Blimunda N.º 26 - julho 2014

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Neste mês de julho cumprem-se cem anos do início da Primeira Guerra Mundial, tema que a Blimunda # 26 recupera com nove meditações sobre a guerra, de autoria de José Saramago, acompanhados por ilustrações de Filipe Abranches, e com a reprodução de dez cartazes que mostram diferentes formas de abordagem gráfica ao conflito que marcou o panorama social e político mundial.Participante de luxo desta edição da revista, o sociólogo espanhol Juan José Tamayo assina uma reflexão sobre o livro de sua autoria, Cincuenta intelectuales para una conciencia crítica. Ricardo Viel entrevista a poeta Matilde Campilho, revelação da poesia lusófona e autora do recentemente publicado Jóquei. Da Colômbia chega-nos um retrato da Carreta Literária, projeto de promoção de leitura fruto da insistência e do sonho de um vendedor de Cartagena de Índias. Na secção Infantil e Juvenil Andreia Brites relata os bastidores da Ilustratour, encontro dedicado à ilustração realizado em Valladolid que na sua sétima edição se afirma como um dos mais importantes pontos de encontro entre ilustradores e editores no país vizinho. Espaço, ainda, para a primeira parte de um artigo de João Monteiro dedicado à relação entre a Literatura Negra e o Cinema Negro, partindo da Antologia do Conto Fantástico Português, publicado na década de 1960.Na Saramaguiana, a Blimunda publica um ensaio de Wagner Martins Madeira sobre o humor em A Viagem do Elefante, de José Saramago, ilustrado pelas imagens da peça de teatro com o mesmo nome que o Trigo Limpo Teatro ACERT leva pelo segundo ano consecutivo a mais de 14 localidades do interior de Portugal.E como estamos no verão, Sara Figueiredo Costa explora As Praias de Portugal - Guia do banhista e do viajante, de Ramalho Ortigão, agora reeditado pela Quetzal, livro que justifica a ideia (incompreensível) de que há leituras adequadas para as férias de verão, para quem as têm, e para a praia.

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    1/123MENSAL N . 26 J ULHO 2 0 1 4 F UNDAO JOS SARAMAGO

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    Um homem nunca sabe quando a

    guerra acaba. Diz, Olha, acabou,

    e de repente no se acabou,recomea, e vem diferente, a puta,

    ainda ontem eram floreios de espada

    e hoje so arrombaes de pelouro,ainda ontem se derrubavam muralhas

    e hoje se desmoronam cidades,

    ainda ontem se exterminavam pasese hoje se rebentam mundos.

    Jos Saramago Memorial do Convento

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    13

    52 57

    91

    EditorialContra aguerra

    Literaturanegra, cinema

    negroJoo Monteiro

    Cartazes daI Guerra

    Sara FigueiredoCosta

    Espelhomeu

    Andreia Brites

    Agendajulho

    Estante

    Desenha o teumapa

    Andreia Brites

    Leituras deveraneioSara Figueiredo

    Costa

    Saramaguiana:On the road

    Wagner Martins Madeira

    Leiturasdo Ms

    Sara FigueiredoCosta

    Ilustradorprocura editor

    para umarelao sria

    Andreia Brites

    MatildeCampilho

    EntrevistaRicardo Viel

    Notas derodap

    Andreia Brites

    9 meditaessobre

    a guerraJos Saramago

    O colombia-no que cultiva

    leitoresRicardo Viel

    Cinquenta in-telectuales

    para una con-ciencia crtica

    Juan Jose Tamayo-Acosta

    DicionrioRita Taborda Duarte

    Gmeo Lus

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    Que quem se cala quanto me calei

    No poder morrer sem dizer tudo

    DIZIA E REPETIA JOS SARAMAGO, CONSCIENTE DE QUE ESSE TODO ERA

    relativo e que, por isso, tinha a ver com as suas preocupaes, entre elas, quem

    sabe se no a primeira, a violncia que se exerce sobre pessoas e sociedades que

    no nasceram para ser vtimas mas sim donas das suas vidas.

    Talvez conduzido pela urgncia de no querer morrer sem dizer tudo ps-se a

    escrever, quando faltavam uns meses para a sua morte, o romanceAlabardas,

    Alabardas, Espingardas, Espingardas, ttulo extrado de Gil Vicente que anuncia

    de forma explcita o argumento

    do livro j que alabardas e

    espingardas so armas que se

    fabricam para coagir e matar. Jos

    Saramago, que tanto ocupara

    de situaes blicas e das suasconsequncias em diferentes

    romances e intervenes pblicas,

    precisava de partilhar uma ltima

    reflexo com os leitores, e assim,

    partindo de um singular ponto de

    vista, iniciou um relato sobre as

    armas que nutrem o grande fracasso tico do ser humano que so as guerras.

    No pde acabar o livro, falharam-lhe as foras para continuar a construir a

    partir do horror, mas as pginas que escreveu sero publicadas em outubro emportugus, espanhol, catalo e italiano, a que se seguiro tradues noutros

    idiomas.

    ComAlabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardasacaba-se a obra de

    Jos Saramago, o homem que no queria morrer sem ter dito tudo. Talvez no

    seja ousadia recordar que os seus dois ltimos livros, CaimeAlabardas, tratam

    de dois assuntos centrais na sua obra, abordados de forma explcita, para no

    deixar sombra de dvida: a recusa do poder que as religies exercem sobre as

    pessoas e sociedades para as anular atravs do medo e da proibio, o recurso

    violncia, to usado em diferentes civilizaes, como se no houvesse outro

    meio para solucionar conflitos. Em Caim, o artifcio do Antigo Testamento, do

    fratricdio inicial ao dilvio universal, que levar morte todos os habitantes

    da terra por no haver cumprido os desgnios de Deus, em Alabardas, onde um

    trabalhador descobrir, pela fora das circunstncias, que a sua laboriosidade

    permite que uma engrenagem odiosa continue em movimento e a marcar os

    mapas e as dominaes. No fundo, a reflexo sobre o poder e a violncia so um

    mesmo eixo. E sobre ele gira a obra de Jos Saramago.

    Este ms de julho cumpre-se um sculo da Primeira Guerra Mundial.

    Apesar do horror que significou, o ser humano no parece ter aprendido muito,

    de tal forma que as guerras continuam a ser a mquina que move o mundo e aeconomia. Contra essas mquinas os cidados que as sofrem no puderam fazer

    prevalecer a razo da paz, talvez porque as aceitem como uma inevitabilidade.

    No entanto, Jos Saramago acreditava que a paz possvel se os seres humanos,

    nas conscincias e nas ruas, se manifestarem por ela, sem aceitar os critrios que

    impem como dogmticos o que cinicamente ridicularizaram, como o pacifismo.

    A guerra um fracasso e assim h que aceit-lo. tambm um crime. Um sculo

    depois da primeira contenda mundial parece necessrio que o manifestemos

    antes que seja imposto o silncio obrigatrio, por isso neste nmero da Blimunda

    publicam-se textos de Jos Saramago sobre a guerra extrados de romancese de artigos de interveno cvica, e anuncia-se, como contribuio moral da

    Fundao Jos Saramago neste Centenrio, que o romance inacabado de Jos

    Saramago,Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, ser publicado em

    outubro e ser mais uma forma de repdio violncia.

    Cem anos depois, e como disse Jos Saramago, unindo a sua voz de milhes de

    seres humanos, seus semelhantes: No guerra.

    Contraa guerra

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    A S B S

    FUNDAOJOSS

    ARAMAGO

    THEJOSSARAMA

    GOFOUNDATION

    CASADOSBICOS

    ONDEESTAMOSWHERETOFINDU

    SRuadosBacalhoeiros,LisboaTel:(351)[email protected]

    COMOCHEGAR

    GETTINGHERE

    MetroSubwayTerreirod

    oPao

    (LinhaazulBlueL

    ine)

    AutocarrosBuses

    25E,206,210,

    711,728,735,746,

    759,774,

    781,782,783,794

    5

    SegundaaSbado

    MondaytoSaturday

    10s18horas10amto6pm

    MADA

    LENA

    MATOS

    O

    Blimunda 26

    julho 2014

    DIRETOR

    Srgio Machado Letria

    EDIOEREDAO

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    REVISO

    Rita PaisDESIGN

    Jorge Silva/silvadesigners

    FOTOGRAFIA

    Ricardo Chaves

    ILUSTRAO

    Filipe Abranches

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

    dos respetivos autores.

    Os contedos desta publicao

    podem ser reproduzidos

    ao abrigo da Licena

    Creative Commons

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    uma revista, participando da criao

    da primeira biblioteca pblica do

    Estado, o seu legado mais duradouro

    e o nico que sobreviveu ao tempo

    tenha sido um objecto singeloassociado religio popular e

    superstio." (p. 71) Apesar disso, a

    histria reconhece a Silva Serva o

    seu papel na criao da imprensa

    brasileira de carcter privado e

    Leo Serva, jornalista, aproveita

    esse facto para reflectir sobre as

    mudanas transversais que um gesto

    como esse teve na sociedade da

    poca, cruzando-as, numa reflexopertinente (e urgente) com as

    mudanas vividas pela imprensa

    actual. O sculo em que Silva Serva

    aportou na Bahia com os seus

    tipos de chumbo e a sua vontade

    de imprimir um jornal estar longe,

    mas as implicaes de existir ou

    no existir uma imprensa informada

    e livre continuam as mesmas, com

    prncipe regente ou com parlamento

    eleito, independentemente das

    coordenadas geogrficas.

    justa e democrtica. Apoiado em

    trabalhos anteriores sobre Silva

    Serva e a fundao da imprensa

    baiana, na anlise de documentos e

    no cruzamento de informaes, oautor traa o retrato possvel de um

    homem dedicado causa das letras e

    ainda assim apostado em no perder

    o pulso ao negcio que lhe colocava

    o po na mesa.

    Uma das curiosidades reveladas pelo

    autor de Um Tipgrafo na Colnia

    a de que Manuel Antonio Silva Serva

    no foi apenas o responsvel pela

    imprensa pblica em Salvador, mas

    igualmente pela fama e enorme

    divulgao das fitinhas do Senhor

    do Bom Fim da Bahia, de cuja

    Devoo foi tesoureiro. A histria

    mais do que mera curiosidade, na

    medida em que permite confirmar

    o carcter empresarial e dinmico

    de Silva Serva, e torna-se tanto

    mais interessante quanto confirma,

    sem espanto, que os grandes

    empreendimentos cheios de boas

    intenes sociais e culturais nem

    sempre so aqueles que perduram:

    " de certa forma irnico que,

    tendo Silva Serva realizado muito

    pela cultura na Bahia e no Brasil,

    criando uma tipografia, um jornal,

    Leo ServaUm Tipgrafo na ColniaPublifolha

    Negociante ehomem de letras

    Nascido no Norte de Portugal,

    provavelmente no Porto, Manuel

    Antonio Silva Serva chegou ao Brasil

    nos ltimos anos do sculo XVIII,

    cumprindo a mesma viagem quetantos emigrantes. Instalado em So

    Salvador da Bahia, ter comeado a

    fazer pela vida com um negocio de

    'utilidades domsticas', mas foi na

    rea da imprensa e da edio que

    os seus anos brasileiros se tornaram

    intensos, deixando uma forte marca

    para o futuro.

    O livro que Leo Serva, tataraneto de

    Manuel Antonio Silva Serva, dedica ao

    homem que fundouIdade d'Ouro, o

    primeiro jornal particular publicado

    no Brasil, e a revistaAs Variedades

    ou Ensaios de Literatura, cruza a

    investigao documental com a

    reflexo sobre a histria do Brasil

    e as mudanas sociais introduzidas

    por aces como estas num pas

    a caminho da sua independncia.

    Silva Serva criou uma tipografia,

    distribuiu folhetos anunciando as

    suas publicaes e ajudou a criar

    uma biblioteca pblica em Salvador,

    confirmando a crena inesgotvel

    que tinha no papel da instruo,

    da leitura e da informao no

    desenvolvimento de uma sociedade

    Leituras do Ms /SARA FIGUEIREDO COSTA

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    entrar numa vacaria que avistmosda estrada. Fomos bem recebidospelo Francisco, um rapaz de 31anos responsvel por aquelasvacas leiteiras (cerca de 200) queproduzem 110 toneladas de leite

    por ms usados para a produode queijo. Como eu tinha comidopouco ao pequeno-almoo, e estavacurioso por conhecer o sabor purodo leite de vaca, sem tratamento,perguntei-lhe se podia experimentar.Francisco riu-se e estendeu-me umcopo cheio de leite cru. O Tiagopediu-me para eu experimentara bebida frente cmara e paradescrever o sabor no momento

    da prova. Claro est que estava namira de uma careta ou esgar denojo. Receei poder faz-lo. Mas ocontedo do copo surpreendeu-me. Segundo o responsvel pelaqueijaria, um copo de leite cruequivale a uma posta mirandesa, algoque os apreciadores da carne noaceitaro de bom grado. De qualquermodo, leite e carne convivem sematritos entre as coisas boas que seproduzem em terras transmontanas

    e no s, algo que confirmamoscom a leitura dos vrios textosdestesKms de Histrias, to longeda agitao urbana que esquece omuito que acontece nas terras ondea desertificao vai vencendo ummodo de vida do qual, conscientesou no, dependemos todos.

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    e que assinalam os momentos maisintensos de uma longa viagem porterras de Portugal. As primeirasparagens aconteceram entre a BeiraInterior e Trs-os-Montes e a galeriade pessoas e histrias registadaspelos reprteres confirma o interessedo projeto, ainda no incio. Aos textosjuntam-se vdeos e fotografias,

    cruzando linguagens de modo apermitir ao leitor uma experinciamais completa e tirando partido dacada vez mais anunciada linguagemmultimdia, aqui utilizada na suaverdadeira aceo.Em Duas Igrejas, Trs-os-Montes, osreprteres visitaram uma vacaria:Em Duas Igrejas acabmos por

    RevistaIdentidadeCancioneiroPortugusO terceiro nmero da revistaIdentidades, editada pelo coletivocom o mesmo nome, dedicado sfestas e romarias de vero que, umpouco por todo o pas, assinalama estao com msica, comida,reencontros e uma profunda ligao terra. Nas suas 78 pginas h textossobre as festas de So Joo de Arga,Freamunde, So Brs dos Montes ou

    Ponte de Lima, mas h igualmenteuma longa entrevista com ArturFernandes, do grupo Danas Ocultas,a propsito dos 25 anos de vidadeste coletivo de concertinas, vriosartigos sobre danas portuguesas,notas crticas sobre discos,concertos e festivais e uma completaagenda que rene informao sobreas festas, romarias, feiras e festivaisque vo atravessar o pas durante osmeses de vero.A juntar aos textos e imagens,a Identidades tem uma secochamada Cancioneiro ondese publicam modas e canespopulares, incluindo a sua partitura,o que permite a aprendizagem e areproduo, dando continuidadea uma memria que persiste nacomunidade. Neste nmero,

    podem cantar-se e tocar-se Valsae Revalsa, Viuvinha, Parreiraeessa cano icnica do patrimniomusical tradicional que continua atransmitir-se desde a infncia, TiaAnica de Loul. Depois da leitura, agarrar num instrumento ou na voz epraticar.

    "l

    Kms de HistriasLeite cruAssim se chama a srie dereportagens que Bernardo Mendonae Tiago Miranda assinam no Expresso

    Leituras do Ms

    Kms de Histrias

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    segregacionistas de pases y otrasmuchas restricciones civiles quedurante generaciones crearon unagran poblacin penitenciaria nocriminal en Surfrica. Al mismotiempo que pusieron a l y a sus

    compadres a picar piedras y sacaralgas del Atlntico, las autoridadespenitenciarias estaban contratandoa gente corriente de la poblacinnegra para realizar trabajos agrcolasde esclavos. Su gente le mantuvoen las letras de sus canciones ycnticos, en los ejemplos de formasde resistencia que Mandela les habatransmitido, y en las peticionespara que le liberaran que formaban

    parte del programa de liberacinque mantenan tanto los lderesen el exilio como el propio puebloen Surfrica. A travs de las pocasnoticias suyas que salan de la crcel,nos sabamos que su sentido de smismo siempre formaba parte detodo ello, que lo viva con su gente:les reciba a travs de los muros dela crcel, del mismo modo que ellosle mantenan junto a s. A mesmariqueza da prosa que praticava nos

    romances, aqui aplicada a uma figurabem real.

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    naquele mesmo jornal, em 1993,onde se l: Podra fcilmentehaberse convertido en una leyenda,y sus rasgos reconstruidos en unicono de esperanzas que nuncase realizaran y de una libertadque se alejaba a medida que cada

    oleada de resistencia en nuestropas era aplastada y pareca serderrotada, ante la indiferenciadel mundo exterior. Pero la gentetena la sensacin de que l estabasoportando lo que ellos conocanbien: las duras humillaciones de lacrcel eran experiencias cotidianaspara los negros bajo las leyes

    Futebolpara almdo jogo

    No Pblico, o historiador JosNeves, que tem dedicado muitaspginas reflexo sobre ofenmeno do futebol na sociedadecontempornea, assina um textosobre o Campeonato Mundial queterminou este ms no Brasil. A parcom os jogos que foram decorrendoem diversas cidades, sempreem horrios que permitissem atransmisso televisiva mundial mesmo que fossem prejudiciais para

    o ritmo das equipas , o Mundialficou marcado ainda antes do seuincio por centenas de protestos derua e um processo de debate sobrea justificao para um investimentoto avultado num evento desportivoquando o Brasil continua a terassimetrias sociais muito grandes,falta de servios bsicos e carnciasscio-econmicas gritantes. Umexcerto: [...] sendo resultado de

    uma ordem econmica global,os grandes eventos desportivosigualmente concitam a aodos Estados nacionais. Estesencontram no tempo do evento umaoportunidade para se diferenciaremna cena internacional, na qualpretendem fazer valer uma imagemde modernizao, recuperando

    do seu atraso e afirmando oseu progresso sobre os demaisEstados. Podemos inclusivamentedizer que os grandes eventosarticulam no sem tenses, certo programas econmicos nacional-

    desenvolvimentistas e projetosglobais de ndole liberal. De resto,as condies climatricas a que osfutebolistas foram sujeitos nesteMundial no se explicam apenas pelofacto de o desporto acertar as suashoras pelo interesse televisivo, mastambm pelas polticas de dispersoterritorial prprias a um Estadofederal como o brasileiro.

    "l

    Nadine Gordimermorre aos90 anosA escritora sul-africana NadineGordimer, distinguida com o PrmioNobel da Literatura em 1991,morreu este ms, aos 90 anos, emJoanesburgo. A imprensa mundialdedicou vrias pginas ao seu perfil,incluindo a re-publicao de algunstextos da sua autoria. No El Pas,h um dossier dedicado escritoraque vale a pena ler e guardar.Entre os vrios textos, recupera-se um artigo de Nadine Gordimersobre Nelson Mandela, publicado

    Leituras do Ms

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    E

    ST

    TE 10

    Jimmy Liao

    DesencontrosKalandraka

    Pressente-se o compassodos dias na economia textualdesta narrativa to angustiantequanto sensorial. As alteraesatmosfricas e a geografiahumana contribuem para essasensao de infortnio queinsiste em afastar duas pessoasenamoradas. Em contrastecom as suas rotinas solitrias omundo fervilha de movimento,

    exposto pelo detalhe do trao epela ampla paleta de cores. Nofinal, um conjunto de elementosvisuais sugerem aquilo que oleitor se dispuser a apreender.Um lbum paradigmtico daleitura crossover, assumidamentedefendida pelo autor de Taiwan,que agora se estreia em Portugal.

    Paulo Varela Gomes

    Ouro e CinzaTinta da China

    Volume que rene quase umacentena de crnicas de PauloVarela Gomes, a maioria delasdadas estampa no jornalPblico, onde colaborou desde afundao, em 1990. Abordandoos temas mais variados, entreos quais se destaca a ndia, pasque o autor comhece bem, ouo campo enquanto lugar deum certo modo de viver, Paulo

    Varela Gomes domina o formatoda crnica com mestria e usa-opara refletir sobre o tempo, essegrande escultor de que falavaMarguerite Yourcenar, antes dequalquer outra coisa.

    Jlio Henriques

    Deus Tem CaspaAntgona

    Verso revista e atualizada dolivro publicado em 1988 pelaFenda e h muito esgotado.Em tom ficcional e formatode apontamento curto, JlioHenriques atira-se sem piedadeaos modelos sociais e culturaisque foram dominando, etm dominado a sociedadeportuguesa contempornea, dafamlia ao trabalho, passando

    pela poltica e pelo espaomeditico. As questes capilaresdivinas so mero divertimentoao p da crueza com que o autornos expe as inrcias e as falhasenquanto comunidade.

    Afonso Cruz

    Os Pssaros (dos poemas

    voam mais alto)David Machado, Gonalo VianaParece um PssaroAPCCA APCC lanou dois novos livrosque em comum tm um curiosotpico, legvel logo nos ttulos.No primeiro, as vozes de umconjunto de crianas levantamquestes e do respostasdesconcertantes sobre ospssaros, e o seu contributopara com a harmonia e belezado mundo. J David Machadocomprova o sentido de humor dasua escrita numa narrativa linear,em que um invulgar chapu passade motivo de vergonha a razo deglria.

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    Pedro Nogueira

    Vontade IndmitaAo NorteCom uma releitura do filmehomnimo de King Vidor, chegaao nmero 15 a coleo O Filmeda Minha Vida, um espao ondeautores de banda desenhadaescolhem um filme e o recriam luz de uma outra linguagem.Pedro Nogueira tira partido daspranchas duplas e do trao finoe irrequieto para construir a suainterpretao e o resultado ,

    naturalmente, um outro objeto,ele prprio permitindo novase outras leituras, algo que acoleo tem conseguido demodo exemplar.

    Aquilino Ribeiro

    a GuerraBertrandNo ano em que se assinala ocentenrio da Grande Guerra,a Bertrand reedita o dirioque Aquilino Ribeiro escreveusobre o conflito, anotando a suaexperincia e as reflexes a quese dedicou durante o tempoem que participou nessa guerraonde tantas vidas se perderam.Acompanhando os primrdiosdo conflito, Aquilino questiona os

    verdadeiros impulsionadores dasmovimentaes blicas e regista,com erudio e assertividade, asreaes e os estratagemas dosque partem para a luta.

    Antnio Mota, Cristina Malaquias

    A Arca do Av NoAsaChegou s livrarias em maio omais recente livro ilustrado deAntnio Mota, que conta commais uma trintena, s nestacoleo. Mota no se afasta dotom memorialstico, prezandoos pequenos gestos da relaoentre Francisco e o seu avNo, cuja casa tem um cheirodiferente e as torradas outrosabor. A descrio da conduo

    do av ou a ausncia semprepresente da av confirmam acumplicidade desta relao.Apesar do desfecho simblico,o maior encanto da narrativaest precisamente naquelavoz entusiasmada e curiosa domenino narrador.

    Patricio Pron

    El Libro TachadoTurnerA dada altura, neste ensaio sobrea literatura e o modo como alemos atualmente, Patricio Pronescreve lo que cuenta sonnicamente los textos. Na sendade Roland Barthes, o escritor ejornalista argentino reflete sobrea leitura do texto literrio luz dasua prpria matria e linguagem,referindo todos os extra-textosque cada vez mais confundem

    marketing com literatura etraando um retrato duro daquiloque hoje conhecemos comomeio literrio.

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    ST

    TE

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    A S B S

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    meditaessobre

    a guerraJOS SARAMAGO

    i l us t raes F I L IPE ABRANCHES

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    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    1.DeOAnodaMortedeRi

    cardoReis=======

    essemeninocrescereirparaasguerrasquesepreparam

    ,aindacedo

    paraasdehoje,masoutrassepreparam,

    repito,hsempreumdepoisparaaguerra

    seguinte,faamosascontas,viraomundo

    lparaMarodoanoquevem,selhepu-

    sermosaidadeaproximadaemqueguerra

    sevai,vinteetrs,vinteequatroanos,

    queguerrateremosnsemmilnovecentos

    esessentaeum,eonde,eporqu,emque

    abandonadosplainos,comosolhosdaima-

    ginao,masnosua,v-oRicardoReisde

    balastraspassado,morenoeplidocomo

    seupai,meninosdasuameporqueo

    mesmopaionoperfilhar.===============

    2.DeLevantadodoCho========

    ============

    GuerranaEuropa,jfoidito.Eguer-

    ratambmemfrica.Estascoisassocomogritarnumcabeo,quemgritasabequegri-tou,svezesaltimacoisaquefaz,mas,daliparabaixo,cadavezsevaiou-vindomenos,eporfimnada.AMonteLavre,deguerras,schegavamnotciasdejornal,eessaseramparaquemassoubes

    seler.Os

    outros,seviamsubirospreosoufaltarem

    atosgnerosgrosseirosdasuaalimen-tao,seperguntavamporqu,porcausadaguerra,respondiamosentendidos.Muitocomiaaguerra,muitoaguerraenriquecia.aguerraaquelemonstroqueprimeiroquedevoreoshomenslhesdespejaosbolsos,umporum,moedaatrsdemoeda,para

    que

    nadasepercaetudosetransforme,comoleiprimriadanatureza,quesmaistarde

    seaprende.Equandoestsaciadademanja-res,quandojregurgitadefarta,continuanojeitorepetidodededoshbeis,tiran-dosempredomesmolado,metendosemprenomesmobolso.umhbitoque,enfim,lhevemdapaz.==================================

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    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    Textosdeinterveno===================

    3.InCadernosdeLanzarote,Vol.III,9defevereirode1995=====

    ==================

    Paraahistriadaaviao.EmBadajoz

    foihojedadonomeaumarua.Omotivo,

    acausa,opretexto,arazo,oucomose

    quiserchamar-lhes,jtmmaisdecin-

    quentaanos,emuitofortesterosido

    parasobreviveremaosolvidosacumula-

    dosdeduasgeraes,justificadosestes,

    emgeral,pelofactodeaspessoasterem

    maisemquepensar.Nodireieuqueos

    habitantesdeBadajozlevaramestemeio

    sculoepicosatransmitirunsaosou-

    trosocertificadodeumadvidaqueum

    diateriadeserpaga,oquedigoque

    algumbadajoceoescrupulosodeveter

    tidoumrebatedeconscinciamaisoume-

    nosnestestermos:Muitosdosquehoje

    vivemestariammortos,outrosnoteriam

    chegadoanascer.Parecerumenigma

    daEsfinge,eafinalsumahistriadaaviao.Hcinquentaetantosanos,du-ranteaguerracivil,umaviadorrepubli-canoteveordemdeirbombardearBadajoz.Foil,so

    brevoouacidade,olhouparabaixo.Equeviuquandoolhouparabai-xo?Viugente,viupessoas.Quefezentooguerreiro?Desviouoavioefoilargarasbombasnocampo.Quandoregressoubaseedeucontadoresultadodamisso,comunicouquelhepareciaquetinhamata-doumavaca.Ento,Badajoz?,perguntouocapito.Nada,havial

    gente,res-pondeuopiloto.Pois,fezosuperior,e,porimpossvelqueparea,oaviadornofoilevadoaconselhodeguerra...AgorahemBadajozumaruacomonomedeumhomemqueumdiatevepessoasnamiradasuabombaepensouqueessaerajusta-menteumaboarazoparanoalargar.========================================

    =

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    4.inCadernosdeLanzarote,vol.IV,15dejulhode1996==========================

    =

    Nodia8denovembrode1923,umantigo

    cabodoexrcitobvaro,chamadoAdol-

    foHitler,entrounasalasubterrnea

    daCervejariaBrgerbru,ondeaflorda

    burguesiabempensantedeMuniquese

    encontravareunidaparadiscutirasi-

    tuaopolticaedisparouumtirode

    pistolaparaoteto.Desdeainveno

    dasarmasdefogo,noraroqueapa-

    reaumtiroasubstituiraspalavras

    (querasdequemtinhafaltadeoutros

    argumentosquerasdequemsimplesmen-

    tedeixaradeosterporqueabalalhe

    levaraavida),masesteHitlersabia

    j,pelaexperinciaganhacomoagita-

    dordesdequeem1919,porindicaodos

    militares,ingressounoPartidoOperrio

    Alemo,quantopodemvalerosdiscursos

    capazesdedespertarnosauditoresaam-

    bio,asedededomnioouodesejode

    desforra.Notinhaprecisadodelerem

    ShakespeareafaladeMarcoAntnioaos

    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    Romanosparaconheceraarteoratriadelevarconscinciasaoengano:nestecasonemtantoerapreciso,poisnofezmaisdoqueconvencerosburguesesde

    Muniquedequeele,AdolfoHitler,eraohomemqueodestinoescolheraparasal-varaAlemanha,cujosinteressesene-cessidades,talcomoosentendiaabur-guesia,eramemtudocoincidentescomosdelaprpria.Arrebatandocomainflamadaarengaumaassembleiaqueaoprincpioselhemostraracontrria,Hitleranun-ciouanomeaodeumnovogovernona-cionalalemo,proclamouqueassumiaasuapresidncia,e,certamenteinspira-dopeloexemplodamarchadosfascistasitalianossobreRoma,propsaimediatapreparao,afimdesalvaropovodaAlemanha,deumamarchasobreBerlim,essaBabilniadeiniquidades,disse.Eterminouprofetizand

    o:Amanh,ouha-verumgovernonacionalalemo,ouse-remoscadveresosqueaquiestamos.Como,noobstanteoentusiasmo,osno-vosaliadosnoderamideiadamarchasobreBerlimumapoiosuficiente,Hitler>>

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    >>decidiusubstitu-laporumamarcha

    sobreMunique,ou,commaisexatido

    (vistoqueemMuniquejestavam...),um

    desfilearmadoataoFeldherrnhalle,o

    chamadosanturiodosgenerais.Certo

    deterdoseuladoamaioriadapopula-

    odacidadeeapostandonafragilidade

    daobedinciadasforasmilitaresaogo-

    verno,HitlerlanouoseugolpedeEsta-

    do.Aesperanadetriunfonoduroumais

    quepoucosminutos.Quandoamanifesta-

    ojseaproximavadoFeldherrnhalle,

    naKnigplatz,umpequenodestacamentode

    polciacortou-lheocaminho.Apanhada

    desurpresaquandoestavaconvencidade

    teravitriaaoalcancedamo,atro-

    panacional-socialistadebandou,deixando

    atrsdesicatorzemortos.Hitler,que

    haviafugidosemglriadolocaldocom-

    bate,foidetidodoisdiasdepois.Jul-

    gadoemfevereirodoanoseguint

    eporum

    tribunalquenotoriamentesimpatizavacom

    osseusprojetospolticos,foicondena-

    doacincoanosdeprisopordelitode

    altatraio,comperspetivadesuspenso

    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    dapenapassadosseismeses.Viriaaseramnistiadoemdezembrode1924.Nocaste-lodeLandsberg,quefoioseucrcere,HitlerescreveuaprimeirapartedeMeinKampf.

    Passaramtrezeanossobreestesacon-tecimentos:estamosagoraemnovembrode1936,eAdolfoHitler,desde1933,ni-coamoesenhornaAlemanha.ExcetuandoasombraincmodadavitriadaFrentePo-pularemFrana,nomsdemaio,e,trsmesesantes,adaFrentePopularemEs-panha,entretantojabraoscomole-vantamentofranquista,aEuropastemmotivosdesatisfaoparadaraofascis-moemgeraleaHitleremparticular:noprincpiodemaro,astropasalemsen-tramnaRennia,desmilitarizadadesdeofimdaPrimeiraGuerraMundial;trssema-nasmaistarde,nomesmoms,aseleiesparaoReichstag,cuidadosamen

    teprepara-das,do98,8%dosvotosaosnacionais--socialistas;em11deabril,emPortu-gal,ogovernodeSalazarcriaaMocidadePortuguesa,organizaoparaajuventude,segundoosmodelosfascistas;emmaio,>>

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    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    >>MussoliniproclamaoImperium;em17

    dejunho,HeinrichHimmlernomeadoche-

    fedaspolciasalems;em27dejunho,o

    ex-comunistaJacquesDoriotfundaoPar-

    tidoPopularFrancs,que,denominando-

    -seasimesmopartidodapaz,apoiaa

    Alemanhanazi;em4dejulho,aSociedade

    dasNaeslevantaassanesquehaviam

    sidoaplicadasItliaemconsequn-

    ciadainvasodaEtipia;em11dejulho

    conclui-seumacordodeamizadeentrea

    Alemanhaeaustria;em30desetembro,

    SalazarcriaaLegioPortuguesa,milcia

    paramilitarfascista;emoutubro,ocato-

    licismoaustracoimpe-secomoregimemo-

    nolticoeautoritrio;em24deoutubro,

    aAlemanhareconhecedejureoimprio

    italiano;em1denovembro,Mussoliniem-

    pregapelaprimeiravezaexpressoEixo

    Berlim-Roma.Faltampoucosdiasparaque

    ogovernodeFrancosejareconh

    ecidopela

    AlemanhaepelaItlia,apenasalgunsmais

    paraqueaAlemanhaeoJapoassinemo

    pactoanti-Komintern.ASegundaGuerra

    Mundialestcadavezmaisperto.

    umHitlertriunfantequenestafoto-

    grafiavemosdesfilarcomoseusquito.

    Levaasmoscruzadasalturadocintu-

    rodouniforme,posturasuaquevoltare-mosavermuitasvezesequenenhumdosqueoseguemseatreveaimitar.Ocen-rio,comasestranhaschaminsfumegando,poderiapertenceraumaperawagneria-na,poderiaser,porexemplo,aforjadeAlberichnoOurodoReno,masseAdolfoHitler,paradarmaiorsolenidadeco-

    memoraodo13.oaniversriodamarchasobreMunique,mandouquetocasseumaorquestra,amsicaspodertersidoaque,nofinaldamesmapera,acompa-nhaaentradadosdeus

    esnoValhala.Narealidade,todosesteshomenssecreemdeuses.Jnoandamconquistadopo-der,tm-no,usam-nosemlimites,omundosexisteparaosservir.Htrezeanos,quandodaquisaramparaforarosgene-raisbvarosoquevemosnafotografiaafbricadecervejaBrgerbru...,umsimplesdestacamentodepolciafoi

    capazdedesbarat-los.Hojesodonosdeumexrcito,sodonosdeumpovointeiroepreparamaguerra.PoderiaserumaperadeWagner,poderiasertambmumcenriodeBladeRunner,eosquemarchamumbandodecriminosos.Foramumbandodecriminosos.==========

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    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    5.Palestinaexiste!,Edi

    odeJavierOr-

    tiz,Madrid,Foca,2002=================Resultamuitomaisfci

    leducarospo-

    vosparaaguerradoqueparaapaz.Para

    educarnoespritoblicobastaapelar

    aosmaisbaixosinstintos.Educarparaa

    pazimplicaensinarareconhecerooutro,

    aescutarosseusargumentos,aentender

    assuaslimitaes,anegociarcomele,a

    chegaraacordos.Essadificuldadeexplica

    queospacifistasnuncacontemcomafora

    suficienteparaganhar...asguerras.====

    6.16demarode2004,M

    anifestaocontraa

    guerra,PortadoSol,Madrid==========

    Atagoraahumanidadefoisempreeducada

    paraaguerra,nuncaparaapaz.Constante-mentenosaturdemosou

    vidoscomaafirmao

    dequesequeremosapazamanhnoteremos

    maisremdioquefazeraguerrahoje..No

    somosingnuosaopontodeacreditarmosnuma

    pazeternaeuniversal,masseossereshu-

    manosforamcapazesdecriar,aolongoda

    Histria,belezasemaravilhasqueatodos

    nosdignificameengrandecem,entotempo

    dedeitarmosmaismaravilhosaeformosa

    detodasastarefas:aincessanteconstru-

    odapaz.Queessapaz,porm,sejaapaz

    dadignidadeedorespeitohumano,noapaz

    deumasubmissoedeumahumilhaoquantas

    vezesdisfaradassobamscaradeumafalsa

    amizadeprotectora.

    Jhoradequeasrazesdaforadeixem

    deprevalecersobreaforadarazo.J

    horadequeoespritopositivodahumanida-

    desededique,deumavez,asanarasinme-

    rasmisriasdomundo.Esssaasuavocao

    easuapromessa,noadepactuarcomsu-

    postosouautnticoseixosdomal...[...]

    ==========================================

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    >>Nohexageroemdizerqueaopiniop-

    blicamundialcontraaguerraseconverteu

    numapotnciacomaqualopodervaiterde

    contar.Enfrentamo-nosdeliberadamenteaos

    quequeremaguerra,dizemos-lhesNO,ese,

    aindaassim,persistiremnosuademencialac-

    oe desencadearemumavezmais

    oscavalos

    doapocalipse,entodesdeaquiosavisamosde

    queestamanifestaonoseraltima,de

    queestesprotestoscontinuarodurantetodo

    otempoqueaguerradurar,emesmomaisalm,

    porqueapartirdehojenosetratarsim-

    plesmentededizerNoguerra,massimde

    lutartodososdiaseemtodasasinstncias

    paraqueapazsejaumarealidade,paraquea

    pazdeixedesermanipuladacomoumelementodechantagememocional

    esentimentalcomque

    sepretendejustificarguerras.Sempaz,sem

    umapazautntica,justaerespeitosa,noha-

    verdireitoshumanos.Esemdireitoshumanos

    todoseles,umporumademocracianunca

    sermaisqueumsarcasmo,umaofensarazo,

    umadespudoradamentira.Ns,queaquiesta-

    mos,somosumapartedanovapotnciamundial.

    Assumimosasnossasresponsabilidades.Vamos

    lutarcomocrebroeocorao,comavonta-

    deeosonho.Sabemosqueossereshumanosso

    capazesdomelhoredopior.Eles(none-

    cessriodizeragoraosseusnomes)escolheram

    opior.Nsescolhemosomelhor.=============

    7.Marode2005==========================Sabemoscomosemobilizapa

    raaguer-ra.Criadoofocodeconflito,inicia-seoprocessomobilizadorcomapelospatri-ticos,manifestaes,hinos,discursos,sonsatroadores,imagensmultiplicadas.Aindaoprimeirotironofoidisparadoea guerrajsanta,jjusta,jne-cessria.Ultimamente,aartedemobili-zarparaaguerraaperfeioouosmtodos,potenciandoaautoridadecompulsivadosgovernoseainflunciadoscondicionantespessoaisecolectivos.Apersuasotemnamobilizaoblicaumaexpressoperfeita.Ohomemmaisfacilmentemobilizvelparaaguerraqueparaapaz.Ahumanidadetemsidolevadaaaceitaraguerracomonicomeioeficazderesoluo

    deconflitos,eosgovernossempreseser-viramdosperodosdepazparaprepararemaguerraseguinte.Masfoisempreemnomedeumapazfuturaqueasguerrasforamde-claradas,sempreparaqueamanhosfi-lhosvivampacificamentequehojese>>

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    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    >>sacrificamospais.Quemistohipocri-

    tamenteproclamasabeque

    oserhumano,

    apesardehistoricamenteeducadoparaa

    guerra,transportanoseuespritoumpe-

    reneanseiodepaz.Ohomemcompreendeque

    oquelheconferirhumanidadeplenano

    umdesenvolvimentocientficoetecnolgico

    orientadoparaaagresso,masapaz.Da

    queestasejausadacomomeiodechantagem

    moralporquemteminteressenaguerra:

    ningumousariaconfessarquefazaguerra

    pelaguerra,afirma-se,sim,quesefaza

    guerrapelapaz.=========================

    8.ElDiarioVasco,SanSebastin,3deOu-tubrode2006=======================

    ====

    Ahumanidadenuncafoieducadaparaapaz,massimparaaguerraeparaocon-

    flito.Ooutrosemprepotencialmenteoinimigo.Levamosmilharesemilharesdeanosnisto.=============================

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    J O S S A R A M A G O 9 M E D I T A E S S O B R E A G U E R R A

    dososdiaseemtodasaspartesdomundocontinuaaserpossvelpartiremhomensparaaguerra,continuaaserpossvelireladestru-losnassuasprpriascasas.Faleidecultura.Porventurasereimaisclarosefalarderevoluocultural,em-borasaibamosquesetratadeumaexpres-sodesgastada,muitasvezesperdidaemprojectosqueadesnaturaram,consumidaemcontradies,extraviadaemaventurasqueacabaramporservirinteressesquelheeramradicalmentecontrrios.Noentanto,essasagita

    esnemsempreforamvs.Abriram-seespaos,alargaram--sehorizontes,aindaquemepareaquejmaisdoquetempodecompreendereproclamarqueanicarevoluorealmen-tedignadetalnomeseriaarevoluodapaz,aquelaquetransformariaohomemtreinadoparaaguerraemhomemeducadoparaapazporquepelapazhaveriasidoeducado.Essa,sim,seriaagrandere-voluomental,eportantocultural,daHumanidade.Esseseria,finalmente,otofaladohomemnovo.======================

    9.inOCaderno2,7demaiode2009======

    =

    Culturalmente,maisfcilmobilizaros

    homensparaaguerraqueparaapaz.Ao

    longodahistria,aHumanidadesempre

    foilevadaaconsideraraguerracomoo

    meiomaiseficazderesoluodeconflitos,

    esempreosquegovernaramseserviram

    dosbrevesintervalosdepazparaapre-

    paraodasguerrasfuturas.Masfoisem-

    preemnomedapazquetodasasguerras

    foramdeclaradas.sempreparaqueama-

    nhvivampacificamenteosfilhosquehoje

    sosacrificadosospais...

    Istosediz,istoseescreve,istose

    fazacreditar,porsaber-sequeoho-

    mem,aindaquehistoricamenteeducado

    paraaguerra,transportanoseuespri-

    toumpermanenteanseiodepaz.Daque

    elasejausadamuitasvezescomomeiode

    chantagemmoralporaquelesquequerema

    guerra:ningumousariaconfessarquefaz

    aguerrapelaguerra,jura-se,sim,que

    sefazaguerrapelapaz.Porissoto-

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    cartazessobre aguerraSARA FIGUEIREDO

    COSTA

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    Estados Unidos, 1917

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    Estados Unidos, 1914-1918

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    Estados Unidos, 1917

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    Estados Unidos, 1918

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    Estados Unidos, 1917

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    Alemanha, 1919

    Bolshevism means the world will

    drown in blood. Association to Fight

    Against Bolshevism

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    Rssia, 1917

    War until victory

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    Alemanha, 1918

    Protect your

    homeland!

    Enlist in the

    Freikorps Hlsen

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    Inglaterra, 1915

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    Estados Unidos, 1918-1923

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    A S B SE N T R E V I S T A

    P o r R I C A R D O V I E Lf o t o g r a f i a B R U N O S I M O

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    jovem, como anunciada pelasegurana da Casa dos Bicos,usa um vestido claro, confort-

    vel, sem mangas e nos ps unsAllStarsque um dia foram brancos ehoje tm os cordes desamarra-dos. Os cabelos longos e levemen-te alourados esto soltos. No usa

    brinco nem colar, e os nicos apetrechos decorativos visveis soas vrias pulseiras no brao esquerdo. A cara e as unhas andamlimpas, sem qualquer pintura, o que torna a sua imagem ainda

    mais fresca e espontnea, como parecem ser os seus poemas. Sparecem, porque por trs dessa suposta naturalidade da sua es-crita h um carga incalculvel de leitura e um trabalho danadode construo, explica. Briguei com os poemas, zanguei-me comeles, conta Matilde Campilho, 31 anos, autora de Jquei, que foilanado em maio e j vai na segunda edio. O professor e crticoliterrio Gustavo Rubim classificou o livro como um aconteci-mento precioso em lngua portuguesa, apenas umas das vrias

    boas crticas que a poeta portuguesa recebeu nas ltimas semanaspor seu dbut literrio.No comeo deste ms e por mais de uma hora Campilho con-

    versou com aBlimundana sede da Fundao Jos Saramago. Ha-via advertido que quando fala com um brasileiro o seu portugusentra no modo carioca, j que desde 2010 vive entre o Rio de Janei-ro e Lisboa e isso est muito ntido em seu livro. Entre gern-

    dios, e caras, e alternando o voc e o tu, a revelao da poesiaportuguesa contou como se descobriu poeta, falou de sua estreialiterria e do otimismo que h em seus textos, entre outros assun-

    tos. Leia abaixo a entrevista:

    Como que a Matilde chega poesia?

    Fiz Literatura, depois fui a Florena estudar pintura, naquelaaltura em que andava procura da voz. Comecei pelo desenho,achei que era por a. Engraado que h pouco tempo andei a olharos meus cadernos de desenho, e aquilo tinha, claro, desenhos,colagem, mas tinha muitas palavras. E h um que diz assim, em

    ingls: remind me later of my poetry. Penso que naquela poca, queno foi assim h tanto tempo, foi h seis ou sete anos, eu no fa-zia ideia de que era poeta ou que escrevia, mas aquilo j estaval. Fiquei um ano fechada num atelier a desenhar, a desenhar, adesenhar. Fazia ilustraes para uma revista aqui de Portugal.Desenhava, desenhava, porque tudo treino, no ? H aquelapercentagem mnima de inspirao, mas tudo treino. E no ha-via escrita quase. Ela estava l, mas eu no olhava para ela. Mas

    depois, devagarinho... Foi um pouquinho antes do Rio, mas a coi-sa de ser mais sria foi no Rio, e eu percebi: isto, sempre foi isto.

    Mas ouvi voc dizer que sempre andava com um caderno, era assim?

    Sempre, desde sempre. Acho que todo o mundo anda semprecom um caderno, mas se calhar no. Eu lembro-me que antes,todo o mundo tinha uma coisinha, no digo que para escrever po-

    E N T R E V I S T A M A T I L D E C A M P I L H O

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    Endereo j ficava complicado. Chegava na profisso e eu pensa-va: caraas! T, agora fao produo. Agora sou jornalista. Agorasou no sei o qu. E demorou um tempo. Lembrou-me da primei-ra vez que disse que era poeta. Foi pra um cara que encontrei na

    estao de trem, que tinha andado comigo na segunda classe, nun-ca mais o tinha visto na vida. Ele falou: sou mdico e no sei o qu,e tu, que que fazes? E eu: sou poeta. Ele ficou meio assim, masaquilo saiu to natural. Porque s comecei a dizer isso quando es-tava no processo de terminar oJquei, mas eu j era poeta. O eixo

    j era aquele, o resto depois eu percebi. Houve um amigo que umavez disse: Matilde, so coisas diferentes emprego e trabalho. Paraalgumas pessoas h a sorte de ser o mesmo, mas para a maioria

    de ns uma coisa o emprego e outra coisa o teu trabalho. Essetrabalho foi o eixo constante dos ltimos anos, ento achei que era

    justo. O que que fazes? Sou poeta. No sei se a minha profisso, mais do que isso, menos do que isso? Preenche o eu sou.

    Acho que antigamente era tudo mais determinado. Quem podiaestudar virava mdico, engenheiro ou advogado, e pronto. Hoje em

    dia h tantas opes. E h profisses que nem tm nome ainda, e

    muita gente tem vrias atividades, no?H at bem pouco tempo era estranho essa coisa de que tu fa-

    zes? No sei bem. Onde tu moras? No sei bem. Ests em Lisboapra sempre? Ah, no sei. Acho que isso j no mais estranho.Cada vez mais h uma gerao assim. Comeou por serem alguns,agora uma gerao.

    emas, mas tinha um lugar onde anotar, nem que fosse uma agen-da. Agenda eu nunca tive, tinha um caderno. E eram notas distra-das, achei que estava a tirar notas, mas afinal eram notas sobre omundo, no eram notas amanh tenho que ir ao dentista.

    E o que fazia com isso?

    Eu ainda tenho um caixote enorme guardado. No olho paraelas [notas distradas], mas esto l, misturadas com os cadernosde desenho. Acho que o nico lugar onde eles se misturam, notinha pensado nisso. Mas esto l todos. E foi crescendo, devaga-rinho, e houve uma altura que eu percebi: por aqui. Afinal j es-tava l sempre. Aquelas coisas que esto sempre frente da tua

    cara, mas tu ests sempre indo para o lado, para trs...

    E hoje em dia j tranquilo dizer sou poeta?

    Agora tranquilo, mas foi difcil. Foi um parto. Porque isso, avida no uma coisa s, um conjunto de decises e de coisas queacontecem por acaso. E no fundo eu andava de pas em pas, por-que gostava de viajar, e como gostava de viajar tinha que ganhardinheiro, ento tinha vrios empregos. Na Espanha tive um, no

    Brasil tive mil. Fiz coisas que no tinham nada a ver com a escrita:produo, edio, etc. Mas no fundo tinha sempre um lado criativo,nunca fui mdica, nem advogada (risos). Fiz tudo o que estava aomeu alcance para ganhar dinheiro. Ento difcil chegar ao lugarde dizer sou escritora, sou poeta, sou pintora. Um advogado chegaao lugar de advogado to simples quanto acaba o curso. No meucaso tinha sempre aquela coisa de preencher fichas. Nome, okei.

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    blemas. Toda gente diz: que merda de cidade, trnsito, violncia,corrupo. Tem tudo isso. Mas o mundo no me cansa. E no uma coisa de criana, porque o mundo no cansa as crianas por-que elas no tm conscincia dele, como as pessoas que no nos

    cansam porque ns no temos conscincia delas e do retorno di-rio delas. Vou tendo um pouquinho de conscincia do mundo, jtenho 31 anos. J andei pelo mundo um pouquinho at porqueacho que ser sempre um pouquinho, o mundo grande demais.Mas acho que uma escolha, sabe? Problemas toda a gente tem.

    Esse assombro com o que acontece ao redor e essa espcie de

    otimismo esto presente no livro, no?

    As pessoas falam dessa coisa da alegria, do lado solar do li-vro. Bom, primeiro que o livro no sou eu. O livro uma alturada minha vida em que trabalhei e saiu isso, mas o livro uma par-te que dei de mim. E depois, ele no sempre alegre. Tem coisasmais tristes, como bvio, mas acho que uma escolha, porque omundo obviamente bom e mau, h dia em que a gente conseguever mais o bom, e outros mais o mau. Ah, de repente no mesmoms uma pessoa no tem dinheiro, o namorado acabou com ela,

    no tem trabalho, difcil ver que est bonita a vista da janela. Edepois tem um chato a dizer: no, mas linda. Srio, amanh, t

    bem? Ou daqui a um ms. Mas isso tambm no deixa de ser umaescolha, porque graficamente o mundo no ficou mais feio. minhavida que est mais fodida. uma escolha. Escolher o mais bonito ouo mais feio, sabendo que eles esto l os dois, eles esto sempre l, nomesmo lugar. Na paisagem ou nos seres humanos, e acho que mais

    Se calhar um dia vai ser ao contrrio, as pessoas vo dizer: j

    trabalhas h cinco anos no mesmo lugar? Moras h dez anos na

    mesma cidade? Que horror!

    Acho que j assim, n? At h pouco tempo ficar vinte anos

    no mesmo lugar era a carreira, hoje em dia voc apresenta o cur-rculo e perguntam: porque ficou dez anos no mesmo lugar? Tam-

    bm no pode exagerar, como meu currculo que tem duas pgi-nas. Porque ficou s dois meses aqui? Hum, porque sou meioinquieta. Agora sou muito menos, mas durante muitos anos eraisso. Ficava dois meses e ia embora, e era porque tinha uma nsiade ver coisas diferentes.

    Eu diria que na tua poesia est um pouco isso, essa coisa dacuriosidade, de olhar o mundo com espanto. Isso um exerccio

    tambm, no ?

    No sei se foi por exerccio, porque tenho essa coisa. Algunsamigos at ficam um pouco irritados e dizem: p, j t bom de seespantar, no? Mas que isto muda todos os dias, estas palmeiras[aponta para a janela] mudam todos os dias, eu tenho essa coisa.Tambm tem a ver com ter sado muito dos lugares, com ter sen-

    tido saudade de alguns lugares. Fiz esta escolha de, entre aspas,morar entre dois lugares. Andei em vrios, e de repente escolhi.A gente cresce um pouquinho. J chega de andar para trs e parafrente. E naturalmente escolhi duas cidades. Mas longe uma daoutra. Muito perto em vrias coisas, mas muito longe geografi-camente. Ento sempre que chego a Lisboa no consigo parar deme espantar. No Rio a mesma coisa. O que no deixa de ter pro-

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    Escolher o mais bonito ou

    o mais feio, sabendo queeles esto l os dois, eles

    esto sempre l, no mesmolugar. Na paisagem ou nosseres humanos, e acho que

    mais ou menos dissoque o livro trata.

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    literrio, v referncias. E h outra pessoa que chega de outra ma-neira, mas tambm chegou. Porque tentei que eu no fosse herm-tica, embora eu tenha muitos elementos fechados, a que no se con-segue chegar, eu agora sei disso. Tinha muito medo dessa coisa de

    ficar assim num lugar acima, num patamar, no me faz sentido. Vaide encontro com isso que falvamos da gerao em que vivemos.Foi a que consegui dizer sou poeta. No conseguia dizer que era po-eta enquanto eu prpria achava que aquilo estava ligado a um mito,a uma criatura maior. Sou s a Matilde que tambm bebe Coca-Colae tambm vai praia e d mergulhos.

    O rtulo poeta assusta, n?

    At poderia dizer escritora, mas na verdade eu s tenho escrito po-esia nos ltimos tempos. Escrevo, obviamente, alis at tenho fugidopara coisas mais compactas como estas. Mas isto um livro de poe-sia, no so crnicas, no um romance. Fiz paz com isso. Fiz paz comuma coisa de respeito para com as minhas influncias, mas ao mesmotempo um entra a, senta-te ao meu lado e toma um caf comigo.

    A tua poesia parece uma coisa muito espontneo, embora se

    intua que h ali por trs um cuidado, um trabalho de ourives...Tem trabalho danado, tem muito trabalho mesmo. De bri-ga com o poema, aquela coisa de ficar sentado [desenha na mesacomo os dedos], no aqui, esta palavra no. Obviamente h unsmais espontneos que outros. Acho que espontneo e imediatoso coisas diferentes, tem alguns poemas que so mais imediatos.Aconteceu naquele momento, transformei e fiz, mas no neces-

    ou menos disso que o livro trata. Acaba por ser quase tudo, a paisa-gem e os seres humanos, o mundo e o que est l dentro. E acho que,como as pessoas, o mundo tem, exatamente no mesmo lugar, bom e omau. Eu tenho coisas boas e ms a habitarem aqui ao mesmo tempo,

    o que deito pra fora, e como ajo, uma escolha diria.

    Quando se fala em poesia as pessoas at se assustam, tem aqui-

    lo de empostar a voz para dizer um poema. Esse respeito, esse ar

    solene, no afasta leitores?

    Principalmente num pas como este, com a tradio literria quetem, com os grandes poetas que teve e tem. O peso que isso traz,

    bom e mau, na escola e mesmo no dia a dia, enorme. Este senhor

    aqui [bate com a mo sobre o Livro do Desassossego, de FernandoPessoa] um dos maiores poetas de sempre. como para os in-gleses serem filhos de Shakespeare, complicado. Mas poesia eraaquela palavra que, em qualquer lugar do mundo, parece, para anossa gerao, uma coisa quase datada, e assustadora e pesada, portoda a tradio que traz. A poesia est muito ligada ao mito, sem-pre foi assim. DE rasgar com isso, ao mesmo tempo respeitando arazo pela qual o mito existe e as grandes figuras que fizeram dela

    mito, foi o mais complicado para mim. Fico muito contente quandopessoas que nunca leram poesia, que no esto habituadas, que nogostam, e que por verem no jornal ou outro motivo, lem o Jqueieescrevem-me. Noutro dia eu pensei: ser que tenho que achar issomau por serem pessoas que no leem? Mas depois tem o outro lado,de pessoas habituadas a ler poesia e que elogiam. E engraado queso vises diferentes, e eu gosto disso. Uma pessoa v aqui um jogo

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    As pessoas que se insultam e quase se agridem por conta da ln-

    gua, que brigam por causa do Acordo Ortogrfico, como acha que

    recebem um livro como este?

    No sei, mas este livro por exemplo no segue o Acordo Or-

    togrfico, ele segue outro. As pessoas normalmente no brigamcontra algo que vai alm ou aqum, ela dizem: o Acordo Ortogr-fico no! Depois h uma percentagem mnima que diz: o AcordoOrtogrfico sim! Nunca fizeram essa pergunta para mim, porqueno meu caso no tem sim ou no, h um oceano no meio e no seiquantas coisas misturadas, e linhas paralelas e perpendicularesque so o mundo. Se houver um prximo livro no sei se ser comou sem o Acordo, se ser todo em portugus de Portugal ou do

    Brasil, mas, nessa poca, nos anos em que ele foi escrito, era isto.

    Como chega teu livro Tinta da China? Voc prepara para essa

    editora?

    Comecei a faz-lo no Brasil, o trabalho todo foi feito l. E de-pois, quando comecei a pensar que talvez aquilo estivesse a ficar aser um livro, quando comecei a fazer um garimpo, um amigo maisvelho disse: agora a hora, bora fazer. Ento fiz o livro. Tinhapedido demisso de mais um emprego, estava com tempo parafazer, e disse: agora. Sentei-me e fiz uma coisa nova, mexi emtudo o que estava feito. E depois aquilo andava, no andava, fiqueipra um ano. Mas um dia disse pronto. Eu tinha o Jquei verso 1,verso 2 at 7. Pronto, agora chega, seno isso infinito. Isto no um romance. J estava noutro lugar, minha escrita j est emoutro lugar. Muitas destas coisas olho com ternura, porque mais

    sariamente espontneo porque tem um trabalho por trs. No foiexatamente escrito no colo, como tem muita gente que diz que tema impresso de ter sido feito. No, eu briguei com ele, zanguei-mecom ele. Lembro da primeira vez que vi o Jquei, que o peguei na

    mo, na editora, e pensei: caramba, foste um filho da me. Fosteincrvel, fizeste-me companhia para no sei quantos lugares, masagora paz. como quando voc encontra um ex-amante. Encon-tram-se, bom, mas agora vai.

    O teu livro tem uma espcie de insolncia, no bom sentido. Mis-

    tura portugus do Brasil e de Portugal, e ora entra o ingls, ora o

    castelhano, e h palavras pouco comuns nas poesias clssicas.

    um desafio aos puristas?A lngua livre. A questo no entender-nos? No quero

    agredir ningum, esta a minha experincia, eu vivi entre vrioslugares, recebi influncias de vrios lugares. H dois poemas nolivro que so inteiramente em ingls, e houve uma questo duran-te o processo de edio de, se calhar, no pr esses poemas. Penseique, em princpio, em Portugal a maioria das pessoas, principal-mente leitores de poesia, entendem ingls. E tambm se no enten-

    der h muitas coisas aqui que esto na forma, no ritmo. No quer opoema em ingls? Fica s com a mancha, mas aquela mancha eraprecisa naquele lugar. Se eles esto em ingls porque foram es-critos em ingls. No quis ofender ningum e sabendo que muitasvezes acontece isso de brigas por lngua. Caramba, j h tantas

    brigas no mundo! A lngua suposto ser uma coisa de unio, deentendimento.

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    No o conheo, mas conheo seu trabalho. que uma crtica aolivro, quase no fala de mim, at porque no me conhece e noteve uma entrevista. Isso um sossego. A poesia uma coisa mui-to ntima. A pessoa est sozinha. A leitura uma coisa que se faz

    sozinha. E chega s pessoas de uma forma muito ntima. E hojeem dia com Facebook, as pessoas escrevem para dizer o quantofoi importante o livro para elas. como se abrisse um canal dire-to. giro por um lado, mas por outro lado corta um bocadinho odistanciamento entre autor e obra, mas esse distanciamento exis-te. Eu no sou o Jquei. Ele fruto das minhas experincias, semdvida, mas eu tambm sou outra coisa. E muitas vezes nas entre-vistas h aquela coisa de tentar perceber como que o Jqueiapa-

    rece, porque vem do Brasil, porque vem de no sei o qu, e o queo Gustavo Rubim fez foi uma crtica poesia. Gostei disso, e issosossegou-me, porque isso foi o trabalho de uma vida at agora.

    Pensava que tua poesia chegaria mais aos jovens, e de repente ler

    o que o Rubim escreveu d a sensao que pode chegar a toda gente.

    Tenho 31 anos, no tenho 18, trabalhei muito para chegar aqui,e se chegasse s a uma gerao se calhar ia ficar meio: ah, no era

    bem isso que eu queria dizer. Uma das coisas que me est a sur-preender, por enquanto, ele ser transversal.

    E no vai sair no Brasil?

    No tenho editora no Brasil, mas espero que sim. Ele foi feito noBrasil, acho que ele ia gostar. Meus amigos iam gostar, porque per-guntam muito: e no Brasil, quando sai? No tem ainda, vamos ver.

    novo, eu era mais nova, a aprendizagem era outra. E ele ficou lno computador, porque pensei: preciso fechar isto, se a coisa comeditoras est estranha, tudo bem, para mim acabou. Teve uma al-tura que at me zanguei com ele, e lhe disse: acho que tu nem se-

    quer mereces estar no mundo, ainda ests muito jovem para ficarvelho. E comecei a fazer outra coisa, e uns dias depois recebi ume-mail da Tinta da China a dizer: falaram-nos do teu trabalho, des-cobrimos algumas coisas tuas na internet e gostaramos de saberse tens mais. Lembro-me de ver o e-mail e ter ali no computador oficheiro Jquei, verso final. Tenho isto, e mandei.

    Mandou o livro todo?

    Ele estava ali, estava feito, acabado. E eu j estava farta dele. Que-ria v-lo pelas costas. Escreveram-me no dia a seguir. E depois sen-tei-me com o Pedro [Mexia, editor] para ver algumas coisas, porque olivro tinha realmente sido feito no Brasil e para o Brasil, ento houvealgumas coisas que tive que mudar. Estava muito mais brasileiro doque est. Em termos de acentuao e algumas palavras. Algumas pa-lavras eu briguei at o fim: metr metr, pebolim pebolim. Houvecoisas que eu no abri mo, outras tudo bem mudar, tiramos uma

    coisa ou outra. Ouvi-o, era uma opinio nova, o Pedro Mexia por-tugus, eu tinha sido educada no Brasil, ento tambm era bomouvir uma pessoa daqui, e em poucos meses apareceu isto.

    E como recebeu a crtica to positiva do Gustavo Rubim no Pblico?

    Aquilo s pode dar um orgulho danado. Recebi aquilo com todoo respeito, o Gustavo Rubim um homem que eu respeito muito.

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    reedio de As Praias de Portugal- Guia do banhista e do viajante, deRamalho Ortigo (Quetzal), chega

    s livrarias em poca balnear, ofe-recendo ao leitor um retrato data-do mas no menos interessantepor isso e mordaz dos ambien-tes de praia no Portugal do sculo

    XIX. Originalmente publicado em 1876, este pequeno livro, agoraeditado em formato quase de bolso, est escrito com a linguageminformativa de um guia, onde no falta o didatismo e o sentido de

    misso na transmisso de informaes consideradas importan-tes,As Praias de Portugaloferece igualmente o melhor da prosa deRamalho Ortigo. Conhecedor das praias de que fala, sobretudoas do Norte do pas, to ligadas s frias da sua infncia, o autorcomenta ambientes e personagens com tanto entusiasmo peran-te as vidas dos outros como sarcasmo relativamente s pequenasmanias que as pessoas teimam em manter durante as frias.

    Ramalho Ortigo acutilante no modo como observa pessoase cenas e nunca se afasta de uma forte noo de classes e respeti-va estratificao na anlise que faz sobre os gestos, as escolhas eas posturas. Sem condescender perante os mais desfavorecidos,conta alguns episdios caricatos que tanto podem ser o do homemque aluga burros em Matosinhos e que vai batendo em toda a gen-te, clientes includos, caso o aparelhar do animal no corra bem,como o dos senhores da Granja, que fora de tanto quererem im-

    pressionar os outros transformam as frias de quem quer sossegonum autntico pesadelo social onde nunca faltam as reunies, oschs, os jogos ou os bailes. A descrio dos pescadores da Pvoa

    de Varzim exemplifica a profunda admirao do autor, nascido noseio da burguesia portuense e nunca habituado s dificuldadesdiariamente sentidas por quem sobrevive a duras penas custado seu trabalho, pelos que resistem s intempries naturais e sdiferentes autoridades que sempre se dispem a decidir o rumoda vida dos mais pobres: [...] a Pvoa no d um nico homempara o recrutamento martimo, o que prova que quando trs mil equinhentos homens reunidos no querem uma coisa impossvel

    obrig-los quilo que eles no querem. (P. 88)Um dos aspetos que se destaca em muitas passagens deste guia a condescendncia de Ramalho Ortigo relativamente s mulheres,um tom que soa desfasado, e at incmodo, no sculo XXI, mas queao mesmo tempo revela, por parte do autor, uma viso mais arejadada questo do gnero relativamente quela que seria a atitude domi-nante no Portugal do sculo XIX. O paternalismo no deixa de estarl, bem como as referncias fraqueza feminina, aos achaques, aolugar junto da famlia, mas percebe-se que Ramalho Ortigo notinha das mulheres a mesma opinio que a maioria dos seus com-panheiros de pluma nos vrios momentos em que salienta as suasiguais capacidades para se interessarem pelo mundo, aprenderem,exercitarem-se. Dizem, leitora, que so curiosas as pessoas do teusexo. Gloria-te desse belo defeito. A curiosidade a primeira dasgrandes foras do esprito humano. (P .27.) Lido hoje, o texto pro-

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    cheias de veraneantes como de moscas: As moscas cobrem os mu-ros, as ombreiras das portas, as vitrinas e os mostradores das lojas,numa imobilidade, num gozo, num xtase que impressiona parti-

    cularmente os forasteiros. As superfcies que as moscas deixam de-volutas so ocupadas pela gente. Quando um viajante chega, com asua mala ergue-se no ar uma nuvem negra que cintila e que zumbe:so as moscas que se deslocam e procuram apertar-se um poucomais para dar lugar ao adventcio. Outras vezes a gente que encur-ta o passo, que se condensa, que se enovela: nestes casos uma novamosca que chega e solicita o seu lugar na rua. (Pp. 73-74.)

    o sul, muito menos representadopor descries de praias e zonasbalneares, dedica-se, no entanto,uma prosa desencantada, comPedrouos, Belm e a linha deCascais a merecerem um des-prezo cuja jocosidade acentua-da por uma certa melancolia da

    inutilidade, mesmo que no se ignorem os elogios, que tambm osh. Curiosamente, a recomendao de um passeio vila e serrade Sintra apresentada como uma das poucas coisas boas, teis,higinicas, moralizadoras, que um lisboeta pode permitir-se oluxo de gozar pelo preo de uma das suas libras (p. 126). Coim-

    bra, onde o autor estudou e cujos debates acadmicos e polticosda poca desembocaram na contenda que tem o nome da cidade, a

    voca aquela reao salutar de quem teve a sorte de nascer uns bonsanos depois de certas ideias terem sido, finalmente, desfeitas (pelomenos para a maioria das cabeas, j que o arejamento cerebral pa-

    rece no ter sido igualmente distribudo pela condio humana),deixando o leitor a questionar-se sobre como era possvel algum,ainda por cima lido e informado, acreditar realmente que as mu-lheres so fracas por natureza, ou que tm como misso na vida terfilhos e cri-los. Apesar disso, tambm notrio que se RamalhoOrtigo no duvidava da fraqueza do gnero e de outras pseudo--verdades aceites poca, tambm no acreditava que as mulherestivessem alguma incapacidade mental, ou que devessem reger a sua

    rotina pelas tarefas domsticas. Se tal viso, hoje, to pequena efrvola como a dos que sempre viram no gnero feminino um qual-quer rebaixamento da espcie, na poca em que o autor assinou efez publicar os seus textos talvez tenha sido um contributo, aindaque curto, para uma evoluo de mentalidades que em muitos espa-os continua por concretizar-se.

    Deixando de lado a questo feminina, talvez o aspeto maistransversal deste As Praias de Portugalseja a preferncia do autorpelas terras do Norte. Nascido no Porto, Ramalho Ortigo nuncaabandona a sua costela nortenha, espalhando-a pela prosa sem re-ceios de afirmar o seu bairrismo. No que os textos deste guiaignorem os defeitos das vilas balneares do Norte. Pelo contrrio,o autor nunca parco em crticas, e quase sempre as explana demodo mordaz, aproveitando para uma ou outra ferroada humors-tica, como quando descreve a sobrelotao das ruas poveiras, to

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    Questo Coimbr, por onde o autor passou com as suas estocadas,tambm no poupada e a propsito das praias da Figueira daFoz, o desvio descreve-se neste tom: Tal sobre o aspeto de uma

    populao inteira o efeito de um dogmatismo exagerado e pedan-tesco, da confuso do ensino e da educao literria baseada nahipocrisia antiga e na indisciplina moderna! (P. 157)

    portanto, no Norte que Ramalho Ortigo en-contra as suas memrias mais doces, as que ofazem descrever praias, vilas e cidades com amacieza que falta sua prosa, pelo que melhor

    ser esquecer regionalismos e apreciar os tex-tos pelo que eles so e oferecem. Pena teremficado de fora as ilustraes de Emlio Pimen-tel, parte integrante da edio original, porque

    sem elas perde-se alguma coisa deste guia enquanto objeto editorialmarcadamente de uma poca. Ficaram, felizmente, todos os captulosque integram o texto e que, para alm das praias e das zonas balnea-res, incluem conselhos higinicos e mdicos, muitos deles baseadosem manuais e compndios medicinais da altura, informaes sobreos benefcios das guas e dos ares martimos e algumas noes de so-corrismo para se utilizarem em situaes de afogamento que bem po-diam ser conhecidas por todos os que, nos dias de hoje, frequentamas praias portuguesas. Se h livro que justifica a ideia (incompreens-vel) de que h leituras adequadas para as frias de vero, para quemas tm, e para a praia, este capaz de ser um dos poucos.

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    sete anos os livros e uma ideiamudaram a vida de Martn MurilloGmez. Nascido em Quibd, na cos-

    ta do Pacfico colombiano, havia semudado para Cartagena de ndias,uma cidade maior e turisticamenteatrativa, com o intuito de melhorarde vida. Vendia gua e fruta nas

    ruas, lavava carros, fazia alguns trabalhos temporrios e, nas ho-ras vagas, lia como sempre fizera, desde pequeno. At que umdia conseguiu aproximar-se de um empresrio e contar-lhe o pro-

    jeto que fazia anos lhe rondava a cabea: promover a leitura emparques e praas de Cartagena. Convenceu o mecenas a ajud-lo,mandou fazer uma carreta, encheu-a com os seus livros, e num diade maio de 2007 empurrou-a at ao Parque Bolvar, estacionou-anuma sombra, e comeou com o seu sonho. Desde esse dia, a vidade Martn Murillo gira em torno da leitura. Empresta livros, co-nhece pessoas e conta-lhes histrias. O objetivo da Carreta Lite-rria vai muito alm do emprstimo de livros, promover o hbitoda leitura por prazer. Fazer com que crianas, jovens e adultos seapaixonem pela leitura, descubram os benefcios que o ato de lerproporciona. Representa um grande desafio para mim, a missoque decidi assumir, resume o colombiano de 46 anos.

    A Carreta Literria estreou com 120 ttulos a grande maioriaeram da biblioteca pessoal de Murillo e hoje j tem perto de 9000ttulos, que disputam espao com a cama e os poucos mveis do

    apertado quarto de hotel onde Murillo vive. Diariamente carregano seu veculo cerca de 300 livros e percorre a cidade amuralhadaem busca de gente disposta a ler. Exceto os livros com dedicat-

    rias, todos os demais podem ser emprestados. A grande maioriados seus clientes (que no pagam nem um cntimo pelo emprs-timo) devolve os livros, ainda que alguns demorem meses (ou atanos) a faz-lo.

    O primeiro livro que comprei para esse projeto foi O Velho e oMar, do Ernest Hemingway. E o primeiro livro que me ofereceramfoi O Homem Duplicado, de Jos Saramago. Foi um casal espanholque estava de visita a Cartagena, recorda. Um tempo depois, Sa-

    ramago visitou a cidade colombiana e conheceu o promotor de lei-turas. Tentei encontr-lo no hotel, mas ele no estava. Um poucodepois vi-o na rua. Fiquei impressionado com sua cordialidade,foi muito amvel. Era um homem comprometido com as boas his-trias, diz Murillo.

    Graas aos patrocinadores que estampam as suas marcas nocarrinho, o promotor de leitura pode dedicar-se integralmente aoprojeto. Tem uma sala na FNPI (Fundao Gabriel Garca Mr-quez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano), e recebe ajudada entidade em vrios sentidos. De Yamile Echamorro, que quem serve o caf, at Jaime Abello, que o diretor da fundao,todos me apoiam e nunca terei como pagar-lhes pelo que fazempor mim.

    Com o tempo, a biblioteca ambulante de Martn foi crescendode tamanho, fruto de doaes, e de importncia, graas a seu tra-

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    o mundo com novos olhos, viver e sentir a vida a partir de umatica globalizada, permitiram-me aprender, conhecer e entendermelhor as pessoas. Alm disso, permitiu-me desenvolver um pro-

    jeto de vida no qual coloco o meu grozinho de areia para fazer domundo um lugar melhor.

    abriel Garca Mrquez, Mrio VargasLlosa, Jos Saramago e Hctor AbadFaciolince so alguns dos escritoresque conheceram a Carreta Literria edeixaram um livro dedicado a Martn.

    Esse projeto tambm me possibilitouconhecer lugares e pessoas que jamaispensei vir a conhecer um dia. Sou grato

    aos livros e no posso imaginar como seria minha vida sem eles.Passados mais de sete anos daquele dia de maio de 2007, quan-

    do pela primeira vez a carreta saiu rua, Martn Murillo continuaencantado com a possibilidade de repartir livros e cada vez sonhamais alto. O meu sonho que a carreta e o clube de leitura seconsolidem num grande projeto de promoo de leitura, tenhamum espao fsico prprio que seja no apenas um centro de leitu-ra mas onde se possam organizar diferentes eventos que promo-vam a leitura, as diferentes manifestaes e expresses artsticas.Continuarei contando histrias e promovendo leituras at quandoDeus me permita.

    balho dirio. O emprestador de livros, como no se importa de serchamado, passou a frequentar escolas, universidades e encontrosliterrios para falar sobre a leitura. Tambm comeou a reunir

    pequenos leitores para contar histrias, que so improvisadas nahora. Leva consigo um livro com centenas de pginas em brancoe que tem como ttulo O livro das mil histrias. De l tira as ideiaspara os seus contos. Cada pessoa tem no uma, mas milhares dehistrias. E promovendo leitura conheces muita gente, livros e lu-gares, vives experincias gratificantes, outras nem tanto, e tudoisso permite acumular tantas histria que difcil no as contar.

    Martn Murillo j percorreu quase todo a Colmbia com o seu

    carrinho de duas rodas apinhado de livros. No ano passado esteveem Madrid, na Feira do Livro, a convite da organizao. Tambmj viajou at Buenos Aires, Guadalajara e Caracas para falar deleitura e mostrar sua carreta. Estou sempre em busca de um p-

    blico a conquistar. Tenho um cronograma de visitas previamen-te agendadas com diferentes instituies, especialmente do setoreducativo, mas mesmo assim sempre h tempo para percorrer oslugares histricos de Cartagena e tambm para ir a feiras e outroseventos relacionados a leitura, quando me convidam.

    J foi chamado de Quijote do Pacfico por andar pelo mundoem busca de leitores. Talvez outra boa alcunha fosse jardineiro, jque esse homem seco, negro e de sorriso fcil o que faz plantarsementes, regar mudas e conversar com as plantas, para que elasse tornem rvores frondosas e leitoras. Faz isso tudo por gratidoaos livros: Os livros permitiram-me crescer como pessoa, ver

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    Lies que aprendi escre-vendo o livro Cinquen-

    ta Intelectuales Para UnaConciencia CrticaJuan Jos Tamayo-Acosta

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    para mim um verdadeiro privilgio apresen-tar este livro na Fundao Jos Saramago emLisboa, porque como continuar a minha re-

    lao de amizade e as minhas conversas como Prmio Nobel da Literatura, que iniciei em6 de janeiro de 2006, num Congresso sobreInterculturalidade em Sevilha, onde nos co-nhecemos pessoalmente e que culminariam

    num dilogo aberto sobre O fator Deus efetuado em julho de2010 na biblioteca da sua casa de Tas (Lanzarote) por iniciativae sob a moderao de Pilar del Ro. Acabou por no acontecer de-

    vido ao seu inesperado falecimento. Mas a relao no se inter-rompeu. Continuou durante estes quatro anos de ausncia de Josatravs da minha amizade com Pilar, da leitura dos seus livros,dos estudos sobre a sua obra e das antologias dos seus textos, umadelas intituladaJos Saramago nas Suas Palavras, edio e seleode Fernando Gmez Aguilera, que faz referncia a oito palavrascentrais na vida e obra de Saramago: Cidadania, Romance,Democracia, tica, Ironia, Escritor, Literatura, Mu-lher, e constitui sem dvida o melhor guia para compreender

    Jos Saramago. o meu livro de cabeceira. Muito obrigado, Pilar,por ter organizado este ato to amoroso em torno de Jos e sob asua orientao literria e ideolgica.

    Conto aqui com uma excelente e muito grata companhia: FreiBento, Boaventura de Sousa Santos e Leonor Xavier, aos quaisagradeo a sua generosa e sincera apresentao. Frei Bento re-

    presenta para mim o vnculo com o cristianismo libertador emPortugal e um dos melhores exemplos do pensamento teolgicocrtico deste pas. As suas crnicas semanais no Pblico refletem

    a riqueza e criatividade do cristianismo evanglico de base em sin-tonia com os movimentos sociais e so a melhor expresso de que possvel Outra Igreja e que Outro cristianismo est em marcha.A sua casa foi muitas vezes a minha residncia nas minhas visitasa Lisboa.

    Boaventura de Sousa Santos amigo, colega e professor. Des-cobri-o ao ler o seu livroA Crtica da Razo Indolente: contra o Des-perdcio da Experincia, onde define os parmetros da mudana de

    paradigma na sua dupla vertente: epistemolgica e social; e em trscampos: a cincia, o direito e o poder, os trs objetos da sua crtica.Conheci-o pessoalmente em 2005, no V Frum Social Mundial dePorto Alegre (Brasil), onde ouvi a sua conferncia sobre Socio-logia das ausncias e das emergncias, que me causou impactopelo rigor e pelo sentido crtico da sua anlise, pelo brilhantismoda sua exposio e pela lucidez das suas propostas. Esse momentode conhecimento foi tambm o do nosso reconhecimento mtuo,que continua vivo e ativo at hoje, como demonstra a sua partici-pao neste ato. Partilhamos um projeto comum, que ele prprioconcebeu e dirige: a epistemologia do Sul; e que desenvolvemos apartir de diferentes disciplinas: ele, a partir das cincias sociais ede uma nova teoria crtica da sociedade; eu, das teologias da liber-tao e de uma teoria crtico-feminista das religies.

    Leonor Xavier, jornalista e escritora, teve a generosidade de ler

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    com a distncia cronolgica e as diferenas culturais e disciplina-res, tenho pontos de sintonia: a heterodoxia do seu pensamentoe a ortoprxis da sua vida, o sentido crtico e no apologtico, a

    perspetiva laica, o horizonte utpico, o confronto com o poder.Este um livro polifnico que no procura a uniformidade,nem fazer um retrato rob da figura do intelectual do sculo XX.Antes pelo contrrio: se alguma coisa o caracteriza a pluralida-de de tendncias ideolgicas, de estilos de vida, de disciplinas, demetodologias, de pertenas religiosas: pessoas religiosas sem vn-culo confessional, judias, crists, muulmanas, no crentes (ates-mo, agnosticismo).

    A minha dupla funo neste livro a de interlocutor e de intr-prete. O dilogo uma das chaves fundamentais da hermenutica. a porta que nos introduz na compreenso das pessoas, dos acon-tecimentos e dos textos de outras tradies culturais e de outraspocas. O que a hermenutica seno o dilogo do leitor com asreferidas pessoas, textos e acontecimentos procura de significado,de sentido? Graas hermenutica podemos superar a distncia, svezes abissal, de todo o tipo: cronolgica, cultural, antropolgica,entre os autores e protagonistas de ontem e os leitores de hoje.

    O ser humano vive e age, pensa e delibera, compreende e acre-dita, julga e experimenta, cria e raciocina sob o signo da interpre-tao. Concordo com David Tracy quando diz que ser humano agir reflexivamente, decidir deliberadamente, compreender inte-ligentemente, experimentar plenamente. Saibamo-lo ou no, o serhumano um hbil intrprete.

    o perfil intelectual que dedico a Jos Saramago emCincuenta inte-lectuales para una conciencia crtica (Fragmenta, Barcelona, 2013).Recordo de modo muito especial a leitura do seu livro Portugal,

    Tempo de Paixo, sobre o processo revolucionrio de 1975. Hoje,continua a ser um livro de consulta e informao sobre a Revolu-o dos Cravos.

    omearei por dizer que Cincuenta intelec-tuales para una conciencia crticano umlivro de biografias que se limite a seguire narrar assepticamente o itinerrio vital

    das personalidades escolhidas. Cada umadelas tem excelentes bigrafos e bigra-fas que contaram a sua vida melhor doque eu seria capaz de fazer, que no culti-

    vo o gnero biogrfico. Tambm no a exposio neutra das suasideias e do seu sistema de pensamento, que se limite a resumir assuas principais contribuies. Teria sido um trabalho estril, des-necessrio e repetitivo, porque cada um deles conta com uma sn-tese da sua doutrina em dicionrios, ensaios e livros de texto.

    O livro um dilogo intelectual mltiplo que mantenho comcinquenta personalidades dos diferentes campos do saber e dasatividades humanas: filosofia, cincia, cincias sociais e polticas,cincias da comunicao, psicologia, teologia, histria das religi-es, literatura, etc.; umas, conheo-as ou conheci pessoalmente;outras, estudei-as ou continuo a estud-las. Com todas, mesmo

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    um livro carregado de subjetividade a partir da prpriaseleo dos autores e autoras estudados. Uma escolha quefiz em funo das influncias que exerceram na minha vida e

    no meu pensamento, e que forjaram o meu carter e modula-ram a minha forma de ser. No sei falar de outras pessoas semfalar de mim, como no sei falar de mim sem falar dos outros,das outras, convencido como estou da verdade da afirmao deDesmond Tutu: Eu sou apenas se tu tambm fores.

    o acabar de escrever o livro,aps dois longos anos de reda-

    o, veio-me memria a afir-mao de uma das pessoas maissbias da humanidade, a qual,num arranque de humildade eno de humilhao disse: Ssei que nada sei. Se ele s sabia

    que nada sabia, os leitores deste livro j podem imaginar o pou-co que sabe quem o escreveu. Mas no, tenho de me corrigir. Doscinquenta intelectuais que estudo neste livro, homens e mulheres,aprendi muitas lies que resumo no seguinte dodeclogo.

    1.Razo, utopia e esperana. A utopia parte integrante da ra-zo, se esta no quiser cair na indolncia, na instrumentalizaoou na razo de Estado. A razo um elemento constitutivo da uto-pia, se esta no quiser vaguear sem rumo para lado nenhum. A

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    S i m o n e d e B e a u v o i r

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    distinguir-se diferentes etapas. Para o que no h lugar para a in-coerncia, para a falsidade, para o cinismo, para a improvisao, afalta de honestidade com a realidade, a indiferena, a neutralidade.

    O resultado da harmonia entre teoria e prtica uma existncia au-tntica. a melhor lio aprendida, que no fcil de seguir!

    3.A metafsica sofre uma profunda transformao ao passar decontemplao das essncias puras das coisas para afilosofia da re-belio. O melhor exemplo da referida inverso Albert Camus, quetransmuta o princpio intelectualista e individualista cartesianopenso, logo existo no revolucionrio e coletivo rebelo-me, logo

    existimos. A rebelio o novo princpio da existncia e do pensarhumanos. O homem rebelde o que diz no. No me consta, diziaCamus, de algum que tenha dado a sua vida por defender o argu-mento ontolgico de Anselmo de Canturia. Nos seus textos, po-rm, aparecem muitas pessoas dispostas a entregar a sua vida paramelhorar as condies de existncia dos seus congneres.

    4.Poesia, mstica e revoluotransitaram com frequncia porcaminhos diferentes e at opostos, sem chegarem a encontrar-se.A poesia foi entendida como expresso de sentimentos intimistasalheios s preocupaes da vida quotidiana. A mstica viveu-semuitas vezes como evaso da realidade, desprezo pelo mundo, re-nncia aos prazeres da vida e fuga da histria.

    razo liberta do ilusrio e guia a ao. A utopia marca a meta. Aesperana no um simples estado de esprito das pessoas oti-mistas. uma determinao da realidade objetiva, um princpio

    inscrito na prpria matria e nas zonas mais profundas do ser hu-mano, que pode muito bem ser definido como animal utpico eser-em-esperana. afeto, o principal afeto que impulsiona o serhumano para o futuro, ao mesmo tempo que virtude do caminho,do otimismo militante. Bloch exprime isso de forma bela e certei-ra com dois aforismos: S quando a razo comea a falar, quecomea a florescer a esperana em que no h falsidade, a ra-zo no pode florescer sem esperana. A esperana no pode falar

    sem razo. necessrio pensar a realidade utopicamente, viverutopicamente, agir utopicamente, continuar a escrever histriasutpicas que transcendam a realidade, elaborar teorias utpicasque neguem os factos, porque se a teoria no estiver de acordocom os factos, pior para os factos (Bloch).

    2. Nos intelectuais escolhidos neste livro convergem biografiae bibliografia; pensamento e vida caminham em unssono; teoria eprtica complementam-se, vigiam-se, enriquecem-se e corrigem-semutuamente. A sua vida nada tem de convencional, de artificial, deaparncia, de mera exterioridade. Tudo neles est em harmonia,inclusivamente as dissonncias e contradies, muitas vezes assu-midas conscientemente para no dar a imagem de uma vida line-ar, sem sobressaltos, previsvel. Na vida dos intelectuais h lugarpara a mudana, a evoluo, a surpresa, o imprevisvel, e podem

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    dologia e desta atitude inter, mas h um que brilha com luz prpriae se destaca acima dos outros: Raimon Panikkar, paradigma de di-logo, dialogal e duologalna suapes, sem ter deixado de sersoa, na

    sua vida e no seu pensamento. Este o seu testemunho: Parti (daEuropa ndia) cristo, descobri-me a mim mesmo hindu e volteibudista sem ter deixado de ser cristo. Mais tarde introduziriaoutra herana na sua vida: a secular. esse o caminho que seguePaul Knitter, o telogo das religies, para quem a identidade reli-giosa hbrida, plural e promscua, tanto na sua doutrina comona sua prtica. Assim o mostra e demonstra no seu livro WithoutBuddha I Could Not Be a Christian.

    6.Cincia e religioso duas das foras mais influentes na his-tria da humanidade. A relao entre ambas foi, e continua a ser,conflituosa, a maior parte das vezes pela atitude intolerante e dog-mtica da religio, embora tambm a cincia se tenha mostradopor vezes arrogante por querer impor a sua metodologia a outroscampos do saber e silenciar a voz das religies. Hoje est a dar-seuma mudana importante: do antema ao dilogo, da condenao colaborao, da intolerncia e da imposio dogmtica ao respei-to pelos diferentes campos e metodologias. Isto influenciar semdvida a resposta para os problemas da humanidade. Exemplo dareferida mudana de atitude Federico Mayor Zaragoza, cientista,crente, ativista pela paz e cidado do mundo.

    revoluo foi vinculada violn-cia. Com estas imagens acabavapor ser normal a incompatibili-

    dade. Pere Casaldliga e ErnestoCardenal, porm, desmentem es-sas imagens, desmontam a supos-ta incompatibilidade entre poesia,mstica e revoluo, e conseguem

    o encontro fecundo entre elas dentro de uma unidade diferencia-da. Demonstram dessa maneira ser contemplativos na libertaoe poetas de outro mundo possvel. A esttica leva-os tica e a

    tica luta pela transformao. A sua poesia palavra-em-ao,palavra-em-esperana, palavra-para-o-caminho. A experinciamstica desestabilizadora da ordem estabelecida e subversivapara o poder. Casaldliga foi-o para a ditadura brasileira e para osfazendeiros, e Ernesto Cardenal exerceu as mesmas funes paracom a ditadura somozista e para com o Vaticano.

    5.Os intelectuais no so dogmticos nem fundamentalistas. Doprioridade ao smbolo, que d que pensar (Ricur), e rejeitam odogma, que fecha toda a possibilidade de pensar e impe o pensa-mento nico. Reconhecem o pluralismo cosmovisional, cultural,tnico, tico e religioso como uma riqueza do humano e um valor apotenciar, a diversidade como um direito, a interculturalidade e odilogo inter-religioso como atitude vital e como uma metodologiano caminho para a verdade. So muitos os exemplos desta meto-

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