “estábulo” – da Sorbonne (ainda se fumava dentro das salas naquela época!), sempre aprovei-tando a audácia com a qual Serres desenvolvia es-sa “antropologia das ciências” fundada naquele tão fértil princípio da exegese, segundo o qual a metalinguagem de um texto – poema, fábula, livro

16 Michel Callon, “Élements pour une sociologie de la traduction. La domestication des coquilles Saint-Jac-ques et des marins pêcheurs en baie de Saint-Brieuc”, L’année sociologi-que, nº 36, 1986, pp. 169-208.

15 Michel Callon, “Pour une socio-logie des contro-verses techniques”, Fundamenta Scien-tiae, nº 2, 1981, pp. 381-99.

14 Bruno Latour, “Mixing Humans with Non-Hu-mans, Sociology of a Door-Opener”, Social Problems, nº 35, 1988, pp. 298-310.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

de memórias, ou tratado científico, não importa-va – só poderia ser encontrada no próprio texto, bastava procurá-la. Bela lição metodológica para seguir os “próprios atores”, uma abordagem com-patível tanto com a semiótica quanto com a etno-metodologia. Descrever, descrever e ainda descre-ver. A explicação e o contexto eram muito menos importantes do que reunir em uma limitada rede de interpretações um texto de Tito-Lívio, um argu-mento de René Girard ou um teorema topológico. Isso será explicado mais tarde, se houver tempo.

A descoberta dos desvios e das delegações téc-nicas acrescentava a minha lista um novo modo cuja ontologia era muito mal explicada pela no-ção de “materialidade”. Eu começava a me per-guntar se não seria o caso de trocar definitivamen-te de filosofia, quando tive a sorte – sempre ela – de receber um telefonema de um antropólogo cali-forniano convidando-me a participar do primeiro congresso que reunia os especialistas em macacos Papio anubis, que passavam a ser estudados siste-maticamente. Ela precisava de um observador das controvérsias entre os cientistas. Trinta e cinco anos depois, o choque do meu encontro com Shir-ley Strum, juntamente com a primato logia, com a etnologia, com a savana do Quênia e, sobretudo, com os macacos, não se desfez. Em primeiro lu-gar, eu estava descobrindo que uma intensa vida social – aquela das trupes dos babuínos que Shir-ley já acompanhava havia sete anos e que ainda em 2012 continuava a acompa nhar! – era perfei-tamente compatível com um uso extremamente li-mitado de instrumentos técnicos.17

Se os babuínos manifestavam uma complexi-dade social tão extraordinária, totalmente digna de Garfinkel, eles só faziam uso de suas patas. Era isso que confirmava – a Callon e a mim – nossas

17 Shirley Strum, “Agonistic Do-minance among Baboons: an Alternative View”, International Jour-nal of Primatolo-gy, nº 3, 1982, pp. 175-202.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

intuições sobre a fabricação técnica da s ociedade: o que caracteriza os seres humanos não é a emer-gência do social, mas o desvio, a tradução, a infle-xão de todos os cursos de ação em dispositivos téc-nicos cada vez mais complicados (mas não neces-sariamente mais complexos).18 Alguns anos depois de meu retorno desse trabalho de campo quenia-no, em 1979, escrevemos o texto que fundou a teo-ria do ator-rede, Unscrewing the great Leviathan, propondo uma teoria social bastante aberta para absorver as associações entre seres humanos e não humanos,19 sobretudo fazendo da mudança de es-cala a consequência de um emprego das técnicas materiais bem como organizacionais. A performa-tividade do social pelas ciências, incluindo a ciên-cia econômica, financeira, administrativa, abria-se, assim, de forma mais ampla à pesquisa empírica.

Ao passar do social às associações, o analista aproveitava-se, enfim, de uma liberdade de ma-nobra tão grande quanto a de seus informantes, em vez de se fechar no estreito quadro da “dimen-são social” de fenômenos científicos, técnicos, cujo conteúdo deveria escapar-lhe completamen-te. O que se pretendia observar eram as redes socio-técnicas em vias de expansão. Pusemo-nos a espalhar isso a torto e a direito; devíamos ter fi-cado insuportáveis naquela ocasião; mas, enfim, éramos jovens, apaixonados, e, além disso, tínha-mos razão! A história ia nos provar isso, quero dizer, a história que a ecologia iria nos forçar, to-dos, seres humanos e não humanos, a considerar. Assim, pelo menos não seríamos pegos de surpre-sa; com as armas em punho, aguardamos esse no-vo mundo, ou melhor, nós o aguardávamos como servos do Evangelho, com a lâmpada já acesa...

E, no entanto, por mais importante que ela fosse, não era essa invenção da “sociologia da tradução” que apreendi em minha longa convi-

19 Michel Callon e Bruno Latour, “Unscrewing the Big Leviathan: How Do Actors Macrostructure Reality”, Advances in Social Theory and Methodology: Toward an Inte-gration of Micro and Macro Socio-logies, K. Knorr & A. Cicourel (orgs.). Londres: Routledge, 1981, pp. 277-303.

18 Shirley Strum e Bruno Latour, “The Meanings of Social: from Baboons to Hu-mans”, Informa-tion sur les Scien-ces Sociales/Social Science Informa-tion, nº 26, 1987, pp. 783-802.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

vência com Strum e, logo depois, com seu marido, David Western. Não, era a convivência com um modo, completamente maravilhoso para mim, de organismos vivos largados a suas próprias sortes. É claro que eu conhecia os laboratórios, e eu co-meçava a medir o que as experiências tinham de artificial – no bom sentido do termo –; eu sabia muito bem que a paisagem do campo nada tinha de natural (sobretudo as videiras perfeitamente enfileiradas de minha Côte d’Or natal); mas co-mo eu iria qualificar o espaço criado pelas tru-pes de babuínos que estavam sendo seguidos por seus pesquisadores – seguidos, e não precedidos, por eles, isso já diz tudo –; como não se descon-certar com essas trupes de macacos cujo caminho era atravessado por gazelas saltitantes, manadas de zebras e búfalos, e, de vez em quando, pelo deslizar silencioso de um paquiderme? Não, não, aquilo não era a natureza, a selvageria, a célebre “wildlife”; na verdade, sim, era tudo aquilo, co-mo também eram muitas outras coisas; era o mo-vimento dos fenômenos entregues a suas próprias sortes, mas sem a presença intimidadora dos se-res humanos, que foram deixados fora da cena. E, no entanto, esses pesquisadores capazes de se-guir – e não dominar – seu objeto de estudo pro-duziam ciência, e muito boa ciência (que eu assi-milava o mais rápido possível, dando aulas sobre a evolução das técnicas e da ecologia, na ucsd, ao lado de Shirley, quase todos os anos de 1979 a 1992). As diferentes práticas de primatologia, dos macacos presos em cadeiras de tortura nos laboratórios até os babuínos seguidos dia após dia por doutorandos entusiasmados, passando pelos chimpanzés presos nos zoológicos, foi uma linda lição de filosofia: encontravam-se aí todas as possíveis posturas do observador e do objeto observado, e compreendeu-se então a paixão que

tigubarcelos
Highlight

tanto inspirou Donna Haraway (que conheci em 1981).20 Acompanhando a pé os babuínos, Shir-ley, no meio deles e tão invisível quanto a Atena grega no centro dos combates, explicava-me, em voz baixa, enquanto tomava notas, a impressio-nante complexidade dessas sociedades. Passei a imaginar outras relações entre o percurso do co-nhecimento e o do mundo conhecido. Mas para chegar até aí eu precisava de uma oportunidade para conhecer a “outra metafísica”, aquela de Ja-mes e de Whitehead.

Naquele momento, eu não tinha outras pala-vras para descrever a impressão causada por mi-nha colaboração com Shirley e com os etnólogos, a não ser irredução. Foi essa expressão que deu origem ao tema de um pequeno “tratado cientí-fico-político” publicado em 1984,21 uma curiosa filosofia sem leitores, uma mistura um pouco es-tranha de teo ria de redes, de nietzscheísmo então vigente, e de luta contra a epistemologia, tudo is-so sob o fundo do fim da Guerra Fria. Com uma única intuição – a distinção entre as relações de força e as relações de razão faz com que tanto a força quanto a razão sejam incompreensíveis – mistura da a uma completa e totalmente desperce-bida contradição: a intenção de conferir a todas as asso ciações a mesma metalinguagem, em ter-mos de tra dução, redes e enteléquias. Se eu sem-pre senti simpatia por esse livro juvenil e mordaz é porque agora sei que se trata de um modo par-ticular de existência – e não de uma filosofia irre-ducionista, como eu acreditava naquela época –, esse modo que permite a implementação das re-des de associação heterogêneas e imprevistas, sem se deixar intimidar por outros domínios distin-tos. No final, fiz bem em demonstrar sua eficácia em um estudo histórico-semiótico sobre as desco-bertas de nosso compatriota Louis Pasteur. Como

20 Donna Haraway, Primate Visions. Gender, Race and Nature in the World of Modern Science Londres: Routledge and Ke-gan Paul, 1989.

21 Bruno Latour, Les microbes, guerre et paix, seguido de Irréduc-tions. Paris: A.-M. Métailié, 1984 (reeditado em formato de bolso pela editora La Découverte, em 2002).

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

modo, a análise das redes é indispensável para a investigação (eu demonstraria isso a partir do ca-so delicioso de um metrô automatizado),22 mas, como todos os modos, ela tende à hegemonia e à não compreensão dos outros. Até hoje, se me per-guntassem “qual é sua filosofia?” eu só saberia responder dizendo: “leia Irréductions”. (Não se preocupem: nunca alguém me dirigiu tal pergun-ta, uma vez que o tumulto das discussões sobre o relativismo e a guerra das ciências transforma-ram-me, nesse meio-tempo, em um simples soció-logo defensor de uma “construção social” segun-do a qual “tudo está valendo”, tanto a ciên cia objetiva quanto a magia, a superstição e os discos voadores...).

Para melhor entender como as coisas acaba-ram se ligando, dois outros encontros precisam ser considerados – um pensamento parece ser o resultado de encontros decisivos cujos efeitos se buscam na mais total solidão (sem a solidão, nada acontece; sem os encontros, tampouco). Logo de-pois de minha volta a Paris, Paolo Fabbri apresen-tou-me a Françoise Bastide, fisiologista e semioti-cista sem igual, com quem tive a sorte de trabalhar até sua morte prematura, em 1988. Françoise, com toda a seriedade de uma celibatária e protes-tante, aplicava nos textos o mesmo e ab soluto res-peito que mostrara em relação aos rins, quando, indo contra a maré, estudou seu sutil funciona-mento, em um laboratório do Collège de France. Especialista em textos científicos, ela sabia mui-to bem (porque os tinha escrito) que a semiótica, apesar de pretender jamais se afastar dos textos, na verdade nunca deixou de confiar naquilo que acontecia fora deles, na prática. O enigma era des-cobrir como abordar aquela prática sem cair nos clichês sobre os indivíduos falantes compreendi-dos em um contexto social e material. Era preciso

22 Bruno La-tour, Aramis, ou l’amour des techniques. Paris: La Découverte, 1992.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

estender as intuições da semiótica para além de seu quadro original – os textos bíblicos e as ficções literárias –, sem abrir mão de sua independência em relação ao realismo comum. Greimas, cuja bri lhante cabeça desaparecia por trás da fumaça emanada de seu seminário, encorajava-nos nesse projeto, sorrindo (o cigarro provavelmente deve tê-lo matado, assim como o fez com Françoise).

É aí que aperfeiçoamos uma pequena máqui-na fundada na teoria da enunciação. Os textos de ficção não precisam se preocupar com isso: uma vez que a enunciação foi produzida nos quadros de referência de um texto – porque sempre se tra-ta de um texto –, os percursos narrativos são fá-ceis de ser seguidos. Ora, esse pode não ser o ca-so de pelo menos dois regimes de enunciação: os instrumentos científicos e os dispositivos técnicos. Para eles, certamente, a embreagem enunciativa, e especialmente a reembreagem, devem ser segui-das com cuidado. Os personagens não figurativos de um texto científico podem muito bem viajar como os seres ficcionais, mas eles precisam vol-tar para trazer algo que se encontra nas mãos do enigmático enunciador, aquele cuja presença não tem importância em um texto de ficção, já que ninguém pergunta a Flaubert se ele tem a certi-dão de nascimento de Bovary.23 Einstein e seus pe-quenos personagens relativistas nos serviram co-mo teste que nos permitiu identificar a estranheza dessa ficção no caminho da verificação gradual.24 Mas é com o objeto técnico que tivemos mais di-ficuldade, porque ele explode o quadro textual. Mas, no entanto, não é a materialidade que apre-senta o problema; aí, também, trata-se do papel particular do enunciador capaz de se ausentar, porque o objeto permanece sem ele.

Na verdade, percebemos isso muito rápido, a própria possibilidade dessa famosa embreagem

24 Bruno Latour, “A Relativist Ac-count of Einstein’s Relativity”, Social Studies of Science, nº 18, 1988, pp. 3-44.

23 Bruno Latour e Françoise Bastide, “Essai de science fabrication”, Études françaises, nº 19, 1983, pp. 111-33.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

de planos enunciativos teve origem na técnica. A ausência de um narrador de carne e osso em uma narrativa ficcional não é uma propriedade semió tica da ficção mas do livro como objeto téc-nico; sem o livro, o narrador seria um contador tão pouco ausente daquilo que enuncia quanto o manipulador de marionetes em um espetáculo de bunraku. Na verdade, Françoise e eu acreditá-vamos que seria possível comparar os regimes de enunciação – é o termo que eu costumava usar na-quela época –, passando de um regime a outro por meio da atenção dedicada aos respectivos papéis do enunciador, do receptor e do enunciado. Em 1986, escrevi um primeiro texto ami, para Anjo, Máquina, Instrumento, tentando ordenar lado a lado três desses regimes de enunciação, utilizando um vocabulário comum para estabelecer a compa-ração. (Levei vinte e seis anos para passar de ami a eme e a aime.) Infelizmente, o curso foi inter-rompido em 1988, com a morte de Françoise – já que ela era a única pessoa que dominava a técnica semiótica para desenvolver esse modelo.25

Se os leitores pensam que o livro sobre os mo-dos de existência foi publicado na sequência dos trabalhos de sociologia da ciência e da técnica, co-mo se depois dos trabalhos empíricos, com uma idade já mais avançada, eu tivesse voltado para a filosofia, eles estão muito enganados. O livro que nesse meio-tempo escrevi, Science in Action,26 foi publicado em 1987, no momento em que eu es-crevia a investigação sobre os diferentes regimes de veridicção iniciada em 1986. Seguindo a circu-lação responsável pela produção de fatos e pela construção de máquinas, Science in Action pode ser lido como uma aplicação da teoria de redes, o que ele certamente não deixa de ser, mas também como um estudo de três regimes de verdade: a re-ferência científica, os arranjos técnicos, ambos

25 Françoise Basti-de, Una notte con Saturno. Scritti se-miotici sul discorso scientifico. Roma: Meltemi, 2001.

26 Bruno Latour, Science in Action. How to Follow Scientists and Engineers through Society. Cam-bridge: Harvard University Press, 1987.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

opondo-se a esse Gênio do Mal da informação Duplo Clique. De fato, ocorreram dois aconteci-mentos distintos: por um lado, meu encontro com Isabelle Stengers, e, por outro, o imprevisto suces-so da teoria conhecida como ator-rede (em inglês ant). Esse sucesso e as disputas que se seguiram atrasaram a publicação do outro projeto que até então eu não parava de perseguir.

Devo a Stengers, que conheci em 1978, as cons-tantes interrupções que ela provocou em todas as explicações sociais – mesmo as que foram aperfei-çoadas pelo ator-rede – que eu e Callon continuá-vamos desenvolvendo. A todos meus progressos sócio-semióticos ela se opunha com um impetuoso “eu entendo, mas, de qualquer modo”, e, com um movimento brusco e circular da mão direta – mo-vimento que só ela sabia fazer –, exigia que algo fosse trazido à superfície na análise, algo que fosse o mundo, mas apreendido de outra forma. Nem os micróbios de Pasteur, a acoplagem impalpável de Aramis, o metrô automático, as famosas vieiras de Michel Callon, nenhum desses, apesar de mui-to bem apresentados, atuantes e ágeis, precisos e trôpegos, ofereciam aos olhos de Stengers uma ga-rantia satisfatória de que havíamos nos desprendi-do do texto, do social, do simbó li co. Para alcançar esse objetivo, seria necessário apreender o mundo sem arrastar para dentro dele o tema humano e sua obsessão pelo conhecimento compreendido como a relação entre as palavras e as coisas.

Estou quase certo de que foi em 1987, enquan-to conversávamos à borda da piscina de Treilles, que ela compartilhou comigo uma surpreendente citação de Whitehead, que nessa época ainda era menos conhecido do que Gabriel Tarde, sobre o risco assumido pelas pedras – sim, pelas pedras – para assegurar suas próprias existências; devia se tratar da famosa passagem da agulha de Cleó-

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

patra em Charing Cross, em Concept of Natu-re.27 Naquele mês de agosto, estendido sob o sol em uma ilha ao longo de Göteborg, na Suécia, eu não conseguia parar de passar o dedo na superfí-cie vermelha e rugosa daquelas pedras, para veri-ficar se Whitehead tinha mesmo razão... E então tudo se esclareceu: o que eu tinha descoberto no Quênia, e o que eu havia deduzido de forma obs-cura sobre o princípio de irredução: existe um mo-do de existência completamente autônomo, mui-to mal compreendido pela noção de natureza, e de mundo material, de exterioridade, de objeto. E esse modo divide com todos os outros o seguinte traço essencial: o risco assumido para continuar a existir. Assim, o hiato que eu detectara muito ce-do na exegese, que eu tinha encontrado no estudo das inscrições científicas, no percurso desarticula-do dos cursos de ação, no surpreendente desvio das técnicas, também aparecia ali, ali, a princípio, na aparente continuidade do estar-ali. Uma epifa-nia que se ligava a todas as outras, e em particular àquela que eu tinha desenvolvido em Irréductions, a irrupção de coisas “irreduzíveis e em descanso”. Não havia nada de inevitável, de definitivo, de ir-remediável nas tribulações do sujeito e do objeto. Era possível pensar de forma diferente.

A partir de então, tudo se encaixou muito ra-pidamente. Em junho de 1988, quando desci no avião que me levou a Melbourne para passar dois preciosos meses de total solidão – a santa solidão –, em meio ao torpor causado pelo jetlag, conse-gui mapear com um só gesto o quadro que iria in-vestigar mais sistematicamente.28 Tinha então 41 anos, três livros publicados, tudo poderia come-çar. Faltava ainda algum regime ou método, mas o essencial havia sido feito, sobretudo o princípio de comparação a partir de uma metalinguagem que tem como único objetivo proteger o pluralis-

28 Publicado em Bruno Latour, 1998. Petite philosophie de l’énonciation. Eloqui de senso. Dialoghi semiotici per Paolo Fabbri.Orizzonti, compiti e dialoghi della semiotica. Saggi per Paolo Fabbri, P. Basso e L. Cor-rain (orgs.). Milão: Costa & Nolan, 1988, pp. 71-94.

27 Alfred North Whitehead, Con-cept of Nature, Cambridge, Cam-bridge Univertity Press, 1920.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

mo ontológico contra seu aniquilamento pelo es-quema sujeito/objeto. Sobretudo o pequeno qua-dro – semiótico, teórico, filosófico, como se prefe-rir chamá-lo – já não era contrário à implantação de campos de pesquisa. Sem me contradizer, eu poderia ser ao mesmo tempo filósofo, antropólo-go e sociólogo: tudo leva à pesquisa, tudo surge dela. Assim começou a aventura que os leitores desse livro são convidados a prolongar hoje, par-ticipando dessa pesquisa.

Antes de concluir, talvez seja útil lembrar a in-fluência desses estudos sobre o esquema natureza/cultura, já que ainda estamos falando de antropo-logia filosófica. Em nenhum momento esqueci o choque da África, do neocolonialismo, do avan-ço da frente de modernização. Como fazer uma antropologia que seja simétrica de verdade? En-quanto permaneci em Melbourne, preparei uma longa revisão do livro fundamental de Shapin e Schaffer sobre Hobbes e Boyle, Leviathan and the Air-Pump, que acabava de ser lançado.29 Gra-ças ao trabalho sobre os regimes de enunciação, um resultado bastante significativo de antropo-logia simétrica foi encontrado: ao fornecer uma descrição enfim realista das ciências, ao mostrar seus equipamentos, trazendo os canais de referên-cia para o primeiro plano, foi possível destacar a representação na natureza tanto do trabalho das ciências quanto do movimento dos seres abando-nados a suas próprias sortes, movimento este que Whitehead conseguiu finalmente me ensinar a res-peitar. Torna-se então possível uma antropologia dos Modernos, e ela vai transformar o esquema natureza/cultura até então utilizado pelos antro-pólogos como recurso indispensável, em um tó-pico que, ao contrário, deve ser explorado (mais uma vez, “the resource becomes the topic”).

29 Steven Shapin e Simon Schaffer, Leviathan and the Air-Pump, Hobbes, Boyle and the Experimental Life. Princeton: Princeton Universi-ty Press, 1985.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

O resultado não era insignificante, pois ele tornou possível detectar o imenso abismo entre a representação modernista da história – aquela de uma frente de modernização – e a história real – aquela de um entrelaçamento entre seres huma-nos e não humanos cada vez mais íntimo e sem-pre em maior escala. Mas, acima de tudo, abre--se, com outros coletivos – termo que substitui, daí em diante, aquele termo muito antropocêntri-co de “sociedade” – uma comparação menos dis-torcida pela ideia de uma frente de modernização capaz de modernizar a longo prazo todo o pla-neta. Não são os “outros” realmente modernos? Pois bem: nunca fomos modernos, e eles nunca serão. Outra história totalmente diferente espera por nós. Anunciada em 1991, a história do par-lamento das coisas, vinte anos depois, só tem se tornado mais atual.30 Modernizar ou ecologizar, era preciso escolher.

Do meu ponto de vista, o principal interes-se em Nous n’avons jamais été modernes [Jamais fomos modernos], versão negativa de um argu-mento para o qual apre sento hoje a versão positi-va, é que ele iniciou uma colaboração muito mais estreita com os antropólogos, os verdadeiros, so-bre o pluralismo ontológico dos coletivos. Não se trata, com Philippe Descola, com Eduardo Vivei-ros de Castro, Marylin Strathern, de comparar as culturas com o plano de fundo da natureza, mas de contrastar cada vez mais energicamente as on-tologias das quais apenas uma, a nossa, utiliza o esquema do mononaturalismo e do multicultura-lismo. De serva da filosofia, a antropologia passa a ser, se não sua amante, pelo menos sua colega: ao passar a ser local ou regional, a ontologia tor-nou-se proporcionalmente mais profunda. É que, ao que parece, a ciência do ser tem mais de um truque na manga e o fim das restrições impostas

30 Bruno Latour, Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique. Paris: La Découverte, 1991. Edição brasileira: Jamais fomos modernos. Ensaio de antro-pologia simétrica, tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2011 (1a edi-ção, 1994).

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight

pela noção de “representação simbólica de um mundo material” abre um programa de pesquisa mais fértil.

Entre a ciência do ser enquanto ser – a vene-rá vel disciplina de ontologia –, e a ciência do ser enquanto outro – a antropologia –, novos laços podem ser tecidos. Assim como as pessoas que Desco la considera naturalistas, os brancos, usuá-rios frenéticos do esquema natureza/cultura, colo-cam em prática algo muito diferente, o que compli-ca ainda mais, a meu ver, a descrição deles.31 O te-ma não é insignificante, porque a invasão cada vez mais urgente das questões ecológicas obriga a se prestar mais atenção nas relações da cosmolo gia com a ciência. O termo cosmologia, no singu lar, uma propriedade das ciências exatas, e o termo cos mologias, no plural, utilizadas de forma um pouco casual pelos antropólogos para descrever as diversas visões do mundo, agora estão convergin-do para um gabinete que se tornou o novo mundo político, aquele da cosmopolítica contempo rânea.

No final, o mistério sobre o que foram os Mo-dernos continua intacto. O que aconteceu com eles? Se não foi a natureza que eles descobriram através das névoas de suas culturas, se não foi a razão que finalmente projetou a luz nessa escuri-dão de representações, o que aconteceu de fato? O que eles descobriram? De quê eles são herdei-ros? Para responder a essas perguntas da antro-pologia filosófica, da ontologia regional, é pre-ciso um método que forneça uma descrição sa-tisfatória das situações que devem ser descritas. Quantos sensores são necessários para fazer justi-ça aos valores disponibilizados pelos Modernos? É à identificação desses sensores que eu tenho me dedicado, na esperança que esse breve retorno à origem da minha investigação estimule alguns lei-tores a ajudar-me a realizá-la.

31 Philippe Desco-la, Par delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.

tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight
tigubarcelos
Highlight