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Ética em Pesquisa

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Editorial ............................................................................................................ 3

A ética e a produção do conhecimento hoje ........................................................ 5

A produção do conhecimento em Saúde Coletiva................................................. 8

Diretrizes e normas regulamentadoras da pesquisa em seres humanos:as resoluções do CNS ................................................................................... 13

Algumas considerações sobre as áreas temáticas especiais ................................. 20

Limites do julgamento ético nos estudos que se valem de técnicas qualitativas ...... 22

A vulnerabilidade do sujeito de pesquisa: uma abordagem multidimensional ....... 24

Limites do julgamento ético nos estudos internacionais ....................................... 26

O processo de obtenção do TCLE: compromissos e responsabilidades ................. 31

A representação de usuários em CEPs ............................................................... 33

Ética na Pesquisa em países em desenvolvimento – a experiência brasileira ......... 38

A instrumentalização do pesquisador para a elaboração e obtençãodo TCLE: uma proposta metodológica ............................................................ 42

Resenhas ......................................................................................................... 45

SumárioSumárioSumárioSumárioSumário

BIS - Boletim do Instituto de SaúdeBIS - Boletim do Instituto de SaúdeBIS - Boletim do Instituto de SaúdeBIS - Boletim do Instituto de SaúdeBIS - Boletim do Instituto de Saúdenº 35 - Abril 2005 nº 35 - Abril 2005 nº 35 - Abril 2005 nº 35 - Abril 2005 nº 35 - Abril 2005 ISSN 1809-7529Publicação quadrimestral do Instituto de Saúde.Tiragem: 3000 exemplaresR. Santo Antônio, 590 Bela VistaCep: 01314-000 São Paulo-SPTel: (11) 3293-2222/Fax: (11) 3105-2772E-mail:[email protected]: http://www.isaude.sp.gov.br

Secretário de Estado da Saúde - SPSecretário de Estado da Saúde - SPSecretário de Estado da Saúde - SPSecretário de Estado da Saúde - SPSecretário de Estado da Saúde - SPLuiz Roberto Barradas Barata

Coordenadoria de Ciência, TCoordenadoria de Ciência, TCoordenadoria de Ciência, TCoordenadoria de Ciência, TCoordenadoria de Ciência, Tecnologiaecnologiaecnologiaecnologiaecnologiae Insumos Estratégicos de Saúdee Insumos Estratégicos de Saúdee Insumos Estratégicos de Saúdee Insumos Estratégicos de Saúdee Insumos Estratégicos de Saúde

Maria Cecilia M. M. A. CorreaDiretora do Instituto de SaúdeDiretora do Instituto de SaúdeDiretora do Instituto de SaúdeDiretora do Instituto de SaúdeDiretora do Instituto de Saúde

Maria Lúcia Rosa Stefanini

Expediente:Expediente:Expediente:Expediente:Expediente:

Editor:Editor:Editor:Editor:Editor: Marina Ferreira Rea

Editores asssistentes: Editores asssistentes: Editores asssistentes: Editores asssistentes: Editores asssistentes: Carlos Botazzo, Claudete Gomes dos Santos, MariaJosefina (Suzy) Leuba Salum, Roxane Piazza e Silvia Saldiva

Colaboradores com a etapa de edição: Colaboradores com a etapa de edição: Colaboradores com a etapa de edição: Colaboradores com a etapa de edição: Colaboradores com a etapa de edição: Olga Sofia Faberge Alves,Regina Figueiredo, Sandra Maria Greger Tavares e Carmen Campos A.Paulenas

EEEEEditoração:ditoração:ditoração:ditoração:ditoração: Nelson Francisco Brandão

Capa: LCapa: LCapa: LCapa: LCapa: Lucelia Fucelia Fucelia Fucelia Fucelia Fernandes ernandes ernandes ernandes ernandes (Montagem com pintura “Sem nome”, porNety Leuba Salum)

Apoio LApoio LApoio LApoio LApoio Logístico:ogístico:ogístico:ogístico:ogístico: Núcleo de Informática-IS

DivulgaçãoDivulgaçãoDivulgaçãoDivulgaçãoDivulgação::::: Núcleo de Documentação e Informação-IS

Impressão: Impressão: Impressão: Impressão: Impressão: Imprensa Oficial do Estado

MCCSMCCSMCCSMCCSMCCSApoio:Promoção:

CEPISCEPISCEPISCEPISCEPISSECRETARIA DE

ESTADO DA SAÚDECoordenadoria de Ciência,

Tecnologia e InsumosEstratégicos de Saúde

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Este número temático do Boletim do Instituto de Saúde(BIS) vem acolher o conjunto de textos editados pelosprofessores convidados a participar do Curso sobre Éticaem Pesquisa em Saúde Coletiva, oferecido no segundosemestre de 2004 pelo CEPIS. O leitor terá a oportuni-dade de reviver e registrar os conteúdos apresentadoscom entusiasmo e dedicação, referência inequívoca parao encaminhamento da investigação em Saúde Coletiva.

Em setembro de 2003, quando nos preparávamospara concorrer ao financiamento que havia sido lança-do no Edital nº 200/2003, Projeto de FortalecimentoInstitucional dos Comitês de Ética em Pesquisa, pelo De-partamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) do Ministé-rio da Saúde, mal imaginávamos que estaríamos entreas 64 instituições enfim selecionadas, entre as 103 quepleiteavam o benefício da dotação oferecida. Mas tam-bém não tínhamos idéia de que chegaríamos ao finalcom tanta disposição e com uma sensação prazerosa dedever cumprido! Resultado de um trabalho coletivo queintegrou os membros do nosso Comitê de Ética em Pes-quisa/Gestão 2002-2004, vamos concluindo o trabalhocom a possibilidade de cumprir aquela que era umaprojeção apenas delineada a princípio: a de registrarem uma publicação específica e de ampla circulação ostemas e questões que foram tratados no Curso.

Neste número especial do BIS temos a oportunidadede repensar a relevância que representa colocar-se di-ante daquelas que o Prof. Mario Sérgio Cortella distin-gue como as três questões cruciais para definir o trajetoético na produção de conhecimento (quero? devo? pos(quero? devo? pos(quero? devo? pos(quero? devo? pos(quero? devo? pos-----so?),so?),so?),so?),so?), no sentido de manter a integridade digna da vidacoletiva, recusando a falência da liberdade, a idéia deque alguns merecem usufruir do conhecimento produzidoe outros não, de que alguns merecem entrar em nossacasa, outros não. Mas não apenas a “viagem” pelas re-lações entre a ética e a produção do conhecimento reme-terá o leitor a essas indagações. Ao tratar da produçãode conhecimento em Saúde Coletiva, nosso PqC do IS,Prof. Carlos Botazzo, refresca a nossa memória, retoman-do as distinções ético-políticas e teórico-metodológicasentre este campo e o campo da Saúde Pública. Reafirmao significado da eticidade da pesquisa, qual seja o de-senvolvimento, florescimento e reprodução da consciên-cia social do trabalhador científico, porque não dizer, oprocesso em que se integra ao responder “““““quero? devo?quero? devo?quero? devo?quero? devo?quero? devo?posso?” posso?” posso?” posso?” posso?” quando se defronta com os eixos sobre os quaisse funda nosso campo de conhecimentos e práticas(interdisciplinaridade, projetos de sociedade e a produçãode sentido). Feitas as primeiras considerações gerais so-bre a ética e a eticidade como “questão de honra” no

trajeto da produção do saber, pela mão da Profa. MariaJosefina (Suzy) Leuba Salum, enveredamos por um per-curso em que vamos apreendendo com o detalhamentopossível o teor das exigências éticas nas pesquisas comseres humanos a partir de uma leitura sistematizada daResolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,estruturada sob três princípios gerais que reiteram o con-trole social, o compromisso e a responsabilidade social epública e a correção ético-política e teórico-metodológicado pesquisador como pressupostos da atividadeinvestigativa. O Prof. Paulo Fortes completa o percursodas Resoluções que subsidiam o exercício do pesquisa-dor no cumprimento da exigências éticas na pesquisa eo trabalho dos CEPs nos indicando, com destaque, adelicadeza que representa trabalhar nas áreas temáticasespeciais, preocupado especialmente com o princípio dahumanidade. Chama a atenção para a responsabilida-de, o respeito e o rigor que devem nortear a ação dopesquisador na relação que estabelece com os sereshumanos na pesquisa quando se coloca diante deprojetos que demandam vigilância cuidadosa e retaguar-da de qualidade no acompanhamento, como é o casodas pesquisas com medicamentos, sem ou com coope-ração estrangeira, nas que envolvem remessa de materi-al biológico para o exterior, com populações indígenasou sobre reprodução e genética humana. Tratando doslimites do julgamento ético nos estudos que se valem detécnicas qualitativas, a Profa. Bader Sawaia parte da dis-tinção entre qualidade e quantidade, destacando a res-ponsabilidade ética de se trabalhar na zona intensamen-te variável do humano, no pressuposto de que a verdadenão está manifesta no objeto, mas é objeto para um sujei-to, que lhe dá significado. Diante da natureza da pesqui-sa qualitativa que trabalha com o sentir e refletir com -um exercício de reflexão e ação - explora os limites epossibilidades que se imprimem na obtenção do con-con-con-con-con-sentimento livre e esclarecidosentimento livre e esclarecidosentimento livre e esclarecidosentimento livre e esclarecidosentimento livre e esclarecido, abordando ainda a com-plexidade que está por trás da preservação da autono-mia do sujeito e do sigilo na pesquisa. Logo a seguir, aProfa. Elma Zoboli retoma o debate acerca da necessi-dade de uma releitura do conceito de vulnerabilidadedo sujeito da pesquisa, presente na reedição de umaproposta original em co-autoria com a Profa. LislaineFracolli partindo da compreensão de vulnerabilidade cor-rente no campo conceitual e prático da intervenção sobrea pandemia de AIDS a partir da década de 90, inscrevemo conceito de vulnerabilidade em dois planos, individuale supra-individual, este último enfrentado nas suas duasdimensões: a programática e a social. Trata-se então, se-gundo as autoras, de reconhecer como a especial com-

EditorialEditorialEditorialEditorialEditorialMarina Ferreira Rea1

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preensão multi dimensional da vulnerabilidade fortalece apercepção e denúncia dos determinantes e condicionantessociais da expressão autonômica das pessoas, impondo odesafio da construção coletiva de estratégias de interven-ção na realidade para além das fronteiras do relaciona-mento pesquisador/sujeito. Não menos instigante é o tra-balho do Prof. José da Rocha Carvalheiro que, ao abor-dar os limites do julgamento ético particularmente nos es-tudos com participação internacional traz à discussão osentido político, presente nas questões que colocam “nofio da navalha” os princípios éticos e humanitários na pes-quisa, em benefício dos interesses do mercado de insumose de medicamentos em saúde. E assim, coloca o “dedona ferida” dos temas atuais e polêmicos da macroética,tratando da consistência ética que deve marcar o traba-lho das agências regulatórias, mas, sobretudo da amea-ça à Declaração de Helsinque, como a perversa propos-ta de adoção do double standard, ou da adoção do bestatainable em detrimento do best proven. Os compromis-sos e responsabilidades do pesquisador diante do Termode Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) são traba-lhados pelo Prof. Gabriel Oselka que parte da gênese edesenvolvimento histórico da adoção dos chamados ter-mos de consentimento e de responsabilidade para des-tacar o significado social do TCLE. Afirmando a comple-xidade que envolve o trajeto investigativo em saúde, oautor nos coloca diante de questões que denotam atranscendência do debate que traz à tona as responsabi-lidades e compromissos do pesquisador na obtenção doTCLE, mais do que um “termo”, um “processo”, comoenfatizava o Prof. Paulo Fortes na sua explanação. A ob-tenção de um consentimento que valide a pesquisa é tare-fa difícil, delicada e complexa. Para além dela, importa amoralidade do pesquisador, mais importante mesmo doque a normatização da atividade investigativa. Importa,sim, o compromisso do pesquisador com as pessoas en-volvidas e não somente com a ciência. E a quem é quepedimos tal “consentimento” ? Qual é o significado dapresença no CEP do usuário que firma este “termo”?Segue-se o texto do Prof. Jorge Beloqui que historia asperversidades que envolveram a consolidação da parti-cipação dos usuários na proposição e no desenvolvimentoda pesquisa com seres humanos. Trata do emblemáticocaso do Ensaio Merck 028, em que, não fosse a militânciados usuários, não se teria denunciado que o sigilo e aconfidencialidade estavam mais a serviço do pesquisadordo que dos voluntários. Atualiza o leitor sobre a partici-pação dos usuários em CEPs, suas lutas diante dos pro-blemas recorrentes enfrentados, conscientes da relevân-cia do exercício do controle social na pesquisa, desta-cando as ambigüidades que se manifestam no resguar-do do sigilo e da confidencialidade. A quem interessa aciência secreta? A quem serve a guarda daconfidencialidade? A quem não interessa a revisão extra-institucional? São questões a que o autor responde noencaminhamento de sua discussão instrumentalizada pelo

inegável conhecimento de causa adquirido ao longo desua responsável e criteriosa militância no campo da éti-ca em pesquisa. A Comissão Nacional de Ética em Pes-quisa (CONEP) também se faz presente nesse nosso BIS,através de sua Secretária Executiva, Dra Corina Bontempo,que destaca a construção do forte processo de avaliaçãodas pesquisas em saúde no Brasil com a criação do sis-tema CEP-CONEP e sua expansão, hoje atualizada coma informatização através do SISNEP. Nossa coletânea deartigos se encerra com a apresentação de uma propostametodológica desenvolvida pela Prof. Sandra Greger, eque balizou a atividade pedagógica de avaliação, mo-mento em que os participantes foram convidados avivenciar o processo de obtenção de um TCLE revendoseus próprios conceitos éticos apreendidos durante oCurso. Resenhas de livros especiais no campo da Ética,apresentadas por Eliana de Aquino Bonilha e pela pes-quisadora Tereza Toma, bem como resumos de disserta-ções de alguns jovens pós-graduandos figuram na últi-ma seção deste nosso BIS. Diante da riqueza de infor-mações, críticas e sugestões acumuladas nesse conjuntode textos que, finalmente chega às mãos dos pesquisa-dores no campo da Saúde Coletiva, esperamos ter con-tribuído para o reconhecimento, em profundidade e ex-tensão, das velhas e novas questões com que nos de-frontamos no campo que entrelaça ética e pesquisa emsaúde coletiva. A condução e execução eficaz do projetode fortalecimento dos CEPs no nosso Instituto esteve soba responsabilidade dos membros do CEPIS gestão 2002-2004: Marina Rea (coordenadora), Claudete dos Santos(vice-coordenadora), Carlos Botazzo, Sandra Greger,Virginia Junqueira, Lauro Ibanhez, Ana Lucia da Silva,Maria Josefina (Suzy) Leuba Salum, Roxane Piazza, Sil-via Saldiva e Lula Ramirez (representante dos usuários).

Nosso agradecimento especial ao Nelson FranciscoBrandão, do Setor de Informática do IS, pelo apoio emtodas as horas do Curso e na elaboração deste BIS, mastambém à Lucélia Fernandes, auxiliar de pesquisa, pre-sente sempre que necessário, surpreendendo-nos com odesign da capa. A cessão da pintura2 que ali se admira émais uma contribuição da companheira Suzy Salum, quedispõe para o nosso projeto um quadro inédito de sua mãe,a artista plástica Nety Leuba Salum.

Boa leitura!

1 Médica, Doutora em Medicina Preventiva, Pesquisadora-científicado Instituto de Saúde, Coordenadora do CEPIS 2002-2004.

2 Nety Leuba Salum (de nacionalidade suíça, nascida aos 14/11/1917),pintura “Sem nome”, datada de 1964, tomando como referência ascircunstâncias sociais e políticas brasileiras vivenciadas na época.

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Ressaltemos desde o início: a ética é uma questãoabsolutamente humana!

Só se pode falar em ética quando se fala em huma-no, porque a ética tem um pressuposto: a possibilidadede escolha. A ética pressupõe a possibilidade de deci-são, ética pressupõe a possibilidade de opção. Por exem-plo, lembram-se de um filme antigo chamado “A esco-lha de Sofia?” Não há escolha ali, escolha é quandovocê pode escolher, e ali não há escolha: havia doisfilhos, ela tinha que escolher qual ia morrer, qual ia fi-car; não há escolha, não há uma questão ética ali.

É impossível falar em éticaéticaéticaéticaética se nós não falamos emliberdadeliberdadeliberdadeliberdadeliberdade. Quem não é livre não pode evidentementeser julgado do ponto de vista da ética. Outros animais,ao menos nos parâmetros que utilizamos, agem de for-ma instintiva, não-deliberada, sem uma consciência in-tencional. Cuidado. Tem gente que diz assim: “Eu que-ria ser livre como um pássaro”; lamento profundamente,pássaros não são livres, pássaros não podem não voar,pássaros não podem escolher pra onde voam, pássarossão pássaros, se você quiser ser livre você tem que serlivre como um humano. Pensemos algo que pode pare-cer extremamente horroroso: como disse Jean-Paul Sartre,nós somos condenados a ser livres.

Daí, da liberdade, vêm as três grandes questões éti-cas que orientam (mas também atormentam, instigam,provocam e desafiam) as nossa escolhas: QueroQueroQueroQueroQuero? Devo Devo Devo Devo Devo?PPPPPossoossoossoossoosso?

Retomemos o cerne: o exercício da ética pressupõe anoção de liberdade. Existe alguém que eu possa dizerque não tem ética? É possível falar que tal pessoa “nãotem ética?” Não, é impossível. Você pode dizer que elenão tem uma ética como a tua, você pode dizer que eletem uma ética com a qual você não concorda, mas éimpossível dizer que alguém não tem ética, porque éticaé exatamente o modo como ele compreende aquelastrês grandes questões da vida: devo, posso, quero?

Tem coisa que eu devo mas não quero, tem coisaque eu quero mas não posso, tem coisa que eu possomas não devo. Aqui, nestas questões, vive aquilo que agente chama de dilemas éticos; todas e todos semexceção temos dilemas éticos, sempre, o tempo todo:devo, posso, quero? Tem a ver com fidelidade na tuarelação de casamento, tem a ver com a tua postura comomotorista no trânsito; quando você pensa duas vezes seatravessa um sinal vermelho ou não, se você ocupa umavaga que é o que você está vendo à distância que al-guém está dando sinal de que ele vai querer entrar; quan-do você vai fazer a sua declaração de Imposto de Ren-da; quando você vai corrigir provas de um aluno ou de

A ética e a produção do conhecimento hojeA ética e a produção do conhecimento hojeA ética e a produção do conhecimento hojeA ética e a produção do conhecimento hojeA ética e a produção do conhecimento hoje11111

Mário Sergio Cortella2

um orientando teu; quando você vai cochilar depois doalmoço, imaginando que tem uma pia de louça lá quetalvez outra pessoa vá lavá-la, e como você sabe que elalava mesmo, e que se você não fizer o outro faz, ali vocêtem a grande questão ética que é: devo, posso, quero?

Por exemplo, quando se fala em bioética: podemoslidar com clonagem? Podemos, sim. Devemos? Não sei.Queremos? Sim. Clonagem terapêutica, reprodutiva? Éuma escolha. Posso eu fazer transplante intervivos? Pos-so. Devo, quero? Tem coisa que eu devo mas não quero;aliás, a área de Saúde é recheada desses dilemas éticos,a área de Ciência e Medicina é recheada desses dile-mas éticos; tem muita coisa que você quer mas não pode,muita coisa que você deve mas não quer.

Na pesquisa, já imaginou? Por que montamos comi-tês de pesquisa, por que a gente faz um curso sobre éticana pesquisa em saúde coletiva? Porque isso é complica-do, se fosse uma coisa simples a gente não precisavafazer curso, não precisava estudar, não precisava se jun-tar. É complicadíssimo, porque nós estamos mexendo comcoisas que têm a ver com a nossa capacidade de existir,e é claro, quando se pensa especialmente no campo daética, essa relação com liberdade traz sempre o tema dadecisão, da escolha.

Por quê que eu estou dizendo isso? Porque não dápara admitir uma mera repetição do que disseram mui-tos dos generais responsáveis pelo holocausto e demaisatrocidades emanadas do nazismo dos anos 1940. To-dos, exceto um que assumiu a responsabilidade, todoseles usaram o mesmo argumento em relação à razão deterem feito o que fizeram. Qual foi? “Eu estava apenascumprindo ordens”.

“Estava apenas cumprindo ordens”, isso me eximeda responsabilidade? Estava apenas obedecendo... Essaé uma questão séria, sabe por quê? Porque “estava ape-nas cumprindo ordens” implica na necessidade de nóspensarmos se a liberdade tem lugar ou não. Ética tem aver com liberdade, conhecimento tem a ver com liberda-de, porque conhecimento tem a ver com ética.

Por isso, se há algo que também é fundamental quan-do se fala em ciência, ética na pesquisa e a produção doconhecimento, é a noção de integridade. A IntegridadeIntegridadeIntegridadeIntegridadeIntegridade

1 Este texto, resultante de exposição oral, guarda propositadamentecaracterísticas coloquiais.

2 Filósofo, com Mestrado e Doutorado em Educação pela PUC-SP,na qual é Professor-Titular do Departamento de Teologia e Ciênciasda Religião e da Pós-Graduação em Educação (Currículo); foi Se-cretário Municipal de Educação de São Paulo (1991-1992) e é au-tor, entre outros livros, de A Escola e o Conhecimento (fundamentosepistemológicos e políticos), 8 ed, São Paulo: Cortez, 2004.

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é o cuidado para manter inteiro, completo, transparente,verdadeiro, sem máscaras cínicas ou fissuras.

Nesta hora um perigo se avizinha: assumir-se indivi-dual ou coletivamente uma certa “esquizofrenia ética”.Ela desponta quando as pessoas se colocam não comointeiras, mas, repartidas em funções que pareceriam ex-ternas a elas. Exemplos? “Eu por mim não faria isso,mas, como eu sou o responsável, tenho de fazê-lo”. Ora,eu não sou eu e uma função, eu sou uma inteireza, eunão sou eu e um professor, eu e um pesquisador, eu eum diretor, eu e um Secretário, eu sou um inteiro. “Eu pormim não faria”, então eu não faço!

Cautela! Coloca-se aqui um estilhaçamento da inte-gridade “Eu por mim não te reprovaria, mas como eusou seu professor, eu tenho que reprovar”; “Eu por mimnão te mandaria embora, mas como eu sou teu che-fe...”; “Eu por mim não te suspenderia, mas como eu souseu superior...”; “Eu por mim não faria isso, mas comoeu sou o contador...”; “Eu por mim não faria isso, mascomo eu sou o responsável pelo laboratório...”; “Eu pormim não faria”, então eu não faço; “Eu por mim não tereprovaria”, então não reprovo. De novo: eu não sou eue uma função, eu não sou eu e um pesquisador, eu e umchefe do laboratório, eu e um diretor de instituto, eu eum Secretário...

O esboroamento da integridade pessoal e coletiva éa incapacidade de garantir que a “casa” fique inteira, epara compreender melhor a idéia de “casa íntegra”, valefazer um breve passeio pelas palavras.

Talvez as pessoas que estudaram um pouco deetimologia se lembrem que a palavra ética vem pra nósdo grego ethos, mas ethos em grego, até o século VI a.C., significava morada do humano, no sentido de caráterou modo de vida habitual, ou seja, o nosso lugar. Ethosé aquilo que nos abriga, aquilo que nos dá identidade,aquilo que nos torna o que somos, porque a tua casa é omodo como você é, onde está a tua marca.

Mais tarde, esse termo para designar também o es-paço físico foi substituído por oikos. Aliás, o conheci-mento mais valorizado naquela sociedade grega era oque cuidava das regras da casa, para a gente poderviver bem e para deixar a casa em ordem. Como regraou norma é o vocábulo nomos, passou-se a ter a oikosnomos (a economia) como a principal ciência.

Mas, a noção original de ethos não se perdeu, poisos latinos a traduziram pela expressão more, ou mor, queacabou gerando pra nós também uma dupla concep-ção; uma delas é morada, uma outra delas, que vai serusada em latim, que é o lugar onde você morava, queera o teu habitus. Olha só, aquela expressão “O hábitofaz o monge” não tem a ver com a roupa dele, habitus,(onde você usa também habitat), habitus é exatamenteonde nós vivemos, o nosso lugar, a nossa habitação.

Assim, quando se pensa em ética e produção do co-nhecimento hoje, a grande questão é: como está a nos-sa possibilidade de sustentar a nossa integridade, essa

integridade como se coloca? A integridade da vida indi-vidual e coletiva, a integridade daquilo que é mais im-portante, porque uma casa, ethos, tal como nós coloca-mos, é aquela que precisa ficar inteira, é aquela queprecisa ser preservada.

Como está a morada do humano? Essa morada dohumano ela desabriga alguém? Tem alguém que estáfora da casa, tem alguém que está sem comer dentrodessa casa? Tem alguém que está sem proteção à suasaúde, tem alguém que está sem lazer dentro dessa casa?Essa morada do humano ela é inclusiva ou ela é exclusi-va? Essa morada do humano lida com a noção de qua-lidade em ciência, ou lida com a noção de privilégio?Cuidado. Uma coisa que se confunde muito em ciênciaé qualidade com privilégio; qualidade tem a ver comquantidade total, qualidade é uma noção social, quali-dade social só é representada por quantidade total, qua-lidade sem quantidade não é qualidade, é privilégio. SãoPaulo é uma cidade em que se come muito bem, é ver-dade; quem come, quem come o quê? Qualidade semquantidade total não é qualidade, é privilégio, e todasas vezes que se discute essa temática aparece a noçãode uma qualidade restrita, e qualidade restrita, reforce-mos, é privilégio, e nesse sentido a grande questão vol-ta: será que na morada do humano alguém estádesabrigado? Será que essa casa está inteira, ela estáem ordem nessa condição?

Nesta nossa casa, quando a gente fala em cuidado,é o mesmo que falar em saúde; aliás, quando digo: “Eute saúdo”, ou, “queria fazer aqui uma saudação”,etimologicamente é a mesma coisa. Saudar é procurarespalhar a possibilidade de cuidado, de atenção, deproteção. Nossa casa, que casa é essa? Há nela saúde?A ética é a morada do humano, essa casa é protegidacomo? Qual é o lugar da ciência dentro dela? Qual opapel que ela desempenha? Qual é a nossa tarefa nis-so, para pensar exatamente aquelas três questões: pos-so, devo, quero?

É claro que essas questões e suas respostas não sãoabsolutas, elas não são fechadas, elas são históricas,sociais e culturais. A mesma pergunta não seria feita domesmo modo há vinte anos; a grande questão no nossopaís há cento e cinqüenta anos, a grande questão éticahá cento e cinqüenta anos é se eu podia açoitar um es-cravo e depois cuidar dele, ou só açoitá-lo e deixá-lo praser cuidado pelos outros; se eu poderia extrair o dentede alguém, se é mais recomendável pro dentista que elefaça extração ou que ele tente o tratamento. Alguns anos,algumas décadas, era algo que nem passaria pela ca-beça de um dentista uma discussão de natureza ética,chega lá a pessoa e diz assim: “Eu quero que o senhorarranque todos os meus dentes”, ele fala: “Tá bom”; hojevocê tem outra questão. O mesmo vale em relação aouso de contraceptivos ou à legalização do aborto con-sentido, ou, ainda, sobre a separação entre princípiosreligiosos e conduta científica.

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Quando se pensa na manutenção da integridade, dodevo, posso e quero, a grande questão, junto com essatríade, é se nós estamos dirigindo, como critério último,a proteção da morada do humano, da morada coletivado humano, afinal de contas, não somos humanos ehumanas individualmente, nós só o somos coletivamente.Fala-se muito em vivência, ao nos referirmos à vida hu-mana; no entanto, o mais correto seria sempre dizer con-con-con-con-con-vivênciavivênciavivênciavivênciavivência, pois, ser humano é ser junto.

Desse modo, a noção de ethos, a noção de moradado humano, oferece um critério para responder ao pos-so, devo e quero, que é: protejo eu a morada oudesprotejo? Incluo ou excluo? Vitimo ou cuido?

Em um livro delicioso e de complexa leitura, EnriqueDussel escreve no Ética da Libertação (Vozes) um percur-so da história da ética dentro do mundo; começaexatamente mostrando o lugar que a reflexão ética ocu-pa na história humana, mas ele vai concluir com algoque alguns até achariam curioso hoje: ele não aceita anoção do termo exclusão, ou falar em excluídos, porqueacha que a noção de excluído é muito pequena e insufi-ciente. Dussel, ao pensar a Ética e os processos sociais,econômicos e culturais, trabalha com a noção de víti-víti-víti-víti-víti-masmasmasmasmas: as vítimas do sistema, as vítimas da estrutura. Pensaele que quando se fala em excluído, dá-se a impressãode que é uma coisa um pouco marginal, lateral, enquantoque vitimação é uma idéia mais robusta e incisiva.

A principal virtude ética nos nossos tempos, pra po-der manter a integridade e cuidar da casa, da moradado humano, é a incapacidade de desistir, é evitar o apo-drecimento da esperança, é evitar aquilo que padre An-tonio Vieira começava, num de seus Sermões, dizendo:“O peixe apodrece pela cabeça”. Já viu um peixe apo-drecer? Tal como algumas pessoas, ele apodrece da ca-beça pro resto do corpo...

Um curso de ética em ciência na pesquisa tem umafinalidade: manter a nossa vitalidade, manter a nossavitalidade ética, mostrar sim que nós estamos preocupa-das e preocupados, que a gente não se conforma com aobjetividade tacanha das coisas, que a gente não achaque as coisas são como são e não podem ser de outromodo, a gente não se rende ao que parece ser imbatível.

Ser humano é ser capaz de dizer não, ser humano éser capaz de recusar o que parece não ter alternativa, serhumano é ser capaz de afastar o que parece sem saída.Ser humano é ser capaz de dizer não, e, só quem é ca-paz de dizer não pode dizer sim; aí está a nossa liberda-de. Tem gente que diz assim: “Ah, a minha liberdadeacaba quando começa a do outro”; cuidado, a minhaliberdade acaba quando acaba a do outro; liberdade,como saúde, tem que ser um conceito coletivo, a minhaliberdade não acaba quando começa a do outro, a mi-nha liberdade acaba quando acaba a do outro. Se al-gum humano não for livre, ninguém é livre, se algumhomem ou mulher não for livre da falta de trabalho, nin-guém é livre; se algum homem ou mulher não for livre

da falta de socorro, de saúde, ninguém é livre; se algu-ma criança não for livre da falta de escola, ninguém élivre; a minha liberdade não acaba quando começa ado outro, minha liberdade acaba quando acaba a dooutro. Ser humano é ser junto, e nesta hora, aí é que valepensar essa capacidade nossa de dizer não a tudo quevitima e sermos capazes de proteger o que eleva a Vida.

O vínculo da Ética com a Produção do Conhecimen-to está relacionado à capacidade deste cuidar daquela,isto é, manter a integridade digna da vida coletiva.

Ética é a possibilidade de recusar a falência da liber-dade, a ética é a nossa capacidade de recusar a idéiade que alguns cabem na nossa casa, outros não cabem;alguns comem, outros não comem, alguns têm graça eoutros têm desgraça.

A ética é o exercício do nosso modo de perceber comoé que nós existimos coletivamente, e aí, pensar com seri-edade naquilo que François Rabelais vaticinou: “Conhe-ço muitos que não puderam, quando deviam, porquenão quiseram, quando podiam”.

Quero? Devo? Posso?

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

BOFF, L. Saber cuidarSaber cuidarSaber cuidarSaber cuidarSaber cuidar: ética do humano. Petrópolis:Vozes, 1999.

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A produção do conhecimento emA produção do conhecimento emA produção do conhecimento emA produção do conhecimento emA produção do conhecimento emSaúde ColetivaSaúde ColetivaSaúde ColetivaSaúde ColetivaSaúde Coletiva11111

Carlos Botazzo2

1 Comunicação feita no “Curso Ética e Ciência na Pesquisa em SaúdeColetiva: velhas e novas questões”, no Instituto de Saúde, em 14 deoutubro de 2004, com base em excerto retirado de “Saúde bucal ecidadania: transitando entre a teoria e a prática”; In: PEREIRA, A.C.Odontologia em Saúde Coletiva. Planejando ações e promovendosaúde. Porto Alegre; ArtMed, 2003, 17-27.

2 Doutor em Saúde Coletiva, Pesquisador-científico do Instituto de Saú-de. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências, CCD/SES-SP.

1. Introdução1. Introdução1. Introdução1. Introdução1. IntroduçãoPensar a produção do conhecimento em saúde

coletiva implica algumas correlações prático-teóricas.Entre estas, devemos lembrar o desenho de objetos paraa investigação, o uso de ferramentas conceituais eoperativas, as políticas de produção científica etecnológica, vistas no seu contexto histórico, e a formaçãodo pesquisador. Esta última deve significar odesenvolvimento de uma consciência desalienada,apreendida tanto na dimensão epistemológica, isto é, odas referências teórico-metodológicas quanto nas suasrelações sociais e nas práticas políticas, o que equivaledizer no modo como o pesquisador concebe a sociedadeem que vive.

Isto obriga, de qualquer modo, que se estabeleçamas linhas de pensamento em Saúde Coletiva nas quaisesta comunicação se apóia. Em muitas passagens se daráênfase à filosofia positivista, mesmo que com ela não setenha afinidade. Trata-se de reconhecer que esse modode pensar em saúde goza de prestígio e é bastantedifundido, quer os agentes tenham ou não consciênciadisso.

2. Saúde pública e saúde coletiva2. Saúde pública e saúde coletiva2. Saúde pública e saúde coletiva2. Saúde pública e saúde coletiva2. Saúde pública e saúde coletivaEntendemos, como Minayo (1992), que a Saúde

Coletiva vem a ser um campo de práticas __ sanitárias,sociais ou de investigação __ que incorpora os sujeitos,os movimentos sociais, os serviços de saúde etc, e ossubmete à crítica transformadora. Nesta perspectiva,também as instâncias ou aparelhos de controle socialmedicalizados são submetidos à crítica. Por este viés elase diferenciaria da Saúde Pública, entendida semprecomo esfera estatal que, por meio da oferta de serviçosde saúde, efetiva suas políticas de controle social, isto é,o controle do Estado sobre indivíduos ou grupos deindivíduos. Claramente se diferenciaria uma da outra.Há farta literatura que desvela as relações entre situaçãode saúde e atividade econômica. Deste modo, aassistência pública vem oferecendo, e desde o seunascimento, os elementos que permitem estabelecer, demodo inequívoco, os nexos que a mantém em articulaçãocom as políticas e os propósitos do Estado, e isto desdeque para os estados nacionais a necessidade do controleda massa populacional (nascimento, morte, gestação,moradia, educação/qualificação, práticas dietéticas,cuidado com o corpo, moral etc) se impôs como estratégiaque visava o incremento da riqueza econômica e militardas nações européias ocidentais.

Foi na 2ª metade do século XIX, no entanto, que aassistência pública assumiu a configuração que mantématé os dias presentes. Minayo acertadamente consideraque a conotação desta saúde é ser pública, sim, mas demodo inespecífico. É assim que ela vincula esta saúdepública à “política de prevenção proposta pelo Estado”.Política de prevenção é denominação extensa. Ela deve,assim, significar todas as prevenções e todas as profilaxiaspossíveis. Na massa populacional radicam-se muitosmales, a pobreza é fonte de perigo de todos os tipos, amiséria engendra a degradação moral e física, osofrimento e o crime. E, sobretudo, é caldo de culturapara a Revolução. E foram tantas, a ponto de EricHobsbawm ter denominado esse momento histórico de“A Era das Revoluções”.

Numa atmosfera hamletiana, a burguesia européiavia-se ameaçada por espectros (“um espectro ronda aEuropa”, lembramos, é a célebre frase de abertura doManifesto de Marx) e via em cada “popular” umconspirador, um agitador ou um delinqüente. Não poracaso, a filosofia positiva de Augusto Comte pregava anecessidade de educar positivamente o proletariadourbano. Comte (1978) garantia que a ciência positiva,estado superior do pensamento que a sociedade humanaalcançara no século XIX, dirigiria daí por diante todas asartes e as técnicas e, ainda mais e principalmente, asações humanas. Assim, a moral, isto é, a prescrição docorreto modo de agir em sociedade, passaria a ter basecientífica. Muito coerentemente, se a ciência positivaindica o certo, o correto, aquilo que deve ser e do modocomo deve ser e de nenhum outro, se é preciso antesconhecer para depois agir, então a educação positiva doproletariado deveria significar torná-lo normal socialmentefalando. Por isso mesmo, no esquema comteano aMedicina ocupa lugar central, porque então essanormalidade social deverá ser expressada objetivamenteou internalizada subjetivamente como normalidademédica.

Todas as profilaxias contemporâneas encontram nessearcabouço ideológico sua condição de possibilidade e

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justificação. Por profilaxia são entendidas as práticas que,não sendo exatamente prevenção, contribuem com aprevenção. Mas profilaxia, lembremos disso, no radicalgrego significa explicitamente olhar sobre, em direção a,vigiar.

É então que a Medicina Científica, completando oraciocínio comteano, será chamada a ocupar o lugar dereguladora das vontades e dos desejos dos homens. AMedicina científica ou positiva orientará a condutahumana, dirá quais práticas são as recomendáveis e quaissão as deletérias, trará para seu âmbito todas a mezinhas,proporá a profilaxia de quase todos os males,medicalizará a cama, o quarto de dormir, o banheiro e acozinha, medicalizará os sentimentos e as emoções efinalmente medicalizará a sociedade. O modo deobjetivação de todas essas formas de vida medicalizadaé dado pelo corpo. Tomado em sua dimensão coletiva, éo corpo proletário que deve antes interessar à nova ordem.É neste preciso contexto e recorte que se validam aspráticas de vigilância, as médicas e as não médicas. Éum momento da Medicina Positiva, mas é também omomento de um Direito Positivo e igualmente de umaRepressão Positiva. É quando emergem, finalmente, todasas práticas de esquadrinhamento da vida social genérica,é quando são formulados os preceitos legais do direitopositivo, é quando se outorga ao desviante o estatutoque permitirá o seu encarceramento (Foucault, 1991).

Vigilância e ordem. Este é, por excelência, o campoda disciplina, que alcança os mais recônditos aspectosda vida em sociedade. A disciplina é presente na sala deaula e no quartel, no mosteiro e na fábrica, no hospital,no hospício e no cemitério. Do nascimento à morte, doberço ao túmulo, há de haver o registro estatal dos eventose as condições nos quais ocorrem.

Subordinar a moral à ciência, no entanto, equivale auma rendição. A moral é designadora do campo daspráticas sociais. Por suposto, não é aceitável um “discursode neutralidade” a direcionar as ações humanas. ParaJapiassu esta posição deve ser vista como “imperialismocientífico”. É igualmente justa a posição de Henri Poincarépara quem não pode haver moral de base científica, domesmo modo que não pode haver uma ciência imoral(Poincaré, 1995). Bastam, por ora, estas assinalações. Édaqui por diante, ou seja, ao se caminhar daquele“inespecífico público”, de que falava Minayo, para apublicização radical da saúde, que encontraremosacolhedouro para as categorias das ciências humanas,e para todas as formas de problematização que seescondem sob o termo “coletivo”.

3. A saúde coletiva como campo de investigação e3. A saúde coletiva como campo de investigação e3. A saúde coletiva como campo de investigação e3. A saúde coletiva como campo de investigação e3. A saúde coletiva como campo de investigação epráticaspráticaspráticaspráticaspráticasCercada de ambigüidades e transparências que seja,

ou em permanente atravessamento pela política, pelaideologia e pelos conflitos (Donnangelo, 1983), a SaúdeColetiva que se pensa para ser, como afirma Nunes

(1995), tema e ao mesmo tempo campo de práticasteóricas, técnicas e pedagógicas, deveria antes serconcebida segundo alguns eixos prático-conceituais: a)interdisciplinaridade; b) projetos de sociedade; e, c)produção de sentido. Vejamos como se desembrulhamesses eixos.

a. InterdisciplinaridadeTalvez o maior obstáculo à compreensão do que venha

a significar essa palavra derive do fato de termos jáinternalizadas, isto é, como subjetividade, as categoriasda ordem e da disciplina. Durkheim (1988) afirmará, norigor do funcionalismo sociológico, que só há resistênciaàs normas sociais, coercitivamente impostas, quando nãoforam suficientemente internalizadas pelos sujeitos; aocontrário, a não resistência conduzirá a que a coerçãoaceita seja percebida como “natural”. As coisas são comodevem ser e sabemos existirem limites e fronteiras. Mastambém é fato que só podemos pensar a fronteira quandosabemos o que está do outro lado. Este vem a ser umponto de relevo porque imediatamente se poderia dizerque o gesto fundante da interdisciplinaridade é aultrapassagem da fronteira, é a ruptura do limite. Trata-se então, e inicialmente, de uma indisciplina, uma rebeldiaepistemológica. O primeiro ponto é, assim, umareconciliação do sujeito com ele mesmo, porque ainterdisciplinaridade é o lugar onde freqüentemente sujeitoe objeto se confundem. Ele terá de se ver em relaçãocom outros sujeitos e precisará descobrir como seproduziram nele os efeitos dos dispositivos de regulaçãosocial em funcionamento.

Do ponto de vista pedagógico, a disciplina pode serentendida como conjuntos de enunciados que copiamsua organização de modelos científicos. Ela apresentatendência à coerência e à demonstratividade. O conteúdoda disciplina, ou a disciplina ela mesma, é aceito,institucionalizado, transmitido e às vezes ensinado comociência (Foucault, 1985). Do mesmo modo, e preservandoesta conceituação, é que se pode entender comodisciplina também a Psiquiatria, a Psicologia, a Medicinapor inteiro, enfim, porque essas práticas têm porfundamento certo plano de racionalidade e certoembasamento científico que as legitimam perante asociedade.

Uma disciplina médica implica, por isso tudo, relaçõesde poder e exercícios de poder. Não há porque se falarem disciplina se a ela não se atribui essa dimensão de,pelo exercício do poder, ver-se em pertencimento aosesquemas de dominação. Neste sentido, pode-se afirmarque a sala de aula é a instituição celular e a transmissãonela colocada certo modo de reprodução da ordem. Juntocom o laboratório e o ambulatório, a sala de aula revelasua pedagogia já a partir da arquitetura que determinao lugar do aluno e do professor, a separação entretrabalho intelectual e manual, a diferença entre o quesabe e aquele que deve aprender. Esses lugares todos

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abrigam dispositivos reguladores em processos deinstitucionalização, a lista de chamada, as avaliações,as provas, os tempos, os ritmos, os modos de fazer. Abrigaa produção de verdades, enfim, incluída a última delas,a verdade sobre o paciente (e nesses lugares, finalmente,se há dominação há igualmente resistência a ela).

Ora, o que precisa ser pensado é saber se de fato,além do que expressa como instituição, a disciplina, istoé, aquele específico conhecimento de que falava Foucault,contém a possibilidade prática de compreensão dohomem e da doença dele. Pois aqui, para conhecer ohomem, se deve ir além da anatomia e da fisiologia.Não é de um conhecimento sobre o homem que se tratae, sim, do conhecimento do homem. Seria outro modo defalar sobre a determinação social do processo saúde-doença. Pensamos genericamente sobre condições devida e saúde, e sempre articulamos a essas categorias asvariáveis renda, trabalho, moradia, educação, transporte,acesso à informação etc. Mas também dizemos que issoé variável segundo os grupos e as classes sociais, o queimplica considerar sua distribuição segundo modos devida. Esses são todos modos de ser do homem, os modospráticos de existir, e já vemos que então o modo de serdo homem e a saúde dele vem a ser uma só e mesmacoisa. É pelo modo de ser que podemos compreender odesgaste do corpo do homem ou sua capacidade derecuperação, as possibilidades de morrer mais precoceou mais tardiamente. Ou, dizendo de outro modo,adoecemos de vida e morremos de vida, seja da vida quetemos ou da que nos é facultada ter, tanto quantoadoecemos (ou morremos) de clínica e de normalidade.Isto serve seja para o operário da construção civil sejapara a cantora famosa.

Sem dúvida não estamos diante do simples; é dacomplexidade que se trata. O simples é mais facilmenteordenável e em geral não é dotado de ambigüidade; acomplexidade é própria das estruturas caóticas (Piaget,1970), isto é, as em aparente desordenamento, e nuncase dá sem que se produzam ruídos e leituras díspares. É,propriamente, o caso de que estamos tratando, pois serianeste conhecimento sobre o homem e do homem que seradicaria a possibilidade das práticas interdisciplinares.Por isso se diz que o termo saúde é ambíguo e carregamúltiplos significados; e então isto vem a significar,concordando com Nunes (1995), que estamos diante deum problema epistemológico crucial e da mais altarelevância: o fato de que nenhuma disciplina isolada epor si só dá conta desse objeto.

b. Projetos de sociedadeÉ possível que o aspecto mais notável da Saúde

Coletiva é dar-se, de outra maneira, como movimentosocial. Isto a diferenciaria radicalmente da concepção edas inespecíficas práticas de saúde pública. Talvez aquiradique a explicação do porquê numerosas vezes essetermo ser referido como “invenção brasileira”. Sem

dúvida, a denominação recente __ data de 1979 __ foiuma forma de aglutinar diversas experiências em várioscampos do saber e da prática política em saúde. Foi noâmbito das lutas políticas dos anos 70 e 80, da luta con-tra a opressão e a ditadura, conduzida sob a égide dasliberdades democráticas, que grupos de profissionais desaúde, professores universitários, pesquisadores eestudantes se aliaram ao movimento popular e dostrabalhadores para reivindicar melhores condições de vidapara a população. São criticadas as políticas públicasde saúde, a estruturação dos serviços médicos e a própriamedicina. São apontadas as falhas estruturais do modeloimplementado pelo regime militar, a centralização e averticalização dos programas, as políticas definanciamento, a formação de recursos humanos, e todasas iniqüidades da ditadura e todas as fraudes do sistemanacional de saúde são trazidas à tona. Sucedem-se asconferências, os encontros regionais e locais,movimentam-se categorias e profissões, animam-se ossindicatos. Toma corpo o Movimento da ReformaSanitária. A 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986,é o marco a delimitar o “antes” e o “depois” na históriadas políticas de saúde no Brasil. Uma espécie de comitênacional da reforma é instalado e organiza a minuta docapítulo de saúde da Constituição Federal de 1988.

Estas características do Movimento da ReformaSanitária são, de fato, únicas. Não são exclusivas, já quesabemos do curso da Reforma Sanitária Italiana, paraficar no exemplo mais famoso. Ambos, mas sobretudo oitaliano, se basearam fortemente no movimento sindicalde origem operária. Mas há outros exemplos demovimentos que acabaram por articular os trabalhadoresda saúde a específicas pautas sociais e políticas, como éo caso da luta antimanicomial, gerada a partir doquestionamento do poder da psiquiatria. Elas emergiramno contexto das lutas democráticas mundiais que emturbilhão abalaram a estabilidade do poder internacionalda burguesia. Basta lembrarmos das jornadas de 1968e da Guerra do Vietnã, e de tudo o que então eposteriormente veio a ser denominado de contra-cultura.Se estes são exemplos passados, a história se repete. Edesde sempre são evidentes as ligações que colocam omovimento público da saúde articulando os trabalhadoresdo setor às pautas ou necessidades de grupos sociais oucomunidades (Stern, 1983; Rosen, 1983).

Enfim, é porque a Saúde Coletiva não pode furtar-seao compromisso com a vida que então, na sua expressãoprática de sujeito, vem a se posicionar sobre a balaustradada história e dela tenta, prospectivamente, divisar o fu-turo. Este sujeito é sujeito constituído também ele pelaideologia. São modos de racionalizar o presente (nassucessivas explicações sobre a crise da saúde dasociedade ou de como caminha o SUS), as apropriaçõesda economia política que visam explicar o momento doCapital (ou o que se denomina, correta ou incorretamente,neo-liberalismo), e o que viria a ser para nós __ dado o

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grau de incerteza no presente que dificulta estimar o fu-turo __ uma sociedade mais justa e democrática.

c. Produção de sentidoEstes comentários precedentes fundem-se

notavelmente em seus planos constituidores. De um lado,a interdisciplinaridade reclama não apenas oatravessamento de fronteiras, mas antes a recriação daslinguagens dos objetos. Ora, o objeto dessa saúdecoletiva, que se quer interdisciplinar, seria o própriohomem e sua realidade, já vimos. Desse modo é queneste campo sujeito e objeto se vêem confundidos, poiso que pesquisa e o que é pesquisado são dotados damesma natureza. Sobre isso sabemos também haverinterdição doutrinária no esquema positivista e, assim,dizer que sujeito e objeto se vêem confundidos é já meiaheresia. De fato, no específico âmbito desta forma deciência preza-se ao máximo a disjunção entre um e outro,embora de difícil, senão impossível, realização. Hámotivos para isso. É sempre dado como exemplo deobjetividade na pesquisa o caso da Astronomia. Isto é,que somente a Astronomia poderia encaminhar aproposição do objeto em estado de pura objetivação,pois é fato não haver nenhuma possibilidade de se veremconfundidos um e outro. Por isso se afirmava, e desdeDiderot, que uma espécie cega não faria astronomia,porque a condição para evitar a confusão seria apenasobservar. Nesta posição, preservam-se as naturezas deambos, pois o processo de conhecer seria meramentesensóreo, isto é, com o uso apenas dos sentidos. E, noentanto, mesmo separados como aparentemente seacham, seria importante interrogar o Astrônomo e saberdos seus sonhos e dos seus projetos, da sua linguagem edo seu círculo de amigos e colegas de trabalho, do quefalam entre si, do modo como constroem o conhecimentodaqueles objetos, como se os desenham, como enfimeles emergem na consciência do pesquisador e vêm asignificar no grupo de pesquisa. Estaríamos falando,respondidas essas interrogações todas, da subjetividadedo cientista; e que, agora internalizado, o objeto daAstronomia será recomposto como idéia previamente àsua objetivação. Por isso, fala-se em representação ouna coisa representada.

Torna-se claro a partir deste exemplo o movimentodialético que orienta as relações sujeito-objeto. O casoda Astronomia é em si interessante porque o que se dizdela é significativo para qualquer outra ciência. E mesmodiante de tão formidável objetalidade, ainda assim oobjeto se vê em deslizamento por entre as dobras dopensamento, bem no interior das contradições que selocalizam entre o pensar e o agir. É verdadeiramenteinstigante perceber, assim, que para além da simplesrepresentação do objeto é do seu significado que estamosfalando, é da produção de um sentido que venha a seencaixar também ele junto aos demais sentidos esignificados que incessantemente os homens em

sociedade elaboram. Os astros do céu têm para nós,contemporâneos, leituras bastante diferenciadas das dosnossos ancestrais, não bastava que já são diferentes seestamos entre yanomamis, iorubas, ioguis ou chineses.

Ora, se é do homem que tratam os discursos da SaúdeColetiva é imediatamente da vida do homem que elesdizem respeito, vida que então deverá ser significada.Por isso, são coalescentes, ao lado dainterdisciplinaridade, os projetos de sociedade e as visõesdo futuro. Nesta teia complexa de relações e de produçãoincessante de subjetividade localiza-se o terceirocomponente desta saúde que se imagina tão radicalmentepública. E se ela fosse se afastar daquela outra saúde tãoinespecificamente pública, seria pelo fato de poderincorporar sujeito e objeto do conhecimento na mesmaespiral. É que no espaço da Saúde Coletiva agora o objetopode falar e pode manifestar sua vontade, e de certo modosempre falou e sempre manifestou independentemente desaber se o escutamos. É o caso mesmo dos movimentospopulares na saúde, das comissões gestoras e dosconselhos, e seria também a organização dos doentes, talcomo observamos com os pacientes crônicos (hipertensos,politransfundidos e outros).

Mas seria sobretudo no âmbito dos movimentos sociaisde caráter amplo que encontraríamos a manifestaçãodessa emergência. É o caso do movimento feminista,desde sempre em permanente conflito com a DisciplinaGinecológica. Assim, tanto as mulheres quanto os(as)pesquisadores(as) desta específica correlação, submetemà crítica não apenas os procedimentos clínicosginecológico-obstétricos (considerados em muitos casosinvasivos ou abusivos e violentos) mas antes propõem,simplesmente, a reapropriação do corpo da mulher pelamulher, o que significa o questionamento das políticasde contracepção __ que resultou em milhões deesterilizações mais ou menos “induzidas” __ bem comocoloca em cena a questão do aborto, a do amor, a darelação homem-mulher, a do casamento etc, e tudo oque pode ser interpretado como relações de gênero; trata-se ao fim e ao cabo de discutir e pôr em causa a própriasexualidade feminina e, no limite, a da sociedade comoum todo (porque os homens viram-se, finalmente,confrontados com eles mesmos e com seus fantasmas).Poderíamos do mesmo modo falar das numerosasorganizações de saúde mental e da luta contra omanicômio, dos grupos de orientação homoerótica quese formaram em torno da síndrome da imunodeficiênciahumana adquirida, do movimento negro (que na saúdecomparece com a anemia falciforme ou a declaração dacor da pele ou a etnia nos inquéritos populacionais, alémde outras correlações), das populações indígenas etc.

Essas correlações deveriam nos conduzir,inelutavelmente, a finalmente considerar o tema daliberdade humana, que encontraria no mundo do trabalhoe na liberdade operária o ponto de alavancagem para alibertação de toda a sociedade.

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4. Considerações finais4. Considerações finais4. Considerações finais4. Considerações finais4. Considerações finaisFalamos até agora de conceitos, é verdade, mas

igualmente falamos de política e de relações de poder. Éque parece não fazer sentido realizar um trabalho, sejade investigação ou de assistência, sem que a consciênciasocial do trabalhador da saúde esteja presente e indiqueque a ação prática que realiza deve estar voltada para apromoção do bem. Isto implica considerar questões taiscomo classes e diferenças sociais, eqüidade, justiça,direitos, acesso, possibilidades, capacidade deinformação e de decisão, autonomia e vínculo, que ossujeitos dessa Saúde Coletiva elaboram incessantemente.Por isso, apenas afirmar a vida sem que se considere oque esta viria a ser é colocar o acessório em foco eesquecer o principal. Pois, de que vida __ e de que bem __

podemos falar se estamos aprisionados e se não podemosdecidir do nosso próprio destino?

Concluindo esta explanação, devíamos ressaltar duasposições que podem ser deduzidas do materialprecedente. Primeiro, seria de observar que as práticasde saúde implicam a produção de cuidados. Podíamosfalar em produção de cuidados médicos, de enfermagem,odontológicos etc. Devemos também falar da produçãode cuidados coletivos. Há um modo de trabalhar nessaspráticas que as diferenciam umas das outras. Sem dúvida,todos reconhecemos que o trabalho do enfermeiro não éo mesmo feito pelo pediatra. Esses profissionais nãoutilizam os mesmos meios nem as mesmas técnicas detrabalho. Em segundo lugar, devemos observar que oproblema do enfermeiro não é o mesmo que o dopediatra. Portanto, podemos afirmar que então o modode trabalhar em saúde é diferente segundo a qualificaçãodo trabalhador e, mais, que o problema a ser enfrentado__ ou a teoria do problema __ é diferente para cada umadessas categorias. De qualquer modo, embora diferentes,devem essas teorias ser subsumidas e ressignificadas pelasaúde coletiva.

A produção do conhecimento em saúde coletivaguarda estreita relação com essas três categorias, a saber,a interdisciplinaridade, os projetos de sociedade e aprodução de sentido. É por entre esses meandros que apesquisa deve caminhar, e entre elas é que uma ética sedesenvolve, floresce e se reproduz, porque a eticidadeda pesquisa deve significar o desenvolvimento,florescimento e reprodução da consciência social dotrabalhador científico.

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Diretrizes e normas regulamentadoras da pesqui-Diretrizes e normas regulamentadoras da pesqui-Diretrizes e normas regulamentadoras da pesqui-Diretrizes e normas regulamentadoras da pesqui-Diretrizes e normas regulamentadoras da pesqui-sa em seres humanos: as resoluções do CNSsa em seres humanos: as resoluções do CNSsa em seres humanos: as resoluções do CNSsa em seres humanos: as resoluções do CNSsa em seres humanos: as resoluções do CNS

Maria Josefina (Suzy) Leuba Salum1

1.1.1.1.1. ApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoTratar da regulamentação da ética na pesquisa com

seres humanos é reavivar a rota do Movimento da Refor-ma Sanitária no Brasil em direção ao Sistema Único deSaúde (SUS). Realizando as aspirações das lutas comu-nitárias dos anos 70 e instituindo o acesso universal, oSUS capilarizou, na rede de atenção à saúde, estratégi-as de participação e controle social, expressas na consti-tuição dos Conselhos de Saúde, em nível local, estaduale nacional. Naquilo que nos interessa tratar, conferiu outrapossibilidade de existência ao velho Conselho Nacionalde Saúde (CNS), até então distanciado da tarefa de con-trole social que lhe seria atribuída na reviravolta da saú-de.

Consolidado o SUS, em agosto de 1990, o Decreto99438/90 criou um novo CNS, deixando para trás o tra-ço normatizador que marcara sua trajetória por mais de40 anos. Delineava-se uma instância de defesa e con-dução do interesse geral da sociedade, parte do conjun-to de instituições empenhadas em pleitear a inclusão dosdireitos sociais como tema prioritário da agenda públi-ca. No interior do CNS e a partir dele se estabeleceu odebate nacional acerca das exigências éticas na pesqui-sa como questão social, uma das ferramentas para con-cretizar o exercício do controle social da produção emsaúde.

Recorde-se que, desde 1988, o CNS já havia delibe-rado pela formação de Comitês de Ética Médica paraacompanhar as pesquisas médicas envolvendo seres hu-manos, (Res.01/88), marco importante no trajeto deformalização das relações entre ética e pesquisa no cam-po da saúde. Foi revista em 1995, quando nascia aBioética pública, responsável pelo desafio de enfrentaros novos problemas sanitários que se consolidavam naúltima década do sec. XX - desdobramentos da transiçãoepidemiológica e do agravamento das tensões e desi-gualdades sociais geradas pelo desmonte do Estado pro-vedor que nucleou o processo de globalização. Nessadireção, os documentos legais daí em diante formuladospassaram a incorporar as aspirações de um campo deconhecimentos que integrou saúde e cidadania, concre-tizando a ética da responsabilidade técnico-científica,social e moral.

Entre outras tantas atribuições, ao novo CNS foi des-tinado: a) acompanhar o processo de desenvolvimento eincorporação científica e tecnológica na área de saúde,visando à observação de padrões éticos compatíveis como desenvolvimento sociocultural do país e b) desenvolvernormas sobre ética em pesquisas envolvendo seres hu-manos e outras questões no campo da Bioética e acom-

panhar sua implementação.Para que as atribuições que lhe estavam sendo desti-

nadas adquirissem vida própria, o CNS criou, em 1995,(Res.170/95) , o grupo executivo de trabalho com carátertransdisciplinar e transetorial2 - o GET, coordenado peloProf. Dr. William Saad Hossne - que produziu um primei-ro documento legitimado num debate democrático so-bre ética e bioética que se estendeu aos amplos setoresda sociedade, transcendendo o espaço da academia eregulamentado na Res.173/95 do CNS.

Assim, a Res.196 de 16/10/1996, instituindo a Co-missão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), foi es-pelho de um processo que refletiu, com grande margemde detalhamento, as exigências éticas para nortear apesquisa no campo da saúde. Emanadas pelo CNS, asdiretrizes e normas presentes naquela e nas demais reso-luções que vêm complementando a “resolução-mãe”(240/97, 251/97, 292/99, 301/00, 303/00, 304/00,340/04, 346/05 e 347/05) têm sido projetadas comoinstrumentos para aperfeiçoar os padrões éticos na cons-tituição de tecnologia e do saber em saúde, traduzindo ointeresse público e garantindo, em última análise, a pos-sibilidade de convivência democrática e participativa entreos espaços sociais de produção de conhecimento e asociedade. Destaque-se que o que se estabelece naRes.196/96 cumpre as disposições da Constituição daRepública Federativa do Brasil de 1988 e da legislaçãonacional e internacional correlata que trataram da pre-servação da dignidade e da integridade humano-societalao longo da segunda metade do sec. XX. No seu escopo,a relação com o controle social é ponto de partida eponto de chegada em todos os aspectos. Como todaformulação normativa, o que lá está disposto será passí-vel de ampliação, ajuste e reordenamento ao longo dostempos, sensível aos embates da realidade, sem, contu-do, ferir os princípios fundamentais que vinculam ciên-cia, ética e pesquisa às demandas e necessidades soci-ais em saúde no campo da saúde.

1 Enfermeira de Saúde Pública, Prof. Dr. Inativo do Departamento deEnfermagem em Saúde Coletiva da EEUSP, Membro Externo doComitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde – SES – SP demar. de 2004 a dez. de 2004

2 Por mérito, reconhecendo aqueles que foram os integrantes do gru-po, transcrevo aqui a nota de rodapé em que o Prof. William SaadHossne (HOSSNE, W.S., op.cit., p. 100) discrimina a composiçãodo GET: William Saad Hossne (coord.), Albanita Viena de Oliveira,Alvaro Antonio da Silva Ferreira, Antonio Fernando Infantosi, ArturCustódio Moreira de Souza, Corina Bontempo Duca de Freitas,Fátima Oliveira, Jorge Bermudez, Leocir Pessini, Marília BernardesMarques, Omiltom Visconde, Sergio Ibiapina Ferreira da Costa,Simone Nogueira, Márcio Fabri dos Anjos.

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2.2.2.2.2. PPPPPrincípios gerais na incorporação das exigên-rincípios gerais na incorporação das exigên-rincípios gerais na incorporação das exigên-rincípios gerais na incorporação das exigên-rincípios gerais na incorporação das exigên-cias éticas no trabalho de pesquisacias éticas no trabalho de pesquisacias éticas no trabalho de pesquisacias éticas no trabalho de pesquisacias éticas no trabalho de pesquisa

2.1 O atendimento às exigências éticas em pesquisacom seres humanos especialmente no campo da SaúdeColetiva – que não se desvale da contribuição relevantedo campo da Saúde Pública e da Epidemiologia Clássi-ca, mas que agrega as diretrizes da Teoria da Determi-nação Social do Processo Saúde-Doença e os encami-nhamentos da Epidemiologia Crítica - deve ser entendi-do como uma ferramenta que salvaguarda e valoriza ocompromisso e a responsabilidade social e pública dopesquisador e das instituições sociais a que se reporta,no sentido de:

a) tratar os indivíduos, agrupados em classes sociaisou sob quaisquer outras categorias de análise do espaçosocial (gênero, etnia, faixa etária, entre tantas outraspossibilidades), com respeito e justiça, ponderando limi-tes e possibilidades, minimizando riscos e maximizandobenefícios, no sentido de não causar nenhum tipo dedano previsível;

b) direcionar a produção de conhecimentos para osproblemas fundamentais em Saúde Coletiva, detectadosativamente a partir das demandas sociais por interven-ção em saúde.

Vale aqui trazer à baila a proposta defendida peloProf. Fermin Roland Schramm de integrar os princípiosda Bioética da Proteção ao campo da Saúde Pública,articulando responsabilidade moral e eficáciaprogramática, respeitando, as diversidades sociais e re-cuperando a competência do Estado em proteger seuscidadãos.

2.2 O atendimento às exigências éticas na pesquisaenvolvendo seres humanos não deve constituir mera for-malidade na vida do pesquisador e no trajeto investigativoem que se envolve o corpo de estudiosos do campo dasaúde. Exige rigor metodológico, seja no estudo cuidado-so da bibliografia, seja na circunscrição minuciosa do pro-blema e objeto de estudo, seja na delimitação criteriosada realidade a ser investigada, na eleição dos métodos etécnicas de coleta ou de análise das informações colhidase/ou observadas. Implica dedicar-se aos autores que dis-cutem a teoria da pesquisa - ou ainda sair à procura deoutros espaços formais e informais de discussão acercadas questões propriamente teórico-metodológicas, masrequer estudo e conhecimento detalhado dos documen-tos formulados pela CONEP, sancionados pelo CNS ehomologados pelo Ministro da Saúde e que podem serfacilmente acessados no site da CONEP (http://conselho.saude.gov.br/comissao/eticapesq.htm).

2.3 No atendimento às exigências éticas na pesquisaenvolvendo seres humanos, o pesquisador, ao estruturarseu projeto de pesquisa, deve instruir-se no campo daBioética, construindo sua autoridade no assunto, pois,também nesse campo, deve ele “saber muito bem” osfundamentos do que deverá cumprir para preservar ointeresse dos sujeitos envolvidos, as demandas e as ne-

cessidades da produção de conhecimento em SaúdeColetiva e, por conseqüência, os seus interesses funda-dos no compromisso e na responsabilidade social e pú-blica que estruturam sua vinculação a este campo deconhecimentos e práticas. Um conjunto apreciável de li-vros e periódicos trata dos temas freqüentemente enfren-tados no campo da pesquisa e da ética em saúde, desta-cando-se um volume precioso de publicações on-line.Vale citar aqui a própria disseminação dos Cadernos deÉtica em Pesquisa, publicação da CONEP, desde1998,(http://conselho.saude.gov.br/comissao/conep/publicacoes_cep.html#caderno1), bem como outros tan-tos documentos e textos cujos sites estão apresentadosno número 4 daquele periódico. Assinale-se que os Ca-dernos reservam uma seção especial (Dúvidas – a res-posta da CONEP) para acolher dúvidas e questõespolêmicas de pesquisadores acerca do cumprimento dasexigências éticas na pesquisa que vale a pena ser con-sultada. Também vale mencionar a consulta à produçãodo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da UnB,que remete a uma produção própria, mas também a pu-blicações internacionais (http://www.bioetica.catedraunesco.unb.br/htm/index_producao.htm). Sem querer pe-nalizar o conhecimento de tantas outras boas fontes deconsulta, privilegiam-se ainda os sites do Centro deBioética do CREMESP que reúne 53 indicações de livrosno descritor para Ética e 11 no descritor para Comitê deBioética (http://www.bioetica.org.br/acervo_biblioteca/li-vros/index.php) e o do Núcleo Interdisciplinar de Bioéticada UFRGS, que conta com uma estrutura bastante com-pleta, favorecendo o aprendizado minucioso do assunto(http://www.bioetica.ufrgs.br/).

3. A concretização das exigências por referência à3. A concretização das exigências por referência à3. A concretização das exigências por referência à3. A concretização das exigências por referência à3. A concretização das exigências por referência àRRRRRes.196/96es.196/96es.196/96es.196/96es.196/96

Dada a especificidade das questões que são tratadasem cada uma das resoluções complementares nesse tex-to, abrimos mão de sua discussão.

No tocante à Res.196/96, valem as observações quese seguem, esquematizando para o leitor um roteiro deestudo e apreensão das normas e diretrizes que elaestabelece.

3.1 PPPPPrimeira observaçãorimeira observaçãorimeira observaçãorimeira observaçãorimeira observação – reconhecimento doconjunto de textos internacionais (Bioética pública) quefundamentam a regulamentação da ética em pesquisaem seres humanos3 (PPPPPreâmbulo da Rreâmbulo da Rreâmbulo da Rreâmbulo da Rreâmbulo da Res.196/96)es.196/96)es.196/96)es.196/96)es.196/96) eassunção do compromisso com os quatro referenciaisbásicos da bioética que regem o controle social da

3 Código de Nuremberg (1947), Declaração dos Direitos do Homem(1948), Declaração de Helsinque (1964 e suas versões posterioresde 1975, 1983 e 1989), Acordo Internacional sobre Direitos Civis ePolíticos (ONU, 1966, aprovado pelo Congresso Nacional Brasilei-ro em 1992), Propostas de Diretrizes Éticas Internacionais para Pes-quisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982e 1993) e Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de EstudosEpidemiológicos (CIOMS,1991). Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, Con-selho Nacional de Saúde, Resolução nº 196. Brasília, 1996.

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produção de conhecimento: autonomia, não maleficência,beneficência e justiça, de modo a assegurar os direitos edeveres que dizem respeito à comunidade científica, aossujeitos da pesquisa e ao Estado.

3.2 Segunda observação –Segunda observação –Segunda observação –Segunda observação –Segunda observação – reconhecimento dosignificado dos termos privilegiados pela resolução-mãe(Cap. I I ), Cap. I I ), Cap. I I ), Cap. I I ), Cap. I I ), que incluem, entre outros, pesquisa,pesquisador responsável, promotor, patrocinador, sujeitoda pesquisa, sintonizando-se com as exigências deconteúdo e de forma.

3.3 TTTTTerceira observação – erceira observação – erceira observação – erceira observação – erceira observação – reconhecimento do que éeticidade em pesquisa, (Cap. III, item 1), Cap. III, item 1), Cap. III, item 1), Cap. III, item 1), Cap. III, item 1), reiterando arelevância social do consentimento livre e esclarecido(autonomia), da ponderação entre benefícios e riscos(beneficência), a preocupação em evitar danos previsíveis(não maleficência) e, finalmente, a consideração que apesquisa deve ter com os interesses envolvidos e suadestinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade).

3.4 Quarta observação – Quarta observação – Quarta observação – Quarta observação – Quarta observação – reconhecimento doconceito de pesquisa (Cap. III, item 2):Cap. III, item 2):Cap. III, item 2):Cap. III, item 2):Cap. III, item 2): todo procedimentode qualquer natureza envolvendo o ser humano, cujaaceitação não esteja ainda consagrada na literaturacientífica (...) os de natureza instrumental, ambiental,nutricional, educacional, sociológica, econômica, física,psíquica ou biológica, sejam eles farmacológicos, clínicosou cirúrgicos e de finalidade preventiva, diagnóstica outerapêutica.

3.5 Quinta observação –Quinta observação –Quinta observação –Quinta observação –Quinta observação – reconhecimento dasexigências éticas mais gerais (Cap. III, item 3, alíneas aCap. III, item 3, alíneas aCap. III, item 3, alíneas aCap. III, item 3, alíneas aCap. III, item 3, alíneas aa fa fa fa fa f), relativas ao trajeto teórico-metodológico que expresseempenho, disciplina intelectual, paciência e humildade,e portanto, revelador de:

a) estudo e apreensão das bases teórico-metodológicas da pesquisa, manifestos num textoque expresse com clareza os propósitos dopesquisador, coerentemente descritos sob umadada perspectiva teórica, denotandoconhecimento sobre o tema a que se referem oproblema e o objeto de estudo;

b) fundamentação teórico-prática e argumentaçãoplausível que justifiquem a necessidade do estudocom seres humanos;

c) previsão de que prevaleçam sempre asprobabilidades dos benefícios esperados sobre osriscos previsíveis;

d) escolha de metodologia adequada, assegurandonão haver vantagens de um procedimento sobre ooutro, se houver indicação de constituição degrupos experimentais e de controle ou necessidadede utilização de placebo.

3.6 Sexta observaçãoSexta observaçãoSexta observaçãoSexta observaçãoSexta observação – reconhecimento dasexigências éticas relativas à interação com os sujeitos dapesquisa (Cap. III, item 3, alíneas g a r)Cap. III, item 3, alíneas g a r)Cap. III, item 3, alíneas g a r)Cap. III, item 3, alíneas g a r)Cap. III, item 3, alíneas g a r), a saber:

a) indispensabilidade do termo de consentimento livree esclarecido (TCLE) do sujeito da pesquisa e/ouseu representante legal (conteúdo, forma e

encaminhamento, expostos no Cap. IVCap. IVCap. IVCap. IVCap. IV);b) provisão de recursos que garantam o bem-estar

dos sujeitos da pesquisa e de procedimentos queassegurem confidencialidade, privacidade, proteçãoda imagem e não estigmatização, e também a nãoutilização das informações em prejuízo das pessoase/ou das comunidades, em termos de auto-estima,de prestígio e/ou econômico – financeiro, prevendo,nas pesquisas de rastreamento, condições deacompanhamento, tratamento ou de orientação,conforme o caso, demonstrando a preponderânciade benefícios sobre riscos e custos;

c) adoção de critérios que privilegiem preferencial-mente indivíduos com autonomia plena, a menosque a investigação possa trazer benefícios diretosaos vulneráveis, assegurando-se direitos e proteçãoà sua vulnerabilidade e incapacidade legalmentedefinida;

d) respeito às diversidades de todas as naturezas,prevendo-se sempre que possível extensão dosbenefícios do estudo, mesmo após o seu término,explicitando-se no plano de pesquisa a disposiçãode incentivar ou estimular mudanças de costumesou comportamentos, caso esse seja um benefíciono interesse da comunidade;

e) previsão de comunicado dos resultados dapesquisa às autoridades sanitárias no interesse decontribuir para a melhoria das condições de saúdeda coletividade, com o cuidado de não estigmatizare não ferir a auto-estima da população estudada;

f) garantia de inexistência de conflito de interesseentre as partes envolvidas, lembrando que, paraalém de interesses econômicos, podem estar emjogo interesses pessoais e científicos, que nãopodem e não devem ser privilegiados naformulação do projeto de pesquisa.

3.7 Sétima observaçãoSétima observaçãoSétima observaçãoSétima observaçãoSétima observação – reconhecimento de outrasexigências (Cap. III, item 3Cap. III, item 3Cap. III, item 3Cap. III, item 3Cap. III, item 3, alíneas s a zalíneas s a zalíneas s a zalíneas s a zalíneas s a z) relativas a:::::

a) compromissos e vantagens na condução depesquisas desenvolvidas do exterior ou comcooperação estrangeira, observando-se asexigências da Declaração de Helsinque erespondendo às necessidades de treinamento depessoal no Brasil, para que o país possa desenvolverprojetos similares de forma independente;

b) utilização de material biológico e dos dados obtidosna pesquisa;

c) desenvolvimento de pesquisas realizadas emmulheres em idade fértil ou em mulheres grávidas;

d) natureza da participação dos pesquisadores quandose tratar de estudos multicêntricos;

e) descontinuidade do estudo e prerrogativa doscomitês de ética em pesquisa (CEP) em avalizar aseventuais razões para tal.

3.8 Oitava observação –Oitava observação –Oitava observação –Oitava observação –Oitava observação – sobre o TCLE: conteúdo,forma e encaminhamento (Cap. IVCap. IVCap. IVCap. IVCap. IV, itens IV, itens IV, itens IV, itens IV, itens IV.1.1.1.1.1, alíneas aaaaa

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a iiiii, IVIVIVIVIV.2, .2, .2, .2, .2, alíneas a a a a a a d,d,d,d,d, e IVIVIVIVIV.3).3).3).3).3). Antes de tratar danormatização do TCLE, valem algumas observações. Aprimeira é a de que o TCLE deve sistematizar o conjuntode esclarecimentos necessários à garantia dos princípioséticos sob os quais se assenta o campo da Bioética. Nele,o pesquisador demonstra o respeito pela autonomia dosujeito, pactuando direitos e deveres de ambas as partes.Assim sendo, a segunda observação é a de que suaelaboração não deve ser encarada como o cumprimentode uma receita simbólica. Como lembrou o Prof. PauloFortes , a formulação do TCLE constitui processoprocessoprocessoprocessoprocesso no quala apresentação e assinatura do documento são apenasetapas que formalizam a concordância, a livre opçãodos sujeitos, indivíduos ou grupos por si e/ou por seusrepresentantes legais em participar da pesquisa.

Como disposto no Cap. IV (item 2)Cap. IV (item 2)Cap. IV (item 2)Cap. IV (item 2)Cap. IV (item 2), o documentodeve ser: elaborado pelo pesquisador responsável;aprovado pelo CEP que referenda a investigação; assinadoou identificado por impressão dactiloscópica, por todos ecada um dos sujeitos da pesquisa ou por seusrepresentantes legais; elaborado em duas vias, sendo umaretida pelo sujeito da pesquisa ou por seu representantelegal e uma arquivada pelo pesquisador. Ainda, comodestaca o item 3item 3item 3item 3item 3, os dados obtidos a partir dos sujeitosda pesquisa não poderão ser usados para outros fins queos não previstos no protocolo e/ou no consentimento.

Embora pareça uma tarefa simples, não é incomumque os CEPs recebam documentos com problemas.BONTEMPO; LOBO (2001), identificaram deficiênciascomo: ausência de nome/endereço pesquisador,linguagem pouco acessível/pouco clara, inadequaçãona menção ou falta de menção no que se refere aoressarcimento, informações de risco incompletas/inadequadas, indenização por danos não mencionadaou inadequadamente tratada, versão final nãoapresentada e até ausência de consentimento doresponsável (quando se trata de grupo vulnerável) e folhade assinaturas separada de texto do TCLE. Nessa direção,a recomendação (item 1) item 1) item 1) item 1) item 1) é a de que:

a) se estruture um texto de fácil compreensão,eliminando termos que não façam parte dorepertório verbal próprio da comunicação dapopulação pesquisada o que é uma exigência enão recomendação;

b) do check-list relativo aos aspectos abordadosdeverão constar:

justificativa, objetivos e procedimentosutilizados na pesquisadesconfortos e riscos possíveis e benefíciosesperadosmétodos alternativos existentesforma de acompanhamento e assistência, assimcomo seus responsáveisgarantia de esclarecimentos sobre ametodologia, antes e durante o curso dapesquisa, informando a possibilidade de

inclusão em grupo controle ou placeboliberdade do sujeito se recusar a participar ouretirar seu consentimento, em qualquer fase dapesquisa, sem penalização alguma e semprejuízo ao seu cuidadogarantia de sigilo assegurando privacidade dossujeitos quanto aos dados confidenciaisformas de ressarcimento das despesas emvirtude da participação na pesquisaformas de indenização diante de eventuaisdanos

c) alguns procedimentos diferenciados deverãomerecer a atenção do pesquisador em situaçõesemblemáticas. É o caso das pesquisas queenvolvem crianças, pessoas incapazes de tomardecisão sobre sua participação na pesquisa,pessoas institucionalizadas sob a influência deautoridade, pessoas com morte encefálica ouainda pesquisas dirigidas a comunidadesdiferenciadas como é o caso das populaçõesindígenas. Sobre elas, legislação específica estátraduzida na Res.304/00. Em relação às demais,exigências e condições específicas estão previstasno item 3 item 3 item 3 item 3 item 3 da Res. 196/96 intencionalmentedirecionadas à anuência dos sujeitos ou de seusrepresentantes legais.

3.9 Nona observação – Nona observação – Nona observação – Nona observação – Nona observação – reconhecimento dossubsídios próprios para a avaliação dos riscos e benefíciosda pesquisa (Cap. VCap. VCap. VCap. VCap. V).

a) define-se a admissibilidade do estudo quando:possibilitar a produção de conhecimento paraentender, prevenir ou aliviar um problema que afeteo bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outrosindivíduos; o risco se justifique pela importância dobenefício esperado; gerar benefício maior, ou nomínimo igual, a outras alternativas já estabelecidaspara a prevenção, o diagnóstico e o tratamento;

b) estipula-se que - ainda que não se obtenhabenefício direto - o estudo ofereça condições deserem bem suportadas pelos sujeitos da pesquisa,considerando sua situação física, psicológica, so-cial e educacional, exigindo que o pesquisadorresponsável suspenda a pesquisa imediatamente aoperceber algum risco ou dano à saúde do sujeitoparticipante da pesquisa, conseqüente à mesma,não previsto no termo de consentimento. Do mesmomodo, tão logo constatada a superioridade de ummétodo em estudo sobre outro, o projeto deveráser suspenso, oferecendo-se a todos os sujeitos osbenefícios do melhor regime;

c) assinala-se a necessidade de informação ao CEPacerca de quaisquer intercorrências, dasresponsabilidades do pesquisador, do patrocinadore da instituição, no caso de danos, e dos direitosdos sujeitos de serem indenizados nesse caso, in-clusive suportada a interposição de recursos legais,

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na eventualidade de não lhes ser asseguradaindenização.

3.10 Décima observaçãoDécima observaçãoDécima observaçãoDécima observaçãoDécima observação – reconhecimento dasexigências formais de apresentação (Cap. VICap. VICap. VICap. VICap. VI) relativas:

a) ao protocoloprotocoloprotocoloprotocoloprotocolo a ser submetido à revisão ética e queinclui um volume de informações que vão desde aapresentação de plano completo e detalhado, atéa explicitação de critérios para suspender ouencerrar a pesquisa. A apresentação do orçamentofinanceiro é peça fundamentalllll, bem como dedeclaração de que os resultados da pesquisa serãotornados públicos, sejam eles favoráveis ou não.No decorrer do Cap. VICap. VICap. VICap. VICap. VI estão listados os quesitospara o plano e outras informações requeridas,além das aqui destacadas;

b) às informações concernentes ao sujeito dainformações concernentes ao sujeito dainformações concernentes ao sujeito dainformações concernentes ao sujeito dainformações concernentes ao sujeito dapesquisa,pesquisa,pesquisa,pesquisa,pesquisa, seguindo classificação do IBGE,incluindo outros dados de caracterização, expondoas razões para a utilização de grupos vulneráveis,quando for o caso;

c) aos métodosmétodosmétodosmétodosmétodos que afetem diretamente os sujeitosda pesquisa;

d) às fontes de material de pesquisafontes de material de pesquisafontes de material de pesquisafontes de material de pesquisafontes de material de pesquisa, indicando se omaterial será obtido especificamente para ospropósitos da pesquisa ou se será usado paraoutros fins;

e) ao recrutamento de indivíduosrecrutamento de indivíduosrecrutamento de indivíduosrecrutamento de indivíduosrecrutamento de indivíduos e procedimentos aserem seguidos, indicando critérios de inclusãocritérios de inclusãocritérios de inclusãocritérios de inclusãocritérios de inclusãoe exclusãoe exclusãoe exclusãoe exclusãoe exclusão;

f) ao termo de consentimentotermo de consentimentotermo de consentimentotermo de consentimentotermo de consentimento, que deve ser específico,apreciado pelo CEP, incluindo informações sobreas circunstâncias de sua obtenção e responsávelpor ela, bem como sobre o que será expresso aossujeitos da pesquisa;

g) à descrição de qualquer riscodescrição de qualquer riscodescrição de qualquer riscodescrição de qualquer riscodescrição de qualquer risco, avaliandopossibilidade e gravidade, medidas para proteçãoou minimização, descrevendo as medidas paraassegurar os necessários cuidados à saúde, no casode danos aos indivíduos. Inclui-se nessa descriçãoos procedimentos para monitoramento da coletaprocedimentos para monitoramento da coletaprocedimentos para monitoramento da coletaprocedimentos para monitoramento da coletaprocedimentos para monitoramento da coletade dadosde dadosde dadosde dadosde dados para prover a segurança dos indivíduos,incluindo as medidas de proteção àconfidencialidade;

h) à previsão de ressarcimento de gastosprevisão de ressarcimento de gastosprevisão de ressarcimento de gastosprevisão de ressarcimento de gastosprevisão de ressarcimento de gastos aos sujeitosda pesquisa, estipulando que a importânciareferente não poderá ser de tal monta que possainterferir na autonomia da decisão do indivíduo ouresponsável de participar ou não da pesquisa;

i) à apresentação de apresentação de apresentação de apresentação de apresentação de Curriculum vitaeCurriculum vitaeCurriculum vitaeCurriculum vitaeCurriculum vitae do pesquisadorresponsável e dos demais participantes e termo determo determo determo determo decompromissocompromissocompromissocompromissocompromisso do pesquisador responsável e dainstituição de cumprir os termos da Res.196/96 quetomam por referência.

3.11 Décima primeira observaçãoDécima primeira observaçãoDécima primeira observaçãoDécima primeira observaçãoDécima primeira observação – reconhecimentodas especificidades dos CEPs (Cap. VIICap. VIICap. VIICap. VIICap. VII), a saber:

a) da competência da Instituiçãocompetência da Instituiçãocompetência da Instituiçãocompetência da Instituiçãocompetência da Instituição em organizá-los e

apoiar o desenvolvimento de seu trabalho;b) da composiçãocomposiçãocomposiçãocomposiçãocomposição (colegiado transdisciplinar com

número não inferior a 7 membros), incluindo, pelomenos, um representante dos usuários dainstituição, possibilitando colaboradores ad hocquando a situação o exigir, dispondo sobre omandato e escolha dos membros;

c) da independência no exercício de suas funçõesindependência no exercício de suas funçõesindependência no exercício de suas funçõesindependência no exercício de suas funçõesindependência no exercício de suas funçõese a obrigatoriedade de constituir um arquivo emque se mantenha a guarda confidencial dosprotocolos examinados por um prazo de pelomenos 5 anos;

d) das atribuiçõesatribuiçõesatribuiçõesatribuiçõesatribuições: revisão de todos os protocolosde pesquisa envolvendo seres humanos e seuseguimento, inclusive os multicêntricos, exigindoque a revisão não seja dissociada da sua análisecientífica, dotando-lhe a responsabilidadeprimária pelas decisões sobre a ética da pesquisaa ser desenvolvida, garantia e resguardo daintegridade e dos direitos dos voluntáriosparticipantes; emissão de parecer consubstanciadopor escrito, no prazo máximo de 30 (trinta) dias,identificando com clareza o ensaio, documentosestudados e data de revisão;

e) das categorias de enquadramento dos projetoscategorias de enquadramento dos projetoscategorias de enquadramento dos projetoscategorias de enquadramento dos projetoscategorias de enquadramento dos projetos:aprovado; pendente (protocolo aceitável, mas comdeterminados problemas no seu desenvolvimento,no TCLE, ou em ambos, demandando revisãoespecífica, modificação ou inclusão de informaçãorelevante, o que deverá ser atendido em 60 diaspelo pesquisador); retirado (transcorrido o prazo,permanece a pendência); não aprovado; aprovadoe encaminhado, com o devido parecer, paraapreciação pela Comissão Nacional de Ética emPesquisa - CONEP/MS, nos casos específicosprevistos na Res. 196/96;4

f) da natureza dos CEPnatureza dos CEPnatureza dos CEPnatureza dos CEPnatureza dos CEPs: s: s: s: s: órgãos consultivos eeducativos, em comunicação regular epermanente com a CONEP/MS, fomentando areflexão em torno da ética na ciência, acolhendodenúncias de abusos ou notificação sobre fatosadversos que possam alterar o curso normal doestudo, decidindo pela continuidade, modificaçãoou suspensão da pesquisa, adequando, senecessário, o TCLE, requerendo instauração desindicância à direção da instituição em caso dedenúncias de irregularidades de natureza ética nas

4 O levantamento citado anteriormente neste texto menciona comoproblemas mais gerais apresentados pelos projetos pendentesprojetos pendentesprojetos pendentesprojetos pendentesprojetos pendentes: pro-tocolo incompleto/informações incompletas, TCLE inadequado, au-sência de intervenção para melhor cuidado do sujeito, nº de sujei-tos não definido, não menção aos centros envolvidos, falta de ga-rantia de acesso à continuidade do tratamento, orçamento incom-pleto/inadequado, falta de análise de risco/benefício, indicação deuso de material biológico para outros fins, necessidade de esclare-cimentos/informações incompletas sobre o tratamento dossujeitos.(Cf. BONTEMPO, C. F.; LOBO, M. op.cit).

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pesquisas e, em havendo comprovação,comunicando à CONEP/MS e, no que couber, aoutras instâncias competentes.

3.12. Décima segunda observação –Décima segunda observação –Décima segunda observação –Décima segunda observação –Décima segunda observação –reconhecimento das normas que regulam a composiçãocomposiçãocomposiçãocomposiçãocomposição(Cap. VIII itens 1 a 3Cap. VIII itens 1 a 3Cap. VIII itens 1 a 3Cap. VIII itens 1 a 3Cap. VIII itens 1 a 3) e atribuiçõesatribuiçõesatribuiçõesatribuiçõesatribuições da CONEP (item 4item 4item 4item 4item 4)e sua relação com o CNSsua relação com o CNSsua relação com o CNSsua relação com o CNSsua relação com o CNS (item 5item 5item 5item 5item 5). Destaca-se acompetência da CONEP na deliberação final de projetosdas áreas especiais, conforme se segue:

genética humanareprodução humanaprojetos que tratem de fármacos,medicamentos, vacinas e testes diagnósticosnovos (fases I, II e III) ou não registrados nopaís (ainda que fase IV), ou quando a pesquisafor referente a seu uso com modalidades,indicações, doses ou vias de administraçãodiferentes daquelas estabelecidas, incluindo seuemprego em combinaçõesprojetos que envolvam a produção deequipamentos, insumos e dispositivos para asaúde novos, ou não registrados no país, mastambém que relacionem-se a formulação denovos procedimentos ainda não consagradosna literaturaprojetos que envolvam populações indígenasprojetos que envolvam aspectos debiossegurançapesquisas coordenadas do exterior ou comparticipação estrangeirapesquisas que envolvam remessa de materialbiológico para o exteriorprojetos que, a critério do CEP, devidamentejustificado, sejam julgados merecedores deanálise pela CONEP

3.13 Décima terceira e última observação - Décima terceira e última observação - Décima terceira e última observação - Décima terceira e última observação - Décima terceira e última observação - datramitação dos protocolos pelas instâncias de análise deprojeto (Cap. IXCap. IXCap. IXCap. IXCap. IX). Destaque-se que todo e qualquer projetode pesquisa envolvendo seres humanos deverá obedeceràs recomendações da Res.196/96 e dos documentosendossados em seu preâmbulo, assinalando-se que aresponsabilidade do pesquisador é indelegável,responsabilidade do pesquisador é indelegável,responsabilidade do pesquisador é indelegável,responsabilidade do pesquisador é indelegável,responsabilidade do pesquisador é indelegável,indeclinável e compreende os aspectos éticos e legaisindeclinável e compreende os aspectos éticos e legaisindeclinável e compreende os aspectos éticos e legaisindeclinável e compreende os aspectos éticos e legaisindeclinável e compreende os aspectos éticos e legais.(Cap. XCap. XCap. XCap. XCap. X, item 1, item 1, item 1, item 1, item 1). A pesquisa não pode ser iniciada antesque se pronuncie o CEP a que foi submetido o projeto(Cap. XCap. XCap. XCap. XCap. X, item 2, item 2, item 2, item 2, item 2). O projeto deve ser desenvolvidoconforme foi delineado na documentação original,cabendo ao pesquisador elaborar e apresentar osrelatórios parciais e final, apresentar dados solicitados peloCEP, a qualquer momento, mantendo em arquivo, sob suaguarda, por 5 anos, os dados da pesquisa, contendo fichasindividuais e todos os demais documentos recomendadospelo CEP e encaminhar os resultados para publicação,com os devidos créditos aos pesquisadores associados eao pessoal técnico participante do projeto (item 2, alíneasitem 2, alíneasitem 2, alíneasitem 2, alíneasitem 2, alíneasaaaaa a a a a a fffff). Estabelece-se ainda que uma eventual interrupção

do projeto ou a decisão de não publicação dos resultadosda pesquisa, devem ser justificadas perante o CEP (itemitemitemitemitem2, alínea g2, alínea g2, alínea g2, alínea g2, alínea g). Finalmente, nos demais itens do Cap IXCap IXCap IXCap IXCap IX(itens 3 a 8itens 3 a 8itens 3 a 8itens 3 a 8itens 3 a 8), dispõe-se sobre a necessidade de que oCEP seja registrado junto à CONEP/MS, estabelecendoinclusive a cococococo-responsabilidade dos CEP-responsabilidade dos CEP-responsabilidade dos CEP-responsabilidade dos CEP-responsabilidade dos CEPs sobre oss sobre oss sobre oss sobre oss sobre osprojetos por ele aprovadosprojetos por ele aprovadosprojetos por ele aprovadosprojetos por ele aprovadosprojetos por ele aprovados no que se refere aos aspectoséticos da pesquisa, reiterando a subordinação dos CEPsubordinação dos CEPsubordinação dos CEPsubordinação dos CEPsubordinação dos CEPsssssà CONEPà CONEPà CONEPà CONEPà CONEP no encaminhamento de projetos que seenquadrarem nas áreas temáticas especiais.

4. Considerações finais4. Considerações finais4. Considerações finais4. Considerações finais4. Considerações finaisA Res.196/96 traz para o campo da pesquisa em

saúde um conjunto de princípios para humanizar aprodução de conhecimentos, salvaguardando aintegridade, a dignidade e os interesses dos sujeitos dapesquisa. O seu cumprimento não pode estar descoladodo trajeto que lhe deu origem, inscrito no movimentoque trouxe para o centro das lutas sociais a concepçãode saúde como direito social e dever do Estado. Constituiferramenta fundamental no exercício do controle social,mas também de proteção e salvaguarda dos interessessociais e da responsabilidade social e pública dospesquisadores e das instituições sociais em atender àsnecessidades de saúde e solucionar problemas de saúde.

Emanada num momento em que a pesquisa em áreasespeciais se ampliava e se complexificava, por vezesdenota uma aparente simplificação ou mesmo omissãono estabelecimento das exigências singulares que devemser atendidas na pesquisa no campo da Saúde Coletiva.

Nessa direção, chama a atenção a necessidade dedebate interno a esse campo que inclua, entre outrasquestões:

4.1 a preocupação em perfilar os riscos e os benefíciosa que estão expostos os sujeitos que participam depesquisas que se valem de métodos qualitativos - comunsno campo da Saúde Coletiva - que, por sua natureza,podem provocar emoções e sentimentos e desencadearrespostas que demandem tratamento diferenciado coma retaguarda da instituição social de saúde a que estávinculada a população pesquisada;

4.2 a preocupação em reconhecer, na condução deestudos epidemiológicos e na interface entre os limitesético-políticos e técnico-científicos, os critérios ejustificativas para a experimentação de novas estratégiasde intervenção ou para a adoção de grupos controle,compatibilizando a exigência de se garantir a minimizaçãode riscos e a maximização de benefícios para a populaçãoestudada, assumindo a responsabilidade social decontrolar e monitorar danos decorrentes;

4.3 a preocupação em avaliar a vinculação socialdos sujeitos da pesquisa – se representativa de espaçossociais públicos ou de espaços privados – noreconhecimento da sua autonomia, quando se estabeleceo contrato público entre pesquisador e sujeito da pesquisa,firmado através do TCLE;

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4.4 a preocupação em estabelecer critérios sociaisde demanda por produção de conhecimento no campoda Saúde Coletiva, estruturados num processo que priorizeos mecanismos de controle social de modo a legitimarética e cientificamente o aperfeiçoamento dosconhecimentos e práticas em Saúde Coletiva.

A Saúde Coletiva nasce sob a perspectiva dedesnaturalização da realidade social e de saúde, aíestabelecendo indubitavelmente sua primeira diretrizético-política, reafirmada no exercício das lutas dostrabalhadores e nas lutas populares pela saúde em nossopaís. A constituição do campo da Ética em Pesquisa naárea da saúde e seus desdobramentos no plano jurídico-institucional trouxeram novas possibilidades deaperfeiçoamento nesse campo, seja por que defrontamos pesquisadores com dilemas até então submersos, sejapor que os fazem recolocar na ordem do dia questõespolêmicas intimamente relacionadas à recuperação doseixos fundantes do movimento teórico e político que,sucedendo a conquista dos direitos individuais – civis epolíticos - integrou a saúde na terceira geração dosdireitos, os direitos de créditos, direitos garantidos atravésdo Estado ou por ele intermediados.

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

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20 BIS#35/Abril_2005

Após a entrada em vigor da RRRRResolução 196/96esolução 196/96esolução 196/96esolução 196/96esolução 196/96, re-lativa a diretrizes e normas éticas para pesquisas realiza-das em seres humanos e a decorrente constituição e fun-cionamento da CONEP, foram emitidas novas resoluçõesque tratam de áreas temáticas especiais, previstas no itemVIII. 4, c da Resolução 196/96. Neste texto tento desta-car alguns pontos de cada uma delas que julgo impor-tante para o conhecimento e a reflexão geral das pesso-as que compõem ou venham a compor os Comitês deÉtica em Pesquisa (CEPs).

A primeira foi a RRRRResolução 251/97esolução 251/97esolução 251/97esolução 251/97esolução 251/97 contendo normasde pesquisa envolvendo seres humanos para a áreatemática de pesquisa com novos fármacos,novos fármacos,novos fármacos,novos fármacos,novos fármacos,medicamentos, vacinas e testes diagnósticos.medicamentos, vacinas e testes diagnósticos.medicamentos, vacinas e testes diagnósticos.medicamentos, vacinas e testes diagnósticos.medicamentos, vacinas e testes diagnósticos.

Refere-se a pesquisas nas fases I, II ou III, ou nãoregistrados no país, ainda que fase IV; a modalidades,indicações, doses ou vias de administração diferentesdaquelas estabelecidas quando da autorização doregistro; a pesquisas com combinações de drogas; aestudos de biodisponibilidade e ou bioequivalência.

Quanto a ela, cabe ressaltar o item 1.4 “Em qualquerensaio clínico e particularmente nos conflitos de interessesenvolvidos na pesquisa com novos produtos, a dignidadee o bem-estar do sujeito incluído na pesquisa devemprevalecer sobre outros interesses, sejam econômicos, daciência ou da comunidade”.

Salientamos a responsabilidade do Pesquisador emcomunicar ao CEP a ocorrência de efeitos colaterais eou de reações adversas não esperadas, como tambémas propostas de eventuais modificações no projeto e oujustificativa de interrupção.

O pesquisador deve detectar e divulgar, o mais cedopossível, os benefícios de um tratamento sobre outro,dando acesso aos resultados de exames e de tratamentoao médico do paciente e/ou ao próprio paciente sempreque solicitado e/ou indicado.

O CEP deve avaliar com rigor as justificativas para ouso de placebo e a eventual suspensão de tratamento(washout), assegurando por parte do patrocinador ou,na sua inexistência, por parte da instituição, ou promotorda pesquisa, o acesso ao medicamento em teste, casose comprove sua superioridade em relação ao tratamentoconvencional.

Em estudos multicêntricos o pesquisador deve,também, na medida do possível, participar dodelineamento do projeto antes de ser iniciado. Esta normaincita o pesquisador brasileiro a fazer parte da construçãointelectual e científica do projeto de pesquisa e que não

Algumas considerações sobre as áreasAlgumas considerações sobre as áreasAlgumas considerações sobre as áreasAlgumas considerações sobre as áreasAlgumas considerações sobre as áreastemáticas especiaistemáticas especiaistemáticas especiaistemáticas especiaistemáticas especiais

Paulo Antonio de Carvalho Fortes1

seja meramente um executor de propostas elaboradasfora de seu âmbito, às quais não pode interferir.

Em julho de 1999, o Conselho Nacional de Saúdeemitiu a RRRRResolução 292/99,esolução 292/99,esolução 292/99,esolução 292/99,esolução 292/99, que diz respeito à áreatemática especial “pesquisas coordenadas do exteriorpesquisas coordenadas do exteriorpesquisas coordenadas do exteriorpesquisas coordenadas do exteriorpesquisas coordenadas do exteriorou com participação estrangeira e pesquisas queou com participação estrangeira e pesquisas queou com participação estrangeira e pesquisas queou com participação estrangeira e pesquisas queou com participação estrangeira e pesquisas queenvolvam remessa de material biológico para o exteriorenvolvam remessa de material biológico para o exteriorenvolvam remessa de material biológico para o exteriorenvolvam remessa de material biológico para o exteriorenvolvam remessa de material biológico para o exterior”.”.”.”.”.

A Resolução trata de pesquisas coordenadas do exteriorou com participação estrangeira: com a colaboração depessoas físicas ou jurídicas estrangeiras; o envio e/ourecebimento de materiais biológicos oriundos do serhumano; o envio e/ou recebimento de dados e informaçõescoletadas para agregação nos resultados da pesquisa;estudos multicêntricos internacionais.

Nela queremos destacar que todas as pesquisasdevem comprovar a participação brasileira e identificaro pesquisador e as instituições nacionais co-responsáveis.Deve haver documento de aprovação emitido por Comitêde Ética em Pesquisa ou equivalente de instituição dopaís de origem, que promoverá ou que também executaráo projeto. Caso não esteja previsto o desenvolvimentodo projeto no país de origem, a justificativa deve sercolocada no protocolo para apreciação do CEP dainstituição brasileira. O Brasil não aceita o duplo stand-ard, que pesquisas que não possam ser realizadas empaíses mais desenvolvidos sejam realizadas aqui, por issoentende que deva haver um único padrão de pesquisasque não discrimine os países em desenvolvimento.

A partir de 2004, a CONEP descentralizou aaprovação da maior parte das pesquisas comparticipação estrangeira, ampliando a responsabilidadedos CEPs. Todavia, por razões estratégicas para o atualmomento do desenvolvimento científico brasileiro,continua a obrigatoriedade da CONEP pelas pesquisasque envolvam Fases I e II, quando forem utilizadosplacebo e washout, quando houver armazenamento ouformação de banco de material biológico e parapesquisas com medicamentos para HIV/AIDS.

Em agosto de 2000, o Conselho Nacional de Saúdeemite a RRRRResolução 304/00,esolução 304/00,esolução 304/00,esolução 304/00,esolução 304/00, que trata de pesquisas queenvolvem populações indígenaspopulações indígenaspopulações indígenaspopulações indígenaspopulações indígenas.

De seu conteúdo destacamos a obrigatoriedade dopesquisador em respeitar a visão de mundo, os costumes,atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social,filosofias peculiares, diferenças lingüísticas e estruturapolítica.1 Doutor em Saúde Pública, Professor da FSPUSP - Departamento dePrática de Saúde Pública

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Outrossim, ter a concordância da comunidade alvoda pesquisa que pode ser obtida por intermédio dasrespectivas organizações indígenas ou conselhos locais,sem prejuízo do consentimento individual.

Em julho de 2000, o CNS emite a RRRRResolução 303/00esolução 303/00esolução 303/00esolução 303/00esolução 303/00,relativa a pesquisas que envolvem a reproduçãoreproduçãoreproduçãoreproduçãoreproduçãohumanahumanahumanahumanahumana, que se ocupam com o funcionamento doaparelho reprodutor, procriação e fatores que afetam asaúde reprodutiva da pessoa humana.

As normas e diretrizes dessa Resolução incidem sobreas pesquisas referentes à Reprodução Assistida,Anticoncepção, Manipulação de Gametas, Pré-embriões,Embriões e Feto e Medicina Fetal.

Em 2004, é aprovada a RRRRResolução 340/04,esolução 340/04,esolução 340/04,esolução 340/04,esolução 340/04, relativaa pesquisas que envolvem genética humanagenética humanagenética humanagenética humanagenética humana.

Tema atual e polêmico, de obrigatoriedade de apro-vação pela CONEP, a Resolução trata das pesquisas demecanismos genéticos básicos, pesquisas em genéticaclínica, em genética de populações, pesquisasmoleculares humanas e sobre terapia gênica e celular,além daquelas referentes à genética do comportamento.

Neste âmbito, todo projeto de pesquisa deve seravaliado no impacto sobre o indivíduo, a família e atotalidade do grupo a que o indivíduo pertença, comotambém deve prever mecanismos de proteção dos dadosvisando evitar a estigmatização e a discriminação deindivíduos, famílias ou grupos.

A ser destacado que os projetos desta área devempossibilitar aos sujeitos de pesquisa a opção de escolherentre serem informados ou não sobre resultados de seusexames. Também que os projetos devem seracompanhados de proposta de aconselhamento genético,quando for o caso.

Ainda, importante, é a norma que responsabiliza opesquisador por esclarecer aos sujeitos de pesquisa, deseu direito em autorizar ou não o armazenamento dedados e materiais coletados e de ter acesso a seus dadosgenéticos, assim como tem o direito de retirá-los debancos onde se encontrem armazenados, a qualquermomento.

Com a preocupação com o princípio ético daprivacidade das informações pessoais, a Resolução afirmaque os dados genéticos de indivíduo identificável nãopoderão ser divulgados nem ficar acessíveis a terceiros,notadamente a empregadores, empresas seguradoras einstituições de ensino.

Também não devem ser fornecidos para cruzamentocom dados armazenados para propósitos judiciais ououtros fins, exceto quando for obtido o consentimento dosujeito da pesquisa.

Em 2005 o CNS emitiu duas resoluções: uma sobreestudos multicêntricos (Res. 346/05) e outra sobrearmazenamento de material biológico (Res. 347/05).

A RRRRResolução 346/05esolução 346/05esolução 346/05esolução 346/05esolução 346/05 entende por projetosprojetosprojetosprojetosprojetosmulticêntricosmulticêntricosmulticêntricosmulticêntricosmulticêntricos, aqueles projetos de pesquisa a seremconduzidos de acordo com protocolo único executadoem diversos centros de pesquisa e realizados por

pesquisador responsável em cada centro, que deveráseguir os mesmos procedimentos. A CONEP analisarásomente o primeiro protocolo, enviado por um doscentros, que deverá conter a lista das instituiçõesparticipantes. Assim, a CONEP, após terem sido atendidaseventuais pendências, enviará o parecer final a este CEPe aos demais centros envolvidos. Ao contrário, se oprotocolo de pesquisa não for aprovado na CONEP parao primeiro centro, não poderá ser realizado em nenhumcentro de pesquisa.

Quanto à RRRRResolução 347/05,esolução 347/05,esolução 347/05,esolução 347/05,esolução 347/05, relativa aoarmazenamento e à utilização de materialarmazenamento e à utilização de materialarmazenamento e à utilização de materialarmazenamento e à utilização de materialarmazenamento e à utilização de material biológicobiológicobiológicobiológicobiológicohumanohumanohumanohumanohumano no âmbito de projetos de pesquisa, cabedestacar que o projeto deve apresentar justificativasquanto à necessidade e à oportunidade de utilização parausos futuros. Deve haver consentimento dos sujeitos dapesquisa doadores do material biológico, autorizando aguarda do material. O armazenamento poderá serautorizado pelo período de 5 anos, quando houveraprovação do projeto pelo CEP e, quando for o caso,pela CONEP, podendo haver renovação mediantesolicitação da instituição depositária, acompanhada dejustificativa e relatório das atividades de pesquisadesenvolvidas com o material. O TCLE deve ser específicopara cada nova pesquisa, mas em caso deimpossibilidade da obtenção do consentimento específicopara a nova pesquisa (doador falecido, tentativasanteriores de contato sem sucesso ou outros) devem serapresentadas as justificativas como parte do protocolopara apreciação do CEP, que dispensará ou não oconsentimento individual.

Finalizando, quero manifestar meu desejo de que todapesquisa realizada com seres humanos atenda o princípioda humanidade, princípio ético formulado pelo filósofoalemão Immanuel Kant: “O homem deve ser sempretratado como um fim em si mesmo e nunca somente comomeio para fins dos outros”. Quer dizer, as pessoas podemservir de sujeitos de pesquisa, podem servir à sociedade, àciência, ao desenvolvimento, porém devemos sempre respeitá-la como um fim em si mesmo e não a utilizando como ummeio de atender nossos interesses de pesquisadores.

RRRRReferências bibliograficaseferências bibliograficaseferências bibliograficaseferências bibliograficaseferências bibliograficas

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22 BIS#35/Abril_2005

Considerações iniciaisConsiderações iniciaisConsiderações iniciaisConsiderações iniciaisConsiderações iniciaisPara tratar desse tema é necessário tecer considerações

sobre duas questões fundamentais referentes ao uso dastécnicas qualitativas na produção de conhecimentos, umaque se refere ao debate entre qualidade e quantidade napesquisa cientifica, o que equivale ao debate entresubjetividade e objetividade, e outra sobre a gênese dapesquisa qualitativa e os pressupostos epistemológicosque a motivaram.

A hipótese que apresento é a de que a pesquisaqualitativa nasce com a preocupação ética de superar adesumanização imposta pela pesquisa quantitativa deorientação positivista, importada das ciências exatas, quereduz o fenômeno humano a fisicidade. E estapreocupação ética pode se desvirtuar em risco à ética napesquisa.

A pesquisa qualitativa é orientada por pressupostosque enfatizam ser o homem de outra ordem, diferentedos fenômenos físicos e que a verdade não está manifestano objeto, mas é objeto para um sujeito, que lhe dásignificado.

Trata-se de uma viva reação à filosofia do sec. XIXque afirma o objeto, a neutralidade do conhecimento edo pesquisador, o qual deve ser despojado desubjetividade.

Um marco histórico importante da gênese da pesquisaqualitativa é o movimento epistemológico que redundouna criação da fenomenologia, em 1900, fruto dapreocupação de Husserl em criar uma metodologiacientífica mais adequada a análise do homem que apositivista, mas tão rigorosa quanto ela. Esse movimentocrítico parte do suposto que o método positivista/quantitativo não possibilita expressar a subjetividade e acriatividade humana, reduzindo o homem à máquina.Além da fenomenologia, ele toma eixos teóricosdiferenciados como o materialismo histórico dialético, ointeracionismo simbólico e, mais recentemente, oconstrutivismo e o construcionismo, dentre outros quesurgem como alternativas fundamentais para se superaras diretrizes e regras do positivismo.

O homem que a pesquisa qualitativa estuda é o dapotência de criação e de liberdade, inclusive da fisicidade.Em lugar de objeto, estuda fenômeno, que é da ordemdo sentido, da imaginação e da criação, fenômeno soft,não acessível imediatamente aos órgãos do sentido.Muitas vezes nem os próprios sujeitos têm consciênciadele.

Limites do julgamento ético nos estudos que seLimites do julgamento ético nos estudos que seLimites do julgamento ético nos estudos que seLimites do julgamento ético nos estudos que seLimites do julgamento ético nos estudos que sevalem de técnicas qualitativasvalem de técnicas qualitativasvalem de técnicas qualitativasvalem de técnicas qualitativasvalem de técnicas qualitativas

Bader Burhian Sawaia1

Se o homem não é máquina - e, conseqüentemente,a verdade científica sobre ele não está, exclusivamente,na objetividade, mas é afetada pelo sentido – não hádistinção nítida entre fato e valor.

Essa preocupação em realizar estudos aprofundados,com rigor, na zona intensamente variável, estimula umanova concepção de pesquisa que busca abarcar osingular configurando-se na complexidade do universal,a partir de metodologia flexível e variada. Assim, apesquisa qualitativa busca superar a avaliação darealidade por experimentação e mensuração, propondoum processo de pesquisa em que o pesquisador vai“interpretando e desvelando” sentidos. Dessa forma, criametodologia da pesquisa própria, flexível que se auto-corrige durante a pesquisa.

As técnicas qualitativas têm em comum a preocupaçãoem desenvolver clima de harmonia entre pesquisador epesquisado, transformando a pesquisa em um encontroamigável e baseado na confiança entre eles. A relaçãopesquisador-pesquisado é sempre face a face.

Outra diferença é que a quantitativa aborda categoriasde pessoas e é extensiva, e a qualitativa foca o sujeito eé intensiva, dirigindo-se a um número reduzido depessoas, valendo-se de uma grande abertura nasindagações que propõe ao pesquisado.

Enfim, com este preâmbulo, quero destacar que apesquisa qualitativa nasce com a responsabilidade éticade captar o humano, de questionar a neutralidade dapesquisa, a relação pesquisador-pesquisado, enfatizandoa necessidade de um ambiente de confiança e respeito enão de neutralidade.

Essa concepção de pesquisa tem como essênciametodológica as questões éticas postas pela Resolução196/96, portanto, exige análise e uso diferente doprotocolo da ética na pesquisa.

Dos limites e possibilidades no cumprimento dasDos limites e possibilidades no cumprimento dasDos limites e possibilidades no cumprimento dasDos limites e possibilidades no cumprimento dasDos limites e possibilidades no cumprimento dasexigências éticas na pesquisa qualitativaexigências éticas na pesquisa qualitativaexigências éticas na pesquisa qualitativaexigências éticas na pesquisa qualitativaexigências éticas na pesquisa qualitativa

Ao analisar a ética na pesquisa qualitativa, é precisoconsiderar duas qualidades de problema, de um lado,as especificidades dos riscos para a ética na pesquisaque ela contém, de outro, considerar que as preocupaçõesnecessárias com a ética na pesquisa qualitativa podemcomprometer o desenvolvimento pleno de estudos quese valem da abordagem qualitativa.1 Doutora em Psicologia Social, Vice-reitora Acadêmica da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

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Isto é, ao mesmo tempo em que a ética está embutidana metodologia da pesquisa, emergem riscos que podemconstituir empecilho ao desenvolvimento da investigação,em duas dimensões correlatas: uma relacionada àburocratização da ética e outra, ao engessamento dapesquisa.

Vejamos alguns exemplos relacionados ao protocoloe à responsabilidade do pesquisador:

- Em relação ao consentimento livre e esclarecido:consentimento livre e esclarecido:consentimento livre e esclarecido:consentimento livre e esclarecido:consentimento livre e esclarecido:como se trata de pesquisa baseada na relaçãoamigável e de confiança entre pesquisador/pesquisado e suas técnicas visarem à aproximaçãoentre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa, aosentir e refletir com e não ao afastamento e àneutralidade, corre-se o risco desse clima favorecera obtenção de informações delicadas e sigilosas,na forma de desabafo, de contar segredos. O sujeitofala mais abertamente, o que aumenta aresponsabilidade do pesquisador de decidir o quefazer com a informação.Por outro lado, a pesquisaqualitativa pode ser prejudicada pela exigência doconsentimento livre e esclarecido, a depender dosujeito da pesquisa: quem se responsabiliza pelotermo de consentimento livre e esclarecido quandose investiga menores de rua? Nas pesquisasrealizadas em instituições fechadas, a instituição ésoberana para responder pela autorização?Também, muitas vezes, não é possível contar oobjetivo da pesquisa de forma plena para nãoenviesar os resultados e induzir respostas.

- Com relação à autonomiaautonomiaautonomiaautonomiaautonomia do sujeito, indaga-se seexiste o livre-arbítrio. Espinosa considera que o livre-arbítrio é uma superstição, mesmo porque nãosomos livres com capacidade de decidir sem quesejamos estimulados na nossa capacidade dereflexão. Por exemplo, muitas vezes o sujeito insisteem ser identificado, no auge da entrevista, parafavorecer uma causa na qual está engajado e depoisse arrepende.

- O sigilo O sigilo O sigilo O sigilo O sigilo tem outras duas implicações que precisamser analisadas. A revelação da identidade do sujeitoda pesquisa é mais fácil na qualitativa. Como onúmero de sujeitos é reduzido e a pesquisa sempreé dirigida a pequenas unidades, é grande apossibilidade de se identificar o pesquisado, mesmoque se omita o seu nome, o que é um dilema crucialno processo de pesquisa qualitativa. Outradificuldade é a emergência da contradição entre ocompromisso com o sigilo e o compromisso com adenúncia de abusos e violências e de seusimpetrantes, constatados pela pesquisa. O sigilo,em alguns casos, acaba por proteger o infrator denormas e valores éticos fundamentais, bem comotolher resultados da pesquisa.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

As situações aqui exemplificadas demonstram que aresponsabilidade do pesquisador na pesquisa qualitati-va vai além do esclarecimento do objetivo da pesquisa.As informações compartilhadas com os sujeitos devemprever riscos e o pesquisador deve estar preparado pararesolver os problemas que suscita. Suas indagações po-dem gerar sofrimento nos sujeitos pesquisados e compe-te ao pesquisador assumir a responsabilidade do mes-mo e ter a sensibilidade para detectá-los.

Calcular o custo/benefíciocusto/benefíciocusto/benefíciocusto/benefíciocusto/benefício em pesquisas quetrabalham na zona do intensamente variável é questãodelicada que exige muita reflexão. Muitas vezes elatrabalha com aquilo que o sujeito deixou no fundo damemória para evitar sofrimento. Outras vezes, a pesquisaqualitativa pode se tornar um espaço de acolhimento ede prazer que gera sofrimento ao terminar. Esse é outrodilema ético na condução de pesquisas qualitativas: aprevisão da continuidade de benefícios. O pesquisadorprecisa prever diferentes qualidades de riscos e estarpreparado para reconhecê-los e acolhê-los para evitardanos.

Para concluir, ressalto que é preciso compreender queo enfrentamento de questões éticas não pode ser tratadopor regras rígidas. Ao assumir o compromisso com ainvestigação daquilo que é da ordem da singularidade ena relação face a face, é preciso incorporar asimplicações éticas da repercussão social da pesquisacotejando-as com as conseqüências sofridas pelosindivíduos pesquisados. E o que é mais importante, semque se perca de vista os valores humanistas de defesada vida digna e feliz, pois a ética não deve ser vistasomente nos procedimentos da pesquisa e no protocolo,mas também no motivo pelos quais eles são realizados.Portanto, o protocolo não pode ser visto como umquestionário a ser respondido, mas um exercício dereflexão e ação da pesquisa.

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

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24 BIS#35/Abril_2005

Ao se declarar como um dos princípios éticos básicosda condução de pesquisas com sujeitos humanos orespeito pelas pessoas, incorporam-se, ao menos, duasconvicções: que os indivíduos devem ser tratados comoagentes autônomos e que as pessoas com autonomiareduzida para dar seu consentimento, ou seja, as quesão sujeitos vulneráveis, devem ser protegidas.

Entretanto, para compreender a autonomia e avulnerabilidade em toda sua complexidade é prementealçarmos vôo para além das fronteiras da relaçãopesquisador/sujeito e da obtenção do consentimento. Istoporque respeitar a autonomia das pessoas traz comocondição a necessidade de situá-las no conjunto socialao qual pertencem1. Em outras palavras, devemos voltarnossa atenção para as opções sócio-estruturais queinterferem na produção da vida e da saúde e acabampor repercutir e determinar as dimensões mais circunscritasdas relações2.

Uma proposta para contextualizar e ampliar adiscussão da vulnerabilidade seria abordá-la em suasdiferentes dimensões: a individual e a coletiva. Para talousamos um paralelo com a compreensão devulnerabilidade que tem se tornado corrente no campoconceitual e prático da intervenção sobre a pandemiade AIDS a partir da década de 90. Opondo-se a “em-powerment”, vulnerabilidade significa os diferentes grause naturezas da susceptibilidade de indivíduos ecoletividades à infecção, adoecimento ou morte pelo HIV,segundo a particularidade de sua situação quanto aoconjunto integrado dos aspectos sociais, programáticose individuais que os põem em relação com o problema ecom os recursos para o seu enfrentamento. Definem-se,assim, três planos interdependentes de determinação ede apreensão da maior ou menor vulnerabilidade dosindivíduos e da coletividade: o comportamento e ascrenças pessoais, ou vulnerabilidade individual, o contextosocial, ou vulnerabilidade social; e o programa nacionalde combate a AIDS, ou vulnerabilidade programática3.

A nossa proposição é que a vulnerabilidade do sujeitode pesquisa também pode ser abordada nesses trêsplanos interdependentes. A análise no âmbito individualcentra-se no acesso dos sujeitos às informações relativasao protocolo, incluindo a forma como são transmitidas esua competência para consentir. A incompetência para oconsentimento pode decorrer de uma incapacidade le-gal ou de perturbações e doenças mentais, como nascrianças e adolescentes, nos fetos, nos distúrbiospsiquiátricos e nos estados de inconsciência ou coma.

A vulnerabilidade do sujeito de pesquisa: umaA vulnerabilidade do sujeito de pesquisa: umaA vulnerabilidade do sujeito de pesquisa: umaA vulnerabilidade do sujeito de pesquisa: umaA vulnerabilidade do sujeito de pesquisa: umaabordagem multidimensionalabordagem multidimensionalabordagem multidimensionalabordagem multidimensionalabordagem multidimensional1

Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli2

Lislaine Aparecida Fracolli3

Ainda pode advir de condicionamentos específicos ouda influência de autoridade, como estudantes, militares,presidiários, internos em centros de readaptação, casas-abrigo, asilos ou associações religiosas. Também pesama adequação da informação às singularidades do sujeito,a garantia explícita da preservação dos direitos deliberdade, privacidade e confidencialidade do sujeito, aqualidade da relação pesquisador/sujeito, oconhecimento do usuário de seus direitos como sujeitode pesquisa, a oferta de alternativas terapêuticas oudiagnósticas além daquelas em estudo.

Voltando o foco de nossa análise para o supra-indi-vidual temos as dimensões programática e social davulnerabilidade. Na primeira, incluímos as questõesrelacionadas à implementação das normas e diretrizesregulamentadoras da ética em pesquisa envolvendo sereshumanos e o funcionamento do sistema CEP/CONEP. Avulnerabilidade programática abarca, entre outrosaspectos, a conformação dos comitês de ética, aparticipação e representatividade dos usuários nascomissões e na análise dos projetos, o acesso dos sujeitosaos comitês, a divulgação das normas e diretrizes da éticaem pesquisa, o acompanhamento por parte dos CEP dodesenvolvimento das pesquisas.

A vulnerabilidade social inclui a pobreza, asdesigualdades sociais, o acesso às ações e serviços desaúde e educação, o respeito às diferenças culturais ereligiosas, a marginalização de grupos em particular, asrelações de gênero e com as lideranças dos grupos ecoletividades. Podemos questionar se o sujeito depois deenfrentar, muitas vezes, tantas dificuldades para conseguirum atendimento sente-se verdadeiramente livre paraexercer sua opção autônoma.

Tem outras opções de serviço para ser atendido ou éo único recurso do qual dispõe?

Não teme que sua recusa possa significar ainda maisdemora no atendimento?

Não tem receio de negar-se a integrar o protocolo eficar marcado pela equipe que o atende?

E considerando que a maioria dos estudos ocorre emhospitais públicos, ainda poderíamos nos perguntar: o

1 Artigo publicado originalmente na “Cadernos de Ética em Pesqui-sa”, ano IV, número 8, agosto de 2001, que é uma publicação daConep – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Republicaçãoautorizada pelo Corpo Editorial em maio de 2005.

2 Professora Doutora da Escola de Enfermagem da USP. Membro daCONEP, de 1997 a 2003.

3 Professora Doutora da Escola de Enfermagem da USP.

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mesmo projeto seria proposto a um usuário de um serviçoprivado?

Transformar este contexto definidor da vulnerabilidadesocial dos sujeitos de pesquisa, obviamente, não é tarefaexclusiva dos CEP ou dos pesquisadores, mas na qual,como cidadãos estes devem tomar parte. Nesse sentido,cabe ressaltar que, como bem marca o espírito daResolução CNS/MS 196/96, constitui função precípuados comitês de ética zelar pelos interesses dos sujeitos depesquisa, protegendo os vulneráveis. Assim, o espectrode ação dos comitês pode ser limitado para atuar nascondições que definem a vulnerabilidade social, mas nãoo é para impedir que esse contexto sirva de justificativapara algumas pesquisas.

Merece registro que não é raro encontrarmos descritodentre os potenciais benefícios decorrentes daparticipação em pesquisas uma assistência de qualidade.Isso além de contrariar o disposto na Resolução CNS196/96, atenta contra a missão social dosestabelecimentos de saúde e os pilares e as diretrizesque balizam o Sistema de Saúde. Receber uma assistênciaque prime pela excelência técnica e ética é um direito decidadania e garanti-la é dever dos serviços de saúde.

Na análise ética dos projetos de pesquisa, avulnerabilidade social se torna patente nas situações quelevantam questionamentos acerca da possibilidade dossujeitos estarem sendo usados apenas como meros meiospara os fins de condução da pesquisa e desenvolvimentoda ciência. Nestes casos, as questões apresentadas nãose resumem à capacidade do sujeito para consentir oucomo o consentimento será obtido, mas incorporam apreocupação de verificar se é justo propor a estas pessoas

que sejam sujeitos de pesquisa. Tratar os sujeitos somentecomo simples meios e não fins em si mesmos constituiuma violação ao princípio de respeito às pessoasenquanto agentes autônomos. Parece, assim, que aconjuntura requer considerações que ultrapassem osaspectos da competência ou da capacidade paraconsentir ou de como o processo de consentimento seráconduzido, sem, no entanto, desprezá-los.

Esta compreensão multi dimensional davulnerabilidade nos fortalece na percepção e denúnciados determinantes e condicionantes sociais da expressãoautonômica das pessoas e nos impõe o desafio deconstruirmos coletivamente estratégias de intervençãonesta realidade para além das fronteiras dorelacionamento pesquisador/sujeito.

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

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26 BIS#35/Abril_2005

1. Questões introdutórias1. Questões introdutórias1. Questões introdutórias1. Questões introdutórias1. Questões introdutóriasPretendo unicamente discutir aspectos muito objetivos,

relacionados aos grandes debates que estão se travandohoje internacionalmente. Não tenho a pretensão de abor-dar as questões teóricas de natureza filosófica, que en-volvem as diretrizes que regem os princípios éticos queinformam a atuação da Comissão Nacional de Ética emPesquisa (CONEP) e dos Comitês de Ética em Pesquisa(CEPs). Organizei esta fala muito mais preocupado como sentido político, presente nas questões que colocam“no fio da navalha” os princípios éticos e humanitáriosna pesquisa, em benefício dos interesses do mercado deinsumos e de medicamentos em saúde. Tenho participa-do de reuniões internacionais no contexto do desenvolvi-mento de vacinas anti-HIV/AIDS, um terreno sensível queenvolve o investimento de milhões, centenas de milhões,talvez bilhões de dólares. Ao contrário do que aconteceem reuniões mais amenas, somos confrontados sistema-ticamente com o “primeiro time do rolo compressor” dospaíses centrais, notadamente dos Estados Unidos - o FDA(Food and Drug Administration), o CDC (Centers forDisease Control and Prevention do Departament of Healthand Human Services), o WRAIR (Walter Reed Army Instituteof Research) e toda a parafernália que veicula os interes-ses dos grandes centros – o que acaba se refletindo nasnossas discussões. Fundamentalmente, foi isso que medispus a fazer, trazendo para este Curso um pouco do“estado da arte” que preenche o debate político ao re-dor das questões éticas. Mais do que isso, um debateque envolve as questões atinentes à interrelação entrequestões éticas e questões regulatórias e os interessesdos chamados sponsors - que são os financiadores - e oshosts - os hospedeiros, os países onde as investigaçõessão realizadas. Contemporaneamente convivemos comencaminhamentos sistemáticos de transformação nos li-neamentos de um acordo internacional, fruto do Tribu-nal de Nuremberg, que julgou os delitos cometidos du-rante a Segunda Guerra por “cientistas nazistas”, daAlemanha nazista. Aliás, fato curioso é que, recentemen-te, a França e a Alemanha tiveram a coragem de subme-ter a uma análise científica o que os tais “cientistas” fize-ram durante a guerra. Um comitê misto - de cientistasfranceses e cientistas alemães - mergulhou nos documen-tos, secretos e sigilosos, de Auschwitz, de Treblinka, entreoutros. A conclusão desse comitê misto - isso saiu publi-

Limites do julgamento ético nosLimites do julgamento ético nosLimites do julgamento ético nosLimites do julgamento ético nosLimites do julgamento ético nosestudos internacionaisestudos internacionaisestudos internacionaisestudos internacionaisestudos internacionais

José da Rocha Carvalheiro1

cado na La Recherche de alguns anos atrás2 - foi a deque, em todas as barbaridades cometidas, não havianenhum rigor científico, consistindo em um conjunto deprocedimentos que não conduziam a nenhum avanço.Portanto, é uma mentira - nem piedosa é - dizer que aquiloera feito por cientistas. E, enfim, a minha preocupaçãofoi um pouco essa, a de trazer para este Curso os desa-fios que contemporaneamente atravessam os interessesda produção de conhecimento, das organizações quebuscam resguardar os interesses da sociedade e daque-las que, quase sempre de modo violento, defendem osinteresses espúrios, como foi o caso da “ciência nazista”.São questões como essas que pretendo tratar aqui, de-nunciando, de minha parte, a promiscuidade entre algu-mas agências regulatórias e a Big Pharma. Trago para odebate um documento da Organização Mundial da Saú-de3 que tenta fazer uma incursão de como é que nocampo da Epidemiologia, portanto da Saúde Coletiva,se pode encarar essas questões da natureza da ética dapesquisa em seres humanos, da proteção dos voluntári-os da pesquisa, que geralmente são abordadas no nívelindividual, do ponto de vista clínico. A beneficência, anão maleficência, enfim, os princípios básicos, podemser encarados apenas do ponto de vista do indivíduoque se dispõe a participar da pesquisa? Ou podem serencaradas num outro sentido, na perspectiva da socie-dade, da coletividade? Quando eu penso nisso, eviden-temente de imediato penso em pesquisa em saúde pú-blica, em particular em pesquisa epidemiológica, nasquestões coletivas, nas instituições como objeto de in-vestigação, e como é que eu analiso os princípios funda-mentais da ética em pesquisa em seres humanos no sen-tido coletivo. É uma temática extremamente complexa,de sentido geracional. Quem são os advogados da ge-ração dos meus bisnetos? Quem são os advogados deoutras espécies, animais e vegetais? São questões quetêm que ser analisadas num contexto de uma complexi-dade muito maior, que alguns chamam de macroética, eque não podem estar ausentes da preocupação de um1 Professor Titular de Medicina Social, Faculdade de Medicina de

Ribeirão Preto, USP2 THUILLIER, P. Le nazisme et la science: Les expérimentations nazies

sur l’hypothermie, LLLLLa Ra Ra Ra Ra Rechercheechercheechercheechercheecherche (227): 1568, dec. 1990.3 1991 INTERNATIONAL GUIDELINES FOR ETHICAL REVIEW OF

EPIDEMIOLOGICAL STUDIES in www.cioms.ch/frame_menu_texts_of_guidelines.html

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pesquisador no campo da Saúde Coletiva. Existe umaoutra maneira de encarar o sentido macroético, que éaquele ao qual eu estou mais intimamente ligado, que éa macroética dos interesses nacionais. Explico melhor:ao fazer um julgamento de uma investigação multicêntricainternacional proposta por um grande conglomeradofarmacêutico, eu tenho que me preocupar não apenascom o que vai acontecer com as pessoas que se dispuse-rem a serem voluntários da pesquisa, mas também como que vai acontecer com os resultados dessa pesquisa. Épreciso prever determinados tipos de garantias, e por aívai o meu principal esforço nesse momento. Nessadireção, o que trago hoje aqui para o debate encami-nhará à consideração dos limites que hoje se interpõemna condução da pesquisa epidemiológica.

2.2.2.2.2. No fio da navalha a Declaração de Helsinque: oNo fio da navalha a Declaração de Helsinque: oNo fio da navalha a Declaração de Helsinque: oNo fio da navalha a Declaração de Helsinque: oNo fio da navalha a Declaração de Helsinque: odebate sobre o debate sobre o debate sobre o debate sobre o debate sobre o double standarddouble standarddouble standarddouble standarddouble standardUm dos temas mais delicados na atualidade diz res-

peito ao debate do duplo standard, double standard, quetraduz e expõe os comprometimentos éticos na pesquisade ponta. O duplo standard representa, na verdade, apreservação dos rigores da Declaração de Helsinque nospaíses centrais e o seu abrandamento nos países perifé-ricos, os países do “Terceiro Mundo”, os países subde-senvolvidos, eufemisticamente designados como paísesem desenvolvimento. Neles se pretende abrandar o rigorexpresso - no caso brasileiro - na Resolução 196/96,mas também nos guidelines da CIOMS, a confederaçãode instituições ligadas às ciências da saúde4 . Essa já éuma primeira questão a ser discutida, a do enfrentamentoentre a comunidade científica em torno da Declaraçãode Helsinque e dos lineamentos da CIOMS e das diretrizesde organizações como a chamada Big Pharma, queaglutina as indústrias farmacêuticas dos Estados Unidos,da Europa e do Japão, os três grandes produtores e mer-cados consumidores de serviços e produtos na área dasaúde. Lembremos que a Declaração de Helsinque jáfora alvo de retaliação no ano de 2000, quando se pro-pôs alterar o item II.3 que dispunha sobre a garantia domelhor tratamento diagnóstico ou terapêutico compro-vado em qualquer estudo médico. Na atualidade, sãotrês referenciais em confronto: os que estão expressos naDeclaração de Helsinque - uma declaração de princípi-os humanitários, envolvendo o relacionamento dos pes-quisadores com as pessoas que participam da investiga-ção - nos guidelines do CIOMS - que se relacionam mui-to estreitamente com a Declaração de Helsinque – e osdesse terceiro conjunto que expressa um esforço deharmonização feito pela indústria farmacêutica, para queno mundo inteiro se definam critérios de certificação. É aBig Pharma que estabelece os padrões de fabricação,expresso no guideline as Boas Práticas de Fabricação(GMP), as normas de julgamento do que devem ser asBoas Práticas de Laboratório (GLP), mas também as nor-mas de garantia da qualidade dos produtos sob as

diretrizes de um outro guideline, um outro lineamento. Ofato é que, ao harmonizar as GLP, a Big Pharma, aprovei-tando a chance, avançou o sinal e estabeleceu tambéma GCP, as Boas Práticas Clínicas, o terceiro referencial aser considerado no embate atual. Nós, no Brasil, produ-zimos muito poucos princípios ativos, ou fármacos; anossa indústria básica de produção de fármacos deterio-rou dramaticamente. Produzimos medicamentos, mani-pulamos fármacos, fazemos pílulas, injetáveis, cápsulas.Importamos da Índia, e nos vemos na obrigação de fis-calizar suas fábricas em busca de saber se são certifica-das e se realmente atendem às chamadas GMP. E assim,o debate atual, candente, diz respeito ao abrandamentoproposto pelo FDA no que toca às pesquisas feitas noexterior, admitindo que os guidelines da GLP, daharmonização dos laboratórios farmacêuticos, é que de-vem presidir sua realização. Há um médico, ativista ame-ricano, Peter Lurie, que está ligado ao grupo de RalphNader5 , dos Estados Unidos, que está sempre batendonesta tecla. Há uns dois anos atrás, ele denunciou umestudo previsto para analisar um surfactante que livracrianças imaturas de morrer, e que ia ser feito “contraplacebo” em três países da América Latina; sua iniciativagerou a maior polêmica interna dentro do FDA. Recente-mente, Lurie distribuiu uma carta para as pessoas comquem ele tem relações, no intuito de obter adesões pro-testando contra a prática de formalizar o duplo standard,enviando um documento ao FDA. Vejam que isso não ésimples; a Declaração de Helsinque e os guidelines daCIOMS, todos indicam que um cientista não pode utili-zar práticas científicas, seja onde for, que contrariem osprincípios éticos definidos no seu próprio país. Esse é umprincípio básico, que, no nosso caso, foi resolvido, porexemplo, exigindo que as investigações multicêntricasinternacionais só se realizem aqui, mediante a aprova-ção de um Comitê de Ética do país de origem e que láestejam de preferência já em execução, de modo a im-pedir a associação de nossos cientistas a investigaçõesestrangeiras que violem os princípios básicos do seu pró-prio país. A CONEP e o Comitê Nacional de Vacina deAids exigem, por exemplo, que, para fazer teste de fase I,

4 Organização internacional, não-governamental, não lucrativa, cons-tituída conjuntamente pela Organização Mundial da Saúde e pelaUNESCO em 1949. Integrava em 2003, através de seus membros,um conjunto de 48 organizações internacionais, todas ligadas à co-munidade científica biomédica. Entre seus objetivos estão o de faci-litar e promover atividades internacionais no campo das ciênciasbiomédicas, manter relações de colaboração com a ONU e suasagências especializadas, especialmente a OMS e a UNESCO e ser-vir aos interesses científicos da comunidade científica biomédica emgeral, através de programas no campo da Bioética, Política de Saú-de, Ética e Direitos Humanos, Desenvolvimento e uso de fármacos enomenclatura internacional de doenças. (Cf. http://www.cioms.ch/,disponível on-line, 23/05/2005.

5 Um dos mais renomados defensores dos direitos dos consumidoresnos EUA (Cf:http://www.achievement.org/autodoc/page/nad0bio-1,disponível on-line, 23/05/2005).

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ele tem que ter sido aprovado no país de origem, já tersido realizado ou pelo menos em execução paralelamenteà que aqui se realizaria: se ele não conseguiu ser apro-vado lá, não dá para aprová-lo aqui.

3.3.3.3.3. No fio da navalha a responsabilidade social dasNo fio da navalha a responsabilidade social dasNo fio da navalha a responsabilidade social dasNo fio da navalha a responsabilidade social dasNo fio da navalha a responsabilidade social dasagências regulatóriasagências regulatóriasagências regulatóriasagências regulatóriasagências regulatóriasSaí da Coordenação dos Institutos de Pesquisa e da

direção do Instituto de Saúde e hoje estou na FundaçãoOswaldo Cruz, coordenando um projeto que se chamaInovação em Saúde, uma tentativa de oferecer ao Go-verno instrumentos para formulação de políticas que seencaixam agora na política de desenvolvimento industri-al, uma vez que ela incorporou um eixo que é o relacio-nado a fármacos e medicamentos, e aí entram todas ascoisas que nós estamos discutindo: vacinas, fármacos,medicamentos, reagentes diagnóstico, sangue ehemoderivados. Para oferecer alternativas de definiçõespolíticas, vou considerar o percurso da invenção até ainovação da tecnologia material. Devo dizer que me res-trinjo à tecnologia material, embora não seja essa a mi-nha idéia. Pelo contrário, até por ter trabalhado esse tem-po todo no Instituto de Saúde, tenho muito mais a vercom tecnologias de processo, tecnologias não materiais,como por exemplo, formulação de novas idéias a respei-to da implantação do SUS; estou muito mais ligado aisso, mas vou restringir a minha fala, por facilidade epela natureza do que eu estou vivendo hoje. Assim sen-do, o processo, que vai desde uma proposição de umanova molécula, ou de uma nova vacina feita porrecombinante, de uma maneira recombinante num la-boratório, isso é invenção. Fazer com que ela se transfor-me numa inovação, que possa ser introduzida e avalia-da, e que, além de eficaz, seja eficiente e efetiva6 , ouseja, entre a invenção - geralmente feita numa bancadade pesquisa básica – e a inovação, evidentemente so-mos colocados diante de exigências que cada vez se tor-nam mais complexas, em grande parte por conta dasagências regulatórias, que existem no “Primeiro Mundo”e que agora começam cada vez mais a se instalar empaíses em desenvolvimento. Em particular no nosso caso,a criação da ANVISA, a Agência Nacional de VigilânciaSanitária, conferiu à regulação no âmbito da saúde umadimensão muito diferente da expressão cartorial presen-te na antiga Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária,um cartório todo pragado de corrupção, absolutamenteineficiente. Mas essa não é uma particularidade brasi-leira! Existiu, nos anos 60, uma CPI do Congresso dosEstados Unidos que denunciou a promiscuidade entre oFDA - a agência regulatória dos Estados Unidos - e aindústria farmacêutica. Foi um escândalo! E agora o FDAabre de novo o flanco para ser criticado, defendendo oduplo standard, um claro interesse da Big Pharma, volta-da então a conduzir investigações no “Terceiro Mundo”,porque no “Primeiro Mundo” está sendo cada vez maiscomplicado. O curioso é que o “Terceiro Mundo” se ex-

pandiu de uma maneira dramática, invadindo o “Primei-ro Mundo” no ano passado, com a incorporação de de-zoito novos países à Comunidade Européia - os paísesdo Leste Europeu, que pertenciam antes ao bloco sovié-tico e que agora passaram a pertencer à ComunidadeEuropéia. Traduziram-se, na nossa área, reflexos impor-tantíssimos. Integrados à Comunidade Européia, entramdentro do esquema de que vale o registro num únicopaís para que a comunidade inteira aceite um medica-mento novo, por exemplo. Alguns países que recém in-gressam na Comunidade Européia têm o fast track, umrito sumário, um “jeitinho do Leste Europeu”. Assim sen-do, as agências regulatórias dos países da Europa estãode “saia justa”, disputando entre si, pois para se mante-rem, necessitam que as indústrias solicitem os pareceres,pelos quais pagam taxas; são essas taxas que mantémas agências! Essa é uma questão que a gente tem quediscutir em relação à ANVISA. Praticamente todas as agên-cias, especialmente as européias, vivem das taxas pagaspelos interessados em registrar produtos. Como vivemdisso, começaram a fazer uma competição entre si, cadauma oferecendo maiores vantagens, o que se reflete naredução do tempo para avaliação e registro de um de-terminado produto. Os fabricantes estão “buscando aMeca”, os lugares onde têm facilidades, mesmo porquemuitos dos países são de perfil autoritário recente, emque esses princípios da ética da investigação envolven-do seres humanos obedecem muito tenuemente aos prin-cípios éticos da Declaração de Helsinque, do CIOMS edos lineamentos das Boas Práticas Clínicas encaminha-das pela harmonização internacional. Tratar com consis-tência ética a investigação que leva a uma inovaçãotecnológica, especialmente da tecnologia material temsempre um forte conteúdo de interesses comerciais quepodem se considerar contrariados. No nosso país, a prin-cipal queixa, especialmente das indústrias, é a de que oprocesso de tramitação demora muito; por sua vez, aprincipal queixa dos farmacologistas, dos cientistas quetrabalham nessa área, é a de que eles perdemcompetitividade internacional, diante das exigênciasoriundas de nossa agência regulatória no sentido de queas investigações sejam todas submetidas aos CEPs. Nóstemos mais de quatrocentos CEPs! O mundo inteiro ficaabismado com a nossa CONEP e nossos mais de qua-trocentos CEPs! Diante disso, as indústrias justificam o

6 Lembre-se que eficazeficazeficazeficazeficaz é a ação que se pretende que se realize emcondições ideais. Eu digo que uma vacina vai gerar imunidade emcrianças, a partir da realização de um teste de eficácia. Vacino al-guns, não vacino os outros e observo quantos soroconvertem, ouquantos, durante um período longo, são atingidos pela doença queeu quero proteger, num grupo e no outro, e em função disso eucalculo, em condições ideais, o quê é que o produto que eu inventeiproduz no organismo. A eficiênciaeficiênciaeficiênciaeficiênciaeficiência está relacionada ao custo/bene-fício do produto eleito e a efetividadeefetividadeefetividadeefetividadeefetividade denota a coberturapopulacional numa amplitude tão grande que resulta numa diminui-ção concreta do problema com o qual eu estou me defrontando.

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não investimento em produtos; compram tecnologia defora e não investem pra produzir a tecnologia local. De-mora muito! É dificílimo registrar uma patente, e os cien-tistas reclamam da lei de patentes que obedece a princí-pios de natureza ética na execução das investigaçõesque não são aleatórios.

4.4.4.4.4. Novamente no fio da navalha a Declaração deNovamente no fio da navalha a Declaração deNovamente no fio da navalha a Declaração deNovamente no fio da navalha a Declaração deNovamente no fio da navalha a Declaração deHelsinque: Helsinque: Helsinque: Helsinque: Helsinque: best provenbest provenbest provenbest provenbest proven ou ou ou ou ou best atainablebest atainablebest atainablebest atainablebest atainableHá um terceiro grande debate que está nas origens

do debate acerca do duplo standard e que tem geradoum protesto interno muito intenso. Reporto-me à ques-tão do “que fazer” com aqueles que, durante o trabalhode pesquisa, são atingidos pela doença que se está in-vestigando. Exemplifico com o que tenho mais experiên-cia, os nossos esforços aqui no Instituto em demonstrar afactibilidade de uma vacina HIV/Aids. Não havia produ-to a testar. Realizando um estudo de factibilidade, está-vamos pretendendo demonstrar que tínhamos condições,em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, derecrutar um grande número de voluntários. Em São Pau-lo, recrutamos quase mil e duzentos voluntários que fo-ram acompanhados durante um período maior do que oprevisto - cinco ou seis anos - periodicamente avaliados,com infra-estrutura de laboratório, de registro de dadose de análise de dados adequada. Os três centros prova-ram que isso era possível. Mesmo naquele estudo defactibilidade, que não incluia nenhum produto a ser tes-tado (fazíamos um aconselhamento rigoroso, as pessoasvinham a cada seis meses, eram retestadas), estávamossubordinados a um dos princípios da Declaração deHelsinki, que se desdobra no guidelines do CIOMS. Seacontecesse uma soroconversão durante o trajeto, e ti-vemos 1,9 soroconversões/100/pessoas-ano - uma in-cidência baixa, foram vinte e três que soroconverteram -mesmo assim estávamos obrigados a prover o melhortratamento existente no mundo, o best proven, o melhorprovado. Ocorre que os laboratórios dos países centraisestão tentando impor, em vez do best proven, o bestatainable, o melhor possível, um dos pontos focais dodebate atual envolvendo as propostas americanas demudança da Declaração de Helsinque. Eles já conse-guiram introduzir nos lineamentos da CIOMS algunsabrandamentos; ao invés de aceitar crítica do Peter Luriee de outros, denunciando burla e violação nos princípi-os éticos básicos, invertem a realidade e argumentampela mudança na Declaração de Helsinque. Chegamosassim a uma trágica situação que coloca em xeque apreservação dos princípios éticos fundamentais nela in-seridos. No Brasil, um comitê de clínicos se reúne emBrasília, pelo menos duas vezes por ano, e atualiza oConsenso Nacional de Tratamento para Aids. Adaptadoperiodicamente, ele está quase sempre muito próximodo melhor provado no mundo, até porque as ONGs bra-sileiras na área de Aids são muito atuantes presentes,exercendo com competência o controle social das ações

em saúde. Falar em melhor provado e melhor possível noBrasil tem, portanto, uma diferença muito pequena; seestou fazendo uma investigação e uma pessoasoroconverte, eu a inscrevo no Programa Nacional deAids e ela automaticamente passa a receber, se não omelhor provado tratamento existente no mundo, algumacoisa muito próxima dele. Mas se estou trabalhando numpaís da África ao Sul do Saara a coisa é completamentediferente! Se decidir que, ao invés do melhor provado,farei o melhor possível, no limite, o melhor possível podeser nada. Cinicamente, os argumentos de que a BigPharma se vale são: “Não é nosso papel complementaras deficiências dos sistemas de saúde dos países subde-senvolvidos”; Respondemos nós: “Então faz no teu país!”Este é o terceiro ponto crítico na atualidade e que seintegra ao debate em torno da modificação da Declara-ção de Helsinki. Houve uma reunião em agosto de 2004,em Helsinki, e o nosso representante era o Dirceu Greco,pela Associação Médica Brasileira (AMB): o principalponto de debate era “muda-se ou não se muda o artigoque fala do melhor provado ou do melhor possível”. Fize-mos uma reunião preliminar na sede do Conselho Fede-ral de Medicina em Brasília, em que também estavampresentes a AMB, a CONEP, o DECIT, a Associação Bra-sileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e a RevistaBrasileira de Epidemiologia. Realizamos um esforço enor-me para garantir a presença do nosso representante: emHelsinki, Dirceu brigou tanto que eles adiaram a decisãopara 2005. Não sei como interpretar essa investida,mesmo porque, por maior que seja o tamanho da amos-tra em que se faça uma investigação, o número de pes-soas que soroconverte - no caso de Aids, ou de qualquerdoença que se esteja investigando - geralmente é muitopequeno! Não se justifica essa disputa espúria em que,como um rolo compressor, os interesses da indústria sefazem representar pelo “primeiro time dos eticistas ame-ricanos”, do pessoal do FDA e da agência regulatória,que “batem pesado!” Fico em dúvida a respeito do queé que de fato informa esse furor com que eles se colo-cam a favor do best atainable! Existe alguma coisa quepara mim é muito clara: tratar as pessoas com o melhorque existe no mundo - se o melhor que existe no mundoé o que resulta da investigação - praticamente inclui noprograma de assistência farmacêutica do país uma bre-cha que impõe a necessidade de incluir o novo medica-mento no Consenso! Dessa ótica, do ponto de vista dopoder público, é que seria desvantajoso? Porque cadavez que se faz uma investigação dessa, se abre espaçopara ter a introdução no Consenso de medicamentos cadavez mais caros! Do ponto de vista da grande indústria,seria até vantajoso, porque ela teria, em países como onosso - onde existem sistemas nacionais de saúde - ummecanismo de penetração no mercado público, em queo grande comprador é o Governo. Eu tenho uma suspei-ta, a de que best proven e best atainable também podeminteressar, no caso de Aids, ao próprio processo de re-

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crutamento e de acompanhamento dos voluntários. Doponto de vista dos interesses da investigação, quanto maispessoas soroconverterem, se se tiver uma incidência maior,é mais fácil se fazer uma investigação num lugar onde aincidência é alta do que num lugar onde a incidência ébaixa. Neste há que se utilizar uma amostra muito gran-de para poder captar a diferença entre uma incidênciabaixa, e uma incidência ainda mais baixa, que é o quese espera que aconteça se o produto der certo. Então euacho que é um pouco por aí, que talvez não seja o trata-mento em si das pessoas que é tão caro, mas é o tama-nho das amostras, havendo uma intenção de abrandartambém as melhores práticas existentes no mundo, deaconselhamento, por exemplo. Enfim, essa é hoje a maisimportante questão colocada sob o ponto de vista deética, e que se associa ao double standard: padrões éti-cos para o “Primeiro Mundo” e padrões éticos para o“Terceiro Mundo”.

Vale a pena tratar ainda aqui de outra polêmica im-portante que o registro dos ensaios; o quê acontece? Atéalgum tempo atrás, o espaço para investigar produtosnovos era a universidade; preocupados com a demoracom que as universidades liberavam os resultados, fo-ram se criando CROs, que são as Contract ResearchOrganization, Organizações de Pesquisas Contratadas,que integram indústrias multinacionais. Elas estão apa-nhando de tudo quanto é lado! Publicações no BritishMedical Journal, no New England Journal têm denuncia-do a promiscuidade entre essas terceirizadas e a indús-tria farmacêutica. A análise de produtos testados na uni-versidade, nunca chega a 50% de bons resultados. Deoutro lado, os testes nas terceirizadas resultam em quase100% de bons resultados. Essa promiscuidade que temsido denunciada faz com que os investigadores que nãopertencem às universidades assinem contratos de “letramiúda” em que o investigador se compromete a nãopublicar, se não for autorizado. Ocorre que as institui-ções que regulam o trabalho acadêmico pressionam pelapublicação. Rompendo o contrato, o pesquisador se vêacuado, acaba publicando sem ter sido autorizado, peloque vira alvo de ação judicial interposta pela CRO oupela indústria farmacêutica, que se sentem lesadas, di-ante de violação de sigilo de contrato. Há ações na jus-tiça, movidas contra o investigador que divulgou dados -geralmente dados negativos – mas também o inverso,ações na justiça interpostas por investigadores no mo-mento em que se deram conta de que o contrato os proi-bia de publicar. É uma questão da maior atualidade, damaior relevância: como deixar transparente o esforço quese está fazendo para os ensaios? O caso é tão sério, quea Organização Mundial da Saúde está se dispondo aassumir essa responsabilidade.

5. Outras questões para a macroética5. Outras questões para a macroética5. Outras questões para a macroética5. Outras questões para a macroética5. Outras questões para a macroéticaUma última polêmica que me diz respeito mais de

perto se refere a como se devem encarar pesquisas feitasnão com pessoas, mas com dados armazenados, sejamarmazenados em prontuários, em que o consentimento,por exemplo, é difícil de se obter, ou informações depaleoparasitologia. Fazer paleoparasitologia num cemi-tério etrusco de cinco mil anos antes de Cristo e atendera exigências éticas, como a obtenção do Termo de Con-sentimento Livre e Esclarecido é impraticável! Como fa-zer com projetos que se dirijam a estudar dados dessanatureza? Quando são prontuários de hospital é umaversão; já, quando são dados armazenados em bancosde dados, como os do IBGE ou dos Sistemas de Informa-ção de Mortalidade, e já sem identificação individual,podem ter uma outra conotação. Essa é uma questãopara a qual ninguém tem resposta!

Mas a última questão que eu quero levantar tem aver com a propriedade intelectual, que não deixa de seruma questão de natureza ética, macroética. Como é quese pode encarar o pesquisador que atua apenas na fasede pesquisa de campo? O meu argumento, deepidemiologista, é dizer que também se sente como pro-prietário intelectual; se aquele protótipo for transforma-do num produto, é porque se fez um teste de campo.Enquanto não se fizer o teste de fase III, o teste de cam-po, continua um simples protótipo. O teste de campo éque faz com que se transforme num produto inovador.Essa questão é cada vez mais debatida, inclusive no Pri-meiro Mundo.

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1 Professor Associado do Departamento de Pediatria e Professor deÉtica Médica, Faculdade de Medicina – USP.

2 Cf. CARVALHEIRO, J.R. Limites do julgamento ético nos estudos in-ternacionais, BIS, n35. 2005. p. 27.

3 BEECHER, H. K. Ethics and clinical research. New England Journal ofMedicine (274):1354-1360, 1966.

PPPPPerspectivas históricaserspectivas históricaserspectivas históricaserspectivas históricaserspectivas históricas

O chamado “termo de consentimento” surgiu comouma forma de contrato entre o paciente e a instituição desaúde, formalizando sua autorização para a realizaçãode procedimentos clínicos corriqueiros. No Brasil, era – eainda é – comum a existência, em instituições de saúde,de documentos do tipo “termo de responsabilidade” que,como o próprio nome indica, formalizava a anuência dopaciente com o manuseio de seu corpo, “abrindo mãode seu próprio corpo”, no entendimento de que “o outrosabe o que é bom para mim”. Esses documentos seguema tradição e a cultura da clínica, estruturadas sob o “saberhermético do profissional de saúde” que não visualizavao outro como pessoa autônoma, com inteligência ecapacidade de compreensão sobre as operações que lheseriam destinadas. Essa era uma forma, deliberada ouinconsciente, de desumanizar o objeto da atenção emsaúde.

No século XIX, foi através da prática clínica que apesquisa se instituiu como processo de estudo eobservação intencional e independente. A pesquisa sóera considerada uma prática aceitável se estivessesistematizada no interior da clínica. Nessa direção, aautonomia dos sujeitos era algo estranho e não previsto.A partir do começo do século XX, assistiu-se a umatransformação paradigmática na relação entre a clínicae a pesquisa. Se até então era a pesquisa um “resultadoda clínica”, daí em diante essa relação se inverteu: aclínica só tinha sentido e legitimidade se fundamentadana pesquisa. O fato é que um volume grande deinvestigações foi realizado, sem que os sujeitos envolvidossequer tivessem conhecimento dos propósitos daintervenção em seus corpos.

E foi a II Guerra Mundial o marco decisivo para oreordenamento da relação entre pesquisa e sujeitos dapesquisa. As atrocidades cometidas nos campos deconcentração - que serviram como argumentos insólitospara a construção da “ciência nazista” - constituíram olimite para fomentar intensamente o debate acerca daconduta ética em pesquisa com seres humanos. Osexemplos do que ali se cometia são verdadeirostestemunhos do desrespeito e da desqualificaçãohumano-societal e, lamentavelmente, da prepotência deque se arrogavam aqueles que exerciam as atividadesno campo da pesquisa médica: prisioneiros eramsubmetidos a congelamento/descongelamento; privaçãode oxigênio; ferimentos extensos e deliberadamentecontaminados, e outros tipos de procedimentos cruéis edesumanos.

Simultaneamente ao julgamento e condenação doscriminosos de guerra - em sua maioria médicos - o

O processo de obtenção do TO processo de obtenção do TO processo de obtenção do TO processo de obtenção do TO processo de obtenção do TCLECLECLECLECLE: compromissos: compromissos: compromissos: compromissos: compromissose responsabilidadese responsabilidadese responsabilidadese responsabilidadese responsabilidades

Gabriel Oselka1

Tribunal de Nuremberg publicou o Código de Nuremberg(em 1947) que, pioneiramente, no plano internacional,atacou o problema do uso indiscriminado de sereshumanos na atividade investigativa. Pressupondo orespeito ao livre direito de escolha dos sujeitos,determinando a obrigatoriedade de acesso aoconhecimento pleno da natureza, das intenções e dotrajeto do estudo investigativo, seus riscos einconvenientes, o Código de Nuremberg estatuiu as basespara a formalização da adesão voluntária e conscientedos sujeitos à pesquisa.

Mas foi quase 20 anos mais tarde que aspreocupações e encaminhamentos do Código deNuremberg ocuparam os debates da 18ª Reunião daAssociação Médica Mundial que, em 1964, reunida naFinlândia, estabeleceu um conjunto de princípios éticospara nortear a pesquisa clínica com seres humanos.Documentados na Primeira Declaração de Helsinque,traduziram o comprometimento explícito com a condutaética na atividade investigativa, advogando a primaziada participação voluntária dos sujeitos envolvidos,expressa em consentimento esclarecido. O documentofoi por várias vezes revisto nas sucessivas reuniões daAMM (em 1975, no Japão, em Tóquio; em 1983, naItália, em Veneza; em 1989,na China, em Hong Kong;em 1996, na África do Sul, em Somerset West; em 2000,na Escócia, em Edimburgo; e, em 2004, novamente noJapão, em Tóquio), algumas delas propondo alteraçõesde caráter abusivo e nefasto e que foram maisdetidamente tratadas anteriormente2 .

Dois anos depois da divulgação da PrimeiraDeclaração, em 1966, um estudo conduzido por HenryBeecher3 , publicado no New England Journal ofMedicine, mostrava problemas éticos em 50 trabalhoscientíficos, assinalando-se que raros deles mencionavama obtenção de consentimento esclarecido dos sujeitos dapesquisa. O fato é que, na atualidade, os periódicosnacionais e internacionais de renome enfatizam essaexigência, como norma obrigatória para obtenção doaval para a divulgação de trabalhos de pesquisa comseres humanos.

Dos compromissos e das responsabilidadesDos compromissos e das responsabilidadesDos compromissos e das responsabilidadesDos compromissos e das responsabilidadesDos compromissos e das responsabilidadesO Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

pode ser considerado um aperfeiçoamento histórico doantigo termo de consentimento, que logrou superar num

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longo trajeto a arrogância autoritária dos documentosdo tipo “termo de responsabilidade”. Instrumento de con-trole social da pesquisa, o TCLE representa a ferramentade pressão de que dispõem aqueles que, como sujeitosda pesquisa, integram o processo de produção de co-nhecimento no campo da saúde. Como estabelece aResolução 196/96, consiste na “anuência do sujeito dapesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios(simulação, fraude ou erro), dependência, subordinaçãoou intimidação, após explicação completa e pormenori-zada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, méto-dos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodoque esta possa acarretar, formulada em um termo deconsentimento, autorizando sua participação voluntáriana pesquisa”4 . Não será demais dizer que o caráter daanuência do sujeito da pesquisa tem por trás de si o res-peito e o entendimento criterioso da relevância social doCLE (princípio da autonomia), da ponderação entre be-nefícios e riscos (princípio da beneficência), da preocupa-ção em evitar danos previsíveis (princípio da nãomaleficência) e, finalmente, da destinação sócio-huma-nitária (princípio da justiça e eqüidade). Nessa direção,avaliar compromissos e responsabilidades, exige levarem consideração a complexidade que envolve o trajetoinvestigativo em saúde. É o caso, por exemplo, das pes-quisas que envolvem fármacos, medicamentos, vacinase testes diagnósticos novos ou uso de medicamentos comparticularidades diversas daquelas estabelecidas, oumesmo daquelas que envolvem novos procedimentosainda não consagrados na literatura, como estabelece acitada Resolução 196/96. Quem garante que o contratofirmado entre pesquisador e sujeito se estrutura de fatodiante do entendimento dos pressupostos éticos da pes-quisa em seres humanos? Quem garante que a sua ob-tenção não tem por trás de si a sedução/atração dossujeitos da pesquisa pela possibilidade de receber “tra-tamento adequado”, negligenciada a responsabilidadesocial e pública de esclarecimento detalhado das vicissi-tudes que se interpõem num processo de experimenta-ção? Nesse sentido, o TCLE seria um instrumento real devalidação da pesquisa? A obtenção de um consentimen-to que valide a pesquisa é tarefa difícil, delicada e com-plexa. Para além dela, importa a moralidade do pesqui-sador, mais importante mesmo do que a normatizaçãoda atividade investigativa. Importa, sim, o compromissodo pesquisador com as pessoas envolvidas e não so-mente com a ciência. O caso Tuskegee, relatado a se-guir, é um exemplo claro e insólito desse pressuposto.Em 1932, um conjunto de 500 afro-descendentes norte-americanos do Alabama foram incluídos num projeto deinvestigação que pretendia aprofundar o conhecimentosobre a “história natural” da sífilis5 . O projeto não pre-via tratamento, mas apenas a observação sistematizadada evolução da doença. Acresce que os sujeitos envolvi-dos foram recrutados sem sequer saber a que se presta-vam e, naturalmente, sequer haviam sido solicitados aconcordar com os procedimentos a que foram submeti-dos. A pesquisa se prolongou até 1972, com o registrode complicações graves e desenvolvimento de sífilisterciária na população estudada, quando então o fatofoi denunciado pelo The New York Times. Isso representaum verdadeiro e perverso testemunho de uma postura

antiética, imoral e condenável do ponto de vista científi-co. Por conta deste e de mais dois outros casos tão per-versos quanto este, “(...) o Governo e o Congresso norte-americano constituíram, em 1974, a National Comissionfor the Protection of Human Subjects of Biomedical andBehavioral Research, (...) [com o objetivo de] (...) identifi-car os princípios éticos ‘básicos’ que deveriam conduzira experimentação em seres humanos, o que ficou co-nhecido com Belmont Report”.6 Foi assim que, a partirdo Relatório Belmont, o princípio do respeito, da benefi-cência e da justiça re-emergiram como questões funda-mentais na relação estabelecida com os sujeitos da pes-quisa, dotando ao TCLE papel fundamental na produ-ção de conhecimento em saúde. O TCLE deve represen-tar o compromisso ético com a sociedade de - a partirdela e com ela - constituir o saber que lhe seja maisapropriado para a superação dos problemas de saúdee, portanto, vinculando demandas sociais, ciência e res-ponsabilidade social e pública do pesquisador. Contu-do, a teia de interesses que permeia a produção de co-nhecimentos em saúde é extensa e perversa. Nessadireção, compromissos e responsabilidades sociais epúblicos se instituem como eixos fundamentais no enca-minhamento da atividade investigativa. Insisto que o TCLEnão pode ser um mero instrumento de contrato, um do-cumento que justifica e garante a idoneidade da relaçãopesquisador/pesquisado, mesmo porque nem sempre opesquisado é chamado diretamente a depor, como é ocaso das pesquisas que tomam como procedimento aanálise retrospectiva de prontuários, ou das que se va-lem de amostras estocadas em bancos específicos comomaterial de estudo. Lamentavelmente, o volume de pes-quisas efetuadas em nosso meio tem sido um obstáculoao seguimento sistematizado e controlado das ações emcampo. Os nossos mais de 400 Comitês de Ética emPesquisa não dão conta de acompanhar a multidão deprotocolos que a eles se submetem! Essa é uma realida-de que não podemos negar! Nessa direção, se o TCLErepresenta uma conquista social para exercer o controleda produção de conhecimento, isso por si só não garan-te o caráter democrático e público da atividade de pes-quisa. “O usufruto democrático dos benefícios do desen-volvimento tecnológico (...) está muito longe de ser al-cançado. (...) E a vida, em muitas instâncias, passa a serum negócio – rentável para alguns (...) e inalcançávelpara uma multidão de excluídos sociais que não têmcondições de acesso às novas descobertas e seus decor-rentes benefícios.”7 Reitero, para finalizar, que “(...) ocontrole social sobre qualquer atividade de interesse pú-blico e coletivo a ser desenvolvido é sempre uma metademocrática. Nem sempre ele é fácil de ser exercido.”8

4 MINISTÉRIO DA SAÚDE, Resolução 196/96, Brasília, 1996.5 Cf. Human Research Training: A Historical Perspective, disponível

na internet: http://www.drugstudy.md/resource3.html, 26/05/2005.6 Cf. Schramm, F.R.; Braz, M. Bioética. In: Estudos sociais, éticos e

jurídicos sobre genomas na área da saúde (Projeto Ghente) (http://www.ghente.org/). Disponível na internet: http://www.ghente.org/bioetica/historico.htm, 26/05/2005.

7 OSELKA, G.; FERREIRA COSTA, S.I.; GARRAFA, V. Bioética, hoje eBioética, hoje eBioética, hoje eBioética, hoje eBioética, hoje eno futurono futurono futurono futurono futuro. In: COIMBRA, J.A.A. (Org.) Fronteiras da ética. SENAC:São Paulo, 2002, 169-80, p. 171.

8 Id.ibid., p. 180.

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A representação de usuários em CEPA representação de usuários em CEPA representação de usuários em CEPA representação de usuários em CEPA representação de usuários em CEPsssss Jorge A. Beloqui1

1 Representante dos usuários na CONEP desde Julho de 1999,atualmente atuando como suplente, Doutor em Matemática, Profes-sor no IME-USP. Membro do GIV (Grupo de Incentivo à Vida-SP),ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS-RJ), RNP+ (RedeNacional de Pessoas vivendo com AIDS).

Apresentação: antecedentes históricos Apresentação: antecedentes históricos Apresentação: antecedentes históricos Apresentação: antecedentes históricos Apresentação: antecedentes históricos Quero historiar brevemente como entrei em contato

com essa área de ética em pesquisa. Eu participo doMovimento de Luta contra a Aids desde 89. Foi a partirde 91, com o estímulo à pesquisa de vacina anti-HIV noBrasil, que tomei contato – com outros - dedicando-metambém à reflexão e ação sobre a ética nas pesquisas eo acesso ao fruto dessas pesquisas em Aids. Lembremosque nessa época eram poucos os ensaios coordenadosdo exterior, e, se não me falha a memória, foi a partir de95, 96 que eles começaram a se multiplicar.

Um breve comentário acerca do controle social daUm breve comentário acerca do controle social daUm breve comentário acerca do controle social daUm breve comentário acerca do controle social daUm breve comentário acerca do controle social dapesquisa de Vpesquisa de Vpesquisa de Vpesquisa de Vpesquisa de Vacinas anti-HIVacinas anti-HIVacinas anti-HIVacinas anti-HIVacinas anti-HIV

Em 1991, ocasião em que o Brasil recebia missão daOMS para debater as questões relacionadas à infra-estrutura para a condução de pesquisas de vacina,lembro-me de que o Ministro declarou expressamenteque o Brasil não forneceria cobaias para pesquisa. Nossapreocupação na época, entre as ONGs/AIDS, era como histórico de ampla exploração pelos paísesdesenvolvidos à procura de “cobaias” nos países emdesenvolvimento para alimentar seus projetos depesquisa. Isso continua ainda, e exemplos declaradosexistem, como os ensaios de AZT em mulheres grávidasna África, e outros ensaios que vêm sendo noticiadospelo Washington Post. Reportagens de grande repercussãodesse periódico demonstram haver uma “(...) busca depaíses em desenvolvimento, com sistemas fracos decontrole, para realização de pesquisas que são cada vezmais difíceis de serem aceitas nos países desenvolvidos,incluindo os inúmeros abusos identificados. O Brasil écitado entre os países de maior interesse da indústriafarmacêutica para realização de testes clínicos de novasdrogas, com aumento da procura de cerca 500% naúltima década (BONTEMPO, LOBO,s/d, p. 12)”.Enquanto organizações em defesa dos interesses dasociedade, pensávamos nós que o desenvolvimento deuma vacina anti-HIV era uma questão de saúde públicamuito relevante. E, portanto, não podíamos nos furtar aesse compromisso. Também estaria nas nossas mãosgarantir, pelo menos nessa área, a não utilização decobaias humanas, exigindo excelência científica e ética.Isso é muito importante, porque significa, por exemplo,“nada de duplo standard!” “Ah, como é país emdesenvolvimento, então lá vamos fazer uma coisinha umpouquinho piorzinha, porque eles não têm acesso a nadamesmo...” Isso acontece! Há inclusive pesquisadores dosEUA tentando impor essa prática como regra.

As ONGs/AIDS desenvolveram várias atividades deinformação e discussão sobre vacinas anti-HIV, como a

realização de Jornadas e a publicação do Boletim Vaci-nas (http://www.giv.org.br/boletimvacinas/Boletim12internet.pdf), entre outras publicações. Um dos fatos adestacar foi o debate em torno do Termo de Consenti-mento Livre e Esclarecido (TCLE), discutido por cento evinte pessoas em 1994, durante uma Jornada de Vaci-nas anti-HIV. Vejam que isso não é um acontecimentocomum, no Brasil pelo menos, nunca há uma exposiçãopara a comunidade com essa amplitude em ética empesquisa. Outra atuação relevante das ONGs/AIDS teveseu foco nas declarações preconceituosas sobre a trans-missão mulher/homem manifestas pelo pesquisador prin-cipal de uma pesquisa de vacinas aqui em São Paulo:solicitamos sua retirada e obtivemos êxito em nossa em-preitada. Aglutinamos grupos feministas e grupos gayscom ONGs/AIDS sob o argumento inquestionável de quenão era possível que uma pessoa que fizesse tais decla-rações tão preconceituosas a duas ou três revistas, pu-desse ocupar o posto de pesquisador principal numa áreaque certamente ia lidar alguma hora com populaçãomuito vulnerável, sobretudo em pesquisa de fase III.

Um caso emblemático: o ensaio 028 com oUm caso emblemático: o ensaio 028 com oUm caso emblemático: o ensaio 028 com oUm caso emblemático: o ensaio 028 com oUm caso emblemático: o ensaio 028 com oMedicamento MKMedicamento MKMedicamento MKMedicamento MKMedicamento MK-639 (indinavir)-639 (indinavir)-639 (indinavir)-639 (indinavir)-639 (indinavir)

“Considerado o maior experimento com antiretroviraisque já ocorreu em território nacional (...), o Protocolo028 foi desenvolvido em São Paulo entre abril de 1995 emarço de 1997. Envolveu a participação de cincoimportantes centros de pesquisa e assistência de referênciapública a pacientes com HIV e AIDS: Hospital das Clínicasda Universidade de São Paulo (HC/ USP), Escola Paulistade Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo/Hospital São Paulo (UNIFESP); Hospital das Clínicas daUniversidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Institutode Infectologia Emílio Ribas e, posteriormente, o Centrode Referência e Tratamento de AIDS (CRT), sendo estesdois últimos vinculados à Secretaria de Estado da Saúdede São Paulo. (...) O estudo foi patrocinado pelolaboratório Merck, Sharp & Dohme (MSD), que utilizariaseus resultados para o registro do Indinavir, então emandamento, na agência regulatória Food and DrugAdministration (FDA), responsável pelo registro e vigilânciasanitária de medicamentos nos Estados Unidos. Com umaduração prevista para três anos, o estudo acompanhou996 adultos soropositivos para o HIV-1, distribuídos aoacaso em três braços (...) (OLIVEIRA; SANTOS; MELO,

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2001)”. Um dos braços previa tratamento com Indinavirem monoterapia, o segundo, com AZT, também emmonoterapia e o terceiro, em terapia combinada comAZT e Indinavir. A experiência foi útil para questionar oensaio Merck 028 sobre o medicamento em teste, à épocachamado MK 639, um inibidor de protease. Comodestacam as autoras acima citadas, foi no “fórum daética” – intensificado pelas ações de controle emonitoramento social - que o caso foi enfrentado, sobpena de, ao contrário, ter passado ileso, mesmo queconduzido sob estratégias condenáveis, tanto do pontode vista ético, quanto do ponto de vista científico. O fatoé que, em 1996, haviam vindo a conhecimento públicoresultados dos estudos do Delta Coordinating Committee(1996) e um sobre o ACTG175 (HAMMER et al, 1996),que mostravam a superioridade da terapia dupla sobrea monoterapia. Tais resultados exigiam – por questõesde ética - uma mudança rápida no protocolo em curso!Vejam que participavam da pesquisa cinco instituiçõesdas mais prestigiosas, mas todas elas fechavam com ospesquisadores! Naquele tempo não tínhamos Comitê deÉtica em Pesquisa; a Comissão de Ética era uma coisasó. As ONGs/AIDS a elas dirigiram denúncias: não seestava fornecendo o melhor tratamento existente emterapia antiviral, não se forneciam os resultados de cargaviral para os pacientes, entre os problemas que o estudoapresentava. Porém resultados sobre o impacto na cargaviral de 244 pacientes foram apresentados na ConferênciaInternacional de AIDS de Vancouver (Julho de 1996) eno ICAAC (setembro de 1996). Mas, todos os Comitêsde Ética a que se recorria fechavam com os pesquisadores,chegando-se ao ponto de remeter a eles nossasreclamações para emissão de parecer. O laboratórioachava correto e, obviamente, os pesquisadores achavamcorreto aquilo que estavam fazendo. Mas nenhum delesfoi capaz de pedir um parecer independente! Essecomportamento não revela falta de conduta científicaadequada? Se você tem uma reclamação sobre opesquisador, você pede um parecer independente, o queé uma coisa básica. E não pede para o mesmopesquisador! Foi então que se percebeu que, na verdade,as Comissões de Ética das instituições envolvidas nãotinham nem capacidade, nem autonomia para pedir umparecer independente. Percebemos que, para além deuma revisão institucional, se fazia necessária uma revisãoextra-institucional, ao menos para os projetos comcooperação estrangeira. E, por lamentável que seja, essecaso ia denotando que o sigilo, a confidencialidade,estavam mais a serviço do pesquisador do que dosvoluntários. Entramos com recurso no CRM, porém mesmoo CRM não fez nada. Naquela época, a Resolução 196tinha sido implantada, mas ainda não existia a ComissãoNacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Existia o GET,grupo de trabalho para instalação da CONEP. E apenaso GET pediu parecer independente, solicitando trêspareceres de pessoas não envolvidas na pesquisa. Isso éIsso éIsso éIsso éIsso éque é uma conduta científica e ética, básica, que é uma conduta científica e ética, básica, que é uma conduta científica e ética, básica, que é uma conduta científica e ética, básica, que é uma conduta científica e ética, básica, algo queas cinco instituições envolvidas, que são da maiorreputação aqui na cidade, ou no Estado, não foram

capazes de fazer! Aqui foram mil voluntários! Tudo issoera escandaloso mesmo! Pior ainda: era uma pesquisacom desfecho clínico, ao contrário do que sucedia comoutra que era conduzida simultaneamente e com a mesmadroga nos Estados Unidos, com a previsão de desfecholaboratorial. Acontece que o protocolo foi desenhadonuma época que houve muitos avanços na terapia, nodiagnóstico e acompanhamento em AIDs. Para adequá-lo eticamente devia ir mudando o desenho. Os embatessucessivos e as dificuldades que tivemos que enfrentardemonstraram que, na verdade, as instituições fechamcom seus pesquisadores e não fecham com seusvoluntários! Mostra que instituições prestigiadas emconhecimento não precisam ter absolutamente nenhumcompromisso com a ética. São coisas diferentes: ter umdiploma de médico e utilizar ética na pesquisa! Por issotemos sustentado a necessidade de uma revisão extra-institucional – além da revisão institucional - sobretudono caso dos protocolos com participação estrangeira, nosquais nem sempre temos sido bem sucedidos.

Breve Introdução sobre a PBreve Introdução sobre a PBreve Introdução sobre a PBreve Introdução sobre a PBreve Introdução sobre a Participação de Usuários emarticipação de Usuários emarticipação de Usuários emarticipação de Usuários emarticipação de Usuários emCEPCEPCEPCEPCEPsssss

A Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saú-de (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996) estabeleceu a repre-sentação de usuários em Comitês de Ética em Pesquisa(CEPs). Essa resolução, definida depois de ampla con-sulta pública, criou os comitês, como colegiados inde-pendentes com a finalidade exclusiva de analisar a éticana pesquisa com seres humanos, separando-se, por exem-plo, das Comissões de Ética das Instituições de saúde.Entre as reuniões promovidas pelo Conselho Nacionalde Saúde (CNS) com o objetivo de instituir um documen-to - Bioética e Pesquisa Experimental em Seres Humanos- que representasse a opinião da sociedade, esteve aCâmara Técnica de Usuários. O documento foi produzi-do em conjunto com a Coordenadoria Nacional paraIntegração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE)do Ministério da Justiça, no evento que ocorreu de 2 a 6de junho de 1996, contando com a representação de 25associações de portadores de patologias, entre os quaismembros de ONGs/AIDS e portadores de HIV. A ética napesquisa foi também discutida na X Conferência Nacio-nal de Saúde em 1996. E, por certo, a representaçãodos usuários nos CEPs se consolidou com ainstitucionalização da CONEP (Comissão Nacional deÉtica em Pesquisa) pela Res. 196/96, comissão esta quetem, entre os seus objetivos, o de coordenar a rede deCEPs e com eles aprovar os projetos de pesquisa de cer-tas áreas especiais. Entre seus 13 membros, um é repre-sentante dos usuários, outro é representante do gestor(Ministério da Saúde - MS), sendo os demais nomeadospelo CNS a partir de sugestões dos CEPs. Os membrospodem ser reconduzidos, renovam-se pela metade a cadadois anos, sendo que o mandato é de quatro anos.

RRRRRepresentação de usuários e o controle social em saúdeepresentação de usuários e o controle social em saúdeepresentação de usuários e o controle social em saúdeepresentação de usuários e o controle social em saúdeepresentação de usuários e o controle social em saúdeA Res. 01/1988 do CNS já previa a possibilidade da

representação de usuários nos CEPs, mas tal possibilida-

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de nunca se concretizou, o que nos dava a idéia de quea representação de usuários não era bem vinda nas ins-tituições de saúde. Nessa direção, destaque-se que, nemos CEPs nem a CONEP prevêem em seus regulamentosrepresentação paritária de usuários. Isso coloca em xe-que a sua potencialidade como organismos de controlesocial, diversamente do que pode ser atribuído ao CNS.Só podem ser considerados organismos de controlecontrolecontrolecontrolecontroleinstitucionalinstitucionalinstitucionalinstitucionalinstitucional, diferentemente da CONEP que exerce suafunção de controle social por delegação do CNSpor delegação do CNSpor delegação do CNSpor delegação do CNSpor delegação do CNS. Estesim, exerce esse controle. Saliento que a representaçãoparitária deve ser uma aspiração dos usuários e dos CEPse considero ser necessário que os usuários se preparempara essa conquista. A representação de usuários naCONEP é nomeada pelo CNS a partir de indicação dosrepresentantes de usuários no CNS. A titular atual éAlejandra Rotania, coordenadora executiva da ONG SerMulher - Centro de Estudos e Ação da Mulher, NovaFriburgo/RJ, entidade filiada à da Rede Nacional Femi-nista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, sendoespecializada em ética e direitos reprodutivos.

A formação e escolha da representação de usuáriosA formação e escolha da representação de usuáriosA formação e escolha da representação de usuáriosA formação e escolha da representação de usuáriosA formação e escolha da representação de usuáriosem CEPem CEPem CEPem CEPem CEPsssss

Não raro, o representante de usuários no CEP é al-guém de confiança do diretor do Hospital ou de umaoutra autoridade da instituição. Conhecemos mesmo umcaso em que a representante de usuários era a esposado Coordenador do CEP! Mas, a Res. 240 (MINISTÉRIODA SAÚDE, 1997) prevê a forma da representação deusuários nos CEPs. Na alínea b, estabelece que: “Repre-sentantes de usuários são pessoas capazes de expressarpontos de vista e interesses de indivíduos e/ou grupossujeitos de pesquisas de determinada instituição e quesejam representativos de interesses coletivos e públicosdiversos.” E prossegue, assim estabelecendo na alínead): “Nos locais onde existam fóruns ou conselhos de en-tidades representativos de usuários e/ou portadores depatologias e deficiências, cabe a essas instâncias indicaros representantes de usuários nos Comitês de Ética.”Como vemos, não basta ser usuário, mas também é ne-cessário expressar os pontos de vista de indivíduos e gru-pos. Ou seja, o representante de usuário/a não apenasdeve pensar por si, mas por outros. Assim, analisandoum TCLE deve pensar não somente se ele/a foi capaz decompreendê-lo, mas, sobretudo, se um usuário/a qual-quer entenderia. Também é importante estar ligado a umaentidade representativa de usuários para poder discutiros diferentes aspectos tratados nos protocolos, renovan-do sempre seu conhecimento, do ponto de vista dos usu-ários. Por último, os representantes de usuários devemaspirar a revisar protocolos por inteiro. Não bastará so-mente analisar o TCLE; como membros do CEP, pensa-mos que, ao final de dois anos de atuação, no máximo,deverão ter-se capacitado para analisar protocolos, pelomenos das áreas mais afins. Em particular, para ser mem-bro da CONEP acreditamos ser fundamental preparar-se, adquirindo conhecimento prévio sobre o tema, demodo a se capacitar para analisar um projeto por inteiro.

O trabalho na CONEPO trabalho na CONEPO trabalho na CONEPO trabalho na CONEPO trabalho na CONEP: a experiência do representan-: a experiência do representan-: a experiência do representan-: a experiência do representan-: a experiência do representan-te dos usuários e problemas recorrenteste dos usuários e problemas recorrenteste dos usuários e problemas recorrenteste dos usuários e problemas recorrenteste dos usuários e problemas recorrentes

O trabalho dos membros da CONEP é bastante pe-sado: são reuniões mensais que consomem dois dias deatividade, e cada um de nós deve dar parecer sobre 3 a5 projetos, a cada reunião. Às vezes há reuniões extraor-dinárias. Além disto há a elaboração de novas normas eoutros itens necessários ao desenvolvimento dos traba-lhos, como a contribuição para o desenvolvimento deuma cartilha do usuário e outros materiais impressos.Alejandra Rotania, a atual representante dos usuários,faz parte do Conselho Editorial dos Cadernos de Éticaem Pesquisa da CONEP. Também temos que representara CONEP em fóruns, debates..... Ressalte-se que, apesardo aumento da estrutura da CONEP, o MS não forneceupor inteiro a estrutura necessária para acompanhar talcrescimento. Há sempre uma tensão entre o gestor, oMS, e o CNS e, “de quebra”, com a CONEP. Vários epi-sódios, sobretudo até o ano 2002, ilustraram essa reali-dade que, devido ao curto espaço de que aqui dispo-mos, não serão aqui enumerados. Também se percebeum movimento constante do gestor para distanciar osusuários do controle da ética em pesquisa, ao propor acriação de comissões paralelas. Esse movimento é mes-mo condizente com a realidade prévia à Res. 196/96.Entre os problemas recorrentes, está o crescimento verti-ginoso de projetos apresentados à CONEP, destinando-lhe uma tarefa gigantesca. Essa tem sido uma cunha paraque a CONEP seja pressionada, tanto pelo gestor, comopor pesquisadores a não mais analisar projetos com co-laboração do exterior.

PPPPProblemas recorrentes na tramitação das pesquisasroblemas recorrentes na tramitação das pesquisasroblemas recorrentes na tramitação das pesquisasroblemas recorrentes na tramitação das pesquisasroblemas recorrentes na tramitação das pesquisascom cooperação estrangeiracom cooperação estrangeiracom cooperação estrangeiracom cooperação estrangeiracom cooperação estrangeira

Na sua maior parte, os protocolos examinados pelaCONEP referem-se a pesquisas coordenadas do exterior,o que é algo diferente. Nos projetos que temos revisado- a maior parte deles com pendências - muitas vezes, asincorreções se repetem, quer no que se refere aocompromisso de divulgação dos dados, quer nocompromisso com o fornecimento da medicação umavez concluído o estudo, quer no que se refere aocumprimento das exigências vinculadas à indenização,aspectos especificamente detalhados no Cap. V. da Res.196/96. Quanto ao fornecimento da medicação umavez concluído o estudo podemos citar que isto é umaexigência da Res. 196/96 III.3p), Declaração de Helsinque(2000) Parágrafo 30 e mesmo da Comissão NacionalAssessora de Bioética dos EUA (NBAC, 2001). Logo, osensaios estão obrigados ao fornecimento da medicaçãouma vez finalizado o estudo, se esta se mostrar eficaz,ainda que em alguns pacientes. Embora seja observadoum gradativo fortalecimento dos CEPs, é de se considerarque a repetição de problemas relacionados à divulgaçãode resultados, ao fornecimento de medicação e aoressarcimento indenizatório poderia indicar uma certavulnerabilidade dos CEPs aos conflitos de interesserepresentados especialmente pelas contribuiçõespecuniárias das empresas farmacêuticas internacionais,

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seja para os pesquisadores e sua equipe, seja para ainstituição. Testemunhamos ao longo destes anos diversastentativas de burlar o que dispõe a Res. 196/96. Umcaso exemplar, lamentavelmente denota o modosofisticado de que se valem as instâncias interessadasem realizar um trajeto de quem quer “levar vantagem” epassar por cima da lei: no ano de 2001, munido de umainformação que não era totalmente verdadeira, umpesquisador dirigiu uma carta ao MS, com cópia para aCONEP, solicitando que fossem imitados os InstitutosNacionais de Saúde (NIH) dos EUA que não indenizavam,nem tampouco ressarciam os danos causados durante apesquisa. (O fato real é que freqüentemente os voluntáriosnos EUA não se calam diante dessa manobra, recorrendocom sucesso à justiça na garantia de seus direitos). Poisbem! O motivo dessa solicitação era o de poder conseguirfazer parcerias com o NIH. Ilustra o desvalor conferido àproteção dos sujeitos de pesquisa (brasileiros), embenefício da possibilidade de estabelecimento deparcerias vantajosas para o pesquisador. Sobre efeitosadversos graves ocorridos em ensaios clínicos há quelembrar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária(ANVISA) tem sob seu controle esta investigação. Massomente a partir do final de 2003 a ANVISA começou ase movimentar neste sentido. Todas essas consideraçõesme remetem então a atribuir à CONEP um papel relevantea desempenhar, mais a longo prazo, no campo específicoda apreciação dos projetos com cooperação estrangeira,uma vez que – por força de suas articulações e de suaposição não hierarquizada na estrutura do MS – tem aprimazia de manter distanciamento de tais conflitos.

As pesquisas de saúde mental - alta vulnerabilidadeAs pesquisas de saúde mental - alta vulnerabilidadeAs pesquisas de saúde mental - alta vulnerabilidadeAs pesquisas de saúde mental - alta vulnerabilidadeAs pesquisas de saúde mental - alta vulnerabilidadeO CNS possui uma Comissão de Saúde Mental que,

nos parece, deve ser uma referência para assuntos nessaárea. Com respeito à área de psicofármacos, ela não temapresentado muitos projetos. Porém, sempre somos sur-preendidos pelo pouca importância que vários pesquisa-dores destinam à saúde dos voluntários. Há predileção porpesquisa em população institucionalizada, sem haver justi-ficativa adequada. Pensamos que isso acontece porqueassim a desistência seria menor. Mas a vulnerabilidadecertamente é maior! Um outro problema observado diz res-peito ao uso de placebo em estudos dessa natureza, mes-mo em casos onde há terapia comprovada. É o caso deum estudo que chegou à CONEP, já aprovado pelo CEPda instituição de origem e que envolvia o uso de placeboem pacientes em surto esquizofrênico, o que é minima-mente reprovável. De cunho semelhante, era um estudodirigido a portadores de depressão profunda, cujo dese-nho estabelecia que a medicação seria retirada depois de8 semanas de tratamento para ver o efeito! Isso não é umanovidade em pesquisa de medicamentos em países emdesenvolvimento. Realmente não sabemos se seria possí-vel fazer isto nos países desenvolvidos. Porém, no caso depsicofármacos há uma argumentação especial: a de quenessa área o efeito placebo seria importante. Temo-nosoposto a tais argumentações desprovidas de embasamentocientífico.

Nosso trabalho quanto a manifestação dos usuáriosNosso trabalho quanto a manifestação dos usuáriosNosso trabalho quanto a manifestação dos usuáriosNosso trabalho quanto a manifestação dos usuáriosNosso trabalho quanto a manifestação dos usuáriossobre os temas e problemas recorrentessobre os temas e problemas recorrentessobre os temas e problemas recorrentessobre os temas e problemas recorrentessobre os temas e problemas recorrentes

Diante da experiência acumulada na avaliação deprotocolos que tratam de pesquisas com colaboraçãoestrangeira, posicionamo-nos na época contra a dele-gação de sua análise aos CEPs. Mas temos também pro-curado o apoio dos encontros formais que têm reunidoos usuários Brasil afora: a) no Encontro Regional deONGs/AIDS da Região Sudeste de março de 2001 edepois em maio, durante o Encontro Nacional de ONGs/AIDS, quando estas ONGs manifestaram-se em favor deque os estudos com cooperação estrangeira no âmbitoda pesquisa sobre AIDS continuassem a ser analisadospela CONEP, ressalva esta respeitada na Regulamenta-ção de 7 de agosto de 2002 (MINISTÉRIO DA SAÚDE,2002); b) durante a Conferência Estadual de Saúde doEstado de São Paulo de novembro de 2001, foi aprova-da por unanimidade uma resolução para que os projetosde pesquisa com cooperação estrangeira - não só osdirecionados ao problema da AIDS - continuassem a seranalisados pela CONEP. O projeto de resolução foi apre-sentado com as assinaturas de mais de 10% dos delega-dos, correspondendo a 175 participantes, o que foi pornós imediatamente comunicado à CONEP; na Confe-rência Municipal de AIDS em Novembro de 2002, nova-mente foi aprovada uma moção em idêntico sentido.Registradas essas ressalvas sobre as pesquisas com coo-peração estrangeira, cabe destacar que teria sido apro-priado, mas infelizmente não aconteceu, realizar umaconsulta ao Fórum de Patologias que elege os represen-tantes de usuários no Conselho Nacional de Saúde eaos próprios representantes, sobre sua posição a respei-to, mesmo porque, recentemente a CONEP modificounovamente a sistemática de exame das pesquisas comparticipação estrangeira (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005)Em Dezembro de 2000 e 2002 realizamos dois Fórunsde Representantes de usuários em CEPs. O segundo foirealizado em parceria com a Secretaria Municipal deSaúde de SP. Foi muito difícil se comunicar com repre-sentantes de usuários nos CEPs. Dos 59 CEPs da cidadede SP, só compareceram 12 representantes de usuários,o que leva à conclusão de que, na maior parte dos CEPsde SP, a representação de usuários não é levada a sériopela instituição. Deixamos para os colegas de outrosmunicípios tirarem suas conclusões sobre se a situaçãonos seus espaços de origem seria muito diferente. Danossa parte, acreditamos na relevância de se investir nareflexão sobre as necessidades relativas à representaçãode usuários nos CEPs, tendo em vista a importância daparticipação da sociedade civil na caracterização de pro-blemas, no acompanhamento social da pesquisa no Brasile da relevância de se garantir representatividade efetivae qualificada em termos das diferenças de gênero, raça/etnia, orientação sexual, idade, patologias, etc. Nota-mos, com satisfação, que, em abril de 2005, o HospitalConceição de Porto Alegre realizou um Encontro de Re-presentantes de Usuários em CEPs, iniciativa que, nanossa opinião, deveria ser imitada por outros CEPs.

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As confidencialidades: uma proposta que temos apreAs confidencialidades: uma proposta que temos apreAs confidencialidades: uma proposta que temos apreAs confidencialidades: uma proposta que temos apreAs confidencialidades: uma proposta que temos apre-----sentado em diversas circunstânciassentado em diversas circunstânciassentado em diversas circunstânciassentado em diversas circunstânciassentado em diversas circunstâncias

Há alguns anos, para maior transparência e adequa-adequa-adequa-adequa-adequa-do controle social das pesquisasdo controle social das pesquisasdo controle social das pesquisasdo controle social das pesquisasdo controle social das pesquisas, temos proposto queos projetos aprovados devem estar disponíveis na íntena íntena íntena íntena ínte-----gragragragragra na Internet antes de entrar em campo - exceto talvezpela Brochura do Pesquisador - numa página da CONEPou do CEP. Tendo sido aprovado o projeto, não vemosproblemas éticos com a sua divulgação. O Sistema Na-cional Informatizado de Ética em Pesquisa (SISNEP) pode,de alguma forma, ser um início nesse sentido. Adverti-mos haver um enorme desinteresse nessa proposta. Issolevaria a que as associações de usuários portadores dealguma patologia pudessem controlar mais de perto osensaios, solicitar resultados, etc. Por outro lado, a ciên-cia teria um status mais público, algo que é fortementelimitado pelas pesquisas com participação de compa-nhias farmacêuticas.

A quem interessa a ciência secretaciência secretaciência secretaciência secretaciência secreta?Notamos com otimismo que muitas revistas de prestí-

gio internacional como o The New England Journal ofMedicine (NEJM), The Lancet, Annals of Internal Medicine(NEJM setembro de 2004) AIDS (janeiro de 2005) entreoutras, passaram a exigir que os ensaios que iniciem re-crutamento a partir de julho de 2005, deveriam previa-mente ser objeto de um registro público acessível, exibin-do todos os aspectos relativos ao ensaio empreendido,durante o recrutamento ou antes. Tal exigência revelaque ensaios com resultados muito importantes, por exem-plo ensaios com resultados negativos, como estes edito-riais afirmam, não são publicados. Por outro lado, re-centemente, tem-se apelado para cláusulas restritivas noresguardo da confidencialidade da identidade do paci-ente. Nos TCLEs tem começado a aparecer frases como“Faremos o maior esforço para preservar aconfidencialidade...”. “Terão acesso ao seu prontuário”,seguido de uma listagem grande de instituições. Na ver-dade, parece que não se quer mais se responsabilizarpela confidencialidade dos dados – não somente do en-saio mas do próprio prontuário do voluntário - seja porparte do pesquisador, patrocinador, seja da parte da ins-tituição. Diante dessas cláusulas, a CONEP decidiu porrealizar uma consulta a várias instituições, entre elas oConselho Federal de Medicina. Naturalmente a CONEPnão pode e não deve se responsabilizar pela violaçãonas normas de confidencialidade de organismoscontroladores do exercício da medicina, nem de outrasprofissões. A alteração destas normas não é de sua res-ponsabilidade. Mas o que mais nos chama a atenção éa convivência de tentativas de diminuição da proteçãoda confidencialidade dos sujeitos envolvidos, com o res-guardo do sigilo do conteúdo de pesquisas aprovadas eem desenvolvimento no campo, e mesmo da divulgaçãodos resultados. A serviço de quem está aconfidencialidade afinal de contas?

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoO campo de ética em pesquisa é muito movimenta-

do. Num país em desenvolvimento como o Brasil, onde

existe uma submissão da pesquisa aos interesses de lu-cro das empresas farmacêuticas é necessária a partici-pação e a formação de representantes de usuários nosCEPs e a transparência sobre o tipo e a qualidade dosensaios desenvolvidos. O acesso à informação sobre osensaios aprovados no Brasil, antes de entrar em campoé necessário para possibilitar o controle social amplo epara saber o que está sendo pesquisado no Brasil. Istonão é somente uma percepção de representantes de usu-ários mas também de editores das revistas mais prestigi-osas da área.

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

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A partir de 1995, o Brasil se empenhou naorganização de um sistema para acompanhamento daética nas pesquisas envolvendo seres humanos e estaexperiência pode ser relatada dentro de três perspectivas:a construção da regulamentação, a implantação dosistema e o conhecimento acumulado do perfil e contextodessas pesquisas após 6 anos de funcionamento.

A construção da regulamentaçãoA construção da regulamentaçãoA construção da regulamentaçãoA construção da regulamentaçãoA construção da regulamentação – A organizaçãodos mecanismos de proteção de sujeitos de pesquisa noBrasil surgiu a partir do Conselho Nacional de Saúde -CNS, como uma ação de controle social sobre as práticasda ciência.

Como primeira iniciativa do CNS em 1988, foielaborada a Resolução 01/88 sobre normas éticas parapesquisas em saúde. Em 95 foi revista, através de umprocesso exemplar de construção participativa, numaparceria governo/sociedade civil, publicando-se em 1996a Resolução 196/96 com as Diretrizes e NormasRegulamentadoras para Pesquisas Envolvendo SeresHumanos. Criou-se a Comissão Nacional de Ética emPesquisa, coordenadora do processo de estruturação nopaís de um sistema para acompanhamento das pesquisas,especialmente através da criação de Comitês de ÉticaInstitucionais.

Ambas, Comissão Nacional e Comitês Institucionais,são instâncias com múnus público, de caráter multi einterprofissional, com representação de usuários , parafuncionarem como instâncias independentes dopesquisador ou instituição, na defesa precípua dosinteresses e direitos dos sujeitos de pesquisa. Seusmembros são eleitos ou escolhidos por critérios deinteresse, disponibilidade e sensibilidade para a questãoda ética e da defesa de direitos individuais e coletivos,são voluntários, podem não ser da instituição ( não têmvínculo empregatício por essa participação) e nãorecebem pagamento pelas funções ali exercidas.

Estas características do sistema: ser instância decontrole social, sem vínculo exclusivo e direto com aadministração, de caráter honorífico e voluntário,multiprofissional e com representação de usuários, são,em seu conjunto, a essência mais fundamental para aefetivação da sua missão, assegurando-lhe aindependência de julgamento necessária à sualegitimação na sociedade.

Constitui experiência única e diferenciada de outrasiniciativas até bem mais antigas, especialmente dos paísescentrais. Estes sistemas lutam hoje pela conquista doreconhecimento perdido em desvios de rota e distorções,ocasionados pela pressão dos interesses dospatrocinadores, instituições de pesquisa e mesmo deórgãos governamentais, tendo se afastado da missãoprincipal de proteção das pessoas participantes depesquisas científicas. Não foram também favorecidos nasua estruturação, por terem surgido de iniciativas de

Ética na PÉtica na PÉtica na PÉtica na PÉtica na Pesquisa em países em desenvolvimen-esquisa em países em desenvolvimen-esquisa em países em desenvolvimen-esquisa em países em desenvolvimen-esquisa em países em desenvolvimen-to – a experiência brasileirato – a experiência brasileirato – a experiência brasileirato – a experiência brasileirato – a experiência brasileira11111

Corina Bontempo Duca de Freitas2

corporação profissional ou de órgão de governo,submetidos, portanto, a lógicas e políticas que nãofavorecem a independência para colocar a proteção dosujeito em primeiro lugar.

Ressalta-se também o processo de construção daregulamentação de 1996, que através de umametodologia de trabalho ampla e participativa, buscoua legitimação da proposta, a fundamentação nosconceitos atuais da bioética, a consideração dasperspectivas da sociedade brasileira e a adequação aossetores de ponta da ciência, responsáveis pela execuçãodas pesquisas. Esse processo incluiu:

- consulta à comunidade científica e à sociedade,solicitando análises e sugestões paraaprimoramento das diretrizes existentes;

- divulgação de documentos internacionais dediretrizes éticas para pesquisas biomédicas;

- estímulo à realização de seminários institucionaispara discussão aprofundada do assunto;

- consolidação das propostas e sugestões eapresentação de minuta do novo documento emAudiência Pública;

- apresentação da proposta preliminar das novasdiretrizes no Congresso Brasileiro de Bioética;

- apresentação final e aprovação no ConselhoNacional de Saúde.

A construção da regulamentação no Brasil, dessaforma, tem aspectos fundamentais e distintos de outrasiniciativas: sua gênese dentro do sistema formal decontrole social, sem vinculação direta com aadministração e o processo participativo de construçãodas normas. Sem dúvida, também o desencadear domovimento no momento oportuno pôde ser comprovadopelo crescimento das pesquisas no país nos anosseguintes, fazendo com que as normas, diretrizes eestrutura do sistema se constituíssem, de imediato, empilares para a prática.

Dentro desse processo participativo, ressalta-se aatuação segura e firme do Prof. William Saad Hossne,Conselheiro titular no CNS, representante dacomunidade científica, que coordenou o Grupo deTrabalho designado para a revisão da Res. 01/88 eposteriormente a Comissão Nacional de Ética emPesquisa.

A RA RA RA RA Resolução CNS 196/96esolução CNS 196/96esolução CNS 196/96esolução CNS 196/96esolução CNS 196/96Acredita-se que estas normas realmente são resultado

1 Artigo publicado na obra Bioética: Poder e Injustiça, organizada porLeo Pessini e Volnei Garrafa, de Edições Loyola. Republicado com aautorização da editora.

2 Médica Pediatra e Sanitarista, especialista em Gestão Pública eQualidade, Assessora do Conselho Nacional de Saúde, SecretáriaExecutiva da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

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do que pensa a sociedade brasileira, construídas a partirde requisitos dos órgãos de governo, da comunidadecientífica, dos sujeitos de pesquisa e da sociedade emgeral, constituindo efetivo instrumento de concretizaçãoda cidadania e de defesa dos direitos humanos.

Abrange toda a pesquisa envolvendo seres humanose, portanto, sua aplicação se dá nas pesquisas das váriasáreas do conhecimento e não apenas nas geradas nosórgãos de saúde, como a anterior. Estabelece asexigências éticas e científicas fundamentais para garantiados direitos dos sujeitos da pesquisa, sob o enfoque deque toda pesquisa envolve riscos, sejam eles físicos oupsicológicos, individuais ou coletivos, e deve havercontrole para a preservação da saúde ( física, mental ousocial) dos envolvidos. Por isso estabelece que todapesquisa que envolva o ser humano deve ser aprovada,antes de ser iniciada, por um Comitê independente dopesquisador.

Esta Resolução traz as diretrizes para análise éticadas pesquisas, a ser feita inicialmente pelo próprio autordo projeto e depois também pelo Comitê de Ética emPesquisa - CEP, orientando uma reflexão quanto a riscose benefícios. Determina também a criação desses Comitêsao nível das instituições, define como devem serconstituídos e cria a Comissão Nacional de Ética emPesquisa (CONEP), para acompanhar e coordenar todoo processo. Estabelece um fluxo de tramitação dosprojetos e define as atribuições dos Comitês e o papelda CONEP. Ressalta a missão de garantir e resguardar aintegridade, direitos e liberdades fundamentais dosvoluntários participantes da pesquisa, protegendo-os depossíveis danos e assegurando à sociedade que apesquisa estará sendo feita de forma eticamente corretae que o interesse e o bem-estar do ser humano prevaleçasobre o interesse da sociedade e da ciência. Os CEPs ea CONEP efetivam assim, o controle social sobre aspráticas científicas, qualificando-as do ponto de vista daética, evitando indução, imposição, exploração dos maisvulneráveis da sociedade, exposição a riscos inúteis e,acima de tudo, danos previsíveis.

A implantação do sistemaA implantação do sistemaA implantação do sistemaA implantação do sistemaA implantação do sistema - Quanto à estrutura, osistema se implantou rapidamente e hoje há 327 CEPsfuncionando nas principais instituições de pesquisa dopaís. Esses comitês devem ter em sua composiçãoprofissionais da área de saúde, assistentes sociais,cientistas sociais, advogados, juristas, filósofos, teólogos,educadores, além de pessoa leiga representante dosusuários. Estima-se que nesses comitês estejamtramitando de 10.000 a 15.000 projetos de pesquisapor ano, enquanto que à CONEP foram apresentados1317 projetos no ano de 2001, das chamadas áreastemáticas especiais, a maioria de novos medicamentos.A área de genética humana tem crescido bastante, sendoque grande parte desses projetos envolve uso de testespreditivos e procura de polimorfismos em determinadaspopulações.

Conforme atribuição definida na Resolução 196, aCONEP vem contribuindo com normas específicas, deacordo com a experiência acumulada sobre os dilemaséticos envolvidos e o perfil das pesquisas nas diversasáreas. Resoluções complementares contêm diretrizesespecíficas como a Resolução 251, que contempla a área

dos novos fármacos e a Resolução 292 que trata dacooperação estrangeira. Essa última define pontosimportantes, tais como comprovação da participaçãobrasileira e identificação dos pesquisadores de instituiçõesnacionais co-responsáveis, considerando a condição deparceria. A Resolução 303 trata da Reprodução Humana,sendo que algumas sub-áreas de grande freqüência dedilemas éticos como anticoncepção, manipulação deembriões, fetos e reprodução assistida, ficam nadependência de aprovação final da CONEP. A Res. CNS304 traz diretrizes para pesquisas com povos indígenas,tendo sido construída com a colaboração da ComissãoInterinstitucional de Saúde do Índio e representes de povosindígenas do Brasil.

Buscando a integração dos CEPs, o estabelecimentode critérios comuns de funcionamento, a clareza natomada de decisão e a capacitação dos membros, trêsvertentes do trabalho foram priorizadas na CONEP: 1- odesenvolvimento de um sistema de informações nacional,em banco de dados único a ser utilizado via internet, online, pelos pesquisadores, CEPs, CONEP e público emgeral; 2- elaboração de um Manual Operacional paraCEPs, com a colaboração de dez coordenadores de CEPmais experientes; e 3- fortalecimento e capacitação dosCEPs, através de estímulo à preparação local de cursos ede apoio financeiro para equipar os Comitês. Cumpridasessas etapas, busca-se agora desenvolver uma propostade supervisão / avaliação dos Comitês em funcionamento.O processo incluirá estabelecimento de níveis dequalidade para o funcionamento dos CEPs e visitasinterpares, através de membros de um CEP avaliandooutro CEP.

PPPPPerfil e contexto das pesquisas – erfil e contexto das pesquisas – erfil e contexto das pesquisas – erfil e contexto das pesquisas – erfil e contexto das pesquisas – De 1997 a 2001observou-se grande aumento do número de pesquisasenvolvendo seres humanos no país, apresentadas paraavaliação ética. Como ao mesmo tempo houve ocrescimento do sistema com aderência progressiva àsnovas normas, o aumento do número de Comitês locaise conseqüentemente da submissão de pesquisas, torna-se difícil quantificar exatamente o aumento real que, noentanto, percebe-se como um verdadeiro boom. Em1997, primeiro ano de funcionamento, foram recebidosna CONEP cerca de 160 projetos de áreas temáticasespeciais, número este que chegou a 1317 em 2001.Estimando-se que apenas cerca de 10% dos projetos quechegam aos CEPs são dessas áreas temáticas especiais,conclui-se que foram submetidos cerca de 13000 projetosao sistema nesse último ano de 2001. Um dadocomparativo pode ser citado: em 1995 foram submetidosà Secretaria de Vigilância Sanitária 30 projetos de novosmedicamentos para licença de importação de drogas,sendo que em 2000 esse número foi de 744,correspondendo a um aumento de cerca de 25 vezes em5 anos. Portanto houve aumento real ao mesmo tempoem que aumento da captação dos projetos para o sistemade acompanhamento ético.

Dos 1317 projetos de áreas temáticas especiais de2001 ( incluindo reprodução humana, genética humana,cooperação estrangeira, biossegurança, novosequipamentos e dispositivos para a saúde, povosindígenas e novos procedimentos), 1027 – 78% foramprojetos de cooperação estrangeira e, destes, 929 de

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novos fármacos, vacinas e testes diagnósticos (90%). Dessa forma, a CONEP acumulou uma grande

experiência na análise desses protocolos e conhecimentodo contexto das pesquisas multicêntricas internacionaispatrocinadas pela indústria farmacêutica, área que temse mostrado responsável pelo grande aumento antesreferido. Dados da indústria referem-se a grande aumentode investimento em pesquisas no Brasil, estimando-se umtotal de recursos de 78 milhões de dólares para pesquisaclínica de novos medicamentos aplicados pela indústriafarmacêutica no Brasil no ano de 2000 ( Gazeta Mercantil,junho 2000).

De fato, publicação recente do jornal The WashingtonPost mostra a maior procura de parceiros em países emdesenvolvimento, para as pesquisas de novas drogas defases III e IV e coloca o Brasil dentre os países foco dointeresse das pesquisas da indústria farmacêutica, juntocom México e Argentina, na América Latina, Europa doLeste e África do Sul. Dentre os fatores que podem explicartal interesse, cita-se: existência de grande contingente depacientes com variada morbidade (prevalência dedoenças dos países menos desenvolvidos, como asinfecciosas, e também de doenças do mundodesenvolvido, como hipertensão, diabetes, arteriosclerosee outras) e dificuldades de acesso à atenção de boaqualidade e aos medicamentos, o que torna os pacientesinteressados na assistência mais personalizada dada nosprojetos de pesquisa clínica e na oportunidade de recebero medicamento em teste. Soma-se a esses fatores o fatode termos uma população culturalmente menosesclarecida e mais dócil às solicitações e indicações domédico assistente, que por sua vez costuma prestaratendimento em grandes ambulatórios públicos comgrande demanda, inclusive de pacientes virgens detratamento anterior. Dessa forma é evidente que orecrutamento para testes é rápido e fácil, diferentementedo que ocorre nos países centrais, e tanto direta quantoindiretamente (tempo é dinheiro) é financeiramentecompensatório para os patrocinadores. Em contrapartida,a comunidade científica acumula experiência, ainda quelimitada, com a participação nos projetos; recebeincentivos financeiros que às vezes revertem eminvestimentos científicos nas instituições e o registro, se onovo medicamento se mostrar eficaz e seguro, é feitoquase simultaneamente no mundo todo, disponibilizando-o no mercado nacional para a população que puder teracesso. Esta é a lógica dos projetos multicêntricosinternacionais, ressaltando-se que o Brasil é o quintomercado mundial de medicamentos e que tem hoje umacomunidade científica qualificada, além de um sistemade avaliação ética que dá respaldo aos pesquisadores epatrocinadores, inclusive melhorando a aceitabilidade dasparcerias com os países centrais.

É evidente, portanto, a responsabilidade do sistemaCEP/CONEP na identificação dos projetos que,qualificados científica e eticamente, possibilitam umaparceria. Por outro lado, problemas éticos têm sidotambém comumente identificados nessas pesquisas epodem ser apresentados segundo a perspectiva do sujeito,do pesquisador nacional, da instituição e do país. Sãotodas situações previstas nas normas e cujodescumprimento tem sido responsável por um grande

número de projetos com pendências ao serem apreciados(30% em 2001), quando se exigem modificações antesde sua aprovação. Alguns são, ainda, inadequadoseticamente e, portanto, não aprovados (4%).

Do ponto de vista dos sujeitos de pesquisa, problemaséticos identificados incluem: recrutamento de pacientesjá em tratamento, visando conclusão rápida da pesquisa,com necessidade de período de wash out (suspensão totaldos medicamentos em uso por certo tempo antes doinício do uso do medicamento em teste, para evitarinterferência na análise da nova droga), período quepode ser clinicamente crítico para o paciente;comparação de grupos de pacientes usando nova drogacom grupos usando placebo, podendo existir pacientessem nenhuma cobertura terapêutica disponível; guardade material biológico para outros estudos, semconsentimento específico (esclarecido) dos sujeitos dapesquisa; decisão de participação nem sempreesclarecida por falhas no processo de obtenção doconsentimento.

Do ponto de vista do pesquisador: poucoenvolvimento na parte científica do projeto, comparticipação limitada, freqüentemente, ao recrutamentoe acompanhamento dos pacientes, raramente havendooportunidade de acréscimo de conhecimentos ehabilidades; inversão de responsabilidades no momentodas conclusões e publicação, que costumam estar sujeitasà revisão do patrocinador.

Do ponto de vista da instituição: gastos institucionaissem cobertura, quando o contrato é direto entre opesquisador e o patrocinador (custos para a instituição eaté para o SUS); cláusulas restritivas nos contratos etermos de consentimento, com isenção deresponsabilidades do patrocinador em caso de eventosadversos e indenizações, recaindo a responsabilidadesobre a instituição.

Do ponto de vista do país: raramente há transferênciade tecnologia, uma vez que testes mais sofisticados sãofeitos no exterior, sendo a grande maioria dos projetosde fase III, teste clínico de eficácia e segurança de novasdrogas, onde o maior recurso exigido é o própriopaciente; contatos prévios sobre propriedade intelectualou comercial geralmente não existem, dificultando obalanceamento de ônus e benefícios para as populaçõesenvolvidas e vantagens coletivas.

Assim, percebe-se que, com meritórias exceções, háuma grande necessidade ainda de que o pesquisadorbrasileiro alcance uma postura apropriada para oestabelecimento de parcerias justas. Sem dúvida, oconhecimento e entendimento das normas poderãosuplantar uma certa vulnerabilidade do pesquisadorbrasileiro, dando-lhe estatura moral para a discussão eadequação do projeto, apoiado por Comitês de Éticarealmente independentes, fundamentados ambos namissão de resguardar os direitos e interesse dos pacientes.

Evidencia-se que o próprio sistema, sem dúvida fatorfacilitador da vinda de projetos internacionais para onosso país, tem responsabilidade aumentada na proteçãoda população.

Exemplificando a relevância do processo que se dáno Brasil, pode-se citar a atuação dos diversos níveis naaprovação de projeto financiado pelos NIH para ser

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realizado no Brasil e em Nassau, para teste de uma novadroga contra a transmissão vertical da Aids, portanto emgestantes. O protocolo foi proposto incluindo um grupoque receberia placebo, mas foi questionado pelopesquisador brasileiro que junto com o CEP de suainstituição fundamentaram a necessidade ética de utilizaro AZT, droga já conhecida com cerca de 70% deefetividade, que deveria ser oferecida ao grupo controle.Foi enviado à CONEP e estudadas as modificaçõesnecessárias tanto no protocolo quanto no TCLE, conformeas diretrizes éticas brasileiras. E foi finalmente aprovado,com modificações aceitas pelos patrocinadores, depoisde superadas as resistências iniciais. É um exemplo daforça de uma norma e de um sistema atuante, tanto nasua função educativa (pesquisador esclarecido) quantona apreciação do protocolo, tendo cumprido seu papelcom êxito. Não se constituíram obstáculos para arealização da pesquisa, mas sim, promoveram arealização de pesquisa eticamente adequada.

DesafiosDesafiosDesafiosDesafiosDesafiosUltrapassado o período de implantação do sistema

de apreciação ética das pesquisas no Brasil, tem-setambém que ultrapassar a tendência ao cumprimentoburocrático de requisitos normativos que visam, sim,disponibilizar informações, mas cujo objetivo é permitira reflexão e a tomada de decisão fundamentadas.

Sem dúvida impõe-se agora ao sistema umfuncionamento adequado à efetivação da missão dequalificação ética das pesquisas, garantindo a segurançados sujeitos. Alguns desafios a experiência já nos mostra,dentre eles:

· Participação efetiva dos diversos segmentosrepresentados no CEP;

· Independência do CEP frente a interesses dospesquisadores, instituições e patrocinadores;

· Legitimidade do CEP na instituição;· Formação de membros inclusive de representantes

de usuários;· Formação de pesquisadores;· Informação ao público – promoção do controle

social;· Busca de instrumentos para medir variáveis

estabelecidas como qualidades no sistema epermitir a reflexão crítica contínua sobre o papeldos CEPs.

Conclusão:Conclusão:Conclusão:Conclusão:Conclusão:Conhecendo o tamanho da tarefa, ainda assim pode-

se continuar otimista. Os desafios serão enfrentados emmúltiplas frentes de trabalho, especialmente com aadesão de tantos membros de Comitês. Nota-se que hábusca de preparação, haja visto a quantidade de cursosde bioética que se instalam na graduação e pós-graduação de inúmeras faculdades e universidades. Háno País uma mobilização gerada pela estruturação dosistema e pela necessidade de seu desenvolvimento, frutoda iniciativa recente de 95, que culminou até mesmona realização do Congresso Mundial de Bioética emBrasília.

Sem perder de vista a grande bandeira que alavancou

o desenvolvimento inicial, construindo um equipamentosocial para proteção dos sujeitos e promoção da equidadee justiça nas pesquisas envolvendo seres humanos, tem-se que concentrar agora no desafio da discussão de temascotidianos desse sistema, dos problemas de maiorrelevância a serem equacionados no desenvolvimentodo trabalho, entre eles: Como fugir da burocratização?Como não legitimar ou encobrir relações sem equidade?Como não usar o poder do CEP para acatamento dosinteresses de alguns dos atores, em detrimento de outros?

Ressalta-se, finalmente, que atitudes essenciais paraa evolução qualitativa do sistema são a busca da clarezada missão e a disposição para a avaliação contínua.

Sem dúvida, essa experiência mostra a necessidadede que países em desenvolvimento construam sistemasde proteção aos sujeitos de pesquisa, à sua populaçãoespecífica, aproveitando a vivência de gruposinternacionais, com visão crítica sobre a evolução eeficiência dessas experiências, mas sem desprezar suacapacidade criativa própria para atendimento derequisitos específicos de cada país. Sobretudo, com aperspectiva de proteção de sua população e dequalificação da pesquisa e do pesquisador nacional, comnormas e regulamentos construídos com esses objetivos.Por certo, normas internacionais, construídas com oobjetivo de proteção dos pesquisadores de países centraisem suas parcerias com os países em desenvolvimento,não alcançam necessariamente todo o conjunto desituações e de interesses da população e dospesquisadores nacionais.

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É possível aprender/ensinar Ética? Eis uma questãodesafiadora que me inquieta desde os tempos dagraduação. Lembro que ao fazer a disciplina ÉticaProfissional, no último ano do curso de Psicologia, refletiprofundamente sobre o quanto aquela forma mecanicistade aprendizagem sobre o código de ética profissional esuas aplicações iria realmente ser incorporada à minhaidentidade sócio-profissional.

Anos mais tarde, ao atuar como pesquisadoraparticipante, em nível de mestrado e doutorado, a mesmaquestão retornou de forma mais complexa por meio dodesvendamento no campo de investigação, da indiscutívelarticulação entre a ética nas práticas profissional e depesquisa. O encontro entre o psicólogo e o sujeito quedemanda seus serviços, assim como a interação entrepesquisador e pesquisado, em qualquer modalidade deinvestigação, trata-se de relacionamentos humanos ecomo tais são atravessados por múltiplas projeções eresistências que podem levar a idealizações, preconceitosou bloqueios no processo de comunicação.

Estes aspectos precisam ser levados em conta noprocesso de instrumentalização de um profissional ou deum pesquisador para o exercício da ética, uma vez quenão podem ser evitados, mas somente conscientizadosem cada situação e contexto. Como, então, aprender ouensinar Ética, se cada relacionamento humano é singu-lar? Podemos estudar Ética no âmbito filosófico e moral,mas incorporar preceitos éticos em nossosrelacionamentos cotidianos, exercitar a ética da alteridadeao tentarmos nos colocar no lugar do outro, isso, não háteoria que dê conta.

Na pesquisa que desenvolvi no mestrado (DURAN,1997), ao investigar a pertinência de estratégiasterapêuticas grupais e corporais diante da demanda porsaúde mental de usuários de unidades básicas de saúde,percebi que o encontro do psicólogo com seu suposto“paciente” no âmbito dos mais diversos serviços públicose gratuitos de saúde mental, bem como no campo decomunidades empobrecidas, configura na maioria dasvezes uma aproximação, que propõe intimidade, entremembros de diferentes contextos psicossociais.

Boltanski refere-se à distância social existente entre ousuário de um serviço de saúde e o profissional que oatende, em particular entre o paciente e o médico,enfatizando que: “....(os membros das classes popula-res) estão afastados dele (médico) pela distância socialque em qualquer eventualidade, separa um membro das

A instrumentalização do pesquisador para a ela-A instrumentalização do pesquisador para a ela-A instrumentalização do pesquisador para a ela-A instrumentalização do pesquisador para a ela-A instrumentalização do pesquisador para a ela-boração e obtenção do Tboração e obtenção do Tboração e obtenção do Tboração e obtenção do Tboração e obtenção do TCLECLECLECLECLE: uma proposta: uma proposta: uma proposta: uma proposta: uma propostametodológicametodológicametodológicametodológicametodológica

Sandra Maria Greger Tavares1

classes superiores altamente escolarizado e detentor deum saber específico, de um membro das classes popula-res.” (BOLTANSKI, 1989, p.134-135)

Do mesmo modo, a interação entre pesquisador epesquisado é usualmente marcada por muitas formas dedesencontros e distanciamentos psicossociais e culturaisque tendem a ser negados (inconscientemente) comobjetivo de garantir o “rigor científico” da investigação,quando deveria ser exatamente o contrário.

Construir um vínculo de confiança no vácuo dessadistância social e cultural que atinge tanto o usuário quan-to o profissional de saúde, bem como pesquisado e pes-quisador e desenvolver estratégias terapêuticas e méto-dos de investigação que façam sentido na vida quotidia-na dos primeiros é tarefa complexa. Exige, antes de tudo,tolerância para conhecer o outro em suas especificidades,de forma que não haja precipitação e imposição de va-lores e principalmente não se configure uma situação de“humilhação social”.

Gonçalves Filho (1998) descreve o fenômeno dahumilhação social como uma modalidade de angústiaque emerge a partir da desigualdade de classes,modalidade esta que os pobres conhecem bem e que seinscreve no cerne de sua submissão. Segundo ele, ospobres sofrem o impacto de maus-tratos e de mensagensimplícitas quanto a sua inferioridade. Para eles, aexperiência da humilhação, seja em ato ou comorealidade iminente, sempre se faz presente através dosentimento de não possuírem direitos, de pareceremdesprezíveis e repugnantes, de se moverem e falaremcomo seres que ninguém vê.

As diferenças psicossociais e culturais, então,constituem um fenômeno que ao invés de ser negado naprática profissional e de pesquisa precisa ser enfrentadoe explicitado junto ao outro. Isto pode se dar a partir daabertura de canais de comunicação que possibilitemtranscender e não, ao contrário, justificar relações depoder, também freqüentes, no vínculo estabelecido entreprofissional de saúde e paciente, pesquisador epesquisado, pertencentes ao mesmo universo sócio-cultural.

No doutorado (TAVARES, 2003), desenvolvi um estu-do participante e captei também depoimentos sobre for-

1 Psicóloga, Doutora em Psicologia Escolar e do DesenvolvimentoHumano – IPUSP e Pesquisadora Científica do Núcleo de Educaçãoem Saúde do Instituto de Saúde – SES/SP, membro do CEPIS de1998 a 2004.

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mas de subjetividade que se revelam sob formas de mo-radia numa favela. Observei que, nesse contexto, a ga-rantia do sigilo quanto à identidade do depoente, paraalém dos cuidados éticos, mostrou-se fundamental paraque a narrativa pudesse se construir. O território da fave-la é crivado não apenas por balas perdidas, mas tam-bém por amarras que delimitam as fronteiras do discursopermitido, de modo a preservar o exercício de práticasilegais e a própria sobrevivência. Falar na favela, às ve-zes, trata-se de um risco de vida para o narrador e parao ouvinte, portanto, a realização de uma entrevista nessecontexto, é situação extremamente delicada. Dessa for-ma, não apenas a identidade do narrador, como tam-bém as identidades de todos os sujeitos citados por eletem de ser preservadas. Como fica nesse caso o proces-so de obtenção de consentimento livre e esclarecido parao desenvolvimento da pesquisa? De que liberdadeestamos falando? Do livre desejo de conhecimento dopesquisador? Há condições para os colaborabores dapesquisa exercerem sua autonomia de escolha em situa-ções-limite como essa?

Na prática de pesquisa, a elaboração cuidadosa deum TCLE é fundamental, mas não garante o cumprimentodos preceitos éticos ditados pela Resolução 196/96(BRASIL, 1997). O respeito à autonomia e a garantia daautodeterminação dos sujeitos tem de ser concretizadoscom base num processo de afinação entre as demandase limites do pesquisador e as dos colaboradores dapesquisa que então poderá se revelar numa forma deelaboração crítica do TCLE e na obtenção realmenteesclarecida e honesta do consentimento propriamentedito.

Os sujeitos da pesquisa devem aderir de formaconsciente ao processo da pesquisa. Para tanto, elesnecessitam ter visão geral sobre a investigação,principalmente os riscos e benefícios implicados e o graude sua vulnerabilidade circunstancial. Em contrapartida,os pesquisadores também necessitam ter consciência, amais ampla possível, do teor da pesquisa e de seuspropósitos no desenvolvimento da mesma eprincipalmente, revelar sensibilidade e conhecimentoperante as especificidades das condições de vida dossujeitos que pretendem investigar. Isso parece óbvio, masna maioria das vezes, não se observam, por parte doinvestigador, clareza de propósitos e afinidade com ossujeitos de pesquisa.

A pesquisa é sempre uma construção intersubjetiva,inesgotável e inacabada e implica em posicionamentospolíticos e éticos. É uma práxis, na medida em que arti-cula de forma contínua, teoria e prática. Decorre daí,que toda forma de pesquisa é, ao mesmo tempo, ummodo de intervenção que propõe implicitamente umatransformação na realidade investigada. Considero aparticipação declaradamente interessada e contínua nocampo de estudo uma forma radical e viva de realizarpesquisa e não um fator a ser controlado para garantir

uma suposta e exclusiva racionalidade científica na in-vestigação.

É possível, então, aprender/ensinar ética na alteridadedo encontro do pesquisador-educador com opesquisador-educando? Considerando a pesquisa comouma autoria compartilhada, penso que podemosencontrar nos campos teórico e metodológico daEducação e da Psicologia, um vasto repertório deestratégias para a promoção de situações vivenciais deaprendizagem de condições de vínculo mais libertadorase transformadoras, inclusive na prática de investigaçãocientífica.

Podemos nos inspirar, entre outros métodos, noPsicodrama e no Sociodrama, idealizados por Moreno,que se converteram em importantes referenciais teóricose metodológicos nas ciências humanas. É importante quese faça uma distinção entre os métodos psicodramáticose a filosofia terapêutica sobre a qual se baseiam essesmétodos. Os diferentes métodos são utilizados não apenaspor psicodramatistas, mas também por outrosprofissionais: psicanalistas, psicólogos, sociólogos,antropólogos, educadores etc. que não necessariamenteos utilizam com finalidades terapêuticas, mas tambémeducativas, profiláticas e outras.

Do ponto de vista epistemológico, em seus primeirosesboços, o Psicodrama pode ser visto como assumindouma posição fenomenológica existencial. A afinidadefilosófica de Moreno com os pressupostos dafenomenologia é amplamente reconhecida. Encontramos,em Merleau-Ponty, uma interessante descrição sobre oconhecimento científico que nos faz pensar na consistênciametodológica de seus derivativos psicodramáticos:

“Tudo o que sei do mundo, mesmo devido à ciência,o sei a partir de minha visão pessoal ou de uma experi-ência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nadasignificam. Todo o universo da ciência é construído so-bre o mundo vivido e se quisermos pensar na própriaciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido, e seualcance, convém despertarmos primeiramente esta ex-periência do mundo da qual ela é a expressão segun-da”. (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 6)

Segundo Garrido (1978), no método moreniano,retirar as coisas de seu momento, lócus ou matrix édesvirtuá-las, descentralizá-las. O laboratório para oestudo da realidade é a própria realidade. O laboratórioda ciência moreniana é o próprio situs em que o objetoestá naturalmente inserido. Se o objeto é o homem emsociedade, Moreno não o leva a um laboratórioexperimental de psicologia, estuda-o na circunstânciasocial de convivência com outras pessoas: sociometria.

Assim, os métodos psicodramáticos são utilizados emoutras situações vivenciais além da psicoterapia, emborao psicodrama em suas raízes seja uma forma depsicoterapia aberta. Já os métodos sociométricos,sociodinâmicos e sociátricos de acordo com Naffah :

“(...) nada mais fazem do que penetrar na estrutura-

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dinâmica subjacente à rede visível das relações grupaispara catalisar em ação e inter-ação as tensões latentes efazer delas a mola propulsora do processo. Sua grandevantagem, nesse sentido, é poder apreender e trabalharcom estas tensões “in vivo” e na sua especificidade eparticularidades próprias, sem tentar reduzi-las a umesquema teórico geral e abstrato (...)” (NAFFAH,,,,, 1979,p. 133).

Acredito que ao oferecermos espaços vivenciais paraos pesquisadores-educandos, como os espaços dedramatização, criamos condições favoráveis para a livree autêntica expressão de dificuldades freqüentementeencontradas (mas raramente explicitadas) no campo depesquisa, tais como: desníveis quanto à adequação dalinguagem, mecanismos de sedução ou mesmo depersuasão por parte do pesquisador com relação aosujeito, traços de violência psicológica ou de preconceitoe humilhação social de ambas as partes e sintomas deansiedade, medo, onipotência e desconfiança em am-bos, entre outros.

A modalidade de dramatização pode promover maiormotivação e aderência ao processo de aprendizagemdos preceitos éticos na obtenção do TCLE uma vez queos pesquisadores-educandos participariam ativa ecriativamente do processo de ensino-aprendizagem. Pormeio desse instrumento, torna-se possível visualizarmecanismos que comumente permanecem inconscientese são pouco abordados em cursos de caráterexclusivamente teórico, o que permitiria um nível deabertura e descontração que ampliariam o diálogo epromoveriam a sensibilização a respeito de aspectosextremamente relevantes no processo de pesquisa emgeral e particularmente na obtenção do TCLE.

É possível ensinar/aprender ética? Finalizo com umasugestão de Moreno:

“Toda a escola primária, secundária e superior devepossuir um palco de psicodrama como laboratório deorientação que trace diretrizes para os seus problemascotidianos. Muitos problemas que não podem serresolvidos na sala de aula podem ser apresentados eajustados ante o forum psicodramático, especialmenteconcebido para essas tarefas.” (MORENO, 1985, p.197).

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

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MINISTÉRIO DA SAÚDE. Diretrizes e normasDiretrizes e normasDiretrizes e normasDiretrizes e normasDiretrizes e normasregulamentadoras de pesquisas envolvendo seresregulamentadoras de pesquisas envolvendo seresregulamentadoras de pesquisas envolvendo seresregulamentadoras de pesquisas envolvendo seresregulamentadoras de pesquisas envolvendo sereshumanoshumanoshumanoshumanoshumanos. Brasília,1997.

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O autor, que é professor da Universidade do PaísBasco, chama a atenção dos leitores de que não se trata

Ética para meu filhoÉtica para meu filhoÉtica para meu filhoÉtica para meu filhoÉtica para meu filhoTereza S. Toma*

Resenha do livro Ética para meu filho, de Fernando Savater. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

“Não creio que a ética sirva para solucionar nenhum debate,embora seu ofício seja colaborar para iniciar todos eles...” (SAVATER, 2002)

Giovanni Berlinger é médico sanitarista nascido naItália, em 1924. Iniciou sua carreira como professor deMedicina Social, assumindo posteriormente a cátedrade Saúde do Trabalho. Foi deputado e senador, e éconhecido e respeitado como uma das maioresautoridades mundiais da Saúde Pública e da Bioética.

O autor faz distinção entre a bioética de fronteira e abioética cotidiana. A primeira reflete sobre os casosextremos de intervenção sobre a vida, sobre aquilo quehá tempos atrás era impensável - como a reproduçãoassistida, os transplantes de órgãos, a sobrevivênciaartificial, as mutações genéticas provocadas, a criaçãode novas espécies viventes - e a segunda, a bioéticacotidiana faz reflexões muito mais próximas à experiênciade todas as pessoas e de todos os dias. Certamente estaúltima também mais próxima daqueles preocupados como estudo da vida, da saúde, em especial da saúdecoletiva.

Ele inicia analisando as implicações morais naatualidade frente ao uso das tecnologias reprodutivas, eda possibilidade de regular conscientemente osnascimentos, modificando o quadro demográficoinicialmente dos países desenvolvidos, atingindo quasetodo planeta. A liberdade de procriar, a esterilizaçãocoagida e induzida, a autonomia dos casais e o papelda mulher no mercado como fatores que interferem nasescolhas relacionadas à procriação, e a prevenção doaborto são debates bioéticos bastante apropriados paraos nossos dias e para os futuros.

A abordagem do autor é singular, faz referência àsnormas éticas fundamentais que regem o comportamentoindividual e coletivo que podem originar problemas comoo controle das migrações, e relacionamento entregêneros, relações entre o ambiente, recursos e a

Bioética cotidianaBioética cotidianaBioética cotidianaBioética cotidianaBioética cotidianaEliana de Aquino Bonilha*

Resenha do livro Bioética cotidiana, de Giovanni Berlinguer (tradução de LavíniaBozzo Aguiar Porciúncula). Brasília: Editora Universidade de Brasília; 2004.

RESENHASRESENHASRESENHASRESENHASRESENHAS

população. As inúmeras problemáticas relacionadas à éticapopulacional, a valores da demografia, às bases éticaspopulacionais, a responsabilidade ou não do estado intervirpara o equilíbrio demográfico, são reflexões essenciais paraos profissionais da área da saúde.

Foi exposta a evolução da luta, ou da cooperaçãodo mundo do trabalho e o capital, e as leis e orientaçõesmorais envolvidas neste universo nos últimos cem anos.As condições de saúde dos trabalhadores melhoraram,acompanhadas de um refinamento da ética, envolvendo,por exemplo, a promoção da saúde do trabalhador, aprodução e o meio ambiente. Os conflitos sobre ainformação dos trabalhadores sobre a sua própria saúdee a pesquisa científica são analisados sob a ótica dodireito e da proteção à saúde dos empregados e dacomunidade.

Berlinger apresenta com clareza temas cruciais quetêm sido tangenciados pelos estudiosos e gestores dacoisa pública. Examina a motivação para elaboraçãode estratégias voltadas para a eqüidade na saúde, e odesafio de trabalhar para a saúde global. A saúde detodos os seres humanos poderá um dia ser alcançada?A eqüidade na saúde por meio de um planejamento deações governamentais, considerando as liberdadesindividuais será atingida? Remediar os resultados daviolência é papel dos profissionais de saúde ou de todaa sociedade? Qual a relação da poluição, do consumode drogas, e das infecções com as escolhas humanas?

A leitura deste livro propiciará algumas destasrespostas e muitas outras perguntas, voltadas para arealidade ética cotidiana.

* Nutricionista, Ms. Ciências Aplicadas à Pediatria, Professora doCentro Universitário Nove de Julho.

de um manual de ética para alunos do colegial, nem deum receituário de respostas moralizantes aos problemas

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liberdade, frente às ordens, costumes e caprichos quecostumam determinar muitos de nossos atos e suasdiferentes implicações na vida cotidiana e nas situaçõesde excepcionalidade. Se, por um lado, é importante sercrítico das ordens e costumes para exercer nossaindividualidade, por outro pode haver a necessidade dedomar os caprichos frente à relação com outrosindivíduos. Ressalta que a vida boa que queremos é avida boa entre humanos. Nesse sentido, é necessáriotratar as pessoas como pessoas e não como coisas, tratá-tratá-tratá-tratá-tratá-las humanamentelas humanamentelas humanamentelas humanamentelas humanamente**, o que por seu turno contribui paranossa própria humanização. Isso implica em colocarcolocarcolocarcolocarcolocar-----seseseseseno lugar do outrono lugar do outrono lugar do outrono lugar do outrono lugar do outro, porque “Entender alguém comosemelhante implica sobretudo a possibilidade decompreendê-lo a partir de dentrocompreendê-lo a partir de dentrocompreendê-lo a partir de dentrocompreendê-lo a partir de dentrocompreendê-lo a partir de dentro, de adotar por ummomento seu ponto de vista. Pôr-se no lugar do outro émais do que o começo de toda comunicação simbólicacom ele: trata-se de levar em conta seus direitoslevar em conta seus direitoslevar em conta seus direitoslevar em conta seus direitoslevar em conta seus direitos.”

Ao final do livro, em resposta à pergunta sobre comoviver melhor, Savater diz que seremos obrigados a buscarpessoalmente, uma vez que a vida nos é dada sem receitae sem bula e a boa vida só se faz sob medidaa boa vida só se faz sob medidaa boa vida só se faz sob medidaa boa vida só se faz sob medidaa boa vida só se faz sob medida***** *****, não éalgo que possa ser fabricado em série.

* Médica pediatra, pesquisadora do Núcleo de Investigação emMédica pediatra, pesquisadora do Núcleo de Investigação emMédica pediatra, pesquisadora do Núcleo de Investigação emMédica pediatra, pesquisadora do Núcleo de Investigação emMédica pediatra, pesquisadora do Núcleo de Investigação emSaúde da Mulher e da Criança do Instituto de SaúdeSaúde da Mulher e da Criança do Instituto de SaúdeSaúde da Mulher e da Criança do Instituto de SaúdeSaúde da Mulher e da Criança do Instituto de SaúdeSaúde da Mulher e da Criança do Instituto de Saúde

** Alguns negritos são da autora da resenha.

cotidianos. Seria apenas um livro subjetivo e pessoalescrito para Amador, seu filho adolescente. Ele apenastraduz a conversa que gostaria de ter tido com Amadora respeito do assunto, mas decidiu escrever para evitaros sentimentos de obrigação e desconforto que, muitasvezes, surgem nessas circunstâncias entre pai e filho.Pensa, então, que o livro poderá ser útil para osadolescentes e, em certa medida, para alguns de seusprofessores.

É um livro que prende a atenção do começo ao fim,em que a noção de ética vai sendo construída aospoucos, entremeada de exemplos da mitologia e docotidiano. Savater tem, como poucos, o dom de traduziraquilo que é complexo em termos bastante simples sem,no entanto, abandonar a idéia da complexidade.

O ponto de partida é o fato de que somos livressomos livressomos livressomos livressomos livres,embora sejamos de certa forma programados biológicae culturalmente, uma vez que podemos inventar eescolher. Temos a possibilidade de optar por aquilo quenos é conveniente, ou seja, aquilo que julgamos ser bompara nós. O reverso da medalha, é que ao poder optartambém temos a chance de nos enganar. Por isso,pareceria prudente procurar adquirir um saber-viver quenos permita acertar. A esse sabersabersabersabersaber-viver-viver-viver-viver-viver, ou arte de viverarte de viverarte de viverarte de viverarte de viver,é que Savater chamará de éticaéticaéticaéticaética.

Nos capítulos seguintes, tecerá considerações acercada diferença entre moral e ética; construirá a noção de

As pesquisas na área da saúde têm mobilizado aopinião pública pela interferência, em grande parte dasvezes, na qualidade de vida da sociedade. Resultados emétodos das pesquisas têm sido amplamente divulga-dos, contribuindo para a identificação, compreensão dedoenças e seus tratamentos.

Os autores tratam a ética em pesquisa de formaobjetiva, contextualizando os principais questionamentos,fazendo paralelos com assuntos muito difundidosatualmente na mídia: as pesquisas sobre células-tronconos seres humanos, a clonagem, a lei de biossegurança,técnicas de reprodução auto-assistida, utilização de ma-terial biológico armazenado. É feita uma análise do queé bom e do que é ruim, do que é adequado ou inade-quado, do que é correto ou incorreto, pois isto diz respei-to a todo e qualquer participante ativo na tomada dedecisões em nossa realidade e para envolvidos com pes-quisas deve haver uma atenção dobrada quanto aos di-lemas éticos.

Ética em pesquisa: reflexõesÉtica em pesquisa: reflexõesÉtica em pesquisa: reflexõesÉtica em pesquisa: reflexõesÉtica em pesquisa: reflexõesEliana de Aquino Bonilha*

Resenha do Livro Ética em pesquisa: reflexões, de Délio José Kipper; Caio Coelho Marques;Anamaria Feijó (organizadores). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

Além destes, outros aspectos são analisados, como orespeito aos direitos humanos, devem estar acima dosinteresses de toda pesquisa; a essencialidade do rigor,da prudência e da integridade no método e apresenta-ção dos resultados das pesquisas.

No Brasil, a prática correta envolvendo sujeitos depesquisa tem sido alvo de preocupação e, visandogarantir os seus direitos, foram elaboradas as Diretrizese Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendoSeres Humanos, a Resolução 196/96 do ConselhoNacional da Saúde.

Esta obra pretende colaborar com os Comitês de Éticaem Pesquisa existes no país, bem como subsidiar o debateda sociedade sobre questões fundamentais decorrentesdo progresso das ciências básicas e aplicadas voltadas àsaúde individual e coletiva, conforme padrões deeticidade e legalidade vigentes.

* Nutricionista, Ms. Ciências Aplicadas à Pediatria, Professora do CentroUniversitário Nove de Julho.

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O presente estudo teve como objetivo analisar artigoscientíficos na área de saúde pública, que envolviam diretae indiretamente seres humanos, publicados anteriormenteà Resolução 196/96. Analisamos artigos científicos daRevista de Saúde Pública e Cadernos de Saúde Públicade 1990 a 1996. A Análise foi baseada em categoriasretiradas da Resolução 196/96 previamenteestabelecidas: consentimento do sujeito de Pesquisa,sujeitos com autonomia reduzida, proteção de sujeitos egrupos vulneráveis e legalmente incapazes,confidencialidade, privacidade, proteção da imagem,estigmatização, benefícios do retorno da pesquisa. Aanálise dos dados foi efetuada em dois momentos:caracterização das revistas analisadas e análise deconteúdo. Os resultados encontrados foram: 568 artigoslevantados, 384 (67,6%) da Revista da Saúde Pública e

184 (32,4%) dos Cadernos de Saúde Pública. Destes,296 (52,1%) envolviam direta ou indiretamente sujeitoshumanos que foram objeto de nossa análise. Instituiçõesmais utilizadas para o desenvolvimento de pesquisas:serviços de saúde 134 (23,6%), empresas, indústrias,escritórios e instituições públicas 52 (9,2%), residências42 (7,4), lazer e assistência social somam 6 (10%). Tiposde pesquisa: epidemiológica 121 (21,3%), biológica 59(10,4%), psicológica 10 (1,8%), nutricional 42 (7,4%),ambiental 9 (1,6%). Analisamos qualitativamente trechosde artigos baseando nossa análise na Resolução 196/96, conforme as categorias previamente levantadas.

Análise Ética em Artigos Científicos queAnálise Ética em Artigos Científicos queAnálise Ética em Artigos Científicos queAnálise Ética em Artigos Científicos queAnálise Ética em Artigos Científicos queEnvolvam Seres Humanos,Envolvam Seres Humanos,Envolvam Seres Humanos,Envolvam Seres Humanos,Envolvam Seres Humanos,

no Pno Pno Pno Pno Período de 1990 – 1996eríodo de 1990 – 1996eríodo de 1990 – 1996eríodo de 1990 – 1996eríodo de 1990 – 1996Simone Ribeiro Spinetti*

Orientador: Paulo Antonio de Carvalho Fortes

DISSERDISSERDISSERDISSERDISSERTTTTTAÇÕESAÇÕESAÇÕESAÇÕESAÇÕES

O presente estudo teve como objetivo investigar a visãodos pesquisadores médicos que atuam na prática depesquisas clínicas com medicamentos contra HIV/AIDS,sobre o TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclare-cido. Com o advento da Aids, estudos clínicos voltadosao controle da epidemia, tratamento e prevenção pormeio de medicamentos e vacinas, têm se tornado cadavez mais relevantes. A urgência na busca do tratamentoe controle do HIV/AIDS fez com que o tempo utilizadopara o desenvolvimento de pesquisas nesse campo dimi-nuísse consideravelmente. No Brasil vários estudos vêmacontecendo desde o início da década de 90, envolven-do principalmente a indústria farmacêutica privada. Comeste cenário se faz necessário uma atenção especial àsquestões éticas que envolvem o sujeito de pesquisa e aspráticas médicas como: a visão do pesquisador sobre asua relação com o voluntário participante, o que signifi-ca, para o pesquisador, o termo de consentimento que ovoluntário assina ao ser incluído na pesquisa. Tomamos

Silva, JCVP. A visão do TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em Pesquisas de Medicamentos contra oHIV/AIDS. São Paulo; 2005. (Dissertação de Mestrado, área de concentração saúde coletiva) Programa de Pós-Gradu-ação em Ciências, da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo.

Orientadora: Wilza Vieira Villela

como pressuposto que um entendimento semelhante dolugar do pesquisador e do sujeito de pesquisa no pro-cesso de investigação seria o eixo principal para a cons-trução de uma conduta ética num espaço de múltiplosinteresses.O trabalho de campo compreendeu a realização de en-trevistas em profundidade com oito pesquisadores, dediferentes centros de pesquisas clínicas em Aids na cida-de de São Paulo. As entrevistas foram transcritas e anali-sadas, usando a metodologia do Discurso do SujeitoColetivo. Os resultados permitiram concluir que, emboraos pesquisadores entrevistados tenham pleno conheci-mento do uso do TCLE em pesquisa com seres humanose as normas vigentes no país e no mundo sobre o tema,ainda se faz necessário uma reflexão ética, com enfoqueno processo de consentir do sujeito voluntário participantede pesquisa.PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave:chave:chave:chave:chave: Consentimento Esclarecido/ética, Experimentação humana,

Sujeitos da pesquisa, Síndrome de Imunodeficiência Humana, HIV.

Nota PNota PNota PNota PNota Préviaréviaréviaréviarévia

* Programa de Pós Graduação: Mestrado em Saúde Pública. Instituiçãode Origem:Faculdade de Saúde Pública da Universidade de SãoPaulo. Ano e Local da Dissertação: São Paulo, Maio de 2001

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MCCSMCCSMCCSMCCSMCCSApoio:Promoção:

CEPISCEPISCEPISCEPISCEPISSECRETARIA DE

ESTADO DA SAÚDECoordenadoria de Ciência,

Tecnologia e InsumosEstratégicos de Saúde