Blimunda # 33 - fevereiro de 2015

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“Do chão levantam -se as searas e as árvores, levantam-se os homens e as suas esperanças”, escreveu José Saramago. “Também do chão pode levantar-se um livro”, acrescentou. Nos 35 anos da publicação de "Levantado do Chão", a "Blimunda" de Fevereiro rende homenagem a este título fundamental da obra de José Saramago, porque do chão pode levantar-se também uma revista. Com sotaque brasileiro, entrevistamos Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras (editora que agora desembarca em Portugal), e conversamos com o jornalista Fernando de Barros e Silva, que acompanhou Chico Buarque em Berlim em busca do irmão alemão. E há muito mais: os zombies de Marco Mendes, depois de invadirem o universo da banda desenhada, ganham espaço na "Blimunda".Passados cinco anos do terramoto que arrasou o Haiti recuperamos um texto escrito por José Saramago naquela altura: "Quantos Haitis?"Para encerrar o Ano Cortázar publicamos um texto inédito do editor catalão Carles Álvarez Garriga sobre Aurora Bernárdez, a companheira e herdeira da obra de Julio Cortázar, falecida em novembro passado.A secção infanto-juvenil é ocupada por um relato do 1º Encontro de Literatura Infanto-Juvenil da Lusofonia realizado neste mês na Fundação O Século.Na Saramaguiana, a fechar a edição deste mês, publicamos a intervenção de Sandra Lorenzano, escritora argentina radicada no México, lida na apresentação de "Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas" realizada em dezembro passado na Cidade do México.

Transcript of Blimunda # 33 - fevereiro de 2015

  • SCHWARCZ

    LUSOFONIA

    ZOMBIEDE MARCO MENDESLUIZ

    QUANTOS HAITIS?

    BLIMUNDA

    AO ENCONTRO DAALABARDAS

    AURORA BERNRDEZ, IN MEMORIAM

    ENTREVISTA

    M e n s a l N . 3 3 F e V e R e I R O 2 0 1 5 F u n da O J O s S a R a m a g O

  • [...] a formiga grande, que calhou estar na sua stima viagem e vai agora a passar, levanta a cabea e olha a grande nuvem que tem diante dos olhos, mas depois faz um esforo, ajusta o seu mecanismo de viso e pensa, Que plido est este homem, nem parece o mesmo, a cara inchada, os lbios rebentados, e os olhos, coitados dos olhos, nem se vem entre os papos, to diferente de quando chegou, mas conheo-o pelo cheiro, que ainda assim o melhor sentido das formigas. Est neste pensar e de repente foge-lhe o rosto do alcance porque os outros dois homens puxam este e deitam-no de costas, despejam-lhe gua na cara, um jarro cheio que por acaso vem fresca, tirada do fundo e negro poo, bomba, mal sabia esta gua para o que estava guardada [...] Mas a gua escorre para o cho, salpicou tudo em redor e a tijoleira ficou vermelha, sem contar as formigas que morreram afogadas, salvou-se aquela

    maior porque vai na sua oitava viagem e no se cansa.Jos Saramago, Levantado do Cho

  • 5004

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    062279 80

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    132355

    Levantar-se do cho

    Zombie, de Marco Mendes

    Sara Figueiredo Costa

    Ao encontro da Lusofonia

    Andreia Brites

    Leiturasdo ms

    Sara Figueiredo Costa

    In Memoriam Aurora Bernrdez

    Carles lvarez Garriga

    DicionrioOriana Alves

    David Machado

    Espelho MeuAndreia Brites

    Notas de rodapAndreia Brites

    SaramaguianaAlabardasSandra Lorenzano

    EstanteSara Figueiredo Costa

    Andreia Brites

    Quantos Haitis?Jos Saramago

    Agenda

    Entrevista a Luiz Schwarcz

    Ricardo Viel e Srgio Machado Letria

    No rasto do irmo alemo de

    Chico BuarqueRicardo Viel

    #revistablimunda

  • Em fevereiro de 1980, h 35 anos, Jos Saramago publicava Levantado do Cho. Embora j tivesse escrito um par de romances, contos, obras de teatro, poesia e crnica, foi com este retrato de trs

    geraes de uma famlia do Alentejo que Jos Saramago comeou a sedimentar a sua carreira literria.

    Aos 57 anos, inaugurava uma maneira prpria de narrar que o acompanharia at ao final da sua vida e

    operava-se a construo de um nome que se tornaria conhecido no mundo inteiro como sinnimo de

    literatura da mais alta qualidade.

    Penso que as duas obras que marcam a minha narrativa, que eu dividiria em dois

    perodos distintos, e que mostram os meus sinais de identidade, so Levantado do Cho e Ensaio sobre a Cegueira, declarou em 2007. Do cho levantam-se as searas e as rvores, [...] e tambm os homens e as suas esperanas. [...] Tambm do cho pode levantar-se um livro, escreveria. E Levantado do Cho levantaria tambm um escritor. No apenas pela sua qualidade literria, mas tambm pela sua simbologia, este um dos ttulos fundamentais na sua obra. Foi a

    partir da sua publicao que Jos Saramago se assumiu como escritor a tempo inteiro.

    Em 1982, quando recebeu o Prmio Cidade de Lisboa por Levantado do Cho, terminou o seu discurso com um agradecimento aos trabalhadores do Alentejo que o inspiraram a escrever este livro. Aprendamos

    um pouco com aqueles que do cho se levantaram e a ele no tornaram, porque do cho s devemos

    querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignao.

    Tanto mudou no mundo nestes 35 anos, mas a mensagem de Levantado do Cho a mesma e continua viva. Levantemo-nos e nunca aceitemos a resignao, porque do cho muitas coisas se levantam, e

    tambm uma revista. Aqui est a prova, caro leitor.

    Levantar-se do cho

    4

  • 5Blimunda 33

    fevereiro 2015

    diretor

    Srgio Machado Letria

    edio e redao

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    reviso

    Rita Pais

    design

    Jorge Silva/silvadesigners

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

    dos respetivos autores.

    Os contedos desta publicao

    podem ser reproduzidos

    ao abrigo da Licena

    Creative Commons

    Granena

    fundao jos saramagoThe jos saramago foundaTioncasa dos bicos

    Onde estamOs Where tO find usrua dos Bacalhoeiros, Lisboatel: ( 351) 218 802 [email protected]

    Como Chegar getting heremetro Subway terreiro do Pao

    (Linha azul Blue Line)autocarros Buses 25e, 206, 210,

    711, 728, 735, 746, 759, 774,

    781, 782, 783, 794

    Segunda a

    Sbado

    Monday t

    o Saturda

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    10 s 18 h

    oras

    10 am to 6

    pm

  • 6Eduardo Salavisa Dirios de Viagem 2. Desenhadores--viajantesQuimera

    Ler o mundo de caderno na mo

    Eduardo Salavisa tem dedicado parte do seu trabalho mais recente divulgao de um tipo particular de desenho, pouco ou nada homogneo nas suas caractersticas morfolgicas ou programticas, mas que partilha objetivos e gestos comuns. O dirio grfico, particularmente na sua vertente associada viagem, j mereceu um volume anterior, com um carter generalista como o deste, e outros com temas mais estreitos, para falar apenas dos livros feitos com a Quimera. Se em Dirios de Viagem. Desenhos do quotidiano (Quimera, 2008), Salavisa reunia trabalhos de trinta e cinco autores contemporneos de modo a ilustrar um percurso terico e uma rea de estudo pormenorizadamente desfiados na primeira parte do livro, neste novo volume renem-se em jeito de coleo visual, e j sem preocupaes ilustrativas, cadernos de viagem feitos por ilustradores, pintores, arquitetos e outros artistas que tm no desenho uma ferramenta primordial. Os lugares das viagens so variados, das grandes capitais

    europeias s pequenas aldeias alentejanas, passando pela ndia, pelo Mxico, por Marrocos ou pela Monglia. fcil sentirmos-nos um pouco intrusos ao folhearmos estes cadernos, mesmo sabendo que as pginas impressas foram escolhidas tambm pelos seus autores. Em alguns trabalhos, os registos de ruas, edifcios e transeuntes juntam-se a apontamentos mais pessoais sobre stios que se quer visitar, memrias convocadas por determinado espao, vontades relativamente ntimas sobre o presente ou o futuro de quem desenha. Noutros, h apenas os lugares, e tambm isso pode bastar para o arrebatamento do leitor, como acontece com o desenho que Siza Vieira faz de Machu Pichu, onde o relevo abrupto e a vertigem da escala parecem nascer de um nico trao. Os desenhos, pinturas ou colagens que compem estes dirios servem de registo a momentos da viagem pessoal, sim, mas tornam-se muito mais ricos quando so tambm um modo de pensar sobre o stio onde se

    est, um processo que permite descobrir com uma conscincia aguda e bem desperta o que est volta do viajante. Claro que o resultado que pode oferecer-se fruio por parte de terceiros, como acontece a partir do momento em que Salavisa escolhe estes exemplos e os edita para publicar em livro, tanto mais agradvel e visualmente rico quanto as capacidades tcnicas dos seus autores, mas o que fica da leitura deste volume a confirmao de que o dirio grfico associado viagem um processo de ver e procurar perceber acessvel ao prprio leitor, independentemente de um domnio superior das tcnicas associadas ao desenho. No se trata de um apelo ao faa voc mesmo que tudo nivela de modo ilusrio (e, habitualmente, pela fasquia mais baixa), mas de dar a ler um modo de compreender o que nos rodeia cujas ferramentas podem utilizar-se com proveito, como se deste livro cheio de livros mais breves pudesse nascer um dilogo a muitas vozes sobre o mundo em que nos cabe viver.

    LEITURAS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • 7Islo em PortugalOs outros tambm somos ns

    No caderno P2, do jornal Pblico, Joana Gorjo Henriques e Daniel Rocha (texto e fotografias) assinaram uma longa reportagem sobre os muulmanos em Portugal. As diferentes origens, percursos e prticas religiosas que compem a comunidade islmica so abordados atravs de testemunhos diversos, traando-se um quadro que muito contribui para o conhecimento desta comunidade por parte dos que no a integram. Um desses testemunhos o de Hanifa, portuguesa, 48 anos, muulmana desde 2009: Quando anda na rua de hijab ouve, por vezes, piadas midos que fingem falar rabe. s vezes ignora, outras incomoda-se. As pessoas ainda no se habituaram ideia de que existem muulmanos portugueses. Pensam que so todos estrangeiros. Muitos comentrios que vejo na

    Internet sobre notcias como os atentados no Charlie Hebdo so: Deviam ir para a terra deles. Chocam-me pela ignorncia. At comentei: Sou portuguesa, sou muulmana, ento para que terra que eu vou? Os portugueses no se habituaram a que o islo no uma nacionalidade, uma crena. Acham estranho como podemos ser muulmanos num pas maioritariamente catlico. E desconhecem o islo: falam do Coro como um livro que incita violncia sem nunca terem lido. Porque o jornalismo tambm serve para dar a conhecer aquilo que no se conhece, o trabalho do Pblico merece ser lido e divulgado para que no continue a misturar-se o gnero humano com o Manuel Germano.

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    Jornais e polticaA quem serve o jornalismo?

    Num artigo de opinio publicado no InfoLibre, Luis Garca Montero revisita os jornais do sculo XIX e a sua clara ligao a partidos ou polticos individuais, procurando no passado alguns elementos para compreender a situao presente: Claro que hay matices. Entonces los peridicos dependan de los intereses de un partido. Luego cambi el panorama y fueron los partidos los que empezaron a depender de los intereses de

    los peridicos. Para completar el ciclo, hemos llegado a una situacin en la que ni peridicos ni partidos son dueos de s mismos: trabajan en hermandad al servicio de los grandes bancos y grupos econmicos que los han comprado. Informao e contrainformao, notcias mais ou menos verdadeiras, casos que se arrastam nos destaques noticiosos sem que nova informao se acrescente, e tudo sempre com a bno de certos polticos, de certos assessores, de certos interesses. Assim vai o mundo e o jornalismo no parece escapar-lhe: Llega un momento en el que lo de menos es el xito o el fracaso. Las preguntas son otras: qu somos nosotros?, quin juega con nosotros?, quin nos manda? La prdida de oficio y prestigio de esos periodistas, esos polticos y esos encuestadores, los convierte en amas de cra en el hospicio de Madrid. A geografia, claro, podia ser outra.

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    LEITURAS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • 8Meet the SomalisBanda desenhada--testemunho

    No um trabalho acabado de publicar, um daqueles que costumamos caracterizar como novidade, ficando a ideia de que no valer a pena perder muito tempo a olhar para o que j existe h mais do que os vinte minutos que pode demorar o sucesso instantneo medido em likes e visualizaes. Meet the Somalis est disponvel na internet desde fins de 2013 e o resultado de conversas e entrevistas que Benjamin Dix fez com habitantes somalis de diferentes pases europeus e que Lindsay Pollock desenhou. So catorze histrias

    de vida que tm em comum a necessidade de abandonar a terra de origem, a Somlia, e procurar outros caminhos na Europa, quase sempre com passagem pela guerra, pela misria e pela separao familiar. Contadas em banda desenhada, num preto e branco de linha clara e pranchas de narrativa linear, as histrias destas pessoas so tambm um pouco do presente da Europa,

    mesmo que parte dos seus cidados ignore a origem e os percursos de tantos dos seus habitantes mais recentes. Este Meet the Somalis um modo de corrigir essa ignorncia, primeiro passo para que nos conheamos todos melhor.

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    O dirio de Ould SlahiGuantnamo e o silncioNo vero de 2005, Ould Slahi, um dos prisioneiros de Guantnamo, arranjou forma de escrever sobre os dias passados naquela priso norte-americana. Agora, Guantanamo Diary publica-se em livro, com muitas partes censuradas em nome da segurana. Sobre o livro, diz Antonio Muoz Molina, no El Pas, que una narracin arrebatadora y un escndalo, a pesar de que casi la mitad de sus pginas estn compuestas por lneas tachadas. El Gobierno no tuvo ms remedio que acceder a la publicacin, pero las agencias

    de seguridad impusieron la censura. Las barras de tinta negra de los nombres y los detalles borrados, las pginas enteras que son una sucesin entrecortada de tachones negros, acentan la vergenza en vez de disimularla. Si lo que podemos leer es tan cruel e irracional e inaudito, cmo ser lo que se nos mantiene prohibido. Queriendo atajar el testimonio, los responsables del abuso ahondan su oscuridad y certifican su propia vileza, la organizada vileza administrativa de los proveedores de infiernos. A censura tambm pode ter este efeito, o de denunciar aquilo que pretendia calar.

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    LEITURAS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • A S B S

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    MoradaRui Pires CabralAssrio & AlvimAqui se renem todos os livros de um dos mais interessantes poetas portugueses contemporneos. De Geografia das Estaes (1994) a Evaso e Remorso (2013), este volume a oportunidade de novos leitores chegarem obra de Rui Pires Cabral, cujas edies esgotam com rapidez e cujas editoras tendem a no praticar reedies. Aos livros juntam-se poemas dispersos por publicaes vrias, ficando de fora apenas os livros de poemas--colagens.

    Ombela, a origem das chuvasOndjaki, Rachel CaianoCaminhoO escritor angolano regressa narrao de pendor tradicional com uma mitografia sobre a deusa menina cujas lgrimas formam oceanos e mares, assim como rios e lagos. Nesta histria maravilhosa h uma aprendizagem dos sentimentos, descobertas apaziguadas por uma voz sbia, que assim orienta as lgrimas de Ombela, num cenrio em que a gua, a roupa, os lugares se criam a partir de padres tnicos que fluem pelas pginas.

    Unicornio de cenorias que cabalgas os sbadosRonseltz Edicins PositivasReedio de um livro fundamental da poesia galega da segunda metade do sculo XX. Entre 1984 e 1985, o grupo Ronseltz reuniu na Corunha os poetas Xon Carlos Rodrguez, Manuel Corts, Miguel A. Montes, Serxio Iglesias e Xabier Cordal, resultando o encontro neste volume. O grupo dissolveu-se pouco depois, no incio dos anos noventa, mas a marca que deixou na poesia galega ainda hoje se faz sentir.

    Era Uma Vez em GoaPaulo Varela GomesTinta da ChinaO mais recente volume da coleo de viagens da Tinta da China uma fico cuja ao decorre em Goa, antes do regresso deste territrio jurisdio indiana. Apesar de ficcional, reconhecem-se nestas pginas as deambulaes do autor pela terra onde viveu mais de uma vez, e sobretudo o profundo conhecimento sobre esse lugar tantas vezes mitificado.

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A / A N D R E I A B R I T E S

    ESTANTE

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    A av adormecidaRoberto Parmeggiani, Joo Vaz de CarvalhoKalandrakaEste um daqueles temas difceis que por vezes se abordam recorrendo estratgia da voz infantil. A perda da av, que dorme durante quase toda a narrativa, pretexto para que o neto recorde momentos afetivos, quadros de memria como os lanches, as conversas ou os abraos. O final surpreende por se estender para alm do que expectvel pelo leitor, mas nessa durao o texto refora a potica melanclica da narrativa, que a expressividade das ilustraes torna mais leve.

    O Fotgrafo e a RaparigaMrio CludioDom QuixoteFiccionando a figura de Lewis Carroll e a sua relao com a pequena Alice Lidell, que passar posteridade em Alice no Pas das Maravilhas, Mrio Cludio encerra a trilogia dedicada aos relacionamentos entre pessoas com idades muito diferentes. O tema delicado e s um escritor com domnio perfeito da linguagem e mestria na construo ficcional o poderia abordar com o interesse e a riqueza literria com que Mrio Cludio o aborda.

    Vs, Luminosos e Elevados AnjosWilliam T. Vollmann7 Ns a primeira vez que se traduz um livro de Vollmann em Portugal e a empreitada merecedora de todos os destaques. O romance com que o autor norte-americano se estreou na literatura, em 1987, coloca no campo de batalha as foras autoritrias que dominam o mundo (e a tecnologia, e a produo eltrica) e os insetos, guerrilheiros revolucionrios liderados por Bug, o heri desta fabulosa parbola do nosso caos presente e comum.

    No fiz os trabalhos de casa porqueDavide Cali, Benjamin ChaudOrfeu NegroO protagonista enumera professora um conjunto de situaes hilariantes e totalmente improvveis que justificam o facto de no ter feito os trabalhos de casa. Cada pgina inclui um argumento e a sua respetiva descrio visual. Invases, animais estranhos, compromissos familiares, hecatombes, tudo parece acontecer e quanto pior melhor. Na total ausncia de verosimilhana assenta o humor do lbum que explora uma situao sobejamente conhecida por todos os leitores.

    ESTANTE

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A / A N D R E I A B R I T E S

  • A S B S

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  • SR ZHC

    A CW

    E D i t A R U M A t O D E A M O R E D E D E V O O

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    E m 1986, com cem mil dlares fruto da venda de um apartamento herdado, Luiz Schwarcz e a mulher, Lili, deram incio quela que se tornaria a maior editora (em faturao e ttulos publica-dos) do Brasil. Hoje, a Companhia das Letras emprega mais de 200 pessoas, edita perto de 400 livros ao ano, e j tem um catlogo que ultrapassa trs mil livros.

    Neste ms de fevereiro, o fundador da Companhia das Le-tras esteve em Lisboa para o lanamento do novo romance de Chico Buarque (O Irmo Alemo) e para apresentar o selo Companhia das Letras em Portugal. Recebeu a Blimunda no hotel em que estava hospedado, um edifcio antigo da Aveni-da da Liberdade, remodelado e decorado com mveis moder-nos e luzes coloridas na receo um lugar que no parece combinar consigo. Nada muito surpreendente, talvez fosse possvel definir Luiz Schwarcz como o homem das aparentes contradies. bastante alto, mas consegue ser discreto. simptico, porm srio e reservado at o seu sorriso, raro,

    tmido. J bem prximo dos 60 anos mantm um rosto jo-vial. Parece mais jovem do que , mas quando fala, a erudio e bagagem de vida que carrega transmitem uma imagem de algum com muita estrada. Para Pilar del Ro, o amigo Luiz um editor do sculo XIX que vive no sculo XXI. Outra apa-rente contradio: o editor moda antiga associou-se a uma gigante capitalista do universo dos livros, a Penguin Random House, em 2010. H uns tempos pensou vender a editora e morar no seu refgio, rodeado de livros. Hoje, trabalha mais do que nunca.

    H uma histria da sua biografia que mais ou menos

    conhecida: aos 30 anos cria a Companhia das Letras. E

    antes? De onde vem o Luiz?

    De uma famlia tipicamente de classe mdia, judia, de imi-grantes que sobreviveram Segunda Guerra Mundial. Sou fi-lho e neto nico de um ncleo familiar muito pequeno e que constituiu uma pequena grfica de cartes, decalcomanias, cromos... Era uma empresa de porte mdio, com cerca de 100 funcionrios, da qual a famlia tinha enorme orgulho. Meu av

    L u I z S C H W A R C z

    E n t r E v i s t a p o r r i c a r d o v i E l E s r g i o M a c h a d o l E t r i a

  • 15

    chegou ao Brasil em 1946, eles so da actual Crocia, antiga Jugoslvia, o meu pai veio trs anos depois, da Hungria, e co-nheceu a minha me no Brasil. Fui concebido como herdeiro dessa pequena indstria, no entanto na minha trajetria apro-ximei-me bastante dos livros atravs da influncia da minha me que era uma grande leitora. Como futuro herdeiro dessa pequena empresa fiz provas de acesso para Administrao de Empresas mas os meus gostos pessoais j se encaminhavam para as Cincias Humanas. Fiz tambm provas para Histria, entrei nos dois mas acabei por seguir Administrao.

    Comecei depois a trabalhar como pesquisador de Socio-logia, no departamento de pesquisa dos socilogos e percebi que a minha carreira profissional ia ser acadmica, que no iria dar sequncia ao empreendimento familiar e que seria um professor de Sociologia, talvez at na prpria Faculdade de Administrao. Acabei por fazer Mestrado na Faculdade de Sociologia da USP.

    E como chega editora Brasiliense?

    Procurei um estgio e pensei numa editora, no sentido em que pensava poder vir a ser um pequeno livreiro, no um edi-tor. Com o meu desejo de vir a ser professor de Sociologia,

    pensava poder ser livreiro. Trabalhava ao lado do gabinete do Eduardo Suplicy, que era o chefe do Departamento de Eco-nomia. Ele era amigo do Caio Gracco, dono da Brasiliense, a quem falou de mim, um rapaz esforado, que organizava as actividades culturais do Centro Acadmico...

    Voc tinha ento vinte e poucos anos...

    Sim, vinte e dois. O Suplicy disse que eu precisava de um estgio e queria trabalhar numa editora. O Caio Gracco, do outro lado da linha dizia: Pxa, voc no tem uma coisa me-lhor? cada abacaxi que voc me arruma... [risos] mas acabou por dizer: Manda-me o rapaz. Ento o meu primeiro trabalho foi ali. Na Brasiliense no havia um editor, o publisher era o editor, com quem trabalhava um responsvel pela produo. Comecei a ser chamado para reunies, para opinar sobre as capas, tradues, e mais tarde sobre as compras de direitos. Foi a que comeou a minha carreira.

    Quando saiu da Brasiliense foi uma deciso pacfica e es-

    clusivamente sua ou houve alguma rutura?

    Cresci muito ali dentro e de alguma forma comemos a ter alguns conflitos. O Caio queria manter-se fiel ao pblico

    L u I z S C H W A R C z

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    daquela idade, o pblico jovem da Primeiros Passos, da Can-tadas Literrias. A minha vontade era seguir com esses jo-vens que estavam a entrar na maturidade e ele queria ficar por ali. Ento comecei a criar outras coleces, a Circo de Letras, onde publicmos quase pela primeira vez a literatura beat, Jack Kerouac, William Burroughs, misturada com lite-ratura noir. Esse era um dos conflitos. O outro resultava do facto de o fazer editorial ter ficado em grande parte na mi-nha mo. Por razes relacionadas com o nascimento do meu segundo filho, afastei-me um pouco da editora e quando voltei o Caio queria que me dedicasse mais s questes administra-tivas. Uma questo de conflito de poder, verdadeiramente. E a editora era dele, eu era jovem, estaria a desafi-lo, a procurar uma posio que talvez fosse indevida. Comecei a acalentar a ideia de sair, recebi uma proposta dos que viriam a tornar-se meus scios, o Fernando Moreira Salles queria montar uma editora e comecei a fazer um business plan. Quando o terminei, a minha relao com o Caio no estava muito boa e o Fernando ainda no tinha tomado a deciso, no tinha plena confiana de que eu pudesse ser um editor. Resolvi avanar sozinho.

    No foi uma deciso tomada de um dia para o outro...

    No, eu comuniquei a minha deciso de uma maneira mui-to gentil e o Caio pediu-me para reconsiderar. Ainda fiquei mais de um ms. Tinha o capital necessrio por via da venda de um apartamento, vi algumas propostas de emprego, no gostei de nenhuma, e avancei. A Companhia das Letras co-meou em 1986.

    Qual era o sonho, qual a motivao para construir a sua

    editora?

    Na Brasiliense percebi que estes livros mais sofisticados que eu gostava de publicar, como a Poesia Completa do Bre-cht ou a tetralogia do Mishima esgotavam, no eram best--sellers, mas vendiam dois a trs mil exemplares em alguns meses, tinham reimpresses, e comecei a achar que havia es-pao no Brasil para estes livros. A Nova Fronteira explodiu tambm nesta altura publicando os clssicos. A lista dos best--sellers comeava a ficar um pouco mais culta. Na Brasiliense descobrem-se os jovens e estes comeam a querer outras coi-sas, mais sofisticadas. Comecei a imaginar uma editora vi-vel, no grande, que s faria livros de qualidade num pas que tinha a vontade de recuperar um atraso cultural.

    L u I z S C H W A R C z

  • 17

    E quais foram o primeiro ttulo publicado e o primeiro su-

    cesso?

    O primeiro livro foi Rumo estao Finlndia, de Edmund Wilson, uma histria literria do socialismo, muito bem es-crita. Chegou ao primeiro lugar na lista de mais vendidos. O comeo foi bem mais fcil do que o esperado devido ao xito imediato deste livro e da tima recepo que a editora teve. Era porm um tempo difcil para comprar papel e contratar servi-os grficos. Vrios planos econmicos, inflao muito alta.

    As obras de grandes autores vieram vagarosamente, os primeiros foram Rubem Fonseca e Jos Saramago. Jorge Amado muito depois.

    Como v a questo da promoo da leitura? Continua a

    achar que fundamental para construir novos leitores?

    Toda a minha trajectria como editor foi assente nesse pon-to, no sentido de promover a leitura. No comeo, na Brasilien-se, num pas que se abria, que estava fechado e com jovens que comeavam a formao literria juntamente com a formao poltica. As escolas brasileiras no estavam voltadas para a literatura, era um estilo bastante tecnocrtico da era militar, todo o pensamento militar era tecnocrtico. Depois, no pero-do da estabilizao econmica, da real democratizao do Bra-

    sil, assiste-se a um investimento bastante grande na compra e distribuio de livros para as classes menos favorecidas, na formao de bibliotecas, e o sucesso da Companhia das Letras d-se um pouco dentro desse modelo. A editora foi pensada como um misto de editora de mercado e de editora escolar. Todo o trabalho na rea universitria, a primeira dentro da rea escolar na Companhia das Letras, j continha esta viso de que era necessrio um trabalho conjunto com as escolas. A Companhia das Letrinhas surge com essa noo. Comemos a pensar que os clssicos brasileiros ou que a literatura con-tempornea brasileira, assim como a literatura infantil e juve-nil, precisavam de ter um trabalho escolar. Acho que o sucesso comercial da editora se deveu muito a essa faceta de estar sem-pre a pensar na formao de leitores, de juntar a literatura escola.

    Numa entrevista, voc diz que a descoberta de um gran-

    de escritor o que um editor pode fazer pelo seu pas.

    uma responsabilidade to grande a esse ponto?

    Talvez seja uma noo um pouco restritiva. Acho que uma funo muito importante, a de um editor de literatura descobrir um novo escritor, talvez a mais importante, mas claro que ela tem que vir com a formao de leitores. No

    L u I z S C H W A R C z

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    adianta descobrir um novo escritor e no nos preocuparmos em formar novos leitores. Acho que a combinao de ambas as coisas. Acredito que a literatura, assim como todas as ar-tes, tem uma contribuio social desde que no seja pensada como uma contribuio mecanicista: fazer para mudar a so-ciedade. No! Exercer a liberdade para mudar a sociedade. O que um artista pode fazer e o escritor um artista dar um exemplo de liberdade.

    O Eric Nepomuceno diz que comeou como tradutor por-

    que queria que os amigos lessem os autores que ele des-

    cobriu durante o exlio na Argentina. Ou seja, para ele,

    traduzir um gesto de amor. Ser editor tambm o ?

    A edio, sem dvida, um ato de amor no sentido de que um ofcio que exige devoo. E devoo sem amor difcil. muito difcil voc se devotar a alguma coisa deprovido de um sentimento mais profundo. um trabalho de entrega, o editor quase um guardio, ele tem que compreender aquela obra. Usando aquela frase famosa de Pessoa, o poeta um fingidor, eu digo que o editor no fundo tem que acreditar no fingimento tanto ou mais que o escritor, e defend-lo. Se a li-teratura uma mentira ou um fingimento ou uma represen-

    tao, o papel do editor acreditar naquela representao e defender a verdade que est dentro daquele fingimento. Bus-car a coerncia no fingimento, e cuidar dela desde a leitura dos originais at escolha da tipografia e do tipo de papel. O trabalho do editor um trabalho de devoo mincia. Ele pode pensar globalmente o livro, tem que pensar em grande tambm, mas tem de saber que ao pensar nos pequenos deta-lhes est a defender a grande criao de um escritor.

    E hoje, com a dimenso que a Companhia das Letras atin-

    giu, consegue ter essa viso do detalhe?

    O desafio da Companhia hoje o crescimento. Ela cres-ceu muito. O mundo editorial est muito diferente. Quando a Companhia nasceu declarei que s publicaria livros que eu gostaria de ler. Hoje isso j no verdade. Tenho vrios selos, posso dizer que no selo Companhia das Letras sim, s se pu-blicam livros que so para o leitor Luis Schwarcz, digamos assim.

    Tambm me lembro de uma frase sua que era no me

    envergonho de nenhum livro que publiquei.

    Estenderia essa frase tambm para os livros mais comer-

    L u I z S C H W A R C z

  • 19

    ciais que publicamos hoje nos outros selos. O Brasil mudou. No comeo a Companhia talvez tenha tido um papel demo-cratizador da alta cultura, escolhendo livros de alta literatura que fossem acessveis a um pblico maior. Essa foi a linha editorial adoptada. No entanto, quando o mercado se abriu para classes mais baixas, permanecer nessa postura seria optar por um elitismo. E fui muito criticado, at mesmo den-tro da Companhia, quando crimos os selos mais comerciais diziam que estvamos a desvirtuar-nos, que a Companhia j no era a mesma. Isto era-me dito por gente que at se consi-dera mais de esquerda do que eu. E eu respondia: vocs tm preconceito contra os trabalhadores, vocs no querem fazer livros para essa Classe C ou D ascendente que quer comear a ler e no vai comear com Edmund Wilson.

    Como v a Companhia daqui a alguns anos?

    Acho que o projeto est sedimentado, o selo mais impor-tante ainda o da Companhia. bonito que o nome de um grupo que hoje abriga vrios tipos de leitores seja um nome literrio. A editora-me, que permitiu abrigar todos esses se-los, uma editora literria. O desafio dessa editora hoje mais difcil, porque os livros de alta literatura, em especial de lite-

    ratura traduzida, vendem muito menos do que vendiam no incio. Naquela poca, um livro que fracassava vendia dois, trs mil exemplares. Hoje um livro que fracassa vende 500. E muito difcil, mesmo tendo grandes sucessos, aguentar num catlogo literrio titulos que vendem apenas 500 exem-plares. Esse um desafio. O que vai acontecer com a literatu-ra, com o excesso de oferta que existe em relao procura? O nmero de livros de alta literatura que so lanados su-perior ao nmero de leitores. Com um marketing dirigido aos grandes sucessos, o espao de exposio em livraria cai. En-to o que vai acontecer com a alta literatura uma pergunta bastante preocupante, porque ela comea a tornar-se invivel economicamente.

    H muitos livros publicados pela Companhia que no se

    pagam?

    Inmeros, mas quantas dessas decises podero ser man-tidas? A Companhia vai ser sempre o selo mais importante dentro do grupo. Tem uma base muito slida na literatura brasileira, com essa base escolar.

    No entanto, preocupa-me a rea da literatura mundial, essa internacionalizao que to importante. Hoje em dia tenho

    L u I z S C H W A R C z

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    que pensar trs vezes antes de comprar um novo romance de um escritor turco, espanhol ou portugus. Tentar uma desco-berta nova que venha de fora muito difcil. As descobertas brasileiras so assumidas pelo futuro que podem vir a repre-sentar. uma pergunta no s da Companhia, qual vai ser o espao que a literatura pode representar?

    Financeiramente a vinda para Portugal sustentvel, ou a

    deciso de outra ordem?

    A expectativa comercial no muito grande, mas tambm no est fora da anlise na deciso de editar este ou aquele li-vro. Os editores da Companhia das Letras Portugal tm toda a liberdade para escolher os que tero mercado aqui. A ideia trazer a filosofia e abrir mercado para outros escritores, apre-sentar a Companhia das Letras como uma possvel morada para escritores de lngua portuguesa de outros pases. um trabalho de colaborao no sentido de troca de informaes editoriais, na possibilidade de comprar ttulos em conjunto pelos selos daqui, um trabalho de suporte, de apoio.

    E a Companhia das Letrinhas tambm vai chegar c?

    Isso ainda no foi conversado, uma questo que depen-

    der fundamentalmente da equipa daqui. Acho que tem de comear devagar, a entrada da Companhia ser feita com trs ou quatro ttulos brasileiros por ano, no muito mais do que isso. Acho que mais importante para a Penguin Random House constituir a respeitabilidade da marca, para que seja a morada de autores portugueses para alm do apoio que pode-mos dar noutras reas.

    Essa questo dos grupos editoriais no o preocupa?

    Acho que o caminho do capitalismo internacional a formao de grupos mais fortes. Quando decidi associar--me Penguin foi por trs motivos: primeiro, pela ideia de que havia a necessidade de abrir linhas mais comerciais para atingir o mercado brasileiro e que eu no tinha esse perfil; o segundo era o investimento na rea educacional, um investimento que ainda espero que se mantenha, mas a crise brasileira est a atingir essa rea, o Estado brasileiro encontra-se numa situao financeira muito complicada. O terceiro era a abertura para o mundo digital, que pensei que aconteceria muito mais rapidamente no Brasil pelo perfil tecnolgico do pas. No est a acontecer, os nmero ainda so muito baixos.

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    H uns dias, escreveu no blogue que usava as suas frias

    para ler autores que no so seus. Pensa na reforma

    como umas frias de leituras eternas?

    Houve uma poca em que pensei nisso. Tive propostas para vender a Companhia. Num momento pensei em refor-mar-me e ir para o meu stio em So Bento do Sapuca, um lugar de que o Jos [Saramago] gostava muito, e colaborar com jornais, virar escritor... Mas acho que isso no tem muita hiptese de vir a acontecer. Agora que me associei Penguin aconteceu o contrrio, foi uma opo por trabalhar mais.

    Os seus amigos dizem que deveria escrever um dia um

    livro de memrias...

    Penso escrever um livro de memrias um dia, de alguma forma estou a fazer isso no blogue, em forma de crnica. Al-gumas delas so memorialsticas, outras so polticas, mas muitas so sobre a histria da Companhia... Tenho vontade de escrever um livro de memrias, mas acho que s poderei fazer isso quando estiver aposentado, at para poder contar tudo.

    E a faceta ficcionista do Luiz Schwarcz, como vai?

    Estou num conflito tremendo. H uns meses resolvi comear a escrever um romance. Cheguei a escrever cento e poucas pgi-

    nas, vivia a pensar nisso e passei a ler fervorosamente as coisas que julgava necessrias para esse romance. E como no sou um escritor muito imaginativo, era um romance que tinha uma base muito grande de no-fico. Comecei a pesquisar alguns aspec-tos da vida do meu pai e descobri, depois da sua morte, que ele teria vivido na Itlia, morado num campo de refugiados da Ci-necitt, que foi fechada como estdio de cinema entre 1944 at 1949. O meu pai deve ter morado l entre 1945 a 1948...

    Daqui a pouco voc vai encontrar um irmo italiano, como

    o Chico encontrou um alemo...

    Exatamente [risos]. Escrevi umas cem pginas, mas decidi parar. As primeiras verses esto muito longe do que seria a verso final.

    E o editor Luiz Schwarcz, o que achou das primeiras cem

    pginas?

    Agora achei-as muito ms. No momento em que encontrei o ttulo do livro e descobri como terminaria, decidi parar.

    E qual seria o ttulo?

    Meu livro que no se escrever chamar-se-ia Luar ausente.

    L u I z S C H W A R C z

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    L u I z S C H W A R C z

    n r i a c a b u t , l u i z s c h w a r c z E c l a r a c a p i t o n a s E s s o d E l a n a M E n t o d E O i r m O a l e m O

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    L u I z S C H W A R C z

    c o M E d u a r d o l o u r E n o , n o a u d i t r i o d a F u n d a o J o s s a r a M a g o

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    NO RASTO DO IRMO ALEMO DE CHICO BuARQuE

    MANuEL BANDEIRA

    CHICO BuARQuE

    TOM JOBIM

    VINCIuS DE MORAES

    1966

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    F oi numa conversa em casa de Manuel Bandeira, na presena de Tom Jobim e Vincius de Moraes, que o ento jovem Chico Buarque soube, por acaso e sem muitos detalhes, da suposta existncia de um irmo, fruto da passagem do seu pai, o historiador Sergio Buarque de Ho-landa, por Berlim entre os anos de 1929 e 1930. Durante dcadas, o msico e escritor brasileiro guardou consigo essa histria. S perto dos 70 anos, depois da morte da me e de ter publicado quatro romances, decidiu desafiar o esquecimento e transformar a histria em livro.

    O que comeou por ser um romance absolutamente ficcio-nal terminou contaminado pela realidade e pelas coincidncias que aproximaram a vida do narrador do livro, um tal Francisco de Hollander, do homem que o escrevia. Durante o processo de construo, Chico Buarque, com a ajuda de Luiz Schwarcz, seu editor, descobriu o paradeiro de Sergio Ernst, o seu irmo. Acabou por estabelecer vnculos com a nova famlia o ir-mo morrera em 1981 e viajou para a capital alem para per-

    correr os passos dos Sergios a quem dedica o romance. Numa dessas visitas Chico Buarque foi acompanhado pelo

    jornalista brasileiro Fernando de Barros e Silva, editor da re-vista Piau, que relatou a viagem e estes encontros numa ex-tensa reportagem publicada no Brasil e tambm no jornal por-tugus Pblico.

    Blimunda, o homem que seguiu Chico Buarque nos pas-sos dO Irmo Alemo relatou como foram vividos esses dias em Berlim.

    A ideia de acompanhar o Chico Buarque em Berlim foi de

    quem? Da editora, sua, da Piau? Tiveram que negociar momentos em que ele no queria que estivesse e assuntos

    ou dilogos a no publicar?

    A ideia surgiu das minhas conversas com o Chico. Quan-do eu disse que iria a Berlim para conhecer a famlia do irmo alemo, ele disse-me que tambm pretendia voltar assim que o livro estivesse pronto. A partir da foi apenas uma questo de acertarmos os calendrios. Chegmos a Berlim no mesmo dia. Eu parti do Rio de Janeiro e ele de Paris. Acompanhei o Chico

    N O R A S T O D O I R M O A L E M O D E C H I C O B u A R Q u E

    R I C A R D O V I E L E N T R E V I S T A F E R N A N D O D E B A R R O S E S I L V A

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    durante uma semana, vrias horas por dia. Disse-lhe logo no primeiro dia que respeitaria todos os offs que me fossem pedi-dos. Ele no pediu rigorosamente nada.

    J o conhecia, j o havia entrevistado e escrito um livro

    sobre ele. Diria que so amigos?

    Entrevistei o Chico pela primeira vez em 1998, para a Folha de So Paulo, onde trabalhei mais de 20 anos. Conheci-o ver-daeiramente no final de 2003, quando estava a escrever um li-vro sobre a sua vida e obra, publicado em 2004. Estabeleceu--se ali uma relao de confiana. A amizade um assunto da esfera privada.

    Esta imagem de um Chico Buarque que passa despercebi-

    do por um mar de jornalistas numa receo de hotel, que

    se senta numa mesa para jantar com gente que no faz

    a mnima ideia de quem seja, deliciosa. Ele desfrutava

    desses momentos de anonimato?

    Sim, desfrutava. Acho que o Chico tem um pouco esse so-nho, de viver um anonimato impossvel. Os personagens dos livros dele traduzem isso de alguma forma, esse desejo de de-

    N O R A S T O D O I R M O A L E M O D E C H I C O B u A R Q u E

    Fernando de barros e chico na alemanha

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    saparecer, de se perder. Na viagem ele estava muito vontade, e visivelmente feliz. Espero ter conseguido mostrar isso aos leitores da Piau.

    Na conversa publicada na Piau, o Fernando afirma que aquela viagem a Berlim parecia fazer parte do livro. Em

    resposta, Chico Buarque diz que ainda no conseguiu se-

    parar muito bem a fico da realidade. como se Chico

    Buarque tivesse escrito um livro e entrado dentro dele? O irmo Alemo o seu espelho de Alice?Este trnsito entre fico e realidade est mais presente nes-

    te do que noutros livros, por razes bvias. Mas tambm por-que a realidade se revelou extraordinria. A histria do irmo, o facto de ter sido tambm um cantor, e o processo de desco-berta dessas coincidncias parecem uma coisa inventada por um escritor. Isto marcou, sem dvida, a atmosfera da viagem. Era como se estivesse a escrever um livro paralelo.

    Como acha que o Chico Buarque lida com as coincidncias

    que rodeiam a histria (e a escrita) do irmo alemo? Ele

    criou algum misticismo acerca disto?

    Acho que ele se diverte com estas coincidncias. Nunca pre-senciei nada que se parea com misticismo nas suas reaes. Acho que, como eu, ele no cr em bruxas...

    Como l este livro? Como umas possveis memrias? um

    acerto de contas com o pai ou como uma tentativa de en-

    contro com o irmo que nunca conheceu?

    No um livro de memrias. um romance, em que o re-gisto biogrfico, embora muito presente, est constantemente atravessado pela imaginao. Acerto de contas ao pai talvez seja solene demais. , entre muitas outras coisas, um mergu-lho na relao dele com o pai, no h dvida disso, mas com todas as complicaes que a forma escolhida por ele implica: nem o narrador do romance o Chico, nem o pai no romance o Srgio Buarque. Se no tivermos isto em conta, acho que se perde uma dimenso importante do livro.

    N O R A S T O D O I R M O A L E M O D E C H I C O B u A R Q u E

  • 28

    C

    M

    Y

    CM

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    CMY

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    ANUNCIO A4_autores.pdf 1 14/10/20 22:14

  • Z BIOME

    SARA FIGUEIREDO COSTA

    RESISTIR ENTRE ESQuELETOS

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  • Z O M B I E , D E M A R C O M E N D E S

    Marco Mendes tem espalhado o seu trabalho em banda desenhada por publi-caes muito diversas, parte delas oriundas daquilo a que vulgarmente (e com pouca preciso) se chama edio independente, o que poder dificultar o pro-cesso de leitura por parte de quem queira conhecer as suas obras de modo sis-temtico. com um p nesse meio editorial mais disperso e alheio aos radares do jornalismo mainstream e outro nos escaparates das livrarias convencionais,

    trs livros com chancela Mundo Fantasma (em coedio com a turbina, no caso do primeiro) permitem um alcance mais estruturado no que a novos leitores diz respeito: Dirio rasgado, anos Dourados e, mais recentemente, Zombie. a primeira vez que Marco Mendes publica uma narrativa longa onde se reconhecem os tempos de uma ao com princpio, meio e fim. ainda assim, a fragmentao das suas narrativas anteriores no deixa de ser um modo, talvez mais catico e prximo das vivncias da realidade, de contar uma hist-ria, tal como explicou o autor Blimunda: O Dirio rasgado uma histria longa, feita de pequenas histrias, assim como o Zombie. a estrutura, a forma como se organizou o tempo e o espao, que so diferentes. a estrutura narrativa do Dirio rasgado permite-me representar o tempo de uma forma muito mais dilatada. Eu envelheo nesse livro. J neste ltimo, o tempo mede-se s horas, aos minutos. no Dirio, os dias sucedem-se uns aos outros sem grandes imprevistos, at ao momento em que surge

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  • Z O M B I E , D E M A R C O M E N D E S

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    a rutura do protagonista com lili, que apanha o leitor de surpresa. Esse o ponto de viragem da hist-ria, que faz com que haja um antes e um depois. o fim aparentemente inconclusivo desse livro surge quando novamente a rotina se instala. uma rotina diferente, mas as coisas adquirem um aspeto de normalidade, em que novamente no se esperam grandes imprevistos. J no Zombie sente-se o fervi-lhar de cada minuto, o desconhecimento e a expectativa do que h de vir.

    neste ltimo livro no se quebra a linha visual e temtica que j conhecamos de trabalhos anteriores. no centro da narrativa est Marco, personagem recorrente que facilmente empurra a leitura para uma identificao com o autor, sem que haja necessidade de especular sobre aquilo a que chamamos vida real. no preciso conhecer Marco Mendes para esta identificao se fazer, porque so as prprias pranchas que remetem para essa identificao, o que no quer dizer que

    devamos acreditar que esta a histria da vida do cidado Marco Mendes, at porque h muito que escolas tericas vrias mostraram a pouca produtividade de semelhantes leituras. Mendes insere-se na-quilo a que poderemos chamar autobiografia, uma abordagem que a banda desenhada tem sabido explorar como poucas linguagens. a autobiografia tem sido, desde os anos 70, um dos gneros mais renovadores da banda desenhada. grande parte das minhas referncias provm dos autores que o praticaram com alguma insistncia e at militncia: Justin green, harvey pekar, art spiegelman,

  • Z O M B I E , D E M A R C O M E N D E S

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    robert crumb ou posteriormente o Joe Matt, chester brown, Joe sacco, entre tantos outros. para alm disto a minha formao em artes plsticas, e em particular a minha paixo pela pintura, faziam-me enca-rar com naturalidade estes autores, na forma como representavam o seu universo pessoal, retratando-se a si, aos seus amigos, familiares, o espao em que viviam, etc. ao fim e ao cabo, estes autores faziam em banda desenhada o que desde sempre se fez em pintura, sobretudo desde a modernidade. van gogh, o artista moderno por excelncia, ou picasso, fizeram uma quantidade infindvel de retratos e autorretratos, vistas do seu quarto e da sua janela... Essa era a tradio (era tambm da que eu vinha, no meu momento em que tomei contacto com a bd autobiogrfica). para alm disto, na ressaca do ps--modernismo muitos jovens artistas transitaram das artes plsticas para a banda desenhada, trazendo esse legado. veja-se os casos de Jerry Moriarty, gary panter, raymond pettibon, linda barry, ou mesmo art spiegelman. Julgo que a razo porque o fizeram tem a ver por um lado com essa ressaca das van-guardas, por outro com a abertura da banda desenhada a novos territrios, ainda por explorar. para mim a bd , neste momento, o meio artstico mais fervilhante, sem sombra de dvida, por oposio ao meio das artes plsticas, demasiado constrangido pelas regras do mercado, e onde o discurso cada vez mais acadmico, cnico e desprovido de contedo. Este renascimento da bd tem-se feito muito custa de artistas plsticos desiludidos que fazem da autobiografia um dos gneros de eleio.

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  • Z O M B I E , D E M A R C O M E N D E S

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    os temas de carcter poltico so frequentes na obra de Marco Mendes. no se trata de abordagens panfletrias, ou da evocao de assuntos desgarrados que possamos identificar com a agenda poltica nacional ou internacional, mas antes de referncias comuns a uma ideia primordial de poltica, aquela que remete para o governo da polis e que tem, portanto, relaes com tudo e com todos. Em narrativas anteriores j se encontravam episdios relacionados

    com uma interveno poltica popular que tem marcado certos espaos, sobretudo urbanos, nos ltimos anos a ocupao da Escola, no porto, as grandes manifestaes contra a troika e o Fundo Monetrio internacional, as reunies de onde onde saram cartazes, publicaes coletivas e outros materiais grficos onde tanto encontramos o trao de Marco Mendes como o de outros autores e ilustradores do porto, nomeadamente aqueles mais prximos de projetos como o buraco. as ban-das desenhadas que fiz em torno de temas polticos surgem muitas vezes da raiva e abjeo que certas situaes me provocam. no so um discurso muito ponderado ou objetivo, so mais um desabafo, ou um grito. no sou a melhor pessoa para discursar sobre poltica, mas tenho as minhas convices e os meus dios de estimao. sou obviamente um radical de esquerda e embora no alinhado com nenhum partido ou movimento, j colaborei com vrios. Em Zombie, estes temas

  • Z O M B I E , D E M A R C O M E N D E S

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    so retomados de um modo mais relevante para o desenrolar da narrativa, com o protagonista a envolver-se nos movimentos de contestao austeridade que vo surgindo e com um confronto ideolgico entre os que acreditam ser possvel (e at muito desejvel) questionar a ordem imposta e aqueles que a aceitam desde cedo, sem dvidas ou estados de alma. para estes ltimos, Marco Mendes foi buscar um grupo de estudantes que se dedica de alma e corao a praxar os colegas que acabaram de entrar na universidade, e que tambm no encontram motivos (ou coragem?) para recusarem aquele tipo de atividade.

    a praxe assume, assim, um papel importante no apenas na ao da histria, e concretamente na ao da noite em que decorre a narrativa, mas tambm como exemplo de uma obedincia inquestionada e de uma alarvidade perpetuada ano aps ano, algo que tentador relacionar com a pouca contestao que medidas polticas to castradoras tm merecido. para Marco Mendes, a relao clara: Quando se fala dos estudantes, fala-se por um lado no fruto das nossas polticas

    passadas, que os formaram de determinada maneira, por outro lado no futuro do pas. Eu sou profes-sor [universitrio] e h mais de dez anos que venho assistindo a uma progressiva despolitizao dos estudantes, que aumenta com os ataques feitos sua dignidade, seja atravs das sucessivas polticas

  • Z O M B I E , D E M A R C O M E N D E S

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    educativas, seja atravs do fenmeno da praxe, que , alis, transversal na sociedade portuguesa, no nos seus ritos mais codificados, mas no tipo de mentalidade de quem se submete ou exerce o poder. uma reflexo sobre estes mecanismos de poder e submisso acrescenta-se a Zombie num anexo que, podendo ler-se separadamente, no deixa de integrar o lbum de pleno direito. trata-se de um texto do autor francs samuel buton sobre a praxe, pontuado por imagens de Marco Mendes: J estvamos h algum tempo a pensar numa reportagem conjunta sobre as praxes, muito antes da tragdia do Meco, para apresentar a uma revista estrangeira. Mas depois achmos que se justificaria mais inclu-la como apndice no livro, dado que a histria tambm fala nisso. nesse texto, reflexo baseada na observao direta que buton pde fazer pelas ruas do porto, conversando, sempre que tal dilogo foi possvel, com estudantes envolvidos no processo a que muitos chamam tradio, traa--se o retrato das relaes de poder e do modo como se afirmam, aceitam e desenvolvem. o olhar de buton curioso, recetivo a perceber, dedicado a dar voz aos vrios intervenientes, mas o quadro traado to decadente como seria de esperar. l-lo pela voz de quem chegou de fora e se deparou com o espetculo que anualmente invade as ruas de cidades universitrias s torna mais premente a sua constante discusso.

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    a ao de Zombie decorre ao longo de uma noite e nesse espao-tempo que cabem visitas familiares, dramas amorosos, desiluses, atividade poltica e convvio com amigos. uma espcie de esmorga, imagem do romance do galego Eduardo blanco-amor (ou de Direta, de nuno bragana, como notou o crtico pedro Moura num texto sobre o livro: http://lerbd.blogspot.pt/2015/01/zombie-marco-mendes--mundo-fantasma.html). a dada altura, depois da ao combinada de pintar ima-

    gens de danas Macabras pelas paredes do porto, e depois do encontro com os praxistas e as suas vtimas mais ou menos consentidas, protagonista e respetivos companheiros encontram-se num bar. a, abrigados de uma noite que se oferecia mais inspita do que o esperado e partilhando a compa-nhia uns dos outros, que os personagens desta histria vivero a cena-catarse que acaba por ser eixo fundamental da narrativa, uma dana ao som de Zombie, a cano de Fela Kuti, com a respetiva letra a ser cantada em grupo e os esqueletos da Dana macabra a sobreporem-se aos corpos dos que se entregam dana. visualmente muito forte, est uma cena que parece reforar o valor das redes de amizade e solidariedade que j surgiam noutros trabalhos de Marco Mendes, uma espcie de co-munidade no-organizada de gente que partilha vivncias, desiluses, inquietaes e reivindicaes, e que assim vai avanando sem quebrar, mas resistindo, ao contrrio dos zombies que praxam e dos que se deixam praxar. numa altura em que muita gente parece ter-se tornado descrente nas orga-

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    nizaes polticas mais tradicionais, ser que este tipo de redes informais, que devem mais amizade e aos copos do que a um centralismo ideolgico, pode ser um espao mais interessante e eficaz para se fazer poltica, na aceo mais original do termo? Embora o Jorge amado no seja dos meus autores preferidos, uma vez ouvi uma citao dele que resume bem o que poderia ser uma resposta para essa pergunta. na vida s h amizade e amor, o resto no importa. tudo de bom que fiz na vida, seja no plano artstico, profissional ou at poltico, foi movido por estas foras. sem elas no conseguiria sair todos os dias da cama. o diabo quando estamos ou nos sentimos isolados. os tempos que correm e a filosofia vigente, da competio, do lucro, da indiferena perante o outro, so especialmente propcios ao isolamento e por conseguinte inao e ao sentimento de derrota que lhe esto associados. cons-cientemente tento rodear-me permanentemente de amigos com quem trabalho e partilho inquietaes e projetos vrios. idealmente tudo se mescla, vida, arte, trabalho, amizade, amor...

    Marco Mendes tem desenvolvido uma obra que, espalhando-se por livros, re-vistas, fanzines e publicaes de difcil catalogao e circulao imprevisvel, oferece leituras globais. podemos individualizar esta ou aquela narrativa, e Zombie um livro que facilmente chegar aos leitores exigentes e interessa-dos, assim as livrarias o disponibilizem sem se limitarem ao rtulo da bd, mas uma leitura mais consistente assoma medida que se acompanha as vrias

  • Z O M B I E , D E M A R C O M E N D E S

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    publicaes, percebendo-se a reapario de personagens, o regresso a episdios que j lemos, mui-tas vezes recontados de um outro ponto de vista, a repetio de espaos. de um certo modo, esta leitura global da obra de Marco Mendes devedora do seu processo de trabalho, da insistncia em certos temas, da explorao recorrente de certas linhas narrativas e abordagens visuais, mas igual-mente o resultado possvel de uma identificao destas pequenas narrativas que vo conformando uma narrativa maior, e sem limites, com uma certa ideia de precariedade. no por acaso, essa ideia igualmente um dos termos mais utilizados na discusso poltica que tem mobilizado, nos ltimos anos, novos ativistas para um outro modo de fazer poltica, quase sempre longe da ribalta e do siste-ma tradicional de eleitores e eleitos. precariedade seria, ento, um conceito possvel para ler a obra de Marco Mendes sem as limitaes que o incio ou o fim de cada publicao onde surge esta obra podem impor. o autor no discorda que este seja um bom conceito para descrever o eixo temtico do seu trabalho: sim, dadas as circunstncias exacerbadas em que vivemos. isso pode atenuar-se ou mudar, pelo menos durante umas boas pginas, mas no fim j sabemos como acaba. a condio humana por natureza precria.

  • Aurorabernrdez

    in memoriamp o r C A R L E S L VA R E Z G A R R I G A

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  • 43

    Sobre Cortzar, e Aurora, e a saudade...

    Em fevereiro de 2014 a Fundao Jos saramago, em parceria com a Embaixada da argentina e a casa

    da amrica latina, deu incio a uma srie de atos para assinalar o centenrio de Julio cortzar (1904

    1984). Em lisboa, o ano cortzar como na argentina denominaram essas iniciativas teve

    leituras, msica e uma mesa redonda sobre o escritor argentino. Entre os participantes desse

    encontro na biblioteca nacional de portugal estava o espanhol carles lvares garriga,

    coeditor da obra de cortzar e responsvel pela publicao de cartas e textos indi-

    tos do autor de rayuela. garriga trabalhou durante anos com aurora bernrdez,

    a companheira de cortzar e herdeira de sua obra. aurora faleceu no dia

    8 de novembro de 2014, em paris, aos 94 anos. alguns dias depois,

    carles garriga partilhou com alguns amigos um discurso que pre-

    parara para o funeral de aurora, mas que acabou por no

    ser lido. o editor espanhol cedeu gentilmente o texto

    Blimunda, que agora o publica pela primeira vez.

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    Este texto, escrito em Paris nos dias imediatamente posteriores ao falecimento de Aurora Bernrdez, foi um dos ltimos pedi-dos que ela me fez. Com muito bom senso, a famlia decidiu-se por um funeral diferente do que eu supunha que seria, e que habitual em Espanha, e assim as minhas palavras (preparadas para serem ditas no cemitrio) no eram adequadas, de modo que no as li. A cerimnia, que teve lugar na tarde da sexta--feira 14 de novembro no crematrio do Pre-Lachaise, foi de uma beleza, de uma elegncia e de uma emoo insuperveis; e agora dou-me conta de quo acertada foi a minha deciso, posto que as minhas palavras terim sido um elemento disso-nante entre tanta e to sentida discrio. Creio, de qualquer modo, que muitos dos que assistiram (e dos que no puderam assistir) ao funeral gostariam de ler essas palavras escritas em sua memria, e por isso tenho o prazer de partilhar estas pgi-nas, de corao.

    Paris, sexta-feira 14 de novembro de 2014Queridas amigas, queridos amigos:

    N a realidade, no para mim nada fcil cumprir uma das ltimas vontades da Aurora. H uns me-ses, em Barcelona, cidade na qual vivo e em que ela comprou um pied--terre para que pudssemos trabalhar juntos com comodida-de, disse-me: Carlos, no dia do meu enterro, fa-me-s o favor de ler umas palavras tuas con-tando piadas desses anos to divertidos em que temos traba-lhado juntos? Aurora respondi escandalizado , imploro--lhe que no comece com o assunto da sua morte, sabe que isso me horroriza. No, escuta: no dia do meu funeral no quero que as pessoas estejam mais tristes do que o imprescindvel; e, se possvel, que se divirtam um pouco. Eu disse-lhe que sim, que tudo bem; que quando chegasse o momento logo se veria.

    E aqui entra o primeiro elemento surpresa do facto que hoje nos rene, ou seja: o momento. Porque muitos amigos com os

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    quais eu tenho falado nestes dias so unnimes na sensao de que Aurora parecia imortal; isto , que sobreviveria a todos ns. Nesse sentido, recordo-me de que h uns quatro ou cinco anos, numa sexta-feira j perto da meia-noite (e quando era sexta--feira perto da meia-noite e tocava o telefone na minha casa era, indefectivelmente, Aurora), ela dispara: Carlos, estava atenta aos obiturios do Le Monde e vi que em Frana h muitssima gente que morre aos cem anos. O que achas se eu chegar aos cem, e que as minhas ltimas palavras sejam as mesmas da me do Borges, que morreu centenria e conseguiu dizer: Ser que exagerei? Eu, claro, no entendi o sentido de um telefonema a essas horas s para me fazer uma pergunta que eu tambm no percebia, e mesmo que a tivesse percebido, tampouco teria sabi-do o que responder; de maneira que repliquei: O que que me est a perguntar, se pode chegar aos cem? E quem sou eu para opinar sobre isso? Serei Deus, por acaso?!

    Na resposta de Aurora creio que esto contidas toda a sua originalssima personalidade, toda a sua extraordinria mo-dstia e, ao mesmo tempo, toda a sua maravilhosa gentileza. No, Carlos disse com certa timidez , s queria saber se no te incomodaria demais que eu chegasse a centenria; por-

    que no gostaria de abusar da tua pacincia e converter-me num estorvo

    E sta piada prende-se com outro dilogo, no menos curioso, que teve lugar em janeiro passado. Estvamos em Bar-celona e acabvamos de receber o pri-meiro exemplar do que seria, j em de-finitivo, o ltimo livro que editvamos juntos, divertindo-nos e tendo ideias es-tapafrdias como loucos: o lbum bio-grfico que tem por ttulo Cortzar de la A a la Z. Recm-sado da tipografia, Aurora, segurando o volume com o carinhoso cuidado com que uma me aconchega o seu beb no colo, sus-pirou profundamente (pffffffffffff), e disse: Beeeeeeem, Car-los, agora j posso morrer. J fiz TUDO o que devia.

    Protestei energicamente, claro, argumentando que ela tinha feito um pacto para chegar aos cem anos, e ainda me devia seis: verdade disse ela , pedi-te permisso e concedeste-ma, e uma senhora como eu no pode faltar palavra.

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    A inda que a tenha conhecido trs ou quatro anos antes de comearmos a trabalhar juntos (graas intercesso de um amigo em comum e do facto de ela ter lido duas vezes(!) a minha tese de doutoramento dedicada aos prlogos de Cortzar), o que sem dvida sedimentou a nossa amizade foram os ltimos sete anos de colaborao, com os contnuos telefonemas a propsito de assuntos editoriais, e pessoais, de Barcelona a Paris e de Paris a Barcelona (o nosso recorde foram dezanove comunicaes telefnicas num mes-mo dia, faxes parte, e creio bem que a Telefnica de Espanha e a France Telcom nos devem uma homenagem, ou pelo me-nos uma placa comemorativa num cantinho de algum dos seus inacreditveis edifcios).

    A coisa comeou a ficar divertida quando comprou um pe-queno apartamento no barcelons bairro da Grcia e amos to-dos os dias ao bazar chins da esquina (esse tipo de loja a que em Buenos Aires ainda chamam Tudo por dois pesos). Por

    duas moedas, encontrvamos ali esses artigos para o lar de cuja falta s nos damos conta medida que vamos habitando uma casa nova: um cesto de lixo, um porta-revistas, uma panela pe-quena e uma frigideira de tamanho mdio, uma vassoura que no levante muito p, etc. Em resumo, todas as manhs amos ao bazar (onde gastvamos pelo menos dez minutos a contem-plar a montra e a avaliar os budas decorados com espelhinhos, as pastorinhas e os seus cordeiros de cermica falsa, ou quin-quilharias desse estilo). Um dia senti-me mal e disse-lhe que no me esperasse, que ficava na cama. De tarde telefonou-me: Carlos, se amanh estiveres recuperado e formos ao chins, no te admires se te chamar neto. Se disserem Oh, senhora Aulola, que bom que lhe acompanha agora o neto toooo alto, ser porque hoje, quando entrava, me disseram: Hoje vem sem o. Claro, eles no adivinham se tu s meu filho, meu neto, ou algo pior. E eu, que sei muito bem como os chineses adoram os avs, respondi-lhes que eras meu neto. Enternecidos e com-padecidos, quase com lgrimas nos olhos, acompanharam-me at casa carregando as compras. Que achas? Fiz bem?

    Porque a nossa querida Aurora, de quem j temos saudade, tinha muitas sadas to perspicazes como essa. Como naquela

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    noite em que me mostrou, j faz sete anos, a cmoda tipo Ikea que estava na sua casa da Place du Gnral Beuret e que conti-nha uma infinidade de papis cortazarianos, sem dvida in-ditos, e eu lhe disse que abandonaria o meu fixo mas aborreci-do trabalho de funcionrio para me dedicar a inventariar esse possvel tesouro, e ela me resondeu: Consulta o teu travessei-ro. Dorme em paz e amanh ds-me uma resposta definitiva, porque te advirto de queJulio vai vampirizar-te! Assim foi, e uns meses depois divertamo-nos imenso com a ideia de ir-mos a uma feira-da-ladra comprar uma velha cmoda barati-nha que fingiramos ser esse legendrio mvel o qual, segun-do a minha verso literata, teria guardado durante dcadas os inditos cortazarianos. Ento, contra os quinhentos euros que nos teria custado, iramos vend-la a algum biblifilo norte--americano que colecionasse memorabilia de grandes escrito-res... por... meio milho de dlares?

    Essa venda fraudulenta, que tanto teria divertido Cortzar e cuja realizao nunca levmos a srio e no passou de uma conversa de caf, no pde ser feita. De facto, queramos ter concretizado mais uns quantos projetos e que ficaram apenas pairando. No sei se sozinho com tanta saudade e nostalgia

    e to rfo quanto me sinto, um pouco desconcertado e muito furioso com a rapidez final da sua partida terei nimo para lhes dar fim.

    P ara terminar e no abusar da vossa pacincia (a quem tanto agradeo), queria destacar um par de coisas mais. A primeira delas uma ca-racterstica de que no falei e que ela conservou at ao fim. Cortzar define-a melhor que ningum em 1978, quando lhe manda uma carta da Martinica dando notcias e se despede: Desejo-te um fim de ano muito bom, que o po doce no te prejudique e que te encontremos linda e sobretudo pispireta, que o teu trao mais destacado. E eu no sei se existiram muitas pessoas to pispi-retas quanto ela; isto , to vivas, preparadas e incisivas como Aurora.

    A segunda coisa que gostaria de ressaltar que juntamen-te com o (ou inclusive acima do) seu inquebrvel culto pelos livros e pelo cinema ou a sua assiduidade aos museus e o co-

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    nhecimento de arquitetura e da grande pintura, e da sua im-batvel devoo pelas flores naturais, pelos sapatos elegantes, por uma tortilha de batatas ao ponto e pelas migas que Conxita lhe preparava a pedido, sim, acima disso tudo, se destacava o seu excecional culto amizade. Vejo-a de p, dando por sobre os meus ombros uma espreitadela a isto que to improvisada e desajeitadamente escrevo, a repreender-me com os seus finos bracinhos pousados na cintura e com a voz uma oitava mais aguda do que o costume: Carlos, isso exagerado: o culto amizade uma coisa to argentina que no tem por que ser vis-to como um mrito pessoal; algo que se d por garantido, no achas?

    E termino: faz uns meses contava ela mi-nha me, que se havia tornado sua com-panheira (como ela dizia) de farra: No sabes, Teresa, quanto eu me alegro com o que me disse o mdico: com a tenso to alta posso ter uma queda fulminan-te a qualquer momento. o que eu que-ro: cair sem perceber, e j no acordar.

    Melhor assim do que acabar como uma velha entrevada, no achas? A sua sacrossanta vontade, uma vez mais, foi cumpri-da. Gnio e figura

    E agora, j quase no final deste interminvel palavreado, surpreendo-me ao perceber que no ca em nenhuma citao. Corrijo isso j: quando o seu irmo Harpo morreu, Groucho Marx (dois tipos geniais, como dizia sempre Aurora) escreveu uma carta a um velho amigo: Era agradvel no mais pleno sentido da palavra. Gostava da vida e vivia-a alegre e profunda-mente: este o melhor epitfio que se pode dedicar a algum.

    Uma ltima lembrana: sbado, quando samos do Hos-pital Sainte-Anne, onde faleceu s oito da manh (hora a que sempre acordava, pontual como um relgio at o fim da vida), aconteceu algo prodigioso: no s ela acabava de morrer no pa-vilho Edgar Allan Poe como, enquanto cruzvamos o recinto cheio de rvores, um corvo passou por cima das nossas cabe-as com sonoros grasnidos. Impossvel no lembrar o verso: And said the raven: Nevermore. E depois, na esquina da ca-pela do Hospital Cochin, para onde a haviam levado (o mesmo hospital onde Cortzar, meio sculo antes, fora internado aps um acidente de viao e onde lhe ocorreu um de seus melhores

    C A R L E S L V A R E z G A R R I G A , S O B R E A u R O R A B E R N R D E z

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    contos: La noche boca arriba), tomvamos rapidamente uma cerveja para levantar os nossos nimos de rastos, toca o meu telefone. Comea a corrente de psames, incessantes e durssi-mos durante dois dias. Enquanto falo, levanto a cabea e vejo uma placa na fachada de uma casa muito velha, contgua ao bar de onde acabo de sair para atender a chamada, e que diz que ali Alain-Fournier escreveu Le Grand Meaulnes, um dos romances favoritos de Julio e de Aurora. Ao p da placa, esta citao do romance: Je cherche quelque chose de plus mystrieux encore...*

    Aurora querida, sempre to atenta aos pormenores, conse-guiste-o na perfeio. Com meu imenso amor, e um sentimen-to de ausncia que no sei como poderei superar, para sempre teu,

    Carles

    * Busco algo de mais misterioso ainda.traduo de ricardo viel

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    Foto

    grafi

    a d

    e D

    anie

    l Mo

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    nski

  • haitis?quantos

    J O S S A R A M A G O

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    Uma jangada de pedra navegando at ao Haiti

    Foram uns segundos o que durou o terramoto que assolou o haiti faz agora cinco anos, os suficientes para que trezentas e dezasseis

    mil pessoas perdessem a vida, mais de um milho ficassem mutiladas, as cidades destrudas, a confiana dos sobreviventes despeda-

    ada. ningum que no estivesse ali poder sentir o desespero de ver derrubar-se o mundo engolindo filhos, casas, pais, o futuro. a

    vida acabou para o pas mais pobre da amrica, historicamente mal governado, com pior imagem, no a terra, ainda que se mova,

    mas sim as pessoas que a habitam, sempre alvo de desconfiana, nunca sujeitos da sua prpria histria.

    tremeu a terra, e as casas que deveriam acolher homens, mulheres e crianas caram porque no eram casas, nem as estradas eram

    estradas, nem os diques eram diques, apenas se manteve firme o muro que se levanta em torno da pobreza e que permite ignorar o

    tamanho da tragdia. Esse muro no se quebrou, por isso cinco anos depois continuamos sem ver o cansao dos sobreviventes, ainda

    entre runas, sem escolas, hospitais ou trabalho, a imprescindvel organizao social deste tempo e de todos os tempos.

    Jos saramago sentiu a terra tremer quando se produziu o terramoto, por isso imediatamente disse que tinha de sair uma jangada

    para o haiti levando remdios, materiais, e tambm compreenso histrica e social. pediu aos seus editores que se lanasse uma edi-

    o especial de A Jangada de Pedra e que os direitos servissem para ajudar na construo do pas, ao menos de alguma escola.

    Escreveu tambm sobre a impossibilidade da indiferena, interveio em meios de comunicao, sofreu a dor da impotncia. o haiti

    foi a ltima militncia de Jos saramago.

    agora, quando se cumprem cinco anos do desastre, recuperam-se os textos escritos enquanto as rplicas do terramoto iam aconte-

    cendo e publicam-se com a mesma urgncia de ento, j que, desgraadamente, no se conseguiu uma interveno social na ilha

    com a dimenso humana e de respeito que as circunstncias requerem. por isso, mais do que nunca, navegar at ao haiti preciso.

    pilar dEl ro

    Q U A N t O S H A i t i S ? D E J O S S A R A M A G O

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    N o Dia de Todos os Santos de 1755 Lisboa foi Haiti. A terra tremeu quando faltavam poucos minutos para as dez da manh. As igrejas estavam repletas de fiis, os ser-mes e as missas no auge Depois do primeiro abalo, cuja magnitude os gelogos calculam hoje ter atin-gido o grau 9 na escala de Richter, as rplicas, tambm elas de grande potncia destrutiva, prolongaram-se pela eternidade de duas horas e meia, deixando 85% das construes da cida-de reduzidas a escombros. Segundo testemunhos da poca, a altura da vaga do tsunami resultante do sismo foi de vinte me-tros, causando 600 vtimas mortais entre a multido que havia sido atrada pelo inslito espetculo do fundo do rio juncado de destroos dos navios ali afundados ao longo do tempo. Os incndios durariam cinco dias. Os grandes edifcios, palcios, conventos, recheados de riquezas artsticas, bibliotecas, gale-rias de pinturas, o teatro da pera recentemente inaugurado, que, melhor ou pior, haviam aguentado os primeiros embates do terramoto, foram devorados pelo fogo. Dos 275 mil habitan-

    tes que Lisboa tinha ento, cr-se que morreram 90 mil. Conta--se que pergunta inevitvel E agora, que fazer?, o secretrio de Estrangeiros Sebastio Jos de Carvalho e Melo, que mais tarde viria a ser nomeado primeiro-ministro, teria respondido Enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Estas palavras, que logo entraram na Histria, foram efetivamente pronunciadas, mas no por ele. Disse-as um oficial superior do exrcito, desta maneira espoliado do seu haver, como tantas vezes acontece, em favor de algum mais poderoso.

    Q U A N t O S H A i t i S ? D E J O S S A R A M A G O

    capa da edio especial do romance a Jangada de Pedra, cujo o produto da venda foi destinado a ajudar a reconstruo do haiti aps o terremoto de 2010

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    A enterrar os seus cento e vin-te mil ou mais mortos anda agora o Haiti, enquanto a co-munidade internacional se esfora por acudir aos vivos, no meio do caos e da desor-ganizao mltipla de um pas que mesmo antes do sis-mo, desde geraes, j se encontrava em estado de catstrofe lenta, de calamidade permanente. Lisboa foi reconstruda, o Haiti tambm o ser. A questo, no que toca ao Haiti, reside em como se h-de reconstruir eficazmente a comunidade do seu povo, reduzido no s mais extrema das pobrezas como historicamente alheio a um sentimento de conscincia nacio-nal que lhe permitisse alcanar por si mesmo, com tempo e com trabalho, um grau razovel de homogeneidade social. De todo o mundo, de distintas provenincias, milhes e milhes de euros e de dlares esto sendo encaminhados para o Haiti. Os abastecimentos comearam a chegar a uma ilha onde tudo falta-va, fosse porque se perdeu no terramoto, fosse porque nunca l existiu. Como por ao de uma divindade particular, os bairros

    ricos, em comparao com o resto da cidade de Porto Prncipe, fo-ram pouco afetados pelo sismo. Diz-se, e vista do que aconteceu no Haiti parece certo, que os desgnios de Deus so inescrutveis. Em Lisboa as oraes dos fiis no puderam impedir que o teto e os muros das igrejas lhes cassem em cima e os esmagassem. No Haiti, nem mesmo a simples gratido por haverem salvo vi-das e bens sem nada terem feito para isso moveu os coraes dos ricos a acudir desgraa de milhes de homens e mulheres que no podem sequer presumir do nome unificador de compatriotas porque pertencem ao mais nfimo da escala social, aos no-ser, aos vivos que sempre estiveram mortos porque a vida plena lhes foi negada, escravos que foram de senhores, escravos que so da necessidade. No h notcia de que um nico haitiano rico tenha aberto os cordes ou aliviado as suas contas bancrias para socor-rer os sinistrados. O corao do rico a chave do seu cofre-forte.

    Q U A N t O S H A i t i S ? D E J O S S A R A M A G O

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    H aver outros terramotos, ou-tras inundaes, outras cats-trofes dessas a que chamamos naturais. Temos a o aqueci-mento global com as suas secas e as suas inundaes, as emis-ses de CO2 que s forados pela opinio pblica os gover-nos se resignaro a reduzir, e talvez tenhamos j no horizonte algo em que parece ningum querer pensar, a possibilidade de uma coincidncia dos fenmenos causados pelo aquecimen-to com a aproximao de uma nova era glacial que cobriria de gelo metade da Europa e agora estaria dando os primeiros e ainda benignos sinais. No ser para amanh, podemos viver e morrer tranquilos. Mas, di-lo quem sabe, as sete eras glaciais por que o planeta passou at hoje no foram as nicas, outras haver. Entretanto, olhemos para este Haiti e para os outros mil Haitis que existem no mundo, no s para aqueles que pra-ticamente esto sentados em cima de instveis falhas tectni-cas para as quais no se v soluo possvel, mas tambm para os que vivem no fio da navalha da fome, da falta de assistncia

    sanitria, da ausncia de uma instruo pblica satisfatria, onde os fatores propcios ao desenvolvimento so praticamen-te nulos e os conflitos armados, as guerras entre etnias sepa-radas por diferenas religiosas ou por rancores histricos cuja origem acabou por se perder da memria em muitos casos, mas que os interesses de agora se obstinam em alimentar. O antigo colonialismo no desapareceu, multiplicou-se numa di-versidade de verses locais, e no so poucos os casos em que os seus herdeiros imediatos foram as prprias elites locais, an-tigos guerrilheiros transformados em novos exploradores do seu povo, a mesma cobia, a crueldade de sempre. Esses so os Haitis que h que salvar. H quem diga que a crise econmica veio corrigir o rumo suicida da humanidade. No estou mui-to certo disso, mas ao menos que a lio do Haiti possa apro-veitar-nos a todos. Os mortos de Porto Prncipe foram fazer companhia aos mortos de Lisboa. J no podemos fazer nada por eles. Agora, como sempre, a nossa obrigao cuidar dos

    vivos.

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    publicado a 7 de fevereiro de 2010 no suplemento el Pas Semanal

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    #revistablimundaNeste ano de 2015 a revista Blimunda abre espao para os fotgrafos da comunidade Instagram. Esperamos imagens relacionadas com o universo vasto da revista, dos livros e da leitura msica, das artes sociedade, da cultura ao meio ambiente. Com ou sem filtros, a cores ou a preto e branco, queremos partilhar nas nossas pginas o olhar de quem nos l. Sero elegveis para publicao as fotos publicadas no Instagram com a hashtag #revistablimunda e depois enviadas para o email [email protected].

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    @andan te_a_a_ @andan te_a_a_

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    @ru iand re soa re s @andan t e_a_a_

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    @nep tumanc i a_aka_fe rnando_ lade i r a @andan t e_a_a

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    @andan te_a_a @andan te_a_a

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    @prosapoe s i a @pro sapoe s i a

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    1 . o E n c o n t r o d E l i t E r at u r a i n Fa n t o - J u v E n i l d a l u s o F o n i a n a F u n d a o o s c u l o

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  • Que Lusofonia?

    Quem escreve para crianas, quem promove o livro e a leitura, s o pode fazer se for com o corao cheio de afeto. S o pode fazer se o encontro das literaturas, dos escritores, dos professores, dos promotores, dos ilustradores, dos narradores, etc., etc., etc., for um espao onde os afetos nascem, crescem e se tornam irmos. Com estas palavras, o comissrio Jos Fanha deu incio sua interveno na mesa de abertura oficial do 1. Encontro de Li-teratura Infantojuvenil da Lusofonia. Continuou narrando o percurso da Fundao e as valncias que desenvolve. No seu tom emotivo e implicado, evocou pessoas e instituies, de-fendeu a leitura e logo ali se comprovou que este Encontro daria a mesma voz a escritores, ilustradores e narradores, o que no comum em Encontros onde a Literatura tem lugar de destaque no ttulo.

    Tanto assim foi que Maurcio Leite, um dos mais presti-giados mediadores de leitura do Brasil, reconhecido pelos projetos de alfabetizao e promoo da leitura com comu-

    nidades da Amaznia, tomou em seguida a palavra para ler dois pequenos contos, um para adultos e outro infantil, um de um brasileiro e outro de um portugus. O primeiro levou vrias vezes o pblico a gargalhadas moderadas, sem muito esforo. A escolha no foi justificada do ponto de vista simb-lico, mas depois de ter afirmado que no acredita que exista literatura infantil, e apenas literatura, Maurcio Leite parecia dizer que os dois contos o exemplificariam. De tal forma que o segundo, de Sidnio Muralha, para crianas, no arrancou nenhum som, apenas um silncio revelador.

    A premissa orientadora do Encontro seria constituir-se como eixo espacial e afetivo onde confluiriam os criadores e promotores da literatura infantil e juvenil de lngua portu-guesa. Jos Fanha alertou, nesse contexto, que faltavam re-presentantes de So Tom e Prncipe, da Guin, de Goa, de Macau, at da Galiza. E justificou que, em algumas regies, tal se fica a dever ao facto de no existirem escritores de lite-ratura infantil; So Tom, por exemplo. Nesse sentido, o co-missrio tem como inteno replicar o Encontro anualmente, com o duplo objetivo de promover a comunicao e a aproxi-mao de escritores, ilustradores, narradores, mediadores e outros agentes literrios e, simultaneamente, procurar cha-

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  • mar a ateno e estimular a criao em pases onde esta in-cipiente ou inexistente. A propsito do seu livro O Pirilampo e a Liblula, a cabo-verdiana Carmelinda Gonalves partilhou com a audincia, numa das mesas, a dificuldade que teve em encontrar um ilustrador porque pura e simplesmente no h quem ilustre livros infantis no seu pas.

    O presidente do Conselho de Ad-ministrao da Fundao O S-culo, Emanuel Martins, em de-claraes Blimunda reiterou a perspetiva do comissrio. Ns tnhamos desde o incio essa vontade. Por isso lhe chammos 1. Encontro e no Encontro. Precisvamos de saber se essa nossa vontade era tambm a vontade dos outros. Que outros? Sobretudo aqueles que a fazem, que laboram todos os dias com empenho, com amor, com querer So os escritores, os ilustradores, os narrado-res, que so aqueles que fazem a lngua passar para este do-mnio da utopia, da fantasia, da iluso que a literatura in-fantojuvenil. Depois do que se tem passado aqui, com tanta gente boa, tanta gente laureada, tantos livros representados,

    hoje essa resposta est dada e quem veio j pergunta quan-do ser o prximo Encontro.

    E acrescentou argumentos para que este Encontro desta-casse a Lusofonia, centrados essencialmente no pblico lti-mo a quem a criao literria infantil e juvenil se destina: as crianas. Temos muitas crianas c, esto c institucionali-zadas. Muitas delas, ou os seus progenitores no so nascidos em Portugal, so de diferentes culturas, de diferentes sabe-res, mas todos tm em comum a lngua portuguesa. Portan-to, partindo desse patamar e desse grande patrimnio que a lngua portuguesa, encontrmos aqui um mote. E o mote trazer para as nossas crianas, para alm do gosto pela pr-tica do desporto e de outras atividades, o gosto pela cultura e pela leitura, especialmente. Ora a leitura infantojuvenil sagrada para as nossas crianas, as que c esto e as que pas-sam por c todos os dias. Poder trazer at elas aqueles que fa-zem essa iluso, aqueles que so capazes de criar essa utopia em tamanho pequenino, que so capazes de transmitir essa mensagem, junt-los, os que escrevem e os que leem, no fun-do desfragmentar aquilo que parece que estril e extrema-mente importante para ns.

    Tornou-se ento claro que nas diversas mesas a Lusofonia no orientaria as exposies, conversas e testemunhos. Ao

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    Na altura dos autgrafos, veio uma menina de cinco anos e disse: Posso pedir uma coisa ao senhor escritor? Pede l. O senhor quer ser

    meu av? Antnio Torrado

  • contrrio, a sua presena no reivindicaria mais espao do que aquele, imanente lngua comum dos participantes nas mesas. A Lusofonia seria convocada pela identidade e teste-munho de cada um, pela sua presena. partida, pareceria pouco. No final do 1. Encontro, o pblico no levou teses so-bre o assunto, mas levou experincias sobre a comunicao e os seus equvocos, a tradio oral e a literatura, a burocratiza-o da circulao de pessoas e livros, a ausncia de escritores, ilustradores, livros e leitura em alguns pases.

    Quando o presidente da UCCLA (Unio das Cidades Ca-pitais de Lngua Portuguesa) anunciou, no final da mesa de abertura oficial, que a instituio ir lanar um concurso de contos de literatura infantil e juvenil a que pode concorrer qualquer cidado lusfono com menos de 30 anos, a organi-zao do Encontro viu ser dado um primeiro passo no estabe-lecimento desta plataforma de comunicao e acesso.

    Pensar os pblicos

    N este 1. Encontro haveria trs mo-mentos distintos e complementa-res: as visitas de escritores, ilus-tradores e narradores s escolas, os dois dias de conferncias e de-bate, e o ltimo dia, dedicado ao pblico em geral, nomeadamen-te famlias que poderiam visitar a Feira do Livro e assistir aos encontros com os autores. Da mesma forma como destaca as crianas como pblico final do livro que a elas se destina, e a lngua como patrimnio co-mum de identidades de diferenas, Emanuel Martins no es-quece os papis dos agentes do livro e da mediao. Por isso, justifica a necessidade de refletir sobre a criao literria por quem a leva ao pblico. Neste grupo junta os palestrantes e quem assistiu s conferncias: Nada melhor do que pr as pessoas que esto ligadas a esta rea: a rea do livro, da nar-rao, da ilustrao, mas tambm os professores, os educado-res, as pessoas que por isto se interessam verdadeiramente, a refletir e a falar como que podemos transformar isto numa plataforma muito mais alargada. Segundo a nossa viso, esta plataforma ter de transcender at o espao nacional, e ir

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  • para o espao da lusofonia, para no ficarmos cada um em ilhas a andar em diferentes velocidades e a lngua portuguesa ter esta dimenso e fora para levantar e fazer andar a todo o vapor a primeira literatura a que todos temos acesso que a literatura infantil.

    Da a importncia das visitas s escolas (36 sesses) no apenas do Concelho de Cascais mas de Oeiras, Amadora e Lisboa. Em paralelo, no espao da Feira do Livro, as crianas do ATL da Fundao O Sculo tiveram oportunidade de criar poemas coletivos, que ficaram expostos, a partir de desafios com palavras e temas.

    Complementarmente, o facto de a inscrio no Ciclo de Conferncias dar aos professores um certificado de parti-cipao acreditado constituiu uma estratgia clara de apro-ximar os docentes a esta causa. A certificao, necessria para a avaliao docente e respetiva progresso na carreira, apresentava-se como uma mais-valia na conquista de pbli-co especfico, aquele a quem o Encontro pretendia chegar em fora. A lotao do auditrio esteve quase sempre completa, com cerca de oitenta participantes, dos quais a maioria se-riam efetivamente professores e professores bibliotecrios, pelo que se cumpriu o objetivo inicial. Nos momentos de di-

    logo e debate foi notrio que as questes se prendiam com a realidade do livro e da leitura na escola, quer textual quer visual. A proximidade que o comissrio Jos Fanha, escritor e mediador de leitura, demonstrava ter com as pessoas da as-sistncia confirmava que aqui a sua experincia de terreno e o conhecimento pessoal das realidades escolares tero sido a pedra de toque na elaborao do Encontro e na escolha crite-riosa daqueles a quem se dirigia, sem no entanto fechar a por-ta ao cidado comum e s famlias, outro dos eixos essenciais da promoo do livro e da leitura.

    MESA A MESAA Literatura

    A primeira mesa de confern-cias abriu com Antnio Tor-rado, que em jeito de introito a uma histria que contaria em seguida reiterou o papel cvico das visitas s escolas pelos autores, por levarem s crianas a divulgao de livros e a motivao para a leitura. O autor cannico da litera-

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    Noutro dia, numa escola, aprendi a

    desenhar comboios e semforos como deve ser. E agora

    tambm j sei desenhar rvores.

    Catarina Sobral

  • tura infantojuvenil portuguesa dirigiu a sua interveno, en-tre apontamentos, leituras, e interpelaes ao pblico, para questionar a avaliao dos destinatrios infantis, tendo em conta a literalidade e a figurao na interpretao.

    David Machado assumiu que a inspirao para os seus li-vros infantis vem diretamente das suas memrias. Para alm disso, no se obriga a limites semnticos, sintticos ou temti-cos. Acrescentou ainda que muitas vezes o adulto escritor tem uma ideia errada acerca do seu pblico, cedendo tentao de explicar, quando as crianas so muito mais dinmicas, na opinio do escritor, a encontrar perguntas e procurar respos-tas. Para alm disso, o medo que os adultos tm de expor as crianas ao mundo, o medo que tm de que sofram leva a que criem produtos formatados sobre temas que acreditam ser as prprias ao seu universo. O livro infantil no deve ento ser distinto de um livro para adultos nos vazios e no dilogo que estabelece com o leitor individual.

    A interveno de Leonor Riscado reuniu as experincias criativas e enquadra-as no contexto terico dos estudos liter-rios. Se a literatura polissmica, quase uma verdade lapali-ciana que adultos e crianas compreendem cada texto literrio de forma diferente. O mesmo acontece com duas crianas. Mais

    relevante: a literatura encanta pelo valor da palavra, simblica e sonora. A sonoridade, a musicalidade, o ritmo so alis o pri-meiro nvel de leitura para a criana, que progressivamente vai alargando o seu campo de perceo, a sua enciclopdia.

    A Pol