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8/9/2019 Blimunda # 32, janeiro 15 http://slidepdf.com/reader/full/blimunda-32-janeiro-15 1/79 M ENSAL N .º 32 J ANEIRO 2015 F UNDAÇÃO J OSÉ S ARAMAGO

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M E N SA L N .º 32 J A N E I RO 2 0 1 5 F UNDAÇ ÃO J O S É S A RA M A G O

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A nossa varade negrilho

Pilar del Rìo

Saramago atthe movies II

João Mon teiro

Leiturasdo mês

Sara Figueiredo Costa

#revistablimunda

DicionárioLuísa Ducla Soares

Nuno Marçal

Espelho MeuAndreia Brites

Notas de rodapéAndreia Brites

SaramaguianaA beleza

serve-se friaFernanda Cunha

EstanteSara Figueiredo Costa

Andreia Brites

O perigo do eternoretornoAndreia Brites

Agenda

Entrevistaa Mempo

GiardinelliRicardo Viel

A vida secretados bonecosSara Figueiredo Costa

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«Todo futuro es fabuloso», escreveu certa vez Alejo Carpentier. A frase do escritor cubano foi escolhidapor José Saramago para servir de epígrafe ao livro A Jangada de Pedra (1986). Nesse romance, com ahistória de uma gigantesca balsa que navega sem rumo certo entrecruzam-se os destinos de algumaspersonagens, os seus sonhos, desejos, aições e esperanças.A vara de negrilho com a qual Joana Carda risca o chão no começo do romance, dando início à separação

da Península Ibérica do restante Continente e gerando com isso uma série de acontecimentos, écarregada pela personagem durante todo o livro, às vezes para a proteger e guiar, às vezes para arecordar, às vezes simplesmente para lhe fazer companhia. No nal, o amuleto deJoana Carda é usado para assinalar, a título de uma homenagem, um local, o nal deuma viagem e o início de outra (ou de um futuro, para seguir a ideia de Carpentier).«Os homens e as mulheres, estes, seguirão o seu caminho, que futuro, que tempo,que destino. A vara de negrilho está verde, talvez oresça no ano que vem», nalizaJosé Saramago.

A nossa vara de negrilho é a palavra, que esperamos que em 2015 oresça e continue aproteger-nos, a guiar-nos, a fazer-nos companhia e a ajudar-nos a recordar.O ano de 2015 será o oitavo de existência da Fundação José Saramago - o quinto semo seu fundador - e o terceiro da Blimunda .Desde que em Junho de 2012 o número 1 foi publicado todos os meses nos deparamos

com o desao de se fazer uma revista gratuita com qualidade e relevância. Nestes já quase três anos devida, a Blimunda tem procurado falar do futuro sem se esquecer do passado, tentado apresentar e dialogarcom publicações e escritores da atualidade sem deixar de assinalar a importância e a relevância de nomesque já só habitam as nossas memórias e corações. Nestes agora 32 números da revista, tentamos darespaço a manifestações culturais de vários lugares, escutar vozes e sotaques diversos, tratar de assuntos einteresses múltiplos tendo como única baliza o respeito pelos direitos humanos.É animador pensar que todo o futuro seja fabuloso e que está nas nossas mãos fazer com que assim seja.Acompanhados da nossa vara de negrilho, damos início a um novo ano.O leitor recebe agora a primeira das doze Blimundas de 2015, e com ela os desejos de um excelente ano ede excelentes leituras. Até fevereiro!

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F U N D A Ç Ã O J O S É S A R A M A G O

T H E J O S É S A R A M A G O F O U N D A T I O N

C A S A D O S B I C O S O N D E E S T A M O S W H E R E T O F I N D U S

R u a d o s B a c a l h o e ir o s , L is b o a T e l : ( 3 5 1 ) 2 18 8 0 2 0 4 0 w w w . jo s e s a r a m a g o .o r g in f o . p t @ jo s e s a r a m a g o .o r g

C O M O C H E G A R

G E T T I N G H E R E

Me t r o S u b wa y Te r r e i r o d o Pa ç o

( L i n ha a z u l B l ue L i ne )

A u t o ca r r o s B u se s 2 5 E, 2 0 6, 2 1 0,

7 1 1, 7 2 8, 7 3 5, 7 4 6, 7 5 9, 7 7 4 ,

7 8 1, 7 8 2, 7 8 3, 7 9 4

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S e g u n d a a S á b a d o

M o n d a y t o S a t u r d a y

1 0 à s 1 8 h o r a s 1 0 a m t o 6 p m

A K A C O R L E O N E

Blimunda 31

janeiro 2015

DIRETOR

Sérgio Machado Letria

EDIÇÃO E REDAÇÃO Andreia Brites

Ricardo Viel

Sara Figueiredo Costa

REVISÃO

Rita PaisDESIGN

Jorge Silva/silvadesigners

Casa dos Bicos

Rua dos Bacalhoeiros, 10

1100-135 Lisboa – Portugal

[email protected]

www.josesaramago.org

N.º registo na ERC 126 238

Os textos assinados

são da responsabilidade

dos respetivos autores.

Os conteúdos desta publicação

podem ser reproduzidos

ao abrigo da LicençaCreative Commons

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Cretinos comKalashnikovsNoPúblico , José Vítor Malheiros

homenageia os jornalistas ecartoonistas mortos no atentadocontra o jornal francês Charlie Hebdo ,ocorrido no passado dia 7 de janeiro,e fala do trabalho desta publicação,lembrando que a sua matriz semprefoi a da sátira, da ironia e do escárnio,duramente praticados de modo afazer pensar, atividade sempre dadaa causar incómodos vários. Sobre osterroristas que entraram na redaçãodo jornal e dispararam a matar, diz ojornalista: «Eles não tinham percebidoque as caricaturas do Charlie nãoeram contra o islão mas contra osidiotas e os carrascos misóginos que sereclamam do islão, como outros nãotinham percebido que o Charlie não eracontra os judeus ou os católicos mascontra os idiotas judeus e católicos quedefendem a ignorância e a violência.Eles não perceberam que não eraMaomé que Charlie queria ridicularizar,mas eles mesmos, os fanáticos, oscretinos de Kalashnikov sonhando coma ereção eterna e 72 virgens à espera.Nesse sentido, não se enganaram noalvo, mas provaram que o Charlie tinharazão e que eles eram, de facto, apenascretinos com Kalashnikovs.»" l

Nem semprefomos Charlie

Luis García Montero, diretor do

jornal Info Libre , traçou o perl doCharlie Hebdo , não se esquecendode referir que muitas das vozesque hoje se solidarizam com apublicação, identicando-se comela, foram as mesmas que váriasvezes a denegriram: «El signicadode la revista Charlie Hebdo hasido triple en lo que se reere alhumor y al periodismo desde quese fundó en 1992. Quizás por esomuchos de los líderes y de losmedios de comunicación que hoyse duelen justamente de la masacreintentaron denigrarla de forma injustadeniéndola como una publicación deextrema izquierda. Las democraciasdegradadas suelen calicar ladefensa de la raíz democráticacomo un ejercicio de extremismoy radicalidad.» Esta referência nãodesvaloriza a solidariedade quaseunânime que parece ter-se instaladonos meios de comunicação e nasredes sociais depois do atentado quevitimou os jornalistas e cartoonistasdo Charlie Hebdo , apenas faz questãode não esquecer o passado.É com essa memória do que é opatrimónio da publicação francesaque hoje anda nas bocas do mundoque García Montero prossegue o

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seu texto, tornando claros os motivosque zeram do Charlie Hebdo e dosseus jornalistas um alvo a abater pelosfundamentalistas: « Charlie Hebdo suporeírse de los fanatismos irracionales de

la religión y puso una carcajada en elinterior de las mezquitas, las sinagogasy las iglesias. Eso es importante. CharlieHebdo supo reírse de los que propaganel miedo al fanatismo como una formaracista de negar las diferencias decivilización para convertir la culturailustrada en una fe dogmática. Y esotambién es importante. Charlie Hebdosupo ponerse en riesgo con su risaenfrentándose a las amenazas de

muerte y asumiendo que la opiniónlibre es un ato cívico de carácterirrenunciable. Y eso es un ejemplo enun panorama triste en el que la libertadde prensa suele ser una quimera porculpa de los poderes económicos queimponen sus líneas editoriales y delos poderes políticos que no respetanla independencia de la informaciónpública.»" l

Caminhos parao futuroPouco depois do atentado contra oCharlie Hebdo , a internet viu crescero debate sobre o Islão, muitas vezes

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de um modo nada informado, outrascom contribuições de quem procuraperceber o mundo e encontrarcaminhos que assegurem a igualdadede direitos. Numa crónica do El País ,

a escritora Rosa Montero resumiaassim o caminho que lhe parece maisacertado para que o mundo nãoacabe dividido de modo inexorável,depois de conrmar que o ódionão é exclusivo de nenhum grupo eque o fundamentalismo, venha deonde vier, pode combater-se comdemocracia: «Hay que apoyar no yaa los musulmanes progresistas, sinoa la mayoría moderada, para que

anden su camino hacia el respetoa unos derechos humanos queson el patrimonio de todos. Y hayque hacerlo sin soberbia, porquenuestra sociedad también está llenade miserias, y sin prejuicios: estoyharta de oir que los musulmanes nocondenan estos atentados, cuando locierto es que ha habido montones decondenas y de manifestaciones, peronosotros simplemente las ignoramos.O nos unimos con el islam moderadocontra la barbarie, o estamosabocados a una guerra mundial deinimaginables dimensiones.»" l

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Capa da primeiraedição do Charlie

Hebdo apóso atentado quedestruiu a suaredacção, matandooito jornalistase cartoonistas,para além deum trabalhadorda recepção, um

visitante do jornale dois polícias.O cartoon é de Luz.

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Muito antes dos cheiros de músicadescarregados através da internet,e antes ainda dos seus antecessoresmais ou menos portáteis – cd’s, k7’s,vinis, bobines – a música ouvia-sequando era interpretada. Em salasde espetáculo ou coletividades, narua ou no trabalho, em concertosimprovisados ou à desgarrada,cantava-se e tocava-se sem que oregisto da performance pudesseexistir. Machinas Fallantes , de LeonorLosa, dá conta da mudança dessarealidade para uma outra, mais fácilde imaginar, em que a música começaa ser gravada e comercializada,alterando profundamente o modo defruição, garantindo um patrimónioacessível em qualquer altura epermitindo a comparação de versõesde um modo até aí impensável.As invenções do fonógrafo, porThomas Alva Edison (em 1877), edo gramofone, por Emile Berliner(em 1887), constituíram o ponto

fundamental que deu início a umalonga história de fruição musical semnecessidade de ter os intérpretespresentes. No nal do século XIX, achegada do fonógrafo a Portugal trazespanto aos ouvintes e possibilidadesaos pioneiros que hão de pôr emmarcha as primeiras gravações. Sea tecnologia foi fundamental para

este processo, o contexto em queela surgiu e se desenvolveu não ofoi menos. Uma citação de TimothyTaylor no texto de introdução destevolume dene o ângulo escolhidopor Leonor Losa para o estudo eanálise desta matéria: «A tecnologianão pode ser compreendida», diz aautora antes de citar Taylor, «semque se compreenda também a suarelação com as pessoas reais, emlocais reais e momentos históricosreais.»Com a perspetiva anada no sentidode dar a ler as mudanças sociais eculturais associadas ao surgimentodas primeiras gravações, LeonorLosa dá a conhecer a instituição dasprimeiras empresas fonográcas emPortugal, a alteração profunda noshábitos culturais que o comérciomusical veio instituir, a criação deum mercado musical e a relaçãode todas estas inovações com ocontexto histórico. A esta leitura

junta-se uma apresentaçãodetalhada dos repertórios dessasprimeiras gravações, ainda emregime familiar, culminando nodesenvolvimento de uma indústriae de uma nova conguração nosmodos de ouvir e divulgar música,nomeadamente através da rádio.Das primeiras editoras às histórias

de gravações concretas, tantasvezes marcadas pelo entusiasmoda experimentação, MachinasFallantes reúne um sem númerode informações sobre o inícioda música gravada em Portugal,organizadas de um modo claro,cruzando o rigor com o discursoescorreito. A vertente académica dotrabalho de Leonor Losa é notória,e quem ler este livro enquantoobjeto de consulta, aprendizageme aprofundamento teórico sobre amatéria não sairá defraudado, maso mesmo acontecerá com o leitornão-especializado, curioso sobre osprimórdios dos discos e da relaçãoentre ouvintes e registos sonorosque haveria de marcar o séculoXX. No encarte, um cd reúne duasdezenas de registos dessas primeirascanções gravadas.

L E I T U R A S D O M Ê S

Leonor LosaMachinas Fallantes

Tinta da ChinaNo início erao fonógrafo

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A S B S

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EST

TE 11

Natália Chermysheva

O RegressoBruaá

A fechar 2014 a Bruaá lançoumais um original. A russa NatáliaChermysheva estreia-se comuma apologia poética dainfância, num álbum sem texto,no qual uma jovem regressaa casa da avó, fora da cidade.Sobre o no traço negro quedene as personagens e oespaço pontilham aqui e aliapontamentos de cor, amareloe vermelho que reforçam osgestos simbólicos do amor eda memória, que vai ganhandodimensão efetiva no jogo deperspetivas ao longo da narrativa.

Marco Mendes

ZombieMundo Fantasma

Novo livro de um dos autoresmais promissores da bandadesenhada portuguesacontemporânea, Zombie assumeo ponto de vista biográcopara com ele deambular pelopresente. A crise, os medos, afalta de caminho à vista, tudose conjuga para mostrar o ar dotempo sem cair em ladainhas ouem manifestos. Ao trabalho deMarco Mendes junta-se um textode Samuel Buton, em diálogointenso com as pranchas destanarrativa.

Eça de Queirós

A Ilustre Casa deRamiresImprensa Nacional-Casa da MoedaInserida na coleção BibliotecaFundamental da LiteraturaPortuguesa, esta nova ediçãode A Ilustre Casa de Ramiresvolta a disponibilizar nas livrariasum texto queirosiano essencial.Com o romance histórico comoestrutura e motivo, Eça reetesobre a literatura e a escrita,bem como sobre o passado, a

memória e o modo como esteselementos se propagam comoherança. A possibilidade de lhesacedermos no presente e deos assegurarmos para o futuroé uma das linhas centrais destanarrativa monumental.

Madalena Matoso

Livro ClapPlaneta Tangerina

Livro Clap é uma experiênciavirtualmente sonora.Correspondendo ao desaoda coleção Cantos Redondos,apresenta-se neste álbum umasequência de sons produzidospor instrumentos musicais,gestos e interações. Para isso énecessário que dois elementosse toquem. Ora isso apenasacontece quando se fecha o livroe as páginas ímpar se encontramcom as páginas par. É claro que olivro não produz sons, faz muitomais do que isso ao sugeri-los!É impossível não repetir o gestodurante toda a leitura...

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B. Traven

O Visitante da Noite eOutros ContosAntígonaContos de B. Traven, autoralemão cuja identidade só foiconhecida depois da mortee cuja biograa, passando àclandestinidade na Alemanhae fugindo para o México em1924, se confunde com asnarrativas que cria. As descriçõesda paisagem mexicana, osambientes do México rural e

sobretudo a atenção que dedicaaos miseráveis, aos explorados,aos que nada têm a perder e nempor isso conseguem tudo ganharzeram dele um autor de culto.

James Frey, Nils Johnson-Shelton

Endgame, a ChamadaPresença

A narrativa apresenta, logo noinício, as suas principais intenções:conduzir o leitor numa aventurade pendor fantástico e implicá-lonum pacto de veracidadeatravés da sua participaçãocomo jogador. Por isso, paraalém de acompanhar, em cadacapítulo, um ou alguns dos dozejovens jogadores destinados aenfrentarem-se depois da queda

de um meteorito, o leitor podeprocurar decifrar enigmas. Aspistas, no nal do livro, são linksde internet. O ritmo bastantealto e as referências espaciais eculturais que abrangem diversospontos do globo corroboram umadimensão de catástrofe universalque é preciso, a todo o custo,evitar.

Rudolf Erich Raspe (ilustrações deRafael Coutinho)

As Surpreendentes Aventuras do Barãode MünchausenCosac NaifyNova edição de um clássico daliteratura, assinado pelo alemãoe publicado pela primeira vez em1785. Baseadas num personagemreal, as aventuras tornaram-senarrativas da ordem do fantásticopela mão de Erich Raspe,recriando um barão audaz eum pouco tonto e aproveitandotodas as oportunidades para aironia e o sarcasmo sobre umacerta Europa convencida de sero centro do mundo. Mais do queum extra, as ilustrações de RafaelCoutinho compõem uma novaleitura deste clássico.

Rosa Montero

A Ridícula Ideia deNão Voltar a Ver-tePorto EditoraA partir do diário que MarieCurie iniciou depois da morte domarido, a escritora espanholaRosa Montero apropria-se dogesto e constrói uma narrativaque cruza cção e biograa,reetindo sobre a perda, a dor eas relações afetivas. Muito longede um discurso autopiedoso,este livro acaba por ser uma

celebração da vida, da memóriae do modo como vamosavançando, mesmo que comalguns tropeções.

ESTN

TE

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A S B S

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P o r R I C A R D O V I E L

Entrevista a

Mempo Giardinelli

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E N T R E V I S T A A M E M P O G I A R D I N E L L I

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Mempo Giardinelli (1947) nasceu em Resistencia, uma zona pobre do Nordeste argentino, numa casasimples, onde havia poucos bens, mas havia livros. O interesse pela leitura surgiu na infância, incenti

do pelos pais, e o salto para a escrita deu-se naturalmente. «Lia muito, e quando se lê muito sentimo-estimulados. Ninguém sabia que eu era escritor, mas eu sentia-me escritor.» Graças à palavra conquistamizades e amores, construiu uma casa e uma família, e uma fundação. «A literatura deu-me tudo o qtenho», costuma dizer. Jornalista, autor de romances, livros de contos e ensaios, morou no México quase dez anos durante a ditadura militar no seu país (1976–1983). Nesses anos conviveu e trabalhou

com grandes escritores (como Juan Gelman e Juan Rulfo) e fez amigos que se tornaram irmãos.

A experiência do exílio, assim como a busca do amor, são temas constantes na sua obra ccional qufoi premiada e reconhecida internacionalmente – está traduzido em mais de 20 idiomas. «A procurdo amor é a grande marca da minha vida. Sou um homem muito afortunado no amor, e agradecidoMulheres maravilhosas me amaram. E amei mulheres fantásticas. Posso ter tido momentos de dor, ctodos. Sofri muito.» Em dezembro, o autor deLuna Caliente esteve em Lisboa para uma homenagem a Jorge Luis Borges na Biblioteca Nacional de Portugal e conversou com aBlimunda. A conversa girou emtorno do exílio, das memórias, dos amores e da fundação que criou para fomentar a leitura e promov

a literatura – uma forma de retribuir o que a ela, a literatura, lhe deu.

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FUNDAÇÃO MEMPO GIARDINELLI

Fundação Mempo Giardinelli nasceu em 1993 quando ganhei o Prémio Rómulo Galle-gos. De repente, um dia ganhei um prémio muito importante e tinha muito dinheiro, enão sabia o que fazer com ele. O que vou fazer? Pensei: um prémio não tem que mudar aminha vida, não vai fazer de mim um escritor melhor nem pior. Desfrutei um mês com osamigos, viajei, comprei sapatos novos, z um monte de coisas que queria fazer, mas haviaque continuar. Decidi que esse dinheiro seria destinado a uma instituição que cuidasse daminha biblioteca, a única coisa de valor que tenho na vida é a minha biblioteca. Pergun-tava-me: Quando eu morrer o que vai ser disso? Preferia que casse toda junta, que fosse

uma unidade, e servisse outras pessoas. Primeiro a fundação foi criada com a ideia de disponibilizar a biblioteca, masdepois apareceram outras ações. Veio a crise na Argentina e tivemos que ajudar a muitas bibliotecas, a muitos refeitóriospúblicos, fazer trabalhos sociais com as crianças. Foi daí que surgiu o programa das Abuelas Cuenta Cuentos (premiadoprograma que forma «avôs» e «avós» para que eles leiam contos e escolas, refeitórios, hospitais, etc.). Sempre fui um pro-motor de leitura, então comecei a trabalhar com isso ali, achei que a fundação era um bom modo de desenvolver a leitura.Trabalhamos muito com os professores, com estudantes universitários... Desde o começo não pedimos nunca subsídios,sempre quisemos que a fundação fosse autossuciente. Fazemos o que é possível, com a ajuda de muitos voluntários e comdoações.

No começo foi muito difícil atuar assim, mas acho que hoje faz parte do nosso prestígio o facto de que ninguém nos

imponha nada. Talvez o êxito, entre aspas, da fundação seja que estamos numa região muito marginalizada. Em BuenosAires não se conseguiria fazer o que fazemos. Estamos numa zona muito necessitada e fazemos algo com qualidade, comvalor solidário: quem pode paga, quem não pode, não paga, e assiste aos cursos na mesma. Agora temos mais doações, alei de mecenato é muito boa.

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Nós não trabalhamos para fazer escritores, trabalhamos para fazer leitores. Escrever não é importante, ler é que é im-portante. Se se lê, depois pode-se escrever. Não temos ocinas literárias. Há quem venha à procura disso. Se umamucha-cha de 20 anos nos diz: quero escrever, nós respondemos: muito bem, então leia!

Há uns dois ou três anos que já não dou cursos, mas dei muitos. E convidamos escritores, não só argentinos mas tam- bém do Brasil, do Chile, do México, de muitos lugares, para dar seminários. Há três seminários permanentes: LiteraturaInfantil, Literatura Argentina e Literatura da região do Chaco.

A LITERATURAenho de baixo, de uma família muito pobre. Não tínhamos nada, mas tínhamos livros. Fui lei-tor por causa do meu pai e da minha mãe, e sou muito grato à literatura. Comecei a escrever

antes de ser jornalista. Comecei de menino, aos 15, 16 anos. Lia muito, e quando se lê muitosentimo-nos estimulados. Ninguém sabia que eu era escritor, mas eu sentia-me escritor. Es-tudei Direito, mas não sabia o que estava a fazer. Por sorte não estudei Literatura, o Direitodeu-me uma boa formação, ainda que nunca me tivesse interessado ser advogado. Eu escreviao tempo todo, sabia que ler e escrever era o que eu devia fazer. Não tinha pressa, só publiqueio meu primeiro livro aos 33 anos. Saiu em Espanha, chama-se La Revolución en Bicicleta. Foi o

meu primeiro livro a ver a luz. Era para ter sido Por qué prohibieron el circo, mas esse livro abortou. E agora acaba de sair aedição desse livro abortado.

EXÍLIOO exílio é uma grande novela. Há um texto que escrevi, que foi publicado no jornal Página 12, em que narro como foi

que sai da Argentina para o México. Ali está tudo, é um conto, mas um conto real ou umatrue history e que escrevi quando

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morreu a pessoa que me ajudou a sair, uma pessoa por quem eu não tinha nenhum apreço [http://www.pagina12.com.ar/diario/contratapa/13-31712-2004-02-20.html] Foram quase dez anos de exílio. Foram tempos duros, mas agridoces. Éra-mos muito jovens, tínhamos 25, 26 anos. Logo que cheguei consegui um trabalho. Um dos primeiros trabalhos que tive foinuma revista que tinha sido criada pelo Juan [Gelman] e que se chamava El Cuento. O diretor da revista era um homemque me protegeu muito, foi meu mestre, chamava-se Edmudo Valadez. Um trabalho maravilhoso, eu lia contos, o meu tra- balho era ser leitor. E ajudava, era uma espécie deocce boy, mas eu estava com eles. Era maravilhoso. Estavam o AugustoMonteroso, o Edmundo e o Juan. Comecei a fazer ocinas literárias com a Elena Poniatowska. Tudo isso está escrito. Aminha vida, não sei se isso é bom ou mau, está toda contada.

RECORDAÇÕES s minhas memórias, para que vou sentar-me a escrevê-las? É preciso auto-pensar-semuito. As memórias deixo-as para o Winston Churchill, no meu caso vou deixando asminhas lembranças, uma espécie de memória íntima. Acho que essas recordações va-lem algo para mim e para os meus amigos. Por isso não as publico, nem as menciono,mas de quando em quando escrevo algo. No meu blog há uma etiqueta que se chama «ElLaberinto y el Hilo», ali estão as minhas «memórias». Há muito tempo que as escrevo.[http://cosario-de-mempo.blogspot.pt/search/label/El%20laberinto%20y%20el%20hilo]

AMOR Até me esqueci de haver dito que a procura do amor foi o que marcou a minha vida, mas é verdade. Dá-me um pouco

de pudor dizê-lo, mas sei que amei muito e fui muito amado. Isso supera toda a tragédia e toda a merda vivida.

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OOSAD

VIREON OS

DATTACCO

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F o t o g r a f i a : J o s é F r a d e / M u s e u d a M a r i o n e t a

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antigo Convento das Bernardas, empleno bairro lisboeta da Madragoa,guarda-se mais do que a memória eo património associados à ordem re-ligiosa que ali esteve instalada desde1653. Nas salas do convento, as cole-ções que integram o Museu da Mario-neta compõem, desde 2001, um espaço

onde a história do teatro de marionetas se organiza com um forte

destaque para o espaço português, mas igualmente com núcleosimportantes de objetos oriundos de países dos cinco continentes.Criado em 1987 pela Companhia de Marionetas de S. Louren-

ço, o Museu da Marioneta esteve instalado num velho edifício nazona de Santa Engrácia, cuja degradação não garantia as con-dições ideais para a exposição da coleção e as visitas que atraía.Com a mudança para o Convento das Bernardas, iniciou-se umpercurso de construção de um espaço museológico digno do espó-

lio que alberga, entretanto enriquecido pelo depósito da coleçãode Francisco Capelo, composta por cerca de duas mil peças. Aspeças expostas são apenas uma pequena parte deste imenso pa-trimónio, estando a maioria das coleções guardada nas reservas,como explicou Maria José Machado Santos, diretora do Museu:«A coleção de Francisco Capelo tem cá perto de duas mil peças,sendo que não estarão expostas mais de duzentas. E em termos

globais, temos nas reservas muito mais do que o dobro do núme-ro de peças que estão expostas em todo o museu. Isto não é mau.Por um lado, não faz sentido expor demasiadas peças do mesmomarionetista. Por outro, é importante que haja peças para irem ro-dando nas vitrines, porque são objetos muito frágeis e precisamde ser bem conservados. Em teoria, não devia haver peças expos-tas mais de três meses, ainda que hoje as condições das vitrinessejam muito melhores, com as lâmpadas frias, os leds, etc. Masainda assim, é importante preservar a integridade das peças. De-

pois, há outra coisa: não temos mais espaço para expor peças.»Apesar disso, o que se mostra neste museu constitui um percursomuito completo, e cuidadosamente legendado e referenciado, peloteatro de marionetas português, para além de um panorama geral,nalguns casos mais detalhado, das tradições teatrais associadas àsmarionetas de todo o mundo.

À entrada, numa espécie de ante-sala que revela parte do quepodemos ver ao longo da visita sem deixar de criar expectativa so-

bre o que aí virá, marionetas e máscaras originárias da Tailândia ede Java recebem o visitante. As marionetas do Oriente são conhe-cidas pela sua beleza e pela riqueza dos pormenores decorativos,e isso mesmo se constata nas vitrines seguintes. Aqui exibem-sepeças do Vietname, da China ou do Sri Lanka, geograas onde atradição do teatro de marionetas é antiga e muitas vezes associadaa funções rituais, para além de muito variada. Entre as sombras

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chinesas, que revelam complexos rendilhados e um enorme co-nhecimento sobre o modo de trabalhar a luz, e as marionetas deágua do Vietname, manipuladas por bonecreiros que passam todaa função com água pela cintura, não há muitos elementos comuns.É a geograa que une estas peças, mas cada uma conta uma his-tória diferente, das sionomias ao modo de atuar, dos repertóriosaos elementos decorativos.

Na sala dedicada ao espaço europeu e mediterrânico arru-mam-se as marionetas de tradições que nos serão mais familiares:Guignol, de França, Punch & Judy, do Reino Unido, Rinaldo, daSicília. A diretora do museu, que acompanhou a visita da Blimun-

da, vai apontando pormenores de cada peça enquanto diz, comvisível orgulho, que nos últimos tempos o Museu da Marioneta«aumentou o espólio de peças relativas às principais famílias demarionetas europeias». Antes das salas dedicadas a Portugal,ainda há espaço para mostrar marionetas e algumas máscaras doBrasil, do México, do Mali, da Nova Zelândia. Notar as diferençase identicar-lhes traços culturais de um ou outro espaço é um dosexercícios proporcionados por esta coleção, onde reconhecemos

até o que não nos é familiar. É o que acontece quando se observamas marionetas do Mamulengo, espetáculo tradicional do Nordeste brasileiro que, num olhar mais distraído, podia confundir-se comos Robertos do lado de cá do Atlântico.

Oralidade e tradição escrita

nas salas seguintes que camos a conhecercom detalhe a história deste tipo de teatro emPortugal. Para além dos Robertos, há Bone-cos de Santo Aleixo e marionetas de criado-res conhecidos e de grupos e companhias quemarcaram a história. É o caso dos bonecos deManuel Rosado, que incorporou na tradiçãodos Robertos outras características, em fun-

ção das histórias que queria contar, ou Augusto Santa Rita, cujoTeatro de Mestre Gil, fundado em 1943, incluía repertórios cujaspeças eram escritas e encenadas como se de uma companhia comatores de carne e osso se tratasse.

A visita prossegue pelas salas portuguesas, onde ainda po-dem ver-se peças do Teatro de Bonifrates, da Companhia de SãoLourenço ou do Teatro de Branca Flor, entre várias outras com-panhias e marionetistas. A fechar o percurso, mostra-se o uso damarioneta na televisão e no cinema, com grande destaque para otrabalho de José Miguel Ribeiro, com o lme A Suspeita , ou de Pau-

lo Cambrais, com os volumes que animou para a Singer.O acesso aos textos do teatro de marionetas torna-se comumcom as companhias modernas e contemporâneas, que registamas suas narrativas teatrais do mesmo modo que qualquer outracompanhia, mas quando recuamos aos repertórios tradicionais, oacesso é muito limitado. Como explicou Maria José Machado San-tos, «há uma série de textos que se conhecem porque o Henrique

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Delgado, um investigador fundamental para a história da mario-neta em Portugal, fez um levantamento. Até aos anos 50 do séculopassado, a tradição era oral e os marionetistas iam passando ostextos de espetáculo para espetáculo. Como muitos faziam o mes-mo tipo de repertório, com histórias muito semelhantes, haviauma certa unidade. Apesar disso, havia espaço para uma enormecriatividade e os marionetistas acabavam por ser uma espécie de jornalistas locais, contando as histórias que aconteciam aqui e ali,e nada disso era escrito. Não há, portanto, uma compilação comtodos os repertórios tradicionais. O que há são levantamentos etrabalhos dispersos, como o que Alexandre Passos fez para o re-

pertório dos Bonecos de Santo Aleixo, por exemplo.»A diculdade de conhecer detalhadamente os textos que se re-

presentavam no teatro de marionetas tradicional não é a mesma emtodos os espaços. Em alguns casos, o facto de se tratar de uma tra-dição exclusivamente oral impossibilita esse acesso, como acontece,por exemplo, em muitos países africanos. «Em África, do ponto devista mais tradicional, as representações acontecem em festas li-gadas a ritos de iniciação, ritos agrários, momentos comunitários

de cada aldeia. Os objetos são muitas vezes intermediários entre oshomens e as divindades e também aqui não há repertório escrito,claro», explica a diretora do Museu. «Mas nos núcleos asiáticos érelativamente fácil, porque o que hoje se faz é o que sempre se fez.Não houve, como no Ocidente, este corte abrupto entre teatro demarionetas e teatro de marionetas. Ou seja, no Ocidente, a partir decerta altura houve um corte que levou a que se entendesse o teatro

de marionetas como algo para a infância. Ora, o teatro de marione-tas não é, e nunca foi, um teatro infantil, e no Oriente essa realidadeé reconhecida por todos. Em Java e em Bali, por exemplo, os teatrospodem decorrer durante toda a noite e grande parte do repertório é baseado nos épicos hindus, o Mahabharata e o Ramayana, com maisou menos variações. E depois há as histórias ligadas à cultura ani-mista e a práticas rituais. Nada disto é para crianças e o teatro não éencarado apenas do ponto de vista lúdico.»

O estigma da infânciam Portugal, a ideia de o teatro de marionetas

ser um exclusivo do entretenimento, e espe-cicamente do entretenimento infantil, é algoque persiste, dicultando o interesse do públi-co adulto por esta tradição. Mas essa ideia nãotem nada de rigoroso, ainda que haja algumasexplicações possíveis para a sua aceitação geral.A diretora do Museu aponta alguns motivos:

«Isso acontece com o decréscimo da importância atribuída ao teatro

de marionetas, por causa da rádio, da televisão, do cinema e de outrassolicitações culturais e sociais. Os que resistiram começaram a fazerrepertórios para crianças, adaptando o que existia e criando novashistórias. De certo modo, o teatro de marionetas acabou por car re-fém dessa estratégia de sobrevivência. Por exemplo, toda e qualquernotícia que sai na imprensa sobre este museu sai na secção de crian-ças, independentemente do tema.» Há muito caminho para andar,

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então, na apresentação de uma coleção tão plural ao público que a po-deria visitar. Quem viu a exposiçãoQuando os Deuses Visitam Bali, queainda estava patente aquando da visita da Blimunda ao Museu, per-cebe que não é o público infantil ou juvenil aquele que pode usufruirdo percurso proposto e das peças expostas, mas o preconceito pareceestar instalado. «Claro que um miúdo pode ver essa exposição, e eunão só não quero afastar as crianças do Museu como faço questãoque elas o frequentem, até com programação própria, mas este não éum museu para crianças», arma Maria José Machado Santos.

ara além da exposição permanente, das

exposições temporárias e da programa-ção de espetáculos, o Museu da Mario-neta inclui um Serviço Educativo cujotrabalho vai contribuindo para divulgaro património que se mostra neste espa-ço e, simultaneamente, para modicar aperceção social que continua a fazer das

marionetas um exclusivo da infância. Stella Nunes, responsável

pelo Serviço Educativo, falou à Blimunda sobre o objetivo da equi-pa que coordena, e que passa por «trazer todo o público ao mu-seu, ou seja, todas as faixas etárias, de modo a que possam co-nhecer as peças que aqui temos e os contextos culturais de cadapeça. Depois, temos atividades pensadas em função das idadesdos visitantes. Visitas guiadas, ateliers para crianças e adultos,sessões de leitura de contos. Temos visitas de todas as idades,

das crianças mais novas aos seniores.» Uma das funções do Ser-viço Educativo será, então, contrariar a visão infantil do teatrode marionetas? «Constantemente. E também por isso temos for-mações para adultos. Aliás, a tarefa começa por sensibilizar osadultos para o facto de o teatro de marionetas ser para todos ospúblicos.» Descontando as visitas em grupo, escolar ou familiar,a maioria dos visitantes pontuais do Museu da Marioneta sãoestrangeiros, talvez porque não tenham, ou já não tenham, essaideia pré-concebida que associa as marionetas à infância. Aliás,os repertórios mais antigos de certos países europeus, como oPunch & Judy em Inglaterra, foram afastados da escola e da in-

fância a partir do momento em que o politicamente correto seinltrou na cultura infantil, suavizando contos tradicionais quesempre foram cruéis e alterando enredos para não ferir supos-tas suscetibilidades. Talvez por isso não passe pela cabeça detantos visitantes estrangeiros associar as marionetas à infância.No caso português, e depois de décadas de associação forçada,talvez esteja na altura de o público adulto descobrir este espóliotão rico, capaz de nos dar acesso a uma parte importante da me-

mória coletiva comum e de revelar aspetos culturais de outrasparagens de um modo muito completo. Anal, uma marionetanão é apenas um boneco e o seu manipulador. Nos movimentos enas histórias contadas guardam-se tradições, técnicas, herançasliterárias, hábitos, crenças e relações com o ciclo da terra e davida – o que faz de nós humanos, com as diferenças da geograae a matéria comum de tudo o resto.

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CEGUEIRA BRANCA«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»

oi com bastante entusiasmo e algum espan-to que se recebeu o anúncio, em 2007, que ocineasta brasileiro Fernando Meirelles iriaadaptar ao grande ecrã Ensaio sobre a Cegueira.Depois do ato falhado que constituiu A Janga-da de Pedra, de George Sluizer, sentia-se queera esta a adaptação à altura da grandeza daescrita do português. Apesar de ter associados

os nomes do mexicano Gael García Bernal ou dos norte-americanos Julianne Moore e Mark Ruffallo, a grande vedeta da produção erao próprio Meirelles, que à altura gozava o pico da sua popularidadeinternacional. Acabara de se tornar no primeiro cineasta brasileiroa ser nomeado para um óscar de melhor realizador comCidade de Deus, e no ano seguinte para os Globos de Ouro comThe ConstantGardener/O Fiel Jardineiro. Todo o processo de produção do lme foirelatado pelo próprio num diário de rodagem intitulado Diário de

Blindness, editado em Portugal pela Quasi Edições e que serviu defonte para o que a seguir se conta.Tal como Sluizer, a vontade de Meirelles em adaptar o romance

é remota, data de quando Ensaio sobre a Cegueira foi publicado noBrasil em 1997. O cineasta «devorou» o livro e viu nele um enormepotencial cinematográco. Contactou de imediato o editor brasilei-ro de Saramago para que este consultasse o autor acerca do seu in-

teresse em vender os direitos. O escritor português era então aindairredutível na sua determinação em não ver os seus livros no cine-ma e Meirelles optou pelos direitos de outro livro da mesma edito-ra, de títuloCidade de Deus. Em 2006, um produtor canadiano, NivFichman, contacta Meirelles no sentido de averiguar se estaria inte-ressado em adaptar Saramago, pois acabara de adquirir os direitosde… Ensaio sobre a Cegueira. No espaço de meses montou-se umacoprodução Brasil-Canadá com participação nipónica e britânica;as lmagens foram marcadas para meados de 2007. Próximo passo:obter a bênção do escritor.

Acompanhado do produtor, Fichman, e do argumentista, Don

McKellar, Meirelles veio a Lisboa conhecer José Saramago. Sentia--se bastante «apreensivo» por sentir que o escritor, por se recusara vender direitos, não estava interessado no lme. A surpresa foitotal: não só se mostrou interessado como perguntou várias vezesquando poderia ver algumas imagens. Meirelles estava enm pre-parado para a aventura e as lmagens de Blindness (título interna-cional) decorreram sem percalços entre Toronto, São Paulo e Mon-tevideo. O argumento de Don McKellar apresenta-nos uma cidade

não identicada confrontada com uma epidemia de cegueira bran-ca. O governo dessa cidade decide internar os infetados num hospi-tal militar, sem assistência, como se se tratasse de uma leprosariaou mesmo de um campo de concentração. Lá dentro seguimos umgrupo de personagens sem nome — apenas identicadas através donúmero e da sua prossão — lideradas pela esposa (Julianne Moo-re) de um oftalmologista (Mark Ruffallo) que, para acompanhar o

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marido, nge estar infetada. É através dos seus olhos que assistimosà degradação do local e à deagração de violência sexual por partede grupos marginais de entre os quais se destaca um empregado de bar (Gael García Bernal). O caos instala-se quando um conito eclo-de mas a esposa do oftalmologista consegue escapar com um grupode pacientes para encontrarem, fora da sua prisão, uma sociedadeem ruínas. Juntos tentarão das cinzas de uma civilização já passadaconstruir uma nova «família humana».

uando terminou a quarta versão damontagem, Fernando Meirelles resol-

veu começar a fazer sessões privadaspara amigos e algunstest screenings (ses-sões para um público anónimo que nom emite a sua opinião através de umquestionário previamente elaborado).Estes primeiros públicos reagiram de

forma idêntica, reprovando a excessiva violência do 2.º ato, passa-do no manicómio desocupado. Mais tarde, a própria Miramax dos

irmãos Weinstein, que comprou os direitos de distribuição mundialdo lme, mostrou também algumas ressalvas quanto à intensidadedesse ato. Foram necessárias ao todo mais de 10 versões de mon-tagem até chegarmos à versão nal, que estreou mundialmente noFestival de Cannes, para uma receção morna por parte da crítica.Saramago, com a saúde já muito debilitada, não pôde estar presen-te em Cannes, por isso Meirelles veio a Lisboa mostrar-lhe o lme

numa sessão privada no cinema São Jorge. Depois de passados oscréditos nais, o escritor, bastante emocionado, diz-lhe: «Fernando,eu sinto-me tão feliz hoje, ao acabar de ver este lme, como quandoacabei de escrever o Ensaio sobre a Cegueira.»

Relativamente ao lme propriamente dito, estamos claramentenum campeonato diferente de A Jangada de Pedra. Aqui a persona-lidade artística do brasileiro controla todos os aspetos técnicos eartísticos do lme «com o intuito de colocar o espectador num uni-verso tão novo quanto o mundo da cegueira». Para tal serve-se decolagens de imagens sobrepostas, desfocadas ou imbuídas de umaluz opressiva que provoca uma verdadeira desorientação sensorial,

reforçada por uma montagem sonora composta por «timbres des-conhecidos» e diálogos fora-de-campo. Mas depois de se ver Blind-nesspercebem-se algumas das reações com que Meirelles se depa-rou nas sessões privadas. Há, sem dúvida, um grande desequilíbrioentre os 3 atos do lme, e se esta versão nal é a mais contida a ní-vel da violência, então nem se imagina o que teria sido a primeiramontagem do lme. «O que mais me preocupou foi a diculdadede alguns em se relacionarem com os personagens sem nome e his-

tória. Na literatura, isso funcionou perfeitamente, mas no cinemapercebi que não seria tão fácil», confessou o cineasta. De facto, ape-nas Julianne Moore e Gael García Bernal (que entra em cena numprodigioso momento de humor negro, a cantar Stevie Wonder nosaltifalantes do hospital) se destacam de entre o elenco que ainda in-cluía o veterano Danny Glover chamado para um papel que seria,na imaginação de Meirelles, o «alter ego» do escritor português.

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O cineasta, a meu ver, insistiu num dos erros de Georges Sluizer:o de não querer fugir muito do livro, talvez com medo de insultar osleitores ou o próprio escritor e, consequentemente, de tentar passarpara a tela situações que só funcionam em literatura. Talvez tenhapecado pela ambição de sustentar a intriga recorrendo à universali-zação da linguagem que Saramago usa, mas em cinema isso só fun-ciona na medida em que estiver identicado com um género espe-cíco, cujas regras permitem ao espectador ignorar, por exemplo, ofacto de os personagens não possuírem um nome. A estratégia dedistribuição da Miramax assentava na ideia de que os nomes do re-alizador e do Prémio Nobel associados permitissem que Blindnesspudesse aspirar à categoria deblockbuster . Ideia que, curiosamente,estava por detrás da relutância inicial de José Saramago em venderos direitos dos seus lmes para o cinema.

NO PORTUGAL DOS PEQUENINOSada dia que nasce é o primeiro para unse será o último para outros e que, para amaioria, é só um dia mais.

Mas, e ao contrário do que se pensa, a

terceira adaptação do grande escritor por-tuguês é produto nacional, da responsa- bilidade do cineasta sediado em Coimbra,António Ferreira, que ganhou alguma no-

toriedade com o sucesso da sua primeira longa-metragem, Esque-ce tudo o Que Te Disse, em 2002. Este desconhecimento deve-se, emparte, ao facto de António Ferreira ter optado por adaptar um conto

— «Embargo», inserido emObjeto Quase, publicado em 1978 — emvez de um dos seus romances mais famosos. É claramente uma op-ção à medida da realidade da produção nacional de cinema. Tam- bém se trata de um projeto de longa data do cineasta, do tempo emque estudava cinema, tendo inclusive lmado algumas sequênciasem 1994. Recordaria de novo o projecto aquando da recente grevede camionistas que provocou uma crise de combustível, tal como noconto. Com subsídio do ICA e produtoras associadas em Espanha eno Brasil, Embargo estrearia no Fantasporto em 2010.

Passado num tempo indenido, Embargo, tal como o nome indi-ca, apresenta-nos um país a sofrer as consequências de um embargode petróleo, onde um personagem chamado Nuno tenta vender umainvenção revolucionária para a indústria do calçado. A caminho deuma reunião tem um acidente e ca retido no interior do seu carrodevido a «um pequeno problema» nunca esclarecido. Seguem-se di-versas peripécias humorísticas, como Nuno a tentar levantar dinhei-ro a partir do seu carro ou quando consegue que a reunião, que tantoambicionava para vender a sua patente, se realizasse no parque deestacionamento. Apesar de conter a metáfora política da dependên-cia excessiva de combustível e de apelar às virtudes da máxima «dar

corda aos sapatos», Embargo é, acima de tudo, uma comédia român-tica sustentada por um ritmo humorístico bastante uido e interpre-tações sólidas do par de estreantes Filipe Costa e Cláudia Carvalho.

Num país que tivesse alguma relação com a sua cultura cinema-tográca e literária, Embargo seria um candidato natural a um su-cesso de bilheteira. Ficou-se por passagem fugaz pelas salas e umpériplo por festivais de cinema brasileiros. Tem uma aproximação

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e resignado soltou um «Qual queres?», e o produtor respondeu,surpreendente e categoricamente,O Homem Duplicado. Desta vez,entregou a realização a um jovem talento canadiano desconhecido,Denis Villeneuve, tendo por outro lado, conseguido associar ao pro- jeto uma grande estrela de Hollywood, Jake Gyllenhaal, cujo nomeengrandeceu muito uma produção bem mais modesta que Blind-ness. Talvez Fichman se tenha apercebido onde residia o verdadeiropotencial do imaginário de José Saramago: no cinema de género.

O projeto denominou-se Enemye foi o mais bem-sucedido dosquatro, tanto a nível de crítica como de resultados de bilheteiras,e provavelmente por duas razões fundamentais: uma grande dis-tanciação da base literária; e uma clara inserção do lme no campodo cinema de terror. Tratando-se também de um romance poucoconhecido, isso permitia maiores liberdades que, no entanto, iriamser transmitidas ao escritor, como revelou o argumentista espanhol Javier Gullón em entrevista. «Tínhamos lido o livro várias vezes,tomado muitas anotações e uma lista de perguntas preparadas parao mestre, fui para o hotel, enviei um email ao produtor. No dia se-guinte, abri o jornal no computador e deparei-me com a notícia damorte de Saramago.»

O Homem Duplicado conta a história de um professor de História,deprimido e macambúzio, que a conselho de um colega com quemtem pouca anidade resolve alugar um lme num clube de vídeo, noqual descobre um ator que é igual sicamente a si. Após uma obses-siva busca, descobre o paradeiro do seu duplo e marca um encontrosecreto. A partir daqui, Enemydescola para outros territórios, queembora existentes na prosa de Saramago são aqui explorados mi-

mais comercial apesar de se sentir um forte cunho pessoal do ci-neasta, que possui um talento para a comédia muito raro em Por-tugal, onde existem muitos comediantes mas poucos realizadoresde comédia. Embargo, apesar da sua modéstia, é um lme que, nomínimo, será lembrado mais tarde junto de outros objetos raros nacinematograa portuguesa, como A Força do Atrito, de Pedro Ruivo,ou Objeto Voador a Baixa Altitude, de Solveig Nordlund, lmes queusam o caos urbanístico português como cenário de cções pós--apocalípticas. E mais importante do que isso, esta aproximação àobra de José Saramago já não mostra pudores em relação a associa-ções ao cinema de género.

O INIMIGO SOMOS NÓS«O caos é uma ordem por decifrar» — Livro dos Contrários

produtor canadiano Niv Fichman, mo-tivado pela forma com se havia mon-tado rapidamente uma produção para Blindness, tentou de imediato convencero escritor a vender-lhe mais direitos. Sa-ramago encontrava-se numa posição de-

licada por já ter aberto um precedente e oargumento da irredutibilidade do autor já não era aplicável. Impôs-lhe uma condição: que o deixasse verprimeiro o resultado de Blindness. Depois da sessão no São Jorge ede os presentes terem presenciado o estado emocional do escritor nom da projeção, Fichman não perdeu tempo e, ao pequeno-almoço,relembrou ao escritor a sua promessa. Saramago encarou Fichman

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sua viúva, Pilar del Río, numa sessão em Madrid, onde estava pre-sente a estrela do lme, disse: «Talvez não encontrem o livro, mas José Saramago está dentro deste lme.» Revelou também que a úni-ca condição imposta pelo escritor a quem quisesse adaptar os seuslivros era que o zessem de maneira totalmente livre. Queria que osseus livros suscitassem ideias noutros criadores. Podemos inferirdaqui que Enemy deve o seu sucesso à adoção à letra desta premissa.

Quando Fernando Meirelles mostrou Blindness a José Saramago,escreveu que este lhe disse «que não considera o lme um espelhodo seu trabalho e que nem poderia ser assim, pois cada pessoa temuma sensibilidade diferente. Disse ter gostado da experiência de ver

algo que conhecia, mas que, ao mesmo tempo, não conhecia.» É in-teressante constatar que à medida que o escritor se impôs o m dosseus próprios preconceitos acerca do cinema, também a forma deo representar no grande ecrã mudou. Saramago e o cinema foramdeixando de ser antagónicos para compreenderem que a coexis-tência enquanto livro e lme era possível e quanto mais desligadaestivesse, mais isso favorecia ambos. Enemy deixa no espectador al-guma curiosidade por saber por que mais caminhos levou o escri-

tor aquela narrativa. Existem muitas formas de lmar um livro masmuito poucas formas de lmar um autor. A maneira de lá chegar éexplorando as pistas que este nos vai deixando e permitir que umaideia gere outra e vá estabelecendo um diálogo através do tempo,armando deste modo a sua vitalidade artística. Resta-nos esperarpela próxima adaptação. As apostas vão no sentido deO Evangelho segundo Jesus Cristo, que está nas cogitações de vários cineastas…

nuciosamente evitando a tentação, recorrente em anteriores lmes,de colocar em cena todos os aspetos focados pelas obras. Enquan-to o livro envereda por uma relação doentia entre os dois duplosnarrada com ironia, o lme absorve as atmosferas sombrias dosprimeiros lmes de Polanski e de grande parte da obra de DavidLynch. Enemy é um lme de terror altamente simbólico, que convi-da o espectador a visitá-lo mais vezes e a participar do seu enigma.Na denição do próprio Villeneuve, trata-se de uma «exploração daintimidade masculina» e fala-nos de «um homem que decide deixara amante e voltar para a sua esposa grávida e nós vemos a históriado seu ponto de vista subconsciente».

lme estreou no TIFF (Festival de Cine-ma de Toronto) em 2013 mas fez carreiranos festivais de cinema fantástico, tendomesmo arrecadado um prémio no maisimportante de todos, o Festival de Sitgesna Catalunha. A crítica dividiu-se quan-to ao signicado do lme: uns armam

tratar-se de uma parábola da vida numestado totalitário, muito ao jeito das temáticas de Saramago, tradu-zido em cinema por planos fechados de uma teia urbana consoli-dada com inúmeras imagens e referências a aranhas, que outrosidenticam, por exemplo, como o medo inconsciente do professorde História em relação ao sexo feminino. Tal como com Embargo,também nunca saberemos a opinião do escritor português mas a

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Clássicos: os contos formativosó se nasce duas vezes» é um título sugesti-vo, quando o tema são os contos de fadas.Fátima Maldonado recorre à psicologiapara validar a sua condição imprescindí-vel na formação não apenas leitora mas

humana das crianças. O ultrapassar domedo, a autonomia, os conitos emocio-nais e a fronteira entre o bem e o mal pare-

cem estar ali tão exemplarmente representados como em nenhumoutro género ou subgénero literário. Se em 1989 se questionava oafastamento do imaginário tradicional, aspeto comum nos três ar-tigos do Expresso, hoje o mercado dispõe de uma variedade de con-tos tradicionais sem semelhança há duas décadas e meia. A diver-sidade de edições vai da ilustração de textos originais a adaptaçõese releituras, com a OQO em destaque. Por outro lado, a recriaçãodessas histórias tradicionais merece igualmente uma nota comomarco distintivo dos tempos atuais em relação a 1989. Que pensarde Pela Floresta, de Anthony Browne, que explora o conhecimentoprévio acerca da história do Capuchinho Vermelho, recuperandoelementos de outras narrativas tradicionais? Ou deTu e Eu do mes-

mo autor, que atualiza a personagem de Caracolinhos de Ouro e aenquadra num contexto social desfavorecido? Ou ainda de A Meni-na de Vermelho, de Roberto Innocenti e Aaron Frisch?

Para além disso, o mercado dispõe de antologias de autorescanónicos como Perrault, Andersen ou os irmãos Grimm e reco-lhas do património oral nacional e internacional. Não é então deestranhar que autores reconhecidos como Alice Vieira, AntónioTorrado ou António Mota assinem coleções de reconto tradicio-nal. Nesse sentido, as palavras premonitórias de Malaquias Mar-ques a esse respeito no seu artigo «O Negócio e os Números» nãoserão desajustadas: «O tempo do “era uma vez”, das fadas boas devarinha mágica, dos meninos fadados para o bem, nais felizese muitos lhos, passou. Irreversivelmente? Há quem, coração aoalto, julgue saber que se vive hoje “uma fase antifada” e acrediteno seu (delas, fadas) suavíssimo retorno; tudo, auguram os cren-tes, questão de recuperar-se a inocência do imaginário que os ru-des tempos de agora “pisaram a pés juntos”.»

Para além dos contos tradicionais, assistimos igualmente aorelançamento no mercado de boas traduções e edições cuidadasde clássicos universais que vão desde Pinóquio, Alice no País das Maravilhas, As Aventuras de Tom Sawyer , O Vento nos Salgueiros até

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O P r í n c i p e B a r b a s d e M i l h o , E d i t o r i a l Ve r b o , C o l e c ç ã o P i c a p a u , 1 9 8 7

O J a r d i m d e R o s a l i n a , E d i t o r i a l Ve r b o , C o l e c ç ã o P i c a p a u , 1 9 8 8

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a Os Desastres de Soa e a Pipi das Meias Altas. Havendo mais ou

menos procura, o facto é que já não nos podemos queixar do mer-cado nesse aspeto e a oferta chega de editoras com catálogos tãodistantes como a Relógio d’Água, a Ocina do Livro ou a Books-mile. Ao contrário dessa espécie de emancipação contra a histórialiterária, que se vivia em nais de oitenta, assiste-se agora a umaonda nostálgica cultivada e destinada aos adultos, principais me-diadores.

Outro aspecto que Fátima Maldonado destaca como funda-

mental nessa formação é a presença da violência na literatura in-fantojuvenil, que em nais de oitenta se eufemizava até ao desva-necimento, contribuindo para uma cristalização do mundo e daspessoas. A verdade é que não podemos hoje considerar que a pro-dução portuguesa, especialmente a juvenil, ignore a violência domundo. Apesar de não respeitar os modelos que a psicologia doscontos de fadas congura, as obras de Alice Vieira, Ana Saldanhaou António Mota não se privam de apresentar quadros familia-res e sociais adversos, rudes e cruéis. Sem com isso olvidarem asmensagens de esperança que poderão efetivamente alimentar oapaziguamento dos jovens leitores. Também Afonso Cruz, JorgeAraújo e Carla Maia de Almeida apresentam contextos de resis-tência, remorso, perda de inocência e, no caso dos dois últimos,novamente esperança.

Leitura e literaturauando José António Gomes, no seu ar-tigo «O que lêem as crianças», manifes-ta apreensão em relação à presença daliteratura no mercado do livro infanto- juvenil, prossegue na mesma linha deFátima Maldonado. Talvez seja até asua argumentação aquela com pendormais atual. No nal dos anos oitenta

arrancava uma produção editorial de fórmulas com grande suces-so de vendas e que, segundo José António Gomes, se situavam nouniverso da paraliteratura. Um quarto de século depois o contextonão é assim tão distinto, embora se pressinta uma espécie de eter-no retorno. Se em 1989 se começava a apostar num programa dereceção leitora que não privilegiava a literatura e tentava resolvera quadratura do círculo, desescolarizando a leitura dentro da es-cola, em 2014 esse regresso tem a chancela novamente programá-

tica de um ideário para a educação. As polémicas Metas de Edu-cação Literária visam sobretudo recolocar a literatura no caminhodo leitor em formação, mesmo que escolarizada, inacessível paramuitos alunos e alguns professores, obrigatória. É interessan-te notar que grande parte dos nomes referidos por José AntónioGomes no nal do artigo constam das referidas listas das Metasde Educação Literária: Aquilino Ribeiro, Irene Lisboa, Sophia de

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Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Agustina Bessa Luís, Matil-

de Rosa Araújo, Ricardo Alberty, Luísa Dacosta, António Torra-do, Maria Alberta Menéres, Alice Vieira e Manuel António Pina.

Os argumentos em defesa da literatura permanecem pertinen-tes. «Esta preocupação em criar condições para o prazer de lertraduzida […] no recurso de uma “linguagem clara” tem contudo,como consequência, o facto de crianças de 7 ou 8 anos consumi-rem já alguma desta produção “juvenil”, sem diculdades signi-cativas de leitura esvaziando-se assim o papel de alguma literatu-

ra “para a infância” – mais rica de maravilhoso – quando encaradaem função desses pequenos leitores.», sustenta José António Go-mes. Hoje sabe-se que, se por um lado a coleção Uma Aventuraoperou uma verdadeira revolução no prazer de ler para váriasgerações de crianças, é dado seguro que muitas delas não conse-guiram depois dar o salto para narrativas com outros níveis decomplexidade diegética que se vericam ao nível da disposição erecursos retóricos patentes no texto. Para esses leitores, o resulta-

do é neste momento dual: há quem desista de ler, há quem consigaencontrar outras fontes de prazer em fórmulas semelhantes, em- bora com mais personagens, mais descrições ou alguns recursosmais adequados à sua maturidade e experiência de vida crescente.

Atualmente não seria difícil imaginar um percurso possível as-sente em fórmulas ao longo dos anos: começando com GerónimoStilton e seguindo com Vampiro Valentim, Lucas Scarpone, Uma

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O P E R I G O D O E T E R N O R E T O R N O A M e n i n a G o t i n h a d e Á g u a e A R o d a q u e S a í u d o s E i x o s , A s a J u v e n i l , 1 9 8 7

A M e n i n a G o t i n h a d e Á g u a , A s a J u v e n i l , 1 9 8 7

A R o d a q u e S a í u d o s E i x o s , A s a J u v e n i l , 1 9 8 7

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Aventura, as renovadas aventuras de O Triângulo Jota, depois As

Crónicas de Nárnia, Ulysses Moore ou Percy Jackson, Cherub eHunger Games. A grande diferença, no que respeita a esta parali-teratura, que ocorre passado um quarto de século, é que as frontei-ras entre literatura e paraliteratura se tornaram menos estanques,com a integração de outros imaginários e alguma diversidade naprópria organização de algumas narrativas. O tempo deixou deser imutável, as personagens são menos planas e, sobretudo de-pois de Harry Potter, os mistérios apresentam-se em graus de re-

levância, jogando com o volume e toda a coleção. As inferênciasque revelam o discurso simbólico e a enciclopédia leitora de cadaindivíduo pontilham algumas destas obras, revelando aqui e alisurpresas do ponto de vista da interpretação.

quilo que José António Gomes re-fere como contraponto e não é, detodo, de pouca importância rela-ciona-se com a literacia: «Acres-cente-se no entanto que a cons-ciência da realidade sociológicanacional, dos baixos índices deleitura vericáveis na média da

população portuguesa, da desmedida invasão do quotidiano pelaimagem e pelo audiovisual, bem como do insucesso escolar, em

matéria de desenvolvimento de competências e hábitos de leitura,

não deixa de legitimar, em parte, o papel pedagógico que os peque-nos romances juvenis de aventuras e cção cientíca de qualidadeconseguem por vezes desempenhar na criação do gosto de ler eno aperfeiçoamento de capacidades leitoras. Eles podem permitir,em especial a pré-adolescentes com carências culturais de váriaordem, um contacto continuado e não penoso com o livro, capazde preparar o terreno para o futuro acesso à literatura. É que nãose agura como fator despiciendo o confronto de certas crianças e

jovens com a possibilidade de, pela primeira vez, “domarem” umlivro, já que a consciência dessa conquista é trampolim para umaapropriação a que todos têm direito: a posse “competente” da lín-gua, nas suas variadas realizações.»

O argumento continua a ser válido, apesar dos progressos quese operaram e que se devem também a estas fórmulas que permiti-ram e continuam a permitir que o livro seja acessível a muitos leito-res incipientes. É seguro, por isso, armar que as fórmulas e toda aparaliteratura possibilitaram uma ascensão na escada da leitura auma faixa da população que até então se mantinha à margem. Nãofora pelas fórmulas ebestsellers, muitos indivíduos não encontra-riam qualquer prazer nos livros. Contudo, o que fazer para catapul-tar esses leitores para um outro nível, o da leitura literária?

«Uma vez mais, o perigo reside no excesso, isto é, em gerar-se aconvicção de que, para a infância, apenas existe esta produção c-

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cional. […] E por aqui se chega, justamente, ao verdadeiro núcleo

da inquietação: a esboçada tendência, em certas editoras, para oprogressivo desaparecimento das chamadas coleções de prestígio(quase sempre de contos, ilustrados) sacricadas ao peso de umalógica comercial, com a qual a grande literatura sempre reveloudiculdade em conviver.»

O estado da ediçãoobre mercado, o artigo de Raul Malaquias

Marques tenta ser o mais claro possível,apesar das limitações assumidas pelo au-tor, por falta de dados concretos acerca devendas e faturação, situação que se man-tém inalterada. As editoras continuam anão disponibilizar dados que permitamanalisar o mercado livreiro de uma pers-

petiva estatística e quantitativa.Em dezembro de 1989, ainda não havia dados relativos ao nú-

mero de títulos infantojuvenis lançados em 1988, pelo que a com-paração que inicia o artigo se traça entre 1986 e 1987, concluindo-seque a produção editorial no setor duplicou (de 296 títulos para 612)com tiragens superiores a quatro milhões de exemplares (no anoanterior tinham-se cado por um pouco menos de metade). Segun-do a investigação de Raul Malaquias Marques, haveria à data cer-

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A s Tr ê s A d i v i n h a s , E d i t o r i a lC a m i n h o , C o l e c ç ã o C o n t o s

C o n t a s , 1 9 8 7

Av e n t u r a s d o E s p a n t a l h o Vo a d o r ,E d i t o r i a l C a m i n h o , C o l e c ç ã o D e P a r

e m P a r , 1 9 8 7

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ca de quarenta editoras com uma produção regular de livros para

crianças e jovens, o que derivava de um boom neste setor. «Do pre-conceito que, por muito tempo, arredou da área infantil, como dacondenação a um estatuto de menoridade, editores de nome feitoe estrutura consolidada, parece a praça livre. Compreende-se: osimplisticamente chamado “livro infantil”… “está a dar”. Apesarda maré alta do audiovisual.» Se podemos, mais uma vez, asso-ciar esse comportamento a um contexto sociológico de aumentoda escolaridade obrigatória com o acesso tendencialmente univer-

sal ao ensino em Portugal depois do 25 de abril e a uma melhoriadas condições de vida de grande parte da população, acrescida daentrada do país na CEE, podemos estabelecer um paralelo com asituação atual em que, apesar da crise generalizada que assola nãoapenas Portugal mas a Europa, o setor infantil continua a ser umdos principais sobreviventes. Há ainda que referir algumas alte-rações paradigmáticas na última década que não se reete em nú-meros de tiragens mas de novas editoras especializadas, na maio-ria pequenas, que apostam sobretudo no picture book.

Das quarenta editoras ativas no setor, o autor do artigo escolheucinco. Uma delas, incontornável pela sua história, foi a Verbo. Acoleção Anita, que ainda hoje está no mercado, era um sucesso devendas mas a sua fama sofria críticas sustentadas em argumentosideológicos e pedagógicos. Fernando de Paços, da Verbo, não en-tende assim: «Literariamente, não tem voo? Talvez. Mas o objetivo

é pôr a criança em contacto com o mundo. São livros de informa-

ção cultural muito simples. Se não têm losoa de vida? Por amorde Deus, isso ca para depois…»

o contrário, as principais edito-ras especializadas que nasceramou se implementaram em Portu-gal, assim como outras que len-tamente lhes abriram caminho,

apostam hoje em objetos artísti-cos cada vez mais implicados. O picture book parece desdobrar-

-se e recriar-se num movimento centrípeto innito. A economiatextual não abandona o sentido poético, a metáfora, a ironia e asinferências, tal como as incontornáveis relações de leitura que semultiplicam. A Editorial Caminho e a Livros Horizonte já vinhameditando alguns autores estrangeiros de álbum mas a revoluçãochega com a Kalandraka, editora de catálogo irrepreensível de es-téticas surpreendentes. A losoa de vida de que fala o editor daVerbo transpira de muitos dos títulos da editora que reúne cole-ções de clássicos contemporâneos e de novos autores. Que dizer,por exemplo, de Ícaro, de Federico Delicado, vencedor do PrémioCompostela 2014? Que losoa encerra? Ou de Na Cozinha da Noi-te, um clássico de Maurice Sendak que foi pela primeira vez publi-

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cado em Portugal no ano passado, mais de quarenta anos depois

da sua edição original nos EUA?Depois da Kalandraka, nasceram aquelas que se lhe juntaramno topo das melhores editoras de livros de receção infantil: Pla-neta Tangerina, Bruaá, Orfeu Negro (com a chancela Orfeu Mini),OQO. Foi a partir da viragem do milénio que nomes como An-thony Browne, Leo Lionni ou Eric Carle começaram a ser comuns,a par de outros como Iela Mari, Bruno Munari, Peter Newell, ShelSilverstein ou Gianni Rodari, que a Teorema já integrava, em 1989,

na coleção Sésamo. Signica isto que muito do que hoje existe nomercado não resulta só da globalização do acesso mas também dealgum investimento semeado há vinte e cinco anos (e noutros ca-sos, antes). Como conta Malaquias Marques, a Sésamo nasceu em1985, da vontade dos dois editores Carlos da Veiga Ferreira e CarlosAraújo, com narrativas de autores estrangeiros que colocassem acoleção infantojuvenil ao nível da literatura dita para adultos. Aolongo dos anos o rol de autores escolhidos reete essa estratégia:Gianni Rodari, Blaise Cendrars, Sempé, Jacques Prévert ou RoalDahl. Hoje nenhum dos dois permanece na editora que foi com-prada pelo grupo Leya num dos grandes fenómenos que o novomilénio trouxe ao mercado editorial: a aglutinação de pequenas emédias editoras em grandes grupos que bipolarizaram o mercadoe as regras competitivas.

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A Menina da Trança que Dança,Livros Horizonte, Colecçã o Pássaro Livre,

1985 e 1987

Tudo Gira em Toda a Pa rte,Livros Horizonte, Colecç ão Pássaro Livre,

1985 e 1987

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ara além da gigante Verbo, que anuncia-

va à época integrar no seu catálogo 89coleções «abertas aos mais variados teo-res de cção, clássica e contemporânea,BD, jogos, cozinha apoio didático, para“todas as faixas etárias”, com livros empapel, de plástico, para colorir com lá-pis, para colorir com água (nada na mão,

nada na manga, molha-se o papel, a cor aparece), laváveis…», e

da recém-criada Teorema, Raul Malaquias Marques falou aindacom responsáveis da Asa, da Caminho e da D. Quixote. Das três,apenas a D. Quixote não tinha já um catálogo feito. A Caminhoapostava maioritariamente em autores portugueses e dedicava40% dos seus títulos ao público mais novo. Para além de car parasempre associada à primeira grande coleção de aventuras portu-guesa, foi a Caminho que deu a ler pela primeira vez ao públicoadolescente alguns autores internacionalmente reconhecidos, natambém entretanto desaparecida Caminho Jovem. Por seu turno,a Asa detinha o segundo lugar na quota de mercado no livro es-colar, e tal condição dava-lhe algo de precioso: acesso ao leitor. Areputada coleção Asa Juvenil, que caminhava para os seus últi-mos dias, albergava apenas autores portugueses e consistiu nummarco de qualidade literária que deixou de estar disponível naslivrarias. No entanto ainda será possível encontrar alguns dos

seus títulos em bibliotecas municipais e escolares. Atualmente, a

editora que mais edita para jovens é a Presença. A coleção Estrelado Mar é emblemática, albergando J. K. Rowling, David Almond,Neil Gaiman, Tim Bowler, Philip Pullman ou Ursula K. Le Guin,entre outros, com obra literária e paraliterária.

Portugal tinha, então, uma panóplia de escritores de qualidadeexclusivamente dedicados ao livro para crianças. Outros começa-vam a armar-se. Outros ainda, em menor escala, apesar de es-creverem sobretudo para adultos, faziam breves ou menos breves

incursões no universo infantil, como Sophia de Mello Breyner.Da lista de nomes elencada por Malaquias Marques, a maior par-te continua a ter livros disponíveis nas livrarias. No entanto, essaprofusão de escritores de qualidade estagnou e hoje, a nova gera-ção resume-se a meia dúzia de nomes: Rita Taborda Duarte, CarlaMaia de Almeida, David Machado, Afonso Cruz, Isabel MinhósMartins são os mais consistentes, não apenas do ponto de vista doritmo de produção como da condição literária do seu trabalho. Aacrescentar outros três nomes que sustentaram a sua obra entreestes dois eixos temporais mas que não poderão ser esquecidosno panorama destas duas décadas e meia: Ana Saldanha, AntónioMota e João Pedro Mésseder.

Já no que concernia à ilustração, esta derivava ainda muito datradição plástica da pintura e da gravura e mantinha-se discreta-mente na sombra. Atualmente são os ilustradores quem dá mais

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cartas no mercado. Uma nova geração começou a armar-se há

cerca de uma década e levou o seu trabalho fora de portas. Muitos já não chegam à ilustração a partir da pintura e sim do design e es-tudam já ilustração. Um momento que espelha esta revolução foi,em 2014, a atribuição a Catarina Sobral do Prémio Internacionalde Ilustração da Feira de Bolonha. O seu sucesso meteórico apóstrês álbuns editados pela Orfeu Negro resulta numa panóplia decontratos com várias editoras, com propostas distintas: criar ál- buns de imagem e texto, assinar a ilustração de álbuns com textos

de um escritor ou ainda criar narrativas sem texto.O acesso

fechar o artigo «O Negócio eos Números», Raul MalaquiasMarques traça um quadro pou-co abonatório para as entidadesque tinham, e continuam a ter, aresponsabilidade de aproximaros livros dos leitores. Queixavam--se as editoras das diculdades de

dar a conhecer os seus catálogos junto dos professores. João Gue-des argumentava que os professores se espantavam quando iam àlivraria da Verbo perante tudo o que não conheciam e Nelson deMatos apontava o dedo à ineciência das instituições do Estado

como elementos de aproximação entre a escola e as editoras. A Ca-

minho, apesar das críticas que partilhava com os outros editores,tinha como estratégia um clube para leitores infantojuvenis, querecebiam um cupão de inscrição em cada livro que comprassem.As notícias e os passatempos do clube eram uma forma de deli-zação e de divulgação. Ainda, no que às autoras da coleção UmaAventura dizia respeito, beneciavam do facto de serem ambasprofessoras, e por isso se deslocarem facilmente no meio. Fran-cisco Linhares, da Asa, explicava que mais faziam, para além da

implantação na escola através dos manuais: «“É forte a nossa li-gação com a escola mas não só por aí, pelo livro escolar. Temosfeito experiências interessantes no domínio da BD, com os nossosautores a darem cursos nas escolas, apoiando as escolas nas suasiniciativas, realizando nelas feiras do livro.”»

oncursos, clubes, idas dos autores a es-colas, feiras do livro, tudo era ainda inci-piente e pontual em 1989. Hoje são estra-tégias comuns e recorrentes. Mais ainda,algumas pequenas editoras começam adesenvolver ideias e projetos que suge-rem aos professores nos seus sites, comoforma de explorarem as obras do seu catá-

logo. O Planeta Tangerina, por exemplo, oferece pistas de explora-

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ção para mais de metade dos livros editados. Se em nais de oiten-

ta era pouco comum ver um escritor a conversar numa escola, noinício de 2000 difícil era conseguir que os autores ainda tivessemuma brecha na agenda. A prática tornou-se tão frequente quan-to as instituições do Estado o permitiram. Aquelas de que falavaNelson de Matos, corroborado pela análise ao deserto de progra-mação das Bibliotecas Públicas, referida pelo autor do artigo. OInstituto Português do Livro tinha começado, apenas em 1986, acriar uma rede nacional de Bibliotecas Públicas que trabalhavam,

a todo o vapor, na viragem do milénio. Muitas das idas às escolaseram organizadas através da Biblioteca Municipal, que tambémconvidava os autores para o seu espaço, a par de exposições bi- bliográcas, cursos e comunidades de leitores. Com o nascimentoda Rede de Bibliotecas Escolares, dez anos depois, estabeleceu-seuma parceria entre o Ministério da Educação e as escolas, que co-meçaram a ser dotadas de equipamento próprio, nomeadamentefundos bibliográcos, que os alunos podiam ler presencialmente,consultar e requisitar. Finalmente, o Plano Nacional de Leitura,com as suas listas recomendadas para cada um dos anos do en-sino obrigatório, estreitou muito esse laço. O acesso ao livro tor-nou-se mais imediato, muitas compras foram feitas, e as editoras beneciaram com isso. Desde 2011, contudo, o quadro de desen-volvimento estagnou e tende a inverter-se a curva de crescimento.As Bibliotecas Públicas viram a sua verba reduzida de tal forma

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que quer a programação quer a aquisição de fundos está altamen-

te comprometida. A Rede de Bibliotecas Escolares luta não ape-nas com questões orçamentais mas com falta de professores queapoiem e acompanhem as bibliotecas nas escolas. O Plano Nacio-nal de Leitura tem vindo a perder visibilidade e as suas listas derecomendações valem menos, de acordo com o tempo designadopelos programas de português para a leitura autónoma, recreativae extensiva.

Se em nais de oitenta os editores reclamam da indiferença dos

meios de comunicação social em relação ao livro infantojuvenil e daausência de especialistas na área para produzirem um aconselha-mento sério, no início do milénio sucederam-se blogues, mais oumenos especializados, que divulgavam e recenseavam as novidadeseditoriais. O livro infantil consegue, com alguma regularidade, um breve espaço em jornais e revistas e eventualmente uma ou outrareferência na televisão ou na rádio. Mas acontece com a LIJ o queacontece com a cultura e a informação em geral: não há espaço paraela nesta crise que assola há alguns anos o jornalismo. Não se trata,neste momento, de acesso. Basta ao professor ou ao pai pesquisarna internet pelo nome de uma editora para aceder ao seu catálogo,e poder inclusive comprar online. Se pesquisar o nome de um autorou obra, muito poderá car a saber. O problema já não está no silên-cio, está na legitimação. Como distinguir, entre tantos títulos, tantosautores, tantas editoras, aqueles que são bons?

Em sumaroximidade, diversidade, excesso de pro-dução de qualidade duvidosa, sucessodas fórmulas, reconhecimento da ilus-tração, primado do picture book, globa-lização e acesso a edições estrangeiras,ascensão e queda das bibliotecas. Maisleitores, menos leitores literários do queseria de esperar. O mercado infantojuve-

nil sobrevive, apesar da crise, a produção editorial de qualidadeé reconhecida e diversicada, vendem-se mais direitos de autorapesar de a maior percentagem de livros publicados serem tradu-ções. Nem tudo está mal, mas o cenário é negro, com regras co-merciais hostis para as pequenas editoras, e pouco ou nenhumapoio à leitura por parte das instituições estatais. Infelizmente,também, a literatura continua a não conviver muito bem com asmodas, osbestsellers e os escaparates. Isso parece ser já uma evi-

dência histórica.

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A narrativa resume-se, de facto,a isso. Mas uma súmula não sesubstitui à narrativa, neste casoquase exclusivamente visual, seexcetuarmos os brevíssimos diálogos,comentários, interjeições e palavrasde ordem das personagens. Enesta narrativa marca-se o ritmopela composição de cada páginadupla, acrescentando tensão,oferecendo a catarse, antecipandoo desfecho. No início, apenaso guarda, na margem direita dapágina da esquerda, guardandoa fronteira e o focinho da cadelaVivi, no topo superior esquerdo. Na

página dupla seguinte, Vivi cheiraa arma e aparece, descontraído,Nuno, que na página dupla seguinteé então travado pelo guarda quandofaz menção de atravessar. E, àmedida que as personagens vãodeslando nas páginas da esquerdaseguintes, as explicações do guardadão lugar a manifestações váriasde indignação. Até que algo deinesperado e incontrolável acontece:algo ingenuamente infantil, algoque os leitores já experienciaram atítulo pessoal, ou com outros. Algotão corriqueiro que não pareciaacarretar qualquer consequência… Eo guarda permite uma transgressão àregra que deveria fazer cumprir.Daqui para a frente a página dadireita é invadida e tudo remete

Daqui ninguém passa! Isabel Minhós Martins,Bernardo P. CarvalhoPlaneta Tangerina

Da coleção Cantos Redondos, doPlaneta Tangerina, devem os leitoresesperar surpresas de leitura. Aproposta inspira-se na interatividadedo universo digital que transpõe parao livro enquanto objeto dialogante,instigante, estimulante que convoca oleitor a responder ou agir. Mas, depoisdo primeiro título – O que há… – quepropunha pesquisas e inventários,rapidamente o modelo foi ampliadoem direções menos expectáveis.As guardas deDaqui ninguém passa! parecem fazer jus ao título: a galeriade personagens é de tal maneiravasta e peculiar, quer nos nomes

quer na aparência, que é muitoimprovável que o leitor resista auma observação mais demorada.Se não acontecer num primeirocontacto, certamente vai ter lugarnuma segunda, terceira, quartaleitura. Os hiperbólicos narizes,quase todos de cores inusitadas, sãouma espécie de inscrição comum,quase como os óculos que a maioriausa. A partir daí a diversidade ganhaespaço: crianças, jovens, adultos eidosos. Famílias e pessoas isoladas,uma equipa de basket, uma dupla deladrões, um fantasma, um coelho eduas raparigas desenhadas com umno contorno (e sem nariz longo), umastronauta, um extraterrestre, umacadela, um cavalo, dois dançarinose vários agentes da autoridade, sem

contar com o guitarrista, o punk, ourso, a bola de pelo e os dançarinos.A onomástica revela novos dados.Será mera coincidência que osnomes dos autores do livro ali seencontrem, registando personagens?E que outros nomes da equipa doPlaneta Tangerina ali se encontremtambém? Madalena, Yara, Cris,João, Carol… Basta atentar na chatécnica para associar o revisor àgura do disfarçado Babo. A partirdaqui, pondere-se sobre o nívelde alucinação do ilustrador, aodesenvolver um mostruário decaricaturas de pessoas reais, que

lhe serão eventualmente próximas eque, em última análise, não se sabequem são. Quem será anal SantosSousa ou o Sr. Santinho? Bob será oconstrutor? E o ladrão Salgado? Háassociações possíveis para diversosuniversos etários e de familiaridade.Que papel desempenham na históriaestas guras? Será um daquelesdesaos do género Onde está oWally? A sinopse, na contracapa,

ajuda a solucionar a inquietaçãoinicial: pois são estas personagens(todas ou algumas) quem tentarápassar para a página da direita,contra a vontade e ordem explícitado general, que quer ser o herói dahistória e considera que nada serámelhor do que ter a página da direitaà sua disposição.

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para uma revolução. A alegria, omovimento das guras, as palavrasde ordem, as ações de solidariedade,a coragem impulsiva, e o poder queesta combinação costuma ter, noimediato, junto das forças opressoras(segundo reza a História, antiga econtemporânea).Não se espera, quando se perscrutamas guardas iniciais, ou se observa a capae contracapa, um efeito desta ordem.Não se antecipa esta interpretaçãoimediata que parece não passarpelos processos de leitura e análisepara nascer de uma qualquer sinapseimpercetível. Apesar de o desfecho

recentrar a narrativa no seu sentidoabsurdo e lúdico, o seu poder é jámuito maior do que um mero exercíciocaricatural.Depois, as releituras permitem entãotoda essa interatividade proposta:cada personagem tem uma históriacujo desenlace pode ou não sersurpreendente. Bernardo passa otempo a tentar equilibrar pacotesque se vão perdendo (ou ele vaidesistindo deles) ao longo do caminho,enquanto a família de Clara, Zé e Ruiaumenta. O capuchinho vermelhodesiste de se manter em silêncio eusa o que leva no cesto de acordocom o que pede a ocasião. Por issoé inevitável que as guardas nais nãoacolham as personagens no mesmoestado de espírito inicial. Quem

está, quem aparece, quem fala,quem desaparece, é uma buscaincontrolável.Não é a primeira vez que o ilustradorjoga com as duas partes da páginadupla para dar sentido a uma história,já o zera em Trocoscópio . Assimcomo a acumulação de elementos,a alteração do cenário, ou asobreposição de cores e espaços sãorecursos que se associam a váriosálbuns assinados por Bernardo P.Carvalho, com ou sem o texto deIsabel Minhós Martins.Duas Estradas ,Um Dia na Praia , Praia Mar e Olhe, por favor, não viu uma luzinha a

piscar/Corre, coelhinho , corre sãoparadigmáticos desta polivalência. Aescolha da caneta de feltro tambémnão é novidade. O que acontececom o trabalho deste ilustrador é aprofunda coerência que se denotaentre as técnicas, os recursosde composição e a sua intençãonarrativa.Igualmente, é de realçar que maisuma vez o Planeta Tangerina criae edita um livro político, e não oshá em abundância no universoinfantil em Portugal. A revoluçãopode ser lida de várias perspetivas,tem motivações particulares quemuitas vezes se cruzam mais porcircunstâncias comuns do quepor uma unidade real e os seusefeitos devolvem, a cada um, esse

percurso individual. Mas fazê-la,estar lá no momento irrepetível efugaz da união, é algo de exceção.Assim acontece aqui. Uma lição dehistória, de memória, um desejo,uma esperança. Sem peso. Exceto odo General Alcazar. Mas a moral dahistória também se espera ser essa:uma rendição, que tem muitas faces,muitas retóricas. Leiamo-las.

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Mecenas JamesPatterson

World Book Day AwardO autor bestseller americanoJames Patterson doou 50 000£à organização World Book Daypara viabilizar nanceiramente acriação de um prémio que visaapoiar as bibliotecas escolares. Paraisso, haverá um concurso no qualpodem participar escolas, gruposescolares ou crianças respondendocriativamente a um mote. «Porquenão conseguimos viver sem livros»sugere um cenário que pode sercriado num poema, numa peça deteatro, num vídeo, numa música, nummural... As hipóteses são diversase os resultados ainda melhores: ovalor dos três prémios disponíveisdeverá ser aplicado em livros,comprados em livrarias que existamna comunidade a que pertence ovencedor. James Patterson é umconvicto e empenhado defensor daleitura, tendo já apoiado as livrariasindependentes do Reino Unido." l

BabéliaBalanço 2014Deve a criançaescolherlivremente?No nal do ano, o suplementocultural do jornal espanhol El País dedicou uma edição monográca aolivro e à leitura por e para criançase jovens. No site do jornal estãodisponíveis artigos, críticas e galeriasde imagens sobre o tema. Paraalém do balanço editorial, com a

eleição dos melhores títulos por 25especialistas, o leitor pode aindaaceder a dois artigos sobre a seleçãode leituras para as crianças. Comose deverá o adulto posicionar? Devea criança escolher livremente? Asrespostas a estas e outras questõessão dadas por investigadores comoGemma Lluch ou livreiros comoEnrique Ballesteros." l

A edição naColômbiaDiagnóstico eremédio na Emília A editora e especialista empromoção da leitura colombianaMaria Osório deixa na revistaEmília uma reexão sobre a situação dolivro infantil na América Latina. Daprodução ao consumo, todos osmomentos da cadeia são analisados,concluindo Maria Osório que aconcorrência desenfreada, aausência de critérios de qualidadee o excesso de produção têm sidonefastos. Muitos dos dados queapresenta são semelhantes aos darealidade portuguesa. No nal, emjeito de manifesto, lança algumaspropostas para alterar a situação." l

Prémio SM paraIvar da Collpioneiro do álbumna América do SulFoi o distinguido, em 2014, como Prémio Iberoamericano SM deLiteratura Infantil e Juvenil. O Prémiofoi entregue na Feira Internacionaldo Livro de Guadalajara, emdezembro passado. Ivar da Collé uma referência na literaturainfantil colombiana. Autor de textoe ilustração, Da Coll criou uma daspersonagens mais emblemáticasdo seu país, Chigüiro, que conviveue continua a conviver com váriasgerações de leitores. O júri justicouo prémio pela «simplicidade eforça expressiva das suas histórias,o manejar inteligente do humor eda fantasia assim como pela suasensibilidade em relação ao mundoda primeira infância». Depoisdo Prémio Andersen, que lhe foiatribuído em 1999, esta distinçãoreitera o valor de um dos pioneirosdo álbum na América do Sul." l

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vivência estética através das artes interpretativas, das artes criativas ou simplesmente danatureza, poderá servir como uma força contrária à instrumentalização quer da natureza querdo próprio homem, que vive actualmente mergulhado numa alienação profunda, agrilhoado aconvenções e juízos morais, inventados por uma política de conveniência. O primado da sen-sibilidade perante o pensamento obriga a pensar os homens na pluralidade e não o homem nasingularidade. A pluralidade é, aliás, a condição primeira para o juízo de gosto e para o juízopolítico.

Tomemos, por exemplo, a literatura como forma de libertar a humanidade desses gri-lhões e inverter o jogo, tal como Sophia de Mello Breyner Andresen o exigiu, no primeiro

congresso público de escritores, em 1975, citado por Curt Meyer-Clason em Diários Portugueses(1997): «[…] quandoa palavra da poesia não convier à política, é a política que deve ser corrigida. Por isso é da verdade e da essência drevolução que sempre a poesia possa criar livremente o seu caminho. A história mostra-nos que o homem paleo-lítico pintou as paredes das cavernas antes de saber cozer o barro, antes de saber lavrar a terra. Pintou para viver[…]. A poesia é primordial e anterior à política. Por isso nenhum político, por mais puro que seja o seu project

pode programar uma poética». A literatura é livre. Só assim se realiza, ainda que não saia da gaveta do seu autor.Aprendamos a ser políticos através da literatura, aprendamos a realizar a nossa humanidade.

Aprendamos um pouco, isso e o resto…com os livros que não têm pressa de ser lidos. Ler é um prazer. Um prazer queadvém do estranhamento, de uma espécie de catarse provocada não só pelo enredo da história contada, mas, e sobre-tudo, pela beleza da semântica, da poesia, da metafísica. Ler é ganhar metafísica. Ler tem um segundo prazer, o da

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reexão. Um prazer que advém doentranhamento, uma espécie de exercício do pensar, onde a imaginação e o entendi-mento são os principais intervenientes. Através da leitura, a imaginação parte em visita, livre de preconceitos e dispo-

nível para receber a novidade, para engrandecer com o ponto de vista dos outros e compreender as pequenas coisas,onde se esconde o mistério da realidade. Diria, procurar Deus nos pormenores. Por isso se diz, e com razão, que cadaleitura é uma viagem para a estação seguinte.

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teatro é uma das formas da literatura e a arte política por excelência. Tanto o teatrocomo o agir político requerem um palco e uma audiência, perante a qual o artista ouo agente político desenvolvem a sua actividade e induzem no público, consoante oseu desempenho, a formação de uma opinião; no teatro, tal como no agir político, osuxos vivos da acção e da fala revelam, para além do conteúdo especíco que enalte-ce o feito heróico, o agente e o autor das palavras; no teatro, como na esfera política,não se distingue o ser do aparecer; e, nalmente, tanto o teatro como o agir políticotêm como tema os homens.

Curt Meyer-Clason, em Diários Portugueses (1997), faz a defesa do teatro-documento,que o autor considera ser, acima de tudo, uma forma de debate. O único lugar de encontros autênticos, se estivermosa falar de uma ditadura, e a melhor forma de estimular a cidadania, se estivermos a falar de uma sociedade libertada.Neste último caso, será mais importante fazer teatro do que ver teatro, defende o autor. Fazer teatro é saber de cor (decoração) as grandes obras da literatura. E saber de cor(ação) um livro é saber para a acção, para a partilha em público

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É ir para além do que parece estar escrito, «[é] deixar o mito, a oração, o poema ramicarem-se e desabrocharem emnós, modicar, enriquecer a nossa paisagem interior enquanto levamos a nossa vida, e mudá-los e enriquecê-los be-

neciando da nossa viagem na vida», assim nos diz George Steiner em Os Logocratas (2013).Volvidos 40 anos sobre o25 de Abril , Portugal continua paralisado. Passou-se de uma maioria silenciada para aabstenção da maioria. Sem lápis azul nem polícia política, mas a mesma cidadania conformada, indiferente à liber-dade, que toma como certa. O padrão político actual, assente nos mercados onde tudo é uxível, afasta os homens dhumanidade e empurra-os para níveis próximos da animalidade, onde se limitam apenas à imperiosa necessidade degarantir a sua própria sobrevivência. Lembram os trabalhadores rurais vergados sobre o chão, imortalizados no livrode Saramago, Levantado do Chão. Os homens de hoje vivem apenas para trabalhar e consumir. Não os move a paixãoou o ódio, próprios da vida em comum. Apenas o medo de perder o emprego.

A classe política tem vindo a esquecer o valor das palavras, e com elas a capacidade de compromisso e de esperança, valores fundamentais em política. Tudo é volátil, excepto o dinheiro, que, «tirante o homem, é a mais constante dtodas as medidas», dirá Saramago em Levantado do Chão. De metal, de papel ou simplesmente virtual, o dinheiro é oprincipal valor no mercado das trocas, é a voz dos homens. A acumulação de riqueza, cuja maximização depende domaior número de trocas possível, tornou-se, na modernidade, o eixo em torno do qual os assuntos humanos passa-ram a girar. Um eixo que, à semelhança do eixo terrestre, determinará os dias e as noites dos homens.

A política dependente dos mercados é uma violência com linguagem própria, que nos leva a confundir o Portugafascista e o Portugal democrático. De facto, assemelham-se, pois as regras protectoras de um Estado democrático queambiciona apenas a certeza das relações humanas (própria da política de homens que não são livres) estão próximas

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Quando a palavrada poesia não

convier à política,é a polít ica

que deve sercorrigida.

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das regras protectoras das ditaduras, que visam anular a incerteza das relações humanas (própria da política de ho-mens livres). A liberdade não terá lugar.

A sensação de perda do mundo, onde os homens se sentem estranhos num mundo que lhes é estranho, é aconsequência desta ausência política nos homens. A esfera pública política está esvaziada de comunicação; a esfera privada (a família) transformou-se no espaço da sociabilidade; e a esfera social tornou-se o lugar da intensafestividade colectiva, que não permite qualquer forma de inscrição. Nada é assumido. É o país da não-inscriçãoque José Gil nos descreve em Medo de existir(2004). O atroamento da esfera pública e política apaga a possibi-lidade de um desejo colectivo que nos impulsione mais além. Não tivemos poesia suciente ou teatro sucientque nos desse força para combater os interesses económicos e partidários que se instalaram no pós-25 de Abril ,nem temos poesia suciente ou teatro suciente que nos dê força para contrariar a actual solidão organizada dasmassas. Falta-nos essa escola alargada.

Neste viver alienado, a reconciliação com o mundo impõe-se. Uma reconciliação que não passe pelo perdão ou pedoutrinação, mas sim pela compreensão, como defende Hannah Arendt emCompreensão e Política e Outros Ensaios.Compreender é dar sentido ao conhecimento, fazê-lo «portador de um sentido» de modo a construir um senso co-mum, um uxo colectivo de vontades. Talvez através das diferentes formas de literatura, onde se inclui o teatro, pos-samos encontrar essa esperança. Anal, o teatro, os livros e a política partilham o mesmo lugar de sedução.

Serão sempre importantes as peças de teatro que tragam ao palco os grandes nós das problemáticas históricas, po-líticas e sociais, que coloquem a questãoComo Assim Levantados do Chão (título da peça levada à cena pelo projecto RiseUp, no Teatro Malaposta, em Novembro de 2014).

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A C T O 3: D A I M P O R T Â N C I A D A L I T E R AT U R Aaber interromper a vertigem e o ruído que nos corrompe diariamente a humanidade, contrapondoo tempo e o silêncio, as condições fundamentais para percorrer as obras literárias e desar pedaçosdo nosso mundo, ou para simplesmente pensar na vida que levamos, é uma coisa que se deveriaaprender desde pequeno, em casa e na escola. A questão da cidadania é muito importante pois nelareside a capacidade política que existe em cada um de nós, isto é, a capacidade de intervir na esferapública, torná-la política e alterar o rumo das nossas vidas comuns.

Levantado do Chãocontém em si este ensinamento. A partir dos apontamentos recolhidos directa-mente da oralidade das gentes de vila do Lavre, Montemor-o-Novo e Escoural, lugares por onde an-dou, Saramago escreveu, sem pressa, um texto profundamente belo sobre os alentejanos e o Alentejo.

Uma cção que se cruza com a realidade alentejana dos primeiros 75 anos do século XX e nos revela a crescente consciecialização política do povo alentejano, que se atreveu a levantar do chão (da animalidade) para conquistar um lugar nomundo (a humanidade). Levantado do Chão é a história de ummilagre. Não um milagre religioso mas um milagre político,no sentido em que Hannah Arendt o entende: representando o inesperado, aquele acontecimento que rompe com o ciclonormal da história. As revoluções são um exemplo de milagre, e cada nascimento a sua possibilidade. Os homens «não

nascem para morrer, mas para começar» ( A Condição Humana, 1958). O milagre do nascimento está presente em Levan-tado do Chão. Saramago dedica-lhe um capítulo inteiro, quando nasce Maria Adelaide.

Levantado do Chãoconta-nos a (H)istória de uma maneira diferente, num estilo inaugural onde desaguam indis-tintamente os discursos directo e indirecto, sem o cumprimento da pontuação convencional. Através de um subjecti-vismo que transcende e universaliza e de uma intensa diversidade de discursos, José Saramago inventou a oralidade

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necessária para «conversar» com o seu leitor. Juan Manuel de Prada dirá, a este propósito: «[n]um estilo que é formae fundo ao mesmo tempo, música interior e uxo sustenido da primeira à última linha, reside a principal singularida-de de uma obra que exerce sobre nós o mesmo poder de convicção da melhor poesia» ( ABC, 9 de Outubro de 1998). A beleza do texto de Levantado do Chão é tal, que nele se tocam a losoa e a literatura, e a política beberá de ambos.

O desao é lançado conscientemente pelo escritor. Não há ingenuidade na intenção, pois enquanto mediador de valo-res políticos o romance cumpre as funções do conhecimento (histórico), de catarse (da condição humana) e de compromisso (enquanto expressão de crítica social). Saramago sabe que a questão política se joga no mundo das aparências na pluralidade interpretativa do espaço público, onde política e literatura coincidem. Através de uma qualidade literá-ria única, propõe a cada leitor uma espécie de jogo da mente, capaz de induzir um juízo: escolher entre o belo e o feio justo e o injusto, o verdadeiro e o falso. O texto fala-nos da violência, associando-a à ideia de verdade única, própria dditaduras, e fala-nos de um povo analfabeto e sem recursos, incapaz de descobrir Deus nas pequenas coisas. Esse povoórfão de Deus, apenas descona da sua existência pela concordância «do café e da sardinha frita» ou quando aparec«consubstanciado em toucinho e feijão frade», a esmola das donas clemências. O texto fala-nos, também e sobretudo, dcapacidade de esse povo resistir e inverter a sequência linear da história. Um povo capaz de fazer a revolução.

Uma prova da sua autoridade enquanto livro é o facto de Levantado do Chãoconseguir colocar as pessoasumas com

as outras, independentemente de se ser contra ou a favor de algum interesse especíco, objectivo ou mundano, mencionado no texto. Coincide, neste ponto, com a essência do agir político, feito de palavras, de partilha e de senso comumEstamos perante um livro de resistência e reconstrução, que destaca o valor do ser humano e convoca a consciênciacolectiva, fundamental para a viabilidade do mundo.

Estamos a falar de cção, e em cção tudo é falso. Mas, se a literatura é uma expressão da nossa humanidade, qua72

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a diferença entre a realidade e a cção, quando é a reexão crítica que está em causa, quando é o juízo que está econstrução?

A C T O 4: D A I M P O R T Â N C I A D O S N O M E Ss heróis de Levantado do Chão são todos os trabalhadores rurais desse Alentejo su-focado, tempos que sendo outros poderão vir a ser os nossos. Heróis improváveis,expressão de Soromenho-Marques. Improváveis porque sendo a parte mais fraca,alvo fácil das injustiças e opressões, atreveram-se a erguer-se do chão para ganharum lugar no mundo. Heróis, porque foram capazes de uma revolução. Não a dosCravos, porque essa é devida aos capitães de Abril, mas a Revolução dos Nomes, as-sim tomo a liberdade de lhe chamar. Os trabalhadores rurais, a quem as regras dolatifúndio sempre negaram a propriedade e a identidade, conseguiram desequili- brar o sistema, declarado intemporal e imutável, e fazer valer os seus nomes. Esses

nomes que a PIDE ferozmente perseguia e combatia. Essa pluralidade que a ditadura tão fortemente temia.Sem nome não há inscrição. No mundo marcado pelos silêncios, injustiças e opressões, como foi o Alentejo,

«gente miúda» não tinha nome próprio. Levantado do Chão inverte-lhes a condição social. Dá-lhes nome, inscreve--os na História. E para as demais personagens, Saramago brinca com os seus nomes, utiliza o humor paraapro- fundar , como diz Rui Cardoso Martins. Com esta distinção, Saramago dá condição política aos trabalhadores, e oromance assume, logo à partida, a condição de juízo político.

A distinção é uma característica da acção política. Ter nome é ter condição política, é ter a possibilidade de assu73

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mir no palco público das aparências (teatro político) a sua singularidade, a sua persona pública (personagem). Talexposição implica riscos, sobretudo num país sucumbido à ditadura, onde a invisibilidade do nome é uma questãode sobrevivência, mas também num país livre, onde a pessoa pública se sujeita à opinião dos demais. A coragem uma das características do agir político.

A C T O 5: D A I M P O R T Â N C I A D A S P A L AV R A Sevantado do Chãotermina com a armação da esperança num país livre e justo, onde os trabalhadores rurais,organizados em cooperativas, explorariam a terra em nome próprio. No dia levantado e principal, o último doromance, os trabalhadores dirigem-se às propriedades que irão ocupar, «não vão roubar, querem trabalhar».Nesse dia vive-se o acto de fundação, próprio das revoluções, e celebra-se o milagre de um novo começo, umnova ordem sustentada pelo fenómeno do agir conjunto. É o dia levantado porque os homens caminham de pé,e principal porque inaugura um novo princípio. Vive-se o momento em que o povo é o verdadeiro corpo político

Somente a consciencialização colectiva potenciou o milagre de um novo começo em Levantado do Chão.As palavras feitas de silêncio e de resignação, que surgem no início do romance, são gradualmente substi-tuídas por palavras de resistência e luta, para culminarem, no nal, juntas na mesma rmeza, qual coro em

apoteose no longínquo teatro grego. É por isso que os mortos acompanham os vivos na caminhada que celebra o dilevantado e principal. É também por isso, pela força da palavra literária, que o leitor será inevitavelmente afectado elevado a partilhar com as personagens a mesma consciência política, a mesma comunhão.

Quem ler o romance saberá que nesse dia de revolução a formiga não tomará parte. Aprendamos um pouco, isso eo resto …

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Que boas estrelasue boas estrelas A Casa

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Que boas estrelasue boas estrelas

estarão cobrindostarão cobrindoos céus de Lanzarotes céus de Lanzarote

José Saramagoosé SaramagoCadernos de Lanzaroteadernos de Lanzarote

F o

t o

g r a

a

d e

J o ã o

F r a n c

i s c o

V i l h e n a

José Saramagoosé SaramagoAberta de segunda a sábadodas 10 às 14h.

Última visita às 13h30.Abierto de lunes a sábado de 10 a 14Última visita a las 13h30 h.Open from monday to saturdayfrom 10 am to 14 pm.Last entrance at 13.30 pm.Tías-Lanzarote – Ilhas CanáriasIslas Canarias Canary Islandswww.acasajosesaramago.com

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08 até 14 até 22 até 23 até 28 até

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08 até

fev

Xulio MasideExposição

retrospetiva dotrabalho do pintorgalego, cruzandoas suas obras comos momentosmarcantes das artesplásticas da segunda

metade do séculoXX.Santiago deCompostela,Auditório de Galicia." l

14 até

fev

70Cavaquinhos,

70 ArtistasSetenta artistasforam convidadosa intervirem sobrecavaquinhos,criando umaexposição dedicadaa este instrumentomusical onde cadaobjeto lhe confereuma nova vida.Braga, TeathroCirco." l

22 até

fev

Bilac VêEstrelasComédia musicala partir do livrohomónimo de RuyCastro, uma peçaambientada noinício do século XX,com Olavo Bilac e oabolicionista Josédo Patrocínio comopersonagens.Rio de Janeiro,Teatro SescGinástico." l

23 até

fev

Antonio Berni: Juanito y

RamonaExposição deobras do pintorargentino AntonioBerni criadas entre1958 e 1978, muitasdelas emprestadaspor museus ecolecionadores deestrangeiros.Buenos Aires, Museode Arte LatinoAmericana." l

28 até

fev

Entre Corese PalavrasExposiçãoretrospetivada obra dailustradora DanutaWojciechowska,cujo trabalho seespalha por livros evárias publicaçõesperiódicas.Barreiro, AuditórioMunicipal AugustoCabrita." l

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12 até

abr

A ColeçãoFrancoMaria RicciExposição quereúne cerca deuma centena deobras de pinturae de escultura, doséculo XVI ao séculoXX, pertencentesao famosocolecionadoritaliano.Lisboa, MuseuNacional de ArteAntiga." l

12 de

jana

20mar

MuseuDançanteObras do acervodo Museu de ArteModerna dialogamcom o trabalhodos coreógrafos ebailarinos da SãoPaulo Companhiade Dança, queexperimenta eatua no espaço domuseu.São Paulo, Museu deArte Moderna." l

22 jan

23

Matriz Arcaicada Sublimaçãodo CorpoEspetáculo de dançade Pedro Ramossobre o processo deautoconhecimentoe a sua relação coma sociedade e asformas de nela nosorganizarmos.Viseu, Teatro Viriato.22 e 23 de janeiro." l

23 de

jana

06abr

Festival deMúsica

Al-MutamidDécima quintaedição do festivalde música quehomenageia o rei epoeta do tempo doAl Andaluz,contando com apresença de músicosde Marrocos, Síriae Espanha, entreoutros.

Algarve (váriaslocalidades)." l

17

Rico PobreMendigoLadrónExposição antológicade Jorge Molder,reunindo cerca demeia centena defotograas tiradasentre a década de90 e o presente.

Madrid, Circulo deBellas Artes." l

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Blimunda,Número especial

anual / 2014, em papel.

disponível nas livrarias

portuguesas.

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