Biopolitica Categoria Sistemas Prisionais

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A biopolítica como modelo de compreensão dos sistemas prisionais na época contemporânea: avaliando a influência do pensamento foucaultiano na era do encarceramento em massa. Resumo Quais são as contribuições que as reflexões de Michel Foucault podem trazer à análise dos sistemas prisionais na época contemporânea? Sabemos que desde a publicação de Vigiar e Punir, a abordagem foucaultiana se tornou um grande modelo de análise que impulsionou uma série de pesquisas e contribuiu para discussão e compreensão do sistema de modo paradigmático. O artigo assume que essa primeira influência foi fundamental para o desenvolvimento deste campo de problematizações do sistema prisional, porém, ao se realizar uma investigação mais apurada acerca de como as abordagens foucaultianas influenciaram as discussões no campo das instituições penais, é possível notar que essa assimilação ficou em grande medida restrita a alguns tipos de temáticas e deixando de lado os desdobramentos posteriores das reflexões foucaultianas. Ao se realizar uma síntese destas temáticas foucaultianas que foram privilegiadas pelo debate sobre os sistemas prisionais, no curso de seu processo de assimilação, podemos constatar que se trata da apropriação do modelo disciplinar, que se emprega para a compreensão da origem disciplinar da instituição penal e também para o

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A biopolítica como modelo de compreensão dos sistemas prisionais na época

contemporânea: avaliando a influência do pensamento foucaultiano na era do

encarceramento em massa.

Resumo

Quais são as contribuições que as reflexões de Michel Foucault podem trazer à análise

dos sistemas prisionais na época contemporânea? Sabemos que desde a publicação de

Vigiar e Punir, a abordagem foucaultiana se tornou um grande modelo de análise que

impulsionou uma série de pesquisas e contribuiu para discussão e compreensão do

sistema de modo paradigmático.

O artigo assume que essa primeira influência foi fundamental para o desenvolvimento

deste campo de problematizações do sistema prisional, porém, ao se realizar uma

investigação mais apurada acerca de como as abordagens foucaultianas influenciaram as

discussões no campo das instituições penais, é possível notar que essa assimilação ficou

em grande medida restrita a alguns tipos de temáticas e deixando de lado os

desdobramentos posteriores das reflexões foucaultianas.

Ao se realizar uma síntese destas temáticas foucaultianas que foram privilegiadas pelo

debate sobre os sistemas prisionais, no curso de seu processo de assimilação, podemos

constatar que se trata da apropriação do modelo disciplinar, que se emprega para a

compreensão da origem disciplinar da instituição penal e também para o entendimento

da dinâmica e das relações de poder existentes no âmbito institucional dos

estabelecimentos penais.

Além de reforçar essa idéia de que o modelo disciplinar foi uma grande contribuição de

Foucault para o campo de investigações sobre os sistemas prisionais, quando avaliamos

uma parte das discussões dos principais autores deste campo, notamos que existem

poucas referências e discussões a respeito de outras temáticas igualmente importantes

no conjunto da obra de Foucault, como são exemplos a questão da governamentalidade

(arte de governar) e a Bio-política. Certamente, estes conceitos da última parte das obras

de Foucault são temáticas importantíssimas para uma visão de conjunto mais ampla do

legado foucaultiano, bem como até mesmo uma compreensão mais aprofundada das

abordagens anteriores, como aquelas que concernem ao modelo disciplinar.

Em diferentes áreas, como apontam os estudos sobre subjetividades, identidades,

gênero, sexualidade, corpos e diferentes campos ligados à área da saúde, as reflexões

finais

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O trabalho investiga a influência do instrumental teórico foucaultiano nas recentes

pesquisas acerca do sistema prisional. A questão é saber de que modo a análise de

inspiração foucaultiana pode, ou não, representar uma influência significativa no

modelo compreensivo dos estudos da prisão na época contemporânea. A investigação

considera que a abordagem inspirada no modelo disciplinar oferecido nas reflexões de

Foucault, a partir de meados dos anos 1970, rapidamente se transformou numa

referência fundamental para a elaboração de pesquisas na área prisional e,

consequentemente, permitiu uma maior compreensão do sistema originando um

conjunto de novas pesquisas. Porém, como é discutido por alguns especialistas de

destaque sobre o assunto penal (Wacquant, Garland, Young, Western, Bauman), ao se

analisar os recentes destaques da área do controle penal atual, é possível visualizar uma

reconfiguração política dos Estados ocidentais e uma mudança no funcionamento das

instituições penais. Uma análise do desdobramento histórico da realidade dos

estabelecimentos prisionais mostra a possibilidade de mudanças significativas no

funcionamento e no papel exercido por estas Instituições ao longo destas

transformações políticas do período recente. Há uma concepção comum

Poucas são as dúvidas em relação a importância do referencial foucaultiano nos estudos

sobre as prisões até o final dos anos 1970, porém no decorrer das décadas seguintes, as

abordagens, as preocupações o próprio modo de problematizar a questão prisional

parece (agora nos aproveitando da vantagem do olhar histórico) tomar caminhos

diferentes daqueles traçados pela ênfase foucaultiana em Vigiar e Punir.

Para avaliar esta abordagem, podemos considerar que algumas das prescrições sugeridas

por Foucault na fase do modelo disciplinar

O artigo aborda a permanência da influência teórica do modelo disciplinar,

desenvolvido na obra Vigiar e Punir, em vista do novo contexto dos debates sobre o

avanço dos sistemas penitenciários no período contemporâneo. Publicada em 1975, a

obra Vigiar e Punir realizou uma investigação acerca da origem disciplinar da prisão

que revolucionou o quadro teórico dos principais centros de pesquisa existentes sobre o

funcionamento das instituições penais, de modo a se tornar rapidamente uma referência

obrigatória para a análise destas instituições.

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Como considerou David Garland, no momento em que Vigiar e Punir se tornou um obra

conhecida e utilizada como um referencial para o entendimento de vários mecanismos

de poder, no plano dos estudos prisionais, a referência foucaultiana se tornou uma

influência marcante nos estudos posteriores sobre o funcionamento dos

estabelecimentos penais.

Antes desta mudança, a maior parte dos estudos eram realizados por profissionais

Todavia, a partir da década de 1980, com o aumento expressivo das taxas de

encarceramento na maior parte dos sistemas penais, novos pesquisadores das políticas

penais como David Garland e Loïc Wacquant, pautados nestes novos contornos,

sugerem uma mudança estrutural que reformula o papel das prisões na época

contemporânea, que estaria evidenciada por uma transição de um modelo

essencialmente disciplinar para um novo padrão de encarceramento em massa. Nesta

nova tendência de encarceramento de proporções massiva, os instrumentos disciplinares

ocupariam um papel secundário na organização do cotidiano institucional dos

estabelecimentos penais, tendo a sua atuação diminuída em favor de questões de

segurança e mecanismos de neutralização. Segundo esta abordagem, ainda que

reconhecendo a importância de Vigiar e Punir, os analistas dos sistemas penais

deveriam diminuir a ênfase das investigações disciplinares e abrir novos campos de

investigação no campo punitivo. Significativas pesquisas de campo têm evidenciado

que a estrutura dos estabelecimentos penais tem mudado de forma paulatina e As

recorrentes crises do sistema penitenciárioAlém dessas transformações estruturais que

impõem a necessidade de utilização de novos instrumentais teóricos, no campo analítico

algumas transformações também têm ocorrido de foco dos autores contemporâneos, no

próprio desdobramento das obras de Foucault (como os cursos finais do College de

France e A História da Sexualidade), tem-se a entrada de novos conceitos como a noção

de biopolítica, governamentalidade, e poder pastoral, todos eles expandindo

consideravelmente a capacidade investigativa e analítica das pesquisas para macro

objetos como a noção de população, poder de polícia, saúde pública e segurança

pública.

Com o advento destas duas influências – a saber, de um lado a redução contínua dos

mecanismos disciplinares nas instituições penais, e a ocorrência de um conjunto de

mecanismos analíticos que permitem investigar a macro incidência do poder, julgamos

necessário investigar como essas duas instâncias se relacionam.

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Tomando como ponto de partida este debate da pertinência, ou não, dos modelos

disciplinares nas análises sobre a prisão contemporânea, a apresentação tentará

demonstrar que as teses de Foucault permanecem atuais para as análises sobre o

funcionamento dos sistemas penais, e que esta permanência é possível principalmente

por conta de uma conexão das reflexões de Foucault acerca do poder disciplinar com

suas últimas reflexões que abordaram a governamentalidade e o biopoder. Mostrar essa

é importante uma vez que

O modelo disciplinar em Vigiar e Punir e a sua influência nos estudos sobre o

funcionamento das instituições penais.(etnografia dos sistemas penais, o funcionamento

do poder nas instituições, compreendendo melhor a dinâmica das instituições)

Governamentalidade, biopolítica e políticas públicas

Políticas penais contemporâneas: encarceramento em massa. Tendências atuais do

funcionamento dos sistemas penais.

Autores como David Garland, Loïc Wacquant, no contexto americano, e Fernando

Salla, Alessandra Teixeira avaliando a situação brasileira, tem apresentado resultados

semelhantes a respeito do crescimento das taxas de encarceramento ao lado ocorrências

similares na organização do cotiadiano prisional desses sistemas

A biopolítica se caracteriza por um modo de governar que não se dirige mais aos

indivíduos em especial (ou suas relações em específico), mas sim aos modelos

Poderia ter tomado, em outro nível, o exemplo da pena de morte. Por muito tempo, ela

foi, juntamente com a guerra, a outra forma do direito de gládio; constituía a resposta do

soberano a quem atacava sua vontade, sua lei, sua pessoa. Os que morrem no cadafalso

se tornaram mais numerosos e aqueles mais raros. A partir do momento em que o poder

assumiu função de gerir a vida, já não é o surgimento de sentimentos humanitários, mas

a razão de ser do poder e a lógica de seu exercício que tornaram cada vez mais difícil a

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aplicação da pena de morte. De que modo um poder viria a exercer suas mais altas

prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar,

reforçar, multiplicar a vida e pô-la em ordem? Para um poder deste tipo, a pena capital

é, ao mesmo tempo, o limite, o escândalo e a contradição. Daí o fato de que não se pôde

mantê-la a não ser invocando, nem tanto a enormidade do crime quanto a

monstruosidade do criminoso, sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. São

mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os

outros.(FOUCAULT, pág. 129 – 130, 20...)

É justamente nesse ponto que a genialidade analítica de Foucault se evidencia: ali onde

nosso sentido comum nos levaria a louvar o caráter humanitário de intervenções

políticas que visam incentivar, proteger, estimular e administrar o regime e as condições

vitais da população, ali mesmo nosso autor descobrirá a contrapartida sangrenta desta

obsessão do poder pelo cuidado purificador da vida. Foucault compreendeu que, a partir

do momento em que a vida passou a se constituir como elemento político por

excelência, o qual tem de ser administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado

por políticas estatais, o que se observa não é uma diminuição da violência. Pelo

contrário, tal cuidado da vida de uns traz consigo, de maneira necessária, a exigência

contínua e crescente da morte em massa de outros, pois é apenas no contraponto da

violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a

uma dada população. Não há, portanto, contradição entre o poder de gerência e

incremento da vida e o poder de matar milhões para garantir as melhores condições

vitais possíveis: toda biopolítica é também, intrinsecamente, uma tanatopolítica.

(DUARTE, pág. , 1999)

André Duarte (Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI)

Outra questão importante ao ser refletir na Biopolítica como forma de compreensão do

sistema prisional é entender de modo coerente como se dá a passagem entre o modelo

disciplinar rumo a governamentalidade, a biopolítica e o exercício do macro poder.

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Podemos admitir dois planos nesta abordagem. De um lado temos uma área pouco

explorada, que é a necessidade de esclarecer a passagem entre o modelo disciplinar e a

biopolítica, o que também pode significar explorar as fronteiras que marcam as

interpretações entre o final da fase genealógica e o início do

Ora, durante a segunda metade do século XVIII, eu creio que se vê aparecer algo novo,

que é uma outra tecnologia de poder, não disciplinar dessa feita. Uma tecnologia de

poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute,

que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-

se de certo modo nela, e incrustrando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar

prévia. Essa nova técnica não suprime a técnica disciplinar simplemente porque é de

outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por

instrumentos totalmente diferentes.

Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica é – diferentemente da

disciplina, que se dirige ao corpo – a vida dos homens, ou ainda, se vocês preferirem,

ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem-espécie. Mais

precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na

medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que

devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova

tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que

eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa

global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos

como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira

tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo de individualização, temos

uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é

massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não ao homem-corpo, mas do

homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer

do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma

anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da

espécie humana. (FOUCAULT, 2000, pág. 289)

Em defesa da sociedade – 17 março 1976